O Globo - 23/05/2010
Leonardo Lichote
Coletânea reúne contos criados a partir de canções de Chico Buarque
Publicada em 23/05/2010 às 09h05m
RIO - Na compilação "Essa história está diferente - Dez contos para canções de Chico Buarque" (Companhia das Letras), Cadão Volpato, jornalista, escritor e cantor do grupo Fellini, escolhe basear sua narrativa na canção "Carioca". Mas, em vez de seguir o trajeto que o compositor propõe nos versos (uma panorâmica sobre um dia na Zona Sul da cidade, passando por cenários como Flamengo e Gávea), o autor narra a história de um homem que tem a vida docemente invadida por uma mulher que se diz carioca - e ele duvida que seja.
- Cadão trabalha pela ausência - define o escritor e jornalista Ronaldo Bressane, organizador da coletânea, que chega às livrarias no próximo dia 30 e que será lançada no dia 7 de junho, na Caixa Cultural, com a presença de alguns autores. - "Carioca" (a canção) soa no conto como o eco de um fantasma, através dessa carioca impossível, imaginária. Ele diz mais quando não diz.
Nenhum autor carioca
O conto que diz mais quando não diz, de um Rio que surge enviesado, levemente tangenciado, é uma ilustração - talvez a mais contundente - das intenções de Bressane ao escalar o time de escritores que participa da compilação. A ideia central era lançar sobre a obra de Chico - profundamente ligada à cidade, no entender do organizador - olhares não cariocas. E, dessa forma, ressaltar seu caráter universalista.
- "Paratodos" (dos versos "O meu pai era paulista/ Meu avô, pernambucano/ O meu bisavô, mineiro/ Meu tataravô, baiano/ Meu maestro soberano/ Foi Antonio Brasileiro") quase foi o nome do livro - conta Bressane. - O Rio é um norte para o Chico, mas sua obra também é universal. Não seria tão rico, tão estranho, inusitado se todos fossem cariocas.
Carioca 100%, no livro, não há um sequer - apesar de alguns morarem ou terem morado no Rio. Há os estrangeiros Carola Saavedra (Chile), Alan Pauls e Rodrigo Fresán (Argentina), Mario Bellatin (México) e Mia Couto (Moçambique). Do Brasil, participam o mineiro André Sant'Anna, o paulistano Volpato, o cearense Xico Sá e os gaúchos João Gilberto Noll e Luis Fernando Verissimo. Cada um escolheu uma canção e escreveu livremente - havia apenas um tamanho definido, que não foi totalmente respeitado - a partir dela. Com uma única restrição, lembra Bressane:
- Chico pediu que não usássemos "O velho Francisco", que ele ia usar em "Leite derramado".
As escolhas passam por clássicos como "Construção" ("Os fantasmas do massagista", de Bellatin) e "Olhos nos olhos" ("Olhos nus: olhos", de Mia Couto). Mas há presenças surpreendentes, como "Ela faz cinema" ("O direito de ler enquanto se janta sozinho", de Pauls) e "Outros sonhos" ("A mulher dos meus sonhos e outros sonhos", de Fresán), ambas do último disco do compositor.
- Quando pedi os contos, tive medo. Pensei: "Vai vir um monte de 'Morena dos olhos d'água'". Ou, então, cada conto para uma mulher das canções de Chico. Mas não teve isso. Me surpreendi sobretudo com os estrangeiros. Bellatin disse que seus pais o ouviam em casa, no Peru. Mas Pauls e Fresán o conheceram já adultos. Talvez por isso suas escolhas foram canções recentes, por eles não terem esse imaginário afetivo so$a obra, a canção vale apenas pelo que ela é. Para um volume 2, talvez devêssemos chamar uns americanos, para entender como é a relação deles com Chico - brinca o organizador.
" Verissimo transforma os protagonistas da canção 'Feijoada completa' num casal em crise "
Ainda mais que as escolhas, são abrangentes os olhares que os escritores lançaram sobre elas. "Brejo da Cruz", nas mãos de Sant'Anna, vira "Lodaçal", um delírio sujo e poético sobre os personagens que, nas letras de Chico, "eram crianças e que comiam luz" e, adultos, "são bilheteiras, baleiros e garçons". Verissimo transforma os protagonistas da canção "Feijoada completa" (o narrador e sua mulher, a quem ele se dirige nos versos) num casal em crise, numa história temperada com humor e um travo de acidez. Em "Um corte de cetim", baseado em "Folhetim", Sá põe seu narrador na mesa do bar Jobi, com a cabeça girando em torno da mulher que sumiu no carnaval - a personagem da canção era, originalmente, uma prostituta. "A mulher dos meus sonhos e outros sonhos" assume o tom onírico.
- É como ver por um cristal - diz Bressane. - De repente, aquele objeto se revela por um ângulo completamente torto, novo. O conto de Noll, por exemplo. Chico conta que "As vitrines" nasceu quando ele se perdeu de uma filha num shopping, uma galeria, e ficou procurando-a. Talvez ninguém nunca tenha visto aí o que Noll viu e o que baseia seu conto: as possibilidades obsessivas de alguém procurando outra pessoa pelo reflexo das vitrines.
A ideia de tratar o livro como um disco - com dez canções, cada uma numa cadência, um ritmo - chegou a ser cogitada pelos editores. Mas foi descartada:
- Seria forçado - avalia Bressane. - Porque os álbuns de Chico são tão orgânicos, coesos... Esse livro soaria como um best of bem esquizofrênico.
O compositor leu todos os contos, mas não quis ter participação no livro.
- Ele gostou muito do conto de Bellatin - revela o organizador. - Mas acredito que, no geral, tenha ficado assustado com o que foi criado a partir de sua obra
O Estado de S.Paulo - 21/05/2010
Antonio Gonçalves Filho
Quatro autores estrangeiros e seis brasileiros recriam o cancioneiro do compositor em Essa História Está Diferente
Chico. Estrangeiros escolhem temas mais densos; brasileiros usam ironia e tom rodriguiano
Chico Buarque não começou sua carreira como cantor ou compositor. Na adolescência, foi contista e cronista, escrevendo num jornal de colégio progressista dirigido por padres, antes de ser consagrado como escritor e receber prêmios importantes (como o Jabuti por Budapeste, em 2004). Talvez por isso as letras de suas canções estejam impregnadas de cifradas citações literárias - de Eurípides (Gota D"Água) a Maupassant (Geni) - e exerçam atração incomum sobre outros autores. Dez deles foram selecionados pelo escritor e jornalista Ronaldo Bressane (autor de Céu de Lúcifer) para recriar em prosa o cancioneiro de Buarque no livro Essa História Está Diferente, que chega às livrarias dia 27 e reúne dez contos de autores brasileiros e estrangeiros. Integram a última lista os argentinos Alan Pauls e Rodrigo Fresán, o mexicano Mario Bellatin, o moçambicano Mia Couto. Os seis brasileiros são o mineiro André Sant"Anna, o paulistano Cadão Volpato, a carioca Carola Saavedra, os gaúchos João Gilberto Noll e Luis Fernando Verissimo e o cearense Xico Sá.
Bressane não dirigiu os ouvidos de seus convidados. Concedeu a eles total liberdade para a escolha das canções, reinterpretadas ou simplesmente usadas como pretexto para a construção desses dez contos, concebidos em diferentes registros, que vão do cômico (caso da "versão" de Verissimo para Feijoada Completa) à tragédia social (a dos meninos de rua contada por André Sant"Anna com base na canção Brejo da Cruz). Entre o riso e o siso há lugar para uma viagem nostálgica de João Gilberto Noll, que toma a canção As Vitrines como guia do conto A Calça Branca, mudando o sexo dos personagens ao fazer da figura entrevista nas vitrines de uma galeria um homem que foi o primeiro amante do observador. Ele o vê à saída do cinema, acompanhado de um jovem com idade para ser seu filho. Nada demais. Também Chico se colocou no lugar de várias mulheres para compor canções hoje clássicas como Folhetim, revista e ampliada por Xico Sá no conto Um Corte de Cetim.
A canção fala de uma mulher fácil que fica feliz com uma pedra falsa ou um corte de cetim. A de Xico Sá é ainda mais libertina. Desmoraliza o companheiro traído, dividindo o corte de cetim vermelho que ganhou de presente com o amante para confeccionar suas fantasias de carnaval. Desse conto suburbano surge o retrato de um Brasil rodriguiano de que trata também Luis Fernando Verissimo em Feijoada Completa, baseado na canção homônima. O protagonista do conto é um sujeito folgado, que leva os amigos para tomar cerveja e comer o prato típico preparado pela patroa. Verissimo segue fielmente a letra, mas faz Carolina cozinhar a feijoada numa panela de pressão e ignorar o marido tosco, imitando no espelho Jeanne Moreau ao puxar o canto da boca e soltar um "pauvre type".
Curiosamente, os autores estrangeiros são mais solenes ao retrabalhar as canções de Buarque. O argentino Rodrigo Fresán, um dos grandes nomes das nova geração de escritores portenhos, transforma Outros Sonhos num impressionante conto sobre uma mulher em coma que dá à luz um garoto, cujo destino não será muito diferente. Adulto, ele receberá uma bala no cérebro e também entrará em coma. Alan Pauls retrabalha o conflito do casal de Ela Faz Cinema. O mexicano Mauro Bellatin, que não tem um braço, relata uma experiência pessoal e usa Construção como metáfora. Finalmente, o moçambicano Mia Couto fala de um caso de traição para recontar Olhos nos Olhos. Tocante.
Festival de Cinema Brasileiro de Paris presta tributo a Chico Buarque e faz retrospectiva documental
O Globo - 05/05/2010
Rodrigo Fonseca
RIO - Dias de Francisco, com direito a alguns dos sucessos mais célebres de Chico Buarque, aguardam os franceses que passarem pela sala de exibição Nouveau Latina, no bairro de Marais, de hoje até 18 de maio - período reservado pela Cidade Luz à 12 edição do Festival de Cinema Brasileiro de Paris. Esta tarde, às 14h (horário da França), "Benjamin" (2003), de Monique Gardenberg, será o primeiro dos filmes da seleção-tributo ao cantor e compositor promovida pela mostra parisiense, que trará sete longas-metragens em sua seção competitiva.
- Muito imagéticas, as músicas de Chico têm uma relação direta com o cinema. Sempre que ele publica um livro, como escritor, surge alguém disposto a transpor seus romances para a tela - diz Kátia Adler, curadora do festival.
Só faltou "Estorvo" (2000), de Ruy Guerra, na retrospectiva em homenagem a Chico. Mesmo assim, o cineasta moçambicano, parceiro do cantor em canções e peças, não ficou de fora do festival: Guerra será representado por "A ópera do malandro" (1985). Fecham a mostra "Chico no cinema" "Budapeste" (2009), de Walter Carvalho, e dois longas com trilhas assinadas pelo bardo carioca: "A ostra e o vento" (1997), de Walter Lima Jr, e "Dona Flor e seus dois maridos" (1976), de Bruno Barreto.
- Era necessário ter um artista completo como Chico em um evento que leva a cultura audiovisual brasileira para o exterior - diz Kátia.
Hoje, às 19h, em cerimônia para marcar a abertura do evento, Kátia agendou o documentário vencedor do prêmio do júri popular no Festival do Rio de 2009: "Dzi Croquettes", de Tatiana Issa e Raphael Alvarez. Rodado em coprodução com o Canal Brasil, o filme narra a trajetória do grupo de bailarinos, atores e cantores que conquistaram os palcos nacionais nos anos 1970, à força do carisma de artistas como Lennie Dale, Ciro Barcelos, Cláudio Tovar, Paulo Bacellar e Bayard Tonelli.
- É a primeira vez, em 12 anos de festival, em que escalamos um documentário para a abertura. Teremos ainda uma mostra voltada para o gênero, que tem contado um pouco da nossa História - diz Kátia, lembrando que o Festival de Cinema Brasileiro de Paris registrou sete mil espectadores em 2009. - Esse número é uma vitória, pois é pequena a distribuição de filmes nacionais na França.
Para a Semana de Documentários, Kátia reuniu dez longas. Levam realidade à telona do Nouveau Latina os filmes: "Barracão, um olhar carnavalesco", de Waldir Xavier; "Beyond Ipanema - As ondas brasileiras na música global", de Guto Barra e Béco Dranoff; "Cidadão Boilesen", de Chaim Litewski; "Herbert de perto", de Roberto Berliner e Pedro Bronz; "Continuação", de Rodrigo Pinto; "Luto como mãe", de Luis Carlos Nascimento; "Loki - Arnaldo Baptista", de Paulo Henrique Fontenelle; "Moscou", de Eduardo Coutinho; "Nasci para bailar", de Tetê Moraes; e "Titãs, a vida até parece uma festa", de Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves.
Para a disputa de longas, Kátia reuniu "Bollywood dream", de Beatriz Seigner; "Viajo porque preciso, volto porque te amo", de Karin Aïnouz e Marcelo Gomes; "Elvis e Madona", de Marcelo Laffite; "Histórias de amor duram apenas 90 minutos", de Paulo Halm; "Olhos azuis", de José Joffily; "Salve geral", de Sérgio Rezende, e "Sonhos roubados", de Sandra Werneck. Para o encerramento, foram convocados "O contador de histórias", de Luiz Villaça, e "Filhos de João - O admirável mundo dos Novos Baianos", de Henrique Dantas.
- Vamos ter, em sessões hors-concours, filmes voltados para plateias jovens, como "Besouro" e "Antes que o mundo acabe" - diz Kátia. - Vamos receber estudantes de português que terão contato com a língua, na tela grande, pela primeira vez.
O Globo - 05/05/2010
Rodrigo Fonseca
RIO - Dias de Francisco, com direito a alguns dos sucessos mais célebres de Chico Buarque, aguardam os franceses que passarem pela sala de exibição Nouveau Latina, no bairro de Marais, de hoje até 18 de maio - período reservado pela Cidade Luz à 12 edição do Festival de Cinema Brasileiro de Paris. Esta tarde, às 14h (horário da França), "Benjamin" (2003), de Monique Gardenberg, será o primeiro dos filmes da seleção-tributo ao cantor e compositor promovida pela mostra parisiense, que trará sete longas-metragens em sua seção competitiva.
- Muito imagéticas, as músicas de Chico têm uma relação direta com o cinema. Sempre que ele publica um livro, como escritor, surge alguém disposto a transpor seus romances para a tela - diz Kátia Adler, curadora do festival.
Só faltou "Estorvo" (2000), de Ruy Guerra, na retrospectiva em homenagem a Chico. Mesmo assim, o cineasta moçambicano, parceiro do cantor em canções e peças, não ficou de fora do festival: Guerra será representado por "A ópera do malandro" (1985). Fecham a mostra "Chico no cinema" "Budapeste" (2009), de Walter Carvalho, e dois longas com trilhas assinadas pelo bardo carioca: "A ostra e o vento" (1997), de Walter Lima Jr, e "Dona Flor e seus dois maridos" (1976), de Bruno Barreto.
- Era necessário ter um artista completo como Chico em um evento que leva a cultura audiovisual brasileira para o exterior - diz Kátia.
Hoje, às 19h, em cerimônia para marcar a abertura do evento, Kátia agendou o documentário vencedor do prêmio do júri popular no Festival do Rio de 2009: "Dzi Croquettes", de Tatiana Issa e Raphael Alvarez. Rodado em coprodução com o Canal Brasil, o filme narra a trajetória do grupo de bailarinos, atores e cantores que conquistaram os palcos nacionais nos anos 1970, à força do carisma de artistas como Lennie Dale, Ciro Barcelos, Cláudio Tovar, Paulo Bacellar e Bayard Tonelli.
- É a primeira vez, em 12 anos de festival, em que escalamos um documentário para a abertura. Teremos ainda uma mostra voltada para o gênero, que tem contado um pouco da nossa História - diz Kátia, lembrando que o Festival de Cinema Brasileiro de Paris registrou sete mil espectadores em 2009. - Esse número é uma vitória, pois é pequena a distribuição de filmes nacionais na França.
Para a Semana de Documentários, Kátia reuniu dez longas. Levam realidade à telona do Nouveau Latina os filmes: "Barracão, um olhar carnavalesco", de Waldir Xavier; "Beyond Ipanema - As ondas brasileiras na música global", de Guto Barra e Béco Dranoff; "Cidadão Boilesen", de Chaim Litewski; "Herbert de perto", de Roberto Berliner e Pedro Bronz; "Continuação", de Rodrigo Pinto; "Luto como mãe", de Luis Carlos Nascimento; "Loki - Arnaldo Baptista", de Paulo Henrique Fontenelle; "Moscou", de Eduardo Coutinho; "Nasci para bailar", de Tetê Moraes; e "Titãs, a vida até parece uma festa", de Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves.
Para a disputa de longas, Kátia reuniu "Bollywood dream", de Beatriz Seigner; "Viajo porque preciso, volto porque te amo", de Karin Aïnouz e Marcelo Gomes; "Elvis e Madona", de Marcelo Laffite; "Histórias de amor duram apenas 90 minutos", de Paulo Halm; "Olhos azuis", de José Joffily; "Salve geral", de Sérgio Rezende, e "Sonhos roubados", de Sandra Werneck. Para o encerramento, foram convocados "O contador de histórias", de Luiz Villaça, e "Filhos de João - O admirável mundo dos Novos Baianos", de Henrique Dantas.
- Vamos ter, em sessões hors-concours, filmes voltados para plateias jovens, como "Besouro" e "Antes que o mundo acabe" - diz Kátia. - Vamos receber estudantes de português que terão contato com a língua, na tela grande, pela primeira vez.
Folha de S. Paulo – 27/10/2009
da Folha Online
A revista "Bravo!" elegeu na noite desta segunda-feira os melhores da cultura de 2009, na 5ª edição do Prêmio Brabo! Prime de Cultura, realizada na sala São Paulo.
Com apresentação de Lázaro Ramos, o evento teve como tema o aniversário de 40 anos dos grandes festivais de música popular.
As categorias e os vencedores da 5ª edição foram:
Exposição individual
"Mar Morto", de Nuno Ramos
Melhor Espetáculo de Teatro
"O Quarto", de Roberto Alvim
Livro
"Leite Derramado", de Chico Buarque
Filme Nacional:
"Terra Vermelha", de Marco Bechis
Melhor Espetáculo de Dança:
"H3", de Bruno Beltrão e Grupo de Rua de Niterói
Show
"Luz Negra", da Fernanda Takai
Show de Música Popular
"Balangandãs", de Ná Ozzetti
CD de Música Erudita
'Neukomm no Brasil', de Ricardo Kanji e Rosana Lanzelotte
A categoria mais esperada da noite foi a de Artista Prime do Ano, nomeado por meio de votação popular, foi vencida pelo ator Selton Mello.
Nesta categoria concorriam Chico Buarque, Cildo Meireles, Fernanda Montenegro, Ferreira Gullar e Nelson Freire.
O prêmio de Personalidade Cultural do Ano escolheu um homenageado entre intelectuais, artistas, produtores culturais que se destacaram em suas áreas de atuação. O vencedor foi Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo.
Revista Rolling Stones - outubro/2009
"A canção é o termômetro de uma nação. Nós nos sentimos bem? Estamos mal? Precisamos lutar? Então, ouça nossas canções e nos conheça. Através dos tempos, a canção popular vem redesenhando a cara do Brasil, refletindo nossas incertezas e anseios, esperando que os tempos turbulentos fossem embora e que a celebração finalmente fincasse bandeira. Estas 100 canções atestam a perenidade da nossa música."
A Rolling Stone brasileira publicou este fim-de-semana uma lista com as 100 Maiores Músicas Brasileiras. Como no site eles apenas colocaram as 10 primeiras e até ao momento ainda não encontrei a lista completa num outro site, coloco apenas estas 10.Fiquei agradado com a escolha da canção para o primeiro lugar, a "Construção" de Chico Buarque, que também seria a minha opção.
Também gosto das restantes, de modo geral, embora pelas minhas preferências arranjasse lugar para Cartola , Novos Baianos e Noel Rosa nos primeiros.Segundo se lê por aí, as 100 canções contemplam entre outros Noel Rosa, Lobão, Tom Jobim, Cazuza, Marcelo Camelo, Zé Rodrix, Evandro Mesquita, Arnaldo Baptista, Rita Lee, Mano Brown, Geraldo Vandré, Silvio Caldas e Raul Seixas.Se alguém encontrar a lista toda, que coloque aqui :) .
Nº 1 - "Construção" - Chico Buarque
Nº 2 - "Águas de Março" - Elis Regina & Tom Jobim Nº 3 - "Carinhoso" - Pixinguinha
Nº 4 - "Asa Branca" - Luiz Gonzaga
Nº 5 - "Mas Que Nada" - Jorge Ben
Nº 6 - "Chega de Saudade" - João Gilberto
Nº 7 - "Panis et Circencis" - Os Mutantes
Nº 8 - "Detalhes" - Roberto Carlos
Nº 9 - "Canto de Ossanha" - Baden Powell/ Vinicius de Moraes
Uma versão com mais peso instrumental
Nº 10 - "Alegria, Alegria" - Caetano Veloso
Folha de S. Paulo – 04/07/2009
MARCOS STRECKER - RAQUEL COZER - SYLVIA COLOMBO
ENVIADOS ESPECIAIS A PARATY
Compositor e autor de "Leite Derramado" falou ontem à noite em mesa com Milton Hatoum, de "A Cidade Ilhada"
"Não sei exatamente onde encontrei meu romance. Queria escrever, não queria mexer com música", disse Chico Buarque em Paraty
Chico escreve para ler. Para ele, "escrever é uma chatice". "Antes de começar a escrever, eu lia tudo desde o começo", disse Chico, em um dos comentários na mesa Sequências Brasileiras, ontem à noite na 7ª Festa Literária Internacional de Paraty.
Dividindo o microfone com o escritor Milton Hatoum -mediados pelo tradutor Samuel Titan Jr.-, Chico falou de diversos aspectos de seu livro "Leite Derramado".
"Não sei exatamente onde encontrei meu romance. Queria escrever, não queria mexer com música. Assim como nunca estive em Budapeste, nunca estive em 1929, quando se passa a ação. E encontrei meu narrador ao ouvir novamente a música "O Velho Francisco" [1987], um velho centenário, da época do Império ainda."
Foram apontadas semelhanças nos livros dos dois autores. Ambos disseram ser inocentes e que não tinham copiado do outro, arrancando algumas risadas do público que lotou a Tenda dos Autores.
Chico disse que deu um "google" para saber mais detalhes sobre o tema do livro de Hatoum, "A Cidade Ilhada". E contou que não fez pesquisa histórica rigorosa. "São coisas que eu ouvi. Não tenho 100 anos, mas tenho 65. Com a idade, a gente passa a ter mais intimidade com o passado. Claro que, como filho de historiador, ouvi falar muito em casa, informações paralelas, fofocas que não saíam nos livros."
Um exemplo: "Um primo comprou a cama da Marquesa de Santos e queria saber como autenticar aquilo. e meu pai falou: "Mas a marquesa de Santos tinha muitas camas, essa não vale nada" e coisa assim".
A fila para ver a mesa de Chico e Hatoum começou logo depois das 17h, assim que as pessoas que esperavam para ver a palestra anterior, de Mario Bellatin e Cristovão Tezza, entraram. Mas desde as 13h as aposentadas Maria Hilda Andrade, 73, e Maria Odete Franco, 74, andavam por ali observando, "com receio de que se formasse uma fila". As duas saíram de Salvador, na Bahia, quase um mês depois de garantir o ingresso para ver Chico. De quebra, já que em 1º de junho estavam no primeiro lugar da fila, compraram o ingresso do show de abertura e o da mesa de Richard Dawkins
Ultimo segundo -03/07 - 22:02
Marco Tomazzoni, enviado a Paraty
PARATY – Só de entrar na Tenda dos Autores, já dava para perceber que algo estava diferente. A quantidade de fotógrafos na beira do palco, os cinegrafistas amontoados ao fundo e a ausência de qualquer lugar vago na plateia denunciavam: Chico Buarque estava para chegar. A maior estrela da sétima edição da Flip participou nesta sexta-feira (03) da última conferência do dia, “Sequências brasileiras”, e ao contrário do que se imaginava, a presença do astro não ofuscou nem um pouco seu companheiro de mesa, Milton Hatoum, apesar da constelação de flashes que pipocou entre as cadeiras quando o compositor adentrou o recinto. Mediados pelo professor Samuel Titan Jr., os dois protagonizaram um brilhante painel sobre suas últimas obras, publicadas neste ano.
"Escrever é muito chato", brincou Chico, em noite bem-humorada na Flip
O curioso, e que inspirou a reunião do par em Paraty, são as similaridades entre os trabalhos os livros. Tanto “Órfãos do Eldorado”, de Hatoum, e “Leite Derramado”, de Chico, são narrados por velhos centenários, atordoados por personagens femininas envolventes e marcantes. As coincidências são tão fortes que Chico confessou ter pensado, ao ler a novela de Hatoum: “Diabo, esse cara copiou meu livro! E ainda lançou mais rápido, em março”, brincou. Mais tarde, bem à vontade, voltou à carga: “Imaginação não existe, tudo já estava no Google. No meu e no seu”.
Encomendado por uma editora escocesa, “Órfãos do Eldorado” começou através de uma história que Hatoum vivenciou na infância e ficou latejando na memória. Já havia escrito metade do livro quando percebeu que se encaminhava para um épico de 200 páginas, embora seu limite fosse de 25 mil palavras. Como resultado, precisou parar tudo, repensar o narrador e a narrativa para concluir o projeto. “Foi uma angústia, tinha só um ano para acabar. Nunca mais faço encomenda, nem de bilhete.”
Acostumado às estruturas mais robustas de seus romances anteriores – “Cinzas do Norte”, “Dois Irmãos” –, o escritor precisou acomodar em pouco espaço uma trama que trabalha com o mito amazonense do Eldorado, a cidade encantada, e se desenrola por mais de um século, desde a Guerra da Cabanagem, na década de 1830. “Foi um exercício de concisão escrever uma novela. Juntar tanta coisa foi como transformar toda uma construção amazônica em uma palmeira nua.”
Das pesquisas para ambientar o livro, se preocupou em não se basear pura e simplesmente nas lendas da região, onde nasceu. O objetivo, segundo Hatoum, era partir do popular para chegar à sua própria história. “A ideia era escrever um relato em que o mito se transformasse em uma narrativa de ficção, realista. Quando o mito começa a perder sua crença, aí torna-se ficção.”
Chico disse não saber exatamente quando o velho Eulálio, de “Leite Derramado”, surgiu. Contou que, ao contrário dos escritores, quando termina um romance não quer mais saber de literatura. Como haviam se passado seis anos desde “Budapeste”, teve que reaprender como se escreve um livro e começou, curiosamente, lendo sobre barcos e as crônicas verídicas de um certo navio francês que viajava pela costa brasileira. O estalo se deu quando ouviu uma música sua que julgava esquecida, “Velho Francisco”, regravada por Monica Salmaso. “Naquela letra de um velho contando histórias, com memória remota, encontrei meu narrador.”
A partir daí, chegou ao enredo, no qual um aristocrata decrépito em uma casa de hospital relembra, em um vai-e-vem de imagens confusas, as glórias da família, em berço de ouro desde os tempos do Império, e a derrocada emocional e financeira depois de seu casamento na juventude. Tão enxuto quanto o livro de Hatoum, “Leite Derramado” foi até motivo de piada para Chico. “Escrever é muito chato. Sem a fonte grande e o espaçamento, seria um livro honestamente com 150 páginas. Se tirasse tudo que o sujeito repete, então, ficaria com 20.”
O trânsito fácil com as décadas passadas – a ação da história se passa boa parte em 1929 – se deve, mais do que à pesquisa, ao próprio passado de Chico e à convivência com seu pai, o sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda. “Com a idade, a gente começa a ter intimidade com o passado, lembranças claras. E como filho de historiador, lembro das coisas que ele falava. Papai gostava muito de fofoca e conversava com os amigos essas histórias que não estão nos livros.”
Respondendo às perguntas do plateia, o compositor não conseguiu fugir do assunto e sim, falou de música, mas para falar que quando escreve, não mexe com nada disso nem ouve coisa alguma. “Não vejo ligações maiores entre letra das músicas com literatura, apesar de preciso ver se as frases são cantaroláveis em algum lugar da minha cabeça.” Ao mesmo tempo, confessou que não consegue ver uma hierarquia de qual arte é mais importante. “Não sei se Guimarães Rosa é mais importante do que João Gilberto, e não sei se algum dia vou saber.”
G1.com 03/07/2009
Shin Oliva Suzuki
Compositor confessou que prefere ser leitor do que escritor. Ele participou de debate com Milton Hatoum na sexta (3) em Paraty.
Milton Hatoum e Chico Buarque durante debate na Flip, nesta sexta-feira (3) (Foto: Na mesa mais aguardada da Flip deste ano, Chico Buarque e Milton Hatoum aproveitaram as semelhanças entre suas carreiras literárias e os traços em comum em seus mais recentes livros para dar ao público em Paraty um debate bem amarrado sobre lembrança, a tarefa de criar e a necessidade de ir a campo para escrever.
O mediador Samuel Titan Jr. lembrou que tanto Chico quanto o amazonense Hatoum têm quatro livros publicados e fizeram uma viagem memorial por cenários brasileiros nos seus recentes “Leite derramado” e “Órfãos do Eldorado”, respectivamente
. Os desafios no momento de colocar as ideias no papel também foram um dos focos da conversa entre os dois. Chico surpreendeu ao dizer que não sente tanto prazer no ato da escrita. "Eu escrevo muito devagar. Escrever é uma chatice. Gosto mais de ler do que de escrever", disse ele, que tem como protagonista de sua última obra um homem centenário cujas memórias fazem um retorno que atinge até a época da abolição da escravatura e da proclamação da República
. Ao colocar a leitura acima do ato de escrever, Chico Buarque revelou um de seus hábitos que ajudam na condução da trama a ser criada. "Todo dia, antes de começar a escrever, eu lia o meu livro desde o começo, de maneira que ele ficava todo na minha mão."
Hatoum, festejado escritor que explora o cotidiano e as histórias da região amazônica - como ele mesmo diz - de maneira universal, relatou justamente esse desafio na composição de seu "Órfãos do Eldorado".
"Eu queria que o mito se transformasse numa narrativa de ficção. O desafio foi transformar o relato mítico numa narrativa realista", afirmou Hatoum
. Quanto a necessidade de pesquisa para compor o cenário de seus livros, Chico Buarque lembrou alguns lugares do Amazonas que aparecem na obra de Hatoum e emendou com um comentário algo saudosista sobre o mundo pré-internet: "a imaginação já não existe mais, agora tudo está no Google"
. Em um momento mais entusiasmado sobre o presente, o cantor e escritor saudou o escritor de quadrinhos Lourenço Mutarelli, elogiando seu primeiro romance. "Quando li 'O cheiro do ralo' eu pensei: isso aqui é muito novo, isso é muito bom. Só podia ser um livro escrito por um quadrinista. É muito bom que ele tenha trazido isso para a literatura.", afirmou Chico
. E ainda provocou o mundo da literatura brasileira por reclamar da concepção de que a música popular é uma espécie de prima pobre dos livros. "Eu não concordo. Não sei se Guimarães Rosa é mais importante do que João Gilberto. Não sei." A plateia - que não reagiu ao comentário literatura x música popular - não manifestou a histeria normalmente vista em seus shows. Sem gritinhos - ou no máximo suspiros contidos - o Chico Buarque escritor foi deixado em paz.
O Estado de S.Paulo 03/07/2009
Antonio Gonçalves Filho, enviado especial
Autores de "Leite Derramado" e "Órfãos de Eldorado" se encontram na Flip e falam sobre a simbiose das obras
PARATY, RJ - A reunião de dois gigantes da literatura brasileira, Chico Buarque e Milton Hatoum, na noite desta noite, na 7ª Festa Literária Internacional de Paraty, não foi exatamente um debate, como estava programado, mas um verdadeiro encontro, no sentido mais amplo da palavra. Nele, ambos reconheceram semelhanças extraordinárias em seus respectivos livros. Num caso único de simbiose na literatura contemporânea brasileira, dois livros, "Órfãos de Eldorado", de Milton Hatoum, e "Leite Derramado", de Chico Buarque, estavam sendo pensados ao mesmo tempo com um objetivo muito parecido: usar a memória centenária de um narrador para traçar um panorama histórico do País.
O livro de Hatoum foi publicado antes e Chico revelou que, ao ler a história de Estiliano, personagem criado pelo escritor amazonense, sua reação foi: "Diabos, esse cara copiou meu livro". Depois se deu conta que "Leite Derramado" não tinha sequer título e ainda estava sendo escrito. Hatoum teve reação semelhante quando saiu o livro de Buarque: "Mas essa é a história que eu contei para o Chico". Não se trata de plágio, evoque-se. Os dois realmente contaram histórias um para o outro em ocasiões anteriores, esqueceram-se delas, voltaram a lembrar e adaptaram episódios que lhe pareceram mais interessantes.
No caso de Hatoum, a recomendação da editora escocesa que lhe encomendara a novela tinha sido clara: queria que fosse baseada num mito amazônico. Uma novela condensada. Buarque não tinha qualquer compromisso com a editora brasileira de ambos, a Companhia das Letras. Passou um ano e meio pesquisando e lembrando histórias contadas pelo pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda - ele confessa que nunca foi um bom leitor de história. Como Hatoum, buscou a concisão e revelou que poderia ter escrito uma novela de 20 páginas, não fosse seu narrador um homem centenário cuja memória já está mais prejudicada de que a de Delphine Seyrig no filme "O Ano Passado em Marienbad", de Resnais.
Na velhice, como diz o velho narrador de Chico, "a gente dá para repetir casos antigos" e, na fosse tão falha a memória do carcomido aristocrata à beira do túmulo, ele não precisaria de 150 páginas para contar como mudou a história do Brasil neste último século para que tudo permanecesse exatamente igual, do preconceito racial à corrupção. Chico brincou com o amigo Hatoum, lembrando que esse narrador lhe azucrinou a vida durante um ano e meio, tirando seu sono e deixando ao escritor como herança uma perna quebrada. Assustado como a ficção tomava conta de sua vida real, o cantor e compositor deve ter encurtado a novela para se livrar do velho narrador azarento.
"Guimarães Rosa também engavetou um livro sobre um velho habitante de um casarão", lembrou Chico, citando "A Fazedora de Velas", que o autor de "Grande Sertão: Veredas" conservou durante anos no fundo de uma gaveta. "Rosa ficou com a mesma doença do seu velho e depois reconheceu o casarão que ele imaginou numa viagem a Minas". Chico, admite, encurtou o livro por precaução, ou por acreditar na observação de Octavio Paz evocada por Hatoum, de que o romancista é o biógrafo de espectros. "Fiquei um ano e meio ouvindo a voz do meu narrador e foi difícil me despir dele, porque, apesar de seus preconceitos, acabei tendo certa empatia por ele", revelou Chico, numa noite de surpreendente verborragia, ele que detesta entrevistas e odeia falar de seus livros.
Mais de 800 pessoas disputaram um lugar na Tenda dos Autores, em Paraty, para ouvir Chico Buarque e Milton Hatoum num debate mediado pelo professor de literatura Samuel Titan Jr., que falou das semelhanças entre os livros e das referências adotadas por cada um deles, Hatoum enumerou algumas: Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Kaváfis e Mário Sá-Carneiro. Chico teria demorado mais: só pelo navio criado por ele em "Leite Derramado" desfilam figuras históricas como Santos Dumont, Josephine Baker e o arquiteto da modernidade, Lê Corbusier. Resta ao leitores montar esse mosaico.
– Eu não sei exatamente quando encontrei meu romance – conta Chico. Quando terminei Budapeste, fiquei 5 anos sem escrever nada. Mas muita gente me perguntava por que escrevi sobre um país que eu não conhecia. Então comecei a me perguntar se não seria bom escrever também sobre uma época que não conheci. Por isso o Leite derramado se passa na década de 20, embora, por meio da memória dos ancestrais do protagonista, o Eulálio, eu chegue até o Império.
Então o escritor foi tomado por coincidências, que o levaram ao cenário do romance:
– Comecei por acaso a ler muito sobre navios. Descobri que um navio francês, em especial, tinha histórias ótimas. Nele, viajaram Pixinguinha, Santos Dumont e mesmo o Le Corbusier. E esse navio aparece muito no romance – relata. – Mas foi mesmo ao ouvir uma música minha, O velho Francisco, que cheguei à ideia da história. Porque a canção me fez lembrar que a memória remota é muito mais forte que a recente. Daí meu protagonista ser um homem centenário.
Já Órfãos do Eldorado, de Hatoum, começou a ser escrito a pedido de uma editora estrangeira. Mas, acostumado a romances mais longos, o amazonense se viu em apuros quando se deu conta de que já havia ultrapassado, em muito, o tamanho da encomenda.
– Tive que refazer tudo. Essa coisa de encomenda é terrível. Nunca mais faço nada de encomenda. Nem bilhete – brincou.
Foi sobre tamanho, aliás, outra piada de Chico:
– Meu livro tem 200 páginas, mas, se levarmos em conta o tamanho da fonte, que é grande, ele honestamente só tem 150. Aliás: como as histórias se repetem toda hora (devido aos esquecimentos do protagonista), podemos chegar à conclusão de que Leite derramado só tem mesmo 20 páginas.
JBONLINE 03/07/2009
Juliana Krapp, Jornal do Brasil 03/07/2009
Chico Buarque monopolizou as atenções
PARATY - Não teve para mais ninguém. Mesmo o americano Gay Talese – que já virou figurinha fácil, circulando com seu chapéu panamá pelas ruas do balneário – e o português António Lobo Antunes, cuja aparição no Brasil é coisa rara, pareceram esquecidos no terceiro dia de Flip (ambos apresentam-se sábado). A sexta-feira foi mesmo do brasileiríssimo Chico Buarque. Sua presença, ao lado do amazonense Milton Hatoum, fez com que não houvesse um único lugar vazio na Tenda dos Autores. Também fez com que uma multidão se estendesse ao redor da Tenda do Telão, na tentativa de ver ao menos uma nesga da figura do autor de Leite derramado. Na rua, um grupo de fãs indagava a quem passasse se teria ingressos para vender. E a organização do evento teve de dividir os fotógrafos em turnos para clicar a concorridíssima apresentação.
Enquanto isso, Chico e Hatoum, mediados por Samuel Titan Jr., eram pura serenidade no palco. Narraram com bom humor o processo de criação de seus últimos livros, e até fizeram piada das semelhanças entre Leite derramado, e Órfãos do Eldorado, de Hatoum.
– Quando estou escrevendo um livro, não leio outros romances – contou o carioca. – Por isso só fui ler o Órfãos do Eldorado quando terminei o Leite. E aí pensei: “mas esse cara me copiou!”. E ele ainda me copiou mais rápido, porque terminou antes de mim (o título de Hatoum é de 2008, enquanto o de Chico acaba de ser publicado).
Apesar de terem estilos muito bem demarcados, ambos os livros possuem, de fato, pontos em comum: uma personagem feminina misteriosa, tramoias de poder e um uso muito bem construído dos artifícios da memória.
– Eu não sei exatamente quando encontrei meu romance – conta Chico. Quando terminei Budapeste, fiquei 5 anos sem escrever nada. Mas muita gente me perguntava por que escrevi sobre um país que eu não conhecia. Então comecei a me perguntar se não seria bom escrever também sobre uma época que não conheci. Por isso o Leite derramado se passa na década de 20, embora, por meio da memória dos ancestrais do protagonista, o Eulálio, eu chegue até o Império.
Então o escritor foi tomado por coincidências, que o levaram ao cenário do romance:
– Comecei por acaso a ler muito sobre navios. Descobri que um navio francês, em especial, tinha histórias ótimas. Nele, viajaram Pixinguinha, Santos Dumont e mesmo o Le Corbusier. E esse navio aparece muito no romance – relata. – Mas foi mesmo ao ouvir uma música minha, O velho Francisco, que cheguei à ideia da história. Porque a canção me fez lembrar que a memória remota é muito mais forte que a recente. Daí meu protagonista ser um homem centenário.
Já Órfãos do Eldorado, de Hatoum, começou a ser escrito a pedido de uma editora estrangeira. Mas, acostumado a romances mais longos, o amazonense se viu em apuros quando se deu conta de que já havia ultrapassado, em muito, o tamanho da encomenda.
– Tive que refazer tudo. Essa coisa de encomenda é terrível. Nunca mais faço nada de encomenda. Nem bilhete – brincou.
Foi sobre tamanho, aliás, outra piada de Chico:
– Meu livro tem 200 páginas, mas, se levarmos em conta o tamanho da fonte, que é grande, ele honestamente só tem 150. Aliás: como as histórias se repetem toda hora (devido aos esquecimentos do protagonista), podemos chegar à conclusão de que Leite derramado só tem mesmo 20 páginas.
O Globo 14/04/2009
A organização da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) confirmou nesta terça-feira a presença do músico e escritor Chico Buarque na sétima edição do evento, que será realizada de 1 a 5 de julho. Será a segunda participação de Chico na Flip: ele esteve na festa em 2004, quando participou de uma mesa com o escritor americano Paul Auster. O compositor estreou como escritor em 1966, com o livro "A banda", que reunia manuscritos das primeiras canções, o conto "Ulisses" e um texto de Carlos Drummond de Andrade. Chico, porém, costuma dizer que sua carreira literária começou para valer com "Estorvo", livro que lhe valeu o Prêmio Jabuti em 1992. Em 2004, ele ganhou de novo o prêmio, desta vez por "Budapeste" (Companhia das Letras). Seu mais recente livro, "Leite derramado" (Companhia das Letras), conta a história da derrocada de uma família, e foi recebido com elogios pela crítica. No Prosa & Verso, José Castello afirmou que é "um dos mais importantes romances lançados no país nesta primeira década do século XXI". Vários outros nomes de peso já estão confirmados na Flip este ano: o português António Lobo Antunes, o mexicano Carlos Fuentes, a irlandesa Anne Enright, os britânicos Richard Dawkins e Simon Schama, o afegão Atiq Rahimi, os americanos Gay Talese e Alex Ross e as francesas Sophie Calle e Catherine Millet. Entre os brasileiros, já disseram que estarão lá o romancista Cristovão Tezza, autor de "O filho eterno" (Record), e os quadrinistas Rafael Grampá, Fábio Moon, Gabriel Bá e Rafael Coutinho. O debate entre eles será mediado pelo escritor Joca Terron.
Revista Bravo - Abril/2009
João Gabriel de Lima
O novo romance de Chico Buarque, o novo CD de Caetano Veloso e as trajetórias paralelas dos dois grandes artistas brasileiros
Numa cena do filme Invasões Bárbaras, um dos clássicos da primeira década do século 21, um grupo de professores de história elabora a teoria da "quantidade de inteligência". Segundo eles, por razões aleatórias, existem determinados momentos e lugares com alta concentração de gente talentosa, e essas pessoas fazem a diferença em suas épocas. São citadas no filme a Florença de Dante e Boccaccio e a Filadélfia dos "pais fundadores" da revolução americana. Aplicando a teoria à vida cultural brasileira, pode-se dizer que o país viveu uma espécie de auge nos anos 60 e 70, explosão criativa da música popular (e, por mais que se cunhem teorias pretensamente sociológicas — a mais famosa e absurda diz que a arte floresce em períodos de ditadura —, nada explica isso além da sorte). Primeiro veio a bossa nova de Tom Jobim e João Gilberto. Depois, a MPB surgida nos festivais, com Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Tom Zé e Gilberto Gil. Esses músicos têm em comum, além do talento, a carreira extremamente longa, que dura até os dias de hoje. Numa coincidência digna da teoria da inteligência aleatória de Invasões Bárbaras, dois desses artistas darão à luz novas criações neste mês de abril. Saem o novo CD de Caetano Veloso, Zii e Zie, e o novo romance de Chico Buarque, Leite Derramado. Disco e livro são pontos de chegada de trajetórias paralelas — e o lançamento simultâneo provoca reflexões sobre a cultura brasileira e sobre o caminho que ambos percorreram para chegar até aqui.
Não existem mais artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso — os ícones de geração, os compositores que são chamados a opinar sobre todos os assuntos. Nos anos 90, o poeta carioca Bruno Tolentino (1940-2007) observou, numa entrevista famosa, que no Brasil eram os cantores populares, e não os escritores ou intelectuais da academia, que pautavam o debate cultural. Tolentino emitiu sua observação em tom de crítica — ele via isso como um sintoma de decadência. O que faltou em seu raciocínio foi observar que acontecia o mesmo no resto do mundo. Se os anos 40 e 50 foram dos escritores e filósofos, em que nomes como Norman Mailer e Jean-Paul Sartre pontificavam sobre todos os assuntos, os 60 e 70 foram dos astros da música pop. Artistas como John Lennon, Paul McCartney, Bob Dylan e David Bowie, entre outros, eram considerados as "antenas" de um período de intensa mudança cultural e de costumes. É um pouco espírito de época, mas também mérito de uma geração excepcionalmente talentosa — é só pensar que apenas no ano de 1966 foram lançados pelo menos três álbuns clássicos da música de todos os tempos, Blonde on Blonde (Bob Dylan), Pet Sounds (Beach Boys) e Revolver (Beatles). Cantores como Chico Buarque e Caetano Veloso eram as versões brasileiras desse fenômeno. É uma simplificação, no entanto, entender tudo isso apenas como marca de um tempo, ignorando as peculiaridades e contribuições particulares de cada artista.
Numa comparação redutora porém ilustrativa, Chico e Caetano estão para a MPB assim como Bob Dylan e David Bowie para o pop internacional. Dylan e Chico se destacam mais pela qualidade de suas letras do que por suas performances, em geral discretas, em shows. Mais do que bons compositores, letristas e intérpretes fulgurantes, Bowie e Caetano são famosos pelas diversas reviravoltas que deram em suas carreiras, captando diferentes espíritos de época. Bowie usou sintetizadores para falar de viagens espaciais nos anos 60, foi andrógino nos 70 (era o principal nome do glitter, o velho e colorido rock-lantejoula) e voltou a ser roqueiro nos 80. Caetano surgiu no tropicalismo dos anos 60, escreveu o "hino do desbunde" nos anos 70 (a música Odara), foi pioneiro na utilização de sonoridades do pop na MPB da década de 1980 (o marco é o memorável álbum Velô) e ainda promoveu o relançamento de clássicos da música latina nos 90. Tudo isso enquanto Chico Buarque lapidava seu estilo de composição calcado nas raízes da MPB — e Bob Dylan se aprimorava cada vez mais em sua peculiar fusão de blues e música country engajada.
Neste mês em que Caetano e Chico lançam seus novos CD e romance, é interessante comparar os pontos de chegada das duas trajetórias. Chico, o compositor que fazia incursões no teatro e criava personagens em suas letras (Pedro Pedreiro, Ana de Amsterdam, Bárbara), se tornou escritor. Continuou fazendo música embora tenha declarado, em entrevistas, que considerava a canção uma "arte de juventude", em contraposição à literatura, que seria uma forma de criação mais madura (leia texto ao lado). Enquanto isso, Caetano dava nova reviravolta em sua carreira ao se aproximar de músicos jovens e lançar um álbum antológico, Cê. Não parou por aí: criou um blog, lançou músicas na internet, testou-as no show e as reuniu no novo álbum, Zii e Zie, tornando-se talvez o artista brasileiro da área musical que melhor entendeu a interatividade dos novos tempos (leia texto a partir da página 32). Tempos estes em que a multiplicidade de criadores de todas as áreas explode na internet. Em que não existe mais o que se chamava antigamente de mainstream. Em que, no Brasil ou lá fora, se observa o fim dos ícones de geração — e não se espera mais que cantores sejam "antenas da raça" ou falem sobre todos os assuntos. Nestes tempos de cauda longa, Caetano Veloso e Chico Buarque encontraram, cada um a seu modo, suas vozes. Chico na literatura. Caetano nos sites de música, no blog, no show, no CD...
Prosa & verso 28/03/2009
Exemplo obrigatório sempre que alguém resolve discutir (mais uma vez) se afinal letra de música é ou não poesia, o cancioneiro de Chico Buarque (ao lado, em foto de Sérgio Barzaghi/Diário de S. Paulo, num show em 30-08-2006) serve agora de inspiração para dez escritores reunidos num livro de contos que será lançado no final do ano pela Companhia das Letras (registre-se, a propósito, que em seu depoimento no documentário “Palavra encantada”, de Helena Solberg, Chico diz que letras e poemas até podem se aproximar, mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, como diria o filósofo).
Quem teve a ideia foi o produtor cultural Rodrigo Teixeira, também responsável pelo projeto Amores Expressos.
— Foi num dia em que eu estava ouvindo a Monica Salmaso cantar “O velho Francisco” num show. Gosto muito do Chico, mas nesse dia específico a voz dela conversou comigo mais do que de costume. Comecei a prestar atenção na letra e a ver um filme nela — lembra.
Com aval de Chico para tocar o livro, ele chamou o jornalista e escritor Ronaldo Bressane, que ficou encarregado de reunir os autores.
— Foi muito divertido, tipo montar equipe de botão — diz Bressane. — A gente queria craques, revelações e jogadores polivalentes. Outro eixo para a escolha do escrete foi a variedade não só de registro literário como de “descarioquice”: pensamos em caras que não teriam nada a ver com o universo carioca buarqueano, para exaltar sua brasilidade e até universalidade.
Entre os autores, há quatro estrangeiros: os argentinos Alan Pauls (“Ela faz cinema”) e Rodrigo Fresan (“Outros sonhos”), o moçambicano Mia Couto (“Olhos nos olhos”) e o mexicano Mario Bellatin (“Construção”). Os brasileiros são André Sant’Anna (“Brejo da Cruz”), Cadão Volpato (“Carioca”), Carola Saavedra (“Mil perdões”), João Gilberto Noll (“As vitrines”), Luis Fernando Verissimo (“Feijoada completa”) e Xico Sá (“Folhetim”).
Responsável pela edição da obra, Thyago Nogueira diz que os autores escolheram formas variadas de diálogo com as canções, alguns inserindo trechos da letra em diálogos, outros fazendo referências mais indiretas. João Gilberto Noll diz que seu conto tem elementos autobiográficos:
— Sempre que ouvia “As vitrines”, eu imaginava o ambiente da Galeria Menescal, em Copacabana. Transpus esse cenário para o conto, me estendendo um pouco para a galeria onde ficava o cinema Condor, poucos passos adiante. Esse lugar de multidões e muito trânsito me deu a nota inicial. Talvez tenha escolhido essa canção por me remeter para a rua, para os espaços públicos. Grande parte dos meus livros tem nas ruas um forte estímulo para a ação. É o que acontece nesse conto, que é uma homenagem ao Rio da minha juventude. O protagonista é um gaúcho recém-chegado na cidade. Como seria o meu quadro nos inícios dos anos 70.
Já Carola Saavedra desenvolveu dramaticamente a situação de traição e ciúme apresentada em “Mil perdões”, explorando a ambiguidade da música de Chico:
— A letra de “Mil perdões” é bastante direta, e ao mesmo tempo muito sutil. Nela, a mulher perdoa o homem por havê-lo traído, dando a entender que se ela o traiu, a culpa foi dele, que o seu ciúmes contribuiu para que ela o fizesse. Por outro lado, sugere outra alternativa, a de que a mulher tire da traição um prazer sádico, um prazer que surge da humilhação que ela impõe ao homem. Essa impossibilidade de classificar certo e errado num relacionamento amoroso é o que mais me interessou. Gosto da ambiguidade, da ideia de que todos somos inocentes e todos somos culpados nesses casos.
Prosa & verso 28/03/2009
O conto abaixo, do escritor argentino Alan Pauls, é baseado em "Ela faz cinema", de Chico Barque. A história fará parte de um volume com dez contos de diferentes escritores inspirados em músicas de Chico que será lançado no fim do ano pela Companhia das Letras.
O direito de ler enquanto se janta sozinho ("Ela faz cinema")
But all you have to do is look at me to know
That every word is true.
Andrew Lloyd Webber/Tim Rice, Evita
Ainda estava trêmulo ao estacionar. Ficou com as mãos agarradas ao volante por um momento, o motor ligado, os olhos fixos no túnel negro da rua. Depois, por fim, insuflou um pouco mais os pulmões, como se destravasse um mecanismo, e soltou um jorro de ar interminável, tão profundo, que só então caiu em si: era a primeira vez que respirava desde que cruzara a porta do Samurai, feito um bólido de ódio, e fora para a rua. Dirigira todo o trecho que ia do restaurante até a escola como um sonâmbulo. Estava com os nós dos dedos arroxeados. As unhas deixaram-lhe uma série de sorridentes meias-luas vermelhas na palma das mãos. Desligou o motor, e com o silêncio as formas das coisas voltaram a desenhar-se: as árvores, os carros estacionados no quarteirão, o alambrado do clube, o futurismo fora de moda do edifício da escola.
Como sempre, todas as possibilidades de ação que não lhe haviam ocorrido antes, quando mais precisava delas, assaltavam-no agora como saldos de final de estação. Choviam-lhe réplicas precisas, ao mesmo tempo sutis e agressivas, que faziam o maître do Samurai emudecer e as pessoas que jantavam no local tomarem seu partido. Transformava-se em máquina de argumentar: máquina minuciosa, impassível, tão japonesa quanto esse diminuto súdito do império que acabava de humilhá-lo. Argumentava com tanta convicção que não precisava ser brutal. Nem sequer se defendia. Simplesmente reunia alegações em defesa de uma causa que ia muito além dele, de seu orgulho atropelado, e se tornava universal. E à medida que as desfiava, elegante e frio como um profissional, chegava a dar-se ao luxo de saborear o ensaio que algum dia escreveria sobre o assunto. Depois imaginou um fecho de ouro: numa espécie de apoteose triunfal, irrisória, levantava-se da mesa, entornava com calculada imperícia o molho de soja sobre o linho branco, impecável, da toalha, passava diante do maître e, jogando-lhe na cara o livro da discórdia, saía sem pagar, tão arrojado e seguro de si, da justiça de sua causa, que ninguém fazia nada para impedi-lo, e nem ele mesmo sabia, já na rua, como chegara até ali. Quis refrear-se, mas era mais forte do que ele. Sua imaginação nunca era tão voraz como quando começava a corrigir o passado. E se não conseguia parar era, também, porque um resto de decência continuava a manter na linha a única coisa que agora lamentava não ter feito: moer de pancada aquele cretino. De modo que quando se despenhou preferiu deixar-se levar por uma versão estilizada de seus piores anseios: dava um passo em direção ao maître, açoitava-lhe uma das faces com o guardanapo e um segundo depois escolhia sabres para o duelo e o enfiava, ou melhor: plantava o sabre a um milímetro da garganta dele e poupava sua vida em troca de uma indenização piedosa: cinqüenta anos de comida japonesa grátis.
Poderia ter seguido despenhadeiro abaixo, cada vez mais fundo, mas o grande portão do colégio se abriu, a massa de ferro se espreguiçou rangendo e a partir daí tudo se resolveu numa silenciosa carambola óptica: a folha da porta, ao se mover, devolveu o feixe de um dos quartzos da entrada do colégio, que bateu no espelho retrovisor de um carro e dali, direto, foi estampar-se em sua cara como a lanterna de um vigia meio curto de vista. Alguém tinha acabado de sair. Estudou de longe o pouco dessa silhueta que se podia divisar entre as sombras: a mochila pendurada no ombro, os braços cruzados sobre o peito, os passos largos e leves como os de um astronauta na Lua. Vinha em sua direção. Viu-a avançar, viu a luz pestanejante de um farol pentear-lhe a cabeça e a reconheceu: era Marcia, a única amiga íntima de Ela que Ela não batizara com um apelido infame.
De modo que Marcia estava indo embora sozinha. Sentiu um baque no peito, como se seu coração tivesse atropelado uma corda invisível. Não podia deixar que o vissem ali, então afundou no assento e esperou, imóvel, que Marcia passasse a seu lado, e só despontou a cabeça novamente depois de ouvir as castanholas de seus passos - Marcia: a última esperança dos fabricantes de tamancos de madeira - afastando-se. Virou-se, seguiu-a com os olhos enquanto ela atravessava a rua, esperando o instante em que ia se dissipar feito miragem. Mas não: era Marcia, e Ela não estava com ela.
Não se enganara. Fizera bem em desconfiar, em voltar, em ficar montando guarda a trinta metros da escola. Ela mentira para ele. Uma hora e meia antes ele a deixara na porta do colégio e se oferecera para ir buscá-la quando a peça terminasse. "Não precisa", disse ela, sorrindo e acariciando-o com toda a gratidão que não havia em sua voz. "Eu vou embora com a Marcia. Hoje vou dormir na casa dela." Fez-se um silêncio. Ele manteve os olhos cravados nela por alguns segundos, o tempo exato para deixá-la em evidência, o tempo exato de que Ela precisou para segurar uma fivela entre os dentes, juntar os cabelos, fazer um rabo-de-cavalo e prendê-lo com a fivela, tudo isso fazendo de conta que estava sozinha, ou seja: sozinha diante de um espelho - uma arte que dominava cada vez melhor, principalmente na presença dele -, e reunir o butim escolar que, fiel a seu costume de se instalar em qualquer lugar onde ficasse por mais de cinco minutos, espalhara por todo o carro: os cadernos, os livros, a maçã, um bolo de dinheiro, um folheto do Greenpeace sobre a Lei de Florestas em Salta, a calça de ginástica para o dia seguinte, um telefone cravejado de adesivos, a camisola de algodão com a cara do gato Félix que ele lhe trouxera de alguma viagem e que ela continuava usando, mesmo depois de meses - ou seja: anos, décadas, séculos - de Félix ter sido despejado por Joe Strummer de seu panteão particular.
"Tem certeza?", perguntou-lhe. "Tenho", disse ela, e lhe deu um desses beijos lânguidos, frívolos, sem alvo definido, com os quais começara a se despedir dele havia alguns meses, anos, décadas etc. "Não me custa nada", insistiu ele. "Fico aqui pelo bairro, como alguma coisa por aí e depois passo para apanhar você. A que horas termina a peça?" "Não sei", disse ela. Mas não o fitava mais. Bastava esse desdém para que se exilasse de imediato em outro mundo, num limbo elementar, remotíssimo, onde não havia nada mais importante que amarrar ou desamarrar uma bandana, enfiar um marcador vermelho num estojo prestes a estourar, meter a mão no bolso, pegar um celular, digitar meia frase sem vogais na velocidade da luz, e com o mesmo polegar que treze anos e meio antes, enquanto pressionava com as pontas dos pés as grades do berço, afundava na boca para dormir sem chorar. "Não sabe quanto tempo vai durar a peça?" "Não faço a menor idéia." "É o Rei que morre, né?", disse ele, pensativo. "Quanto pode durar: uma hora, uma hora e meia?" Ela olhou de relance para o portão de ferro preto. "Lá está a Marcia. Tchau, papai. Te amo", disse. E desceu, praticamente se atirou para fora do carro, e quando começava a subir, correndo, o pequeno barranco que levava ao colégio, ele a chamou e a obrigou a voltar, sacudindo no ar o cachecol escocês que ficara engatado no freio de mão. Sem parar, aproveitando o impulso, Ela deu meia-volta, desceu até a rua, enfiou a cabeça dentro do carro, deixou o cachecol ser enrolado em volta de seu pescoço e o beijou, beijou-o com força, duração, som - tudo o que ele esperava de seus beijos para estremecer de amor e acionar seu instinto de desconfiança - e tomou novamente o rumo da escola com o lastro da mochila quicando em suas costas, gritando como uma possessa o nome de sua amiga, sua cúmplice, sua sórdida sequaz.
Levou alguns minutos para se recompor. Depois, instintivamente, à medida que uma onda de furor ardente o ia envolvendo, ligou para o número de Petra. Perguntou-se o que ia lhe dizer. Não era uma ligação "de família": não queria compartilhar com ela as provas da farsa que acabava de descobrir, como gostavam de fazer com qualquer destreza, gracinha ou façanha mais ou menos precoce de Ela que os surpreendesse sozinhos, sem o outro. Era uma ligação conjugal: queria criticar isso. Queria lhe mostrar em que escola íntima Ela aprendera a arte de mentir, que professora lhe inculcara esse estilo casual, esse talento para a imprecisão, a distraída falta de ênfase com que disfarçava uma decisão já tomada que ele não aprovaria... Era um passatempo a que foram se entregando aos poucos, primeiro com curiosidade, como quando, com Ela recém-nascida, competiam para ver de qual dos dois a menina herdara mais traços, depois com uma espécie de raiva, uma sede de justiça rancorosa, quando pretendiam detectar no outro a raiz de qualquer insolência de Ela na qual não aceitassem reconhecer-se.
Não deu em nada, nem mesmo numa dessas vozes gravadas feitas para decepcionar. Olhou para o telefone, olhou-o com cara feia, jogando a culpa nele, e então lembrou que aquele era o telefone de Petra. Dera-o para ele vinte dias atrás, meia hora antes de ir para o aeroporto. Logo para ele, que odiava celulares. Odiava seu tamanho, sua versatilidade, seu espírito frenético de renovação. Odiava sua fidelidade quando ninguém precisava deles e sua inutilidade no coração de uma emergência. Odiava-os como odiava tudo aquilo que punha a nu as personalidades múltiplas e pitorescas de sua inépcia. "Não estou pedindo que goste dele, nem que o ame, nem que o entenda", disse-lhe Petra. "Use-o para ficar em contato com Ela enquanto eu não estiver aqui. Só isso. Assim viajarei mais tranqüila". Ele aceitou, ainda que sob protesto. E assim que Petra desapareceu no elevador com suas malas - quatro imensas, quase estourando de tão cheias: o mínimo indispensável, disse, para uma excursão de quase três semanas e oito cidades -, ele fechou a porta, avaliou com a mão o peso do telefone enquanto dava uma olhada em volta, como quem procura um esconderijo para uma prova comprometedora, e acabou por arquivá-lo numa gaveta da mesa-de-cabeceira, entre caixas de relaxantes musculares, tubos de agulhas de acupuntura e máscaras para dormir que nunca usava, modesto ostracismo no qual o esqueceria durante dois dias e no qual uma hora mais tarde o alcançaria a mensagem que Petra, como um epílogo de dois meses e meio de pesadelo conjugal, deixava da sala de embarque.
Pensou que seriam necessários mais de vinte dias de paternidade solitária para convertê-lo à religião da telefonia móvel. Certa noite, voltava de um jantar com amigos e encontrou Ela sentada no saguão do edifício, vestida de festa, tiritando de frio. Saíra sem as chaves. Deixara seis mensagens para ele no celular. Ele inventou a verdade e disse que o esquecera, mas não que o esquecimento fora proposital e o deixava orgulhoso, como confessara a seus amigos. Mas nessa mesma noite, envergonhado, resgatou-o da gaveta, e estava tentando eliminar os pedidos de socorro que não ouvira por se manter fiel a sua fobia militante quando o assaltou a voz calma e meio anestesiada de Petra - a voz com que costumava dizer as piores coisas -, lançando seu veredicto sem pressa, como se tivesse todo o tempo do mundo: "O problema, querido, é que você só serve para ficar sozinho" - até que uma voz de homem entrava em cena e a obrigava a desligar: "Petra, vamos. Nosso avião está saindo, Petrita".
Como os s.o.s. de Ela, a mensagem sobreviveu intacta a todas as suas tentativas de apagá-la. Mas ao contrário daquelas, que ficaram gravadas mas em silêncio, como advertências cuja discrição ele agradeceu, a voz de Petra ressurgia acidentalmente de quando em quando, disparada por alguma das manobras com que ele tentava domar o aparelho, para lembrá-lo de como ele era um misantropo incurável. Estava longe, atuando em teatros majestosos e decrépitos, brindando com prefeitos e tomando o café da manhã em enormes restaurantes desertos, mas não se movera de seu lado. E ele, que aceitara o telefone por Ela, para não lhe agravar com suas fobias o efeito da ausência de sua mãe, em poucos dias, quando viu que noventa e nove por cento das ligações que ele não tinha outro remédio senão atender - porque também não sabia como desligar totalmente o aparelho -, e as quais anotava religiosamente, eram de outras atrizes, dramaturgos em ascensão, jornalistas, cosmetólogas, quiropráticos, roteiristas de cinema, agentes, percebeu que sua paixão pela vida solitária era menos digna de um anacoreta que de um secretário totalmente terreno, tão abnegado que até se esquecera de combinar um salário com sua patroa.
Não se importou com isso. Ou se importou menos do que ter de procurar uma refutação, um escudo, algo que atenuasse um pouco aquela pressão incômoda que exercia sobre ele o diagnóstico de Petra. Não demorou a encontrar: eram ele e Ela. O estranho casal que formavam, saído de um gênero em que se misturavam a comédia musical, as histórias em quadrinhos, o cinema mudo e os contos para crianças de alguma civilização extinta. Ela e ele de noite, na cozinha, improvisando jantares opíparos, cheios de acepipes proibidos, que serviam em travessas imensas, e deixavam esfriar diante da TV, jogados na cama, ele a seu lado, ela do lado de Petra, enquanto zombavam dos programas trash nos quais o outro era viciado (ele nos docudramas policiais, ela nos anúncios sobre elixires emagrecedores ou tônicos para fazer o cabelo crescer) e brigavam pelo controle remoto até que este mergulhava de cabeça num prato de mostarda; Ela e ele de manhã, bem cedo, quando iam juntos para a escola e pegavam a avenida Figueroa Alcorta e ele sintonizava o rádio no programa de rock pelo qual ela era fanática (Bon Jovi às quinze para as oito) e pisava no acelerador e ela abria a janela e tirava a cabeça para fora e uivava alucinadamente; Ela e ele nos finais de semana num cinema, legendando o filme com comentários mordazes e levantando psius dos quatro cantos da sala, ou em casa, cada um na sua, ele lendo, ela baixando canções, ou classificando velhos cadernos escolares, ou cobrindo com fotos de Sid Vicious as sombras amareladas deixadas por Pókemon, as Meninas Super-poderosas ou outros ídolos caídos em desgraça, até que, como se respondessem a um sinal audível apenas para eles, os dois deixavam o que estavam fazendo, cruzavam-se em algum ponto da casa e começavam a dançar, ou caçoavam dos farrapos caseiros que vestiam, ou ouviam um disco juntos, ou percorriam o jornal em busca de um programa para a noite...
Encontrara a refutação, e mais de uma vez, quando Petra ligava de Santa Rosa, ou de Tandil, ou de Uspallata, pensou em esfregá-la na cara dela. Sempre se arrependia. Não gostava da idéia de meter Ela no meio, menos ainda de embarcar numa sessão de psicodrama de casal à distância. Além do mais, tinha a impressão de que algo na qualidade da comunhão que o unia a Ela era incompatível com qualquer ressentimento, qualquer impulso de reivindicação, e mesmo hostil à simples tentação de comunicá-la a um terceiro. Era evidente, por outro lado, que Petra não tinha nenhuma intenção de falar com ele. Ligava sempre para casa, e conhecia bem, porque a sofria há anos, a severa política dele em matéria de disponibilidade telefônica. Jamais atendia; deixava que a secretária eletrônica gravasse a mensagem e só horas ou dias depois, conforme quem tivesse ligado, retornava a ligação ou a arquivava no único porão íntimo do qual não se sentia culpado. Ou deixava o telefone tocar até ouvir Ela atender. Mas quando Petra ligava, sempre sabia antes que era ela. Algo na atmosfera da casa, algo em seu silêncio, sua expectativa, sua maneira insatisfeita de estar em ordem, afetavam-se e tremiam de um modo estranho cada vez que ligava. Era como um revôo imóvel. E assim que reconhecia esse desassossego, ele parava de trabalhar, ia ao quarto de Ela, que falava com a mãe deitada de bruços no tapete, de costas para a porta, uma perna flexionada, o pé da outra subindo e descendo ao longo do tendão do tornozelo, e fechava a porta com cuidado para não ouvir, não interrompê-las.
O que mudara? Ou quem? Por que o idílio ficara assim sombrio? Como ele passara do estado de flutuar numa bolha de cumplicidade perfeita, na qual podia adivinhar o pensamento de Ela, completar suas frases e levantar-se da cama para ir comprar-lhe um quilo de sorvete à meia-noite e meia sem protestar, sem se sentir sequer tocado pelos espinhos da escravidão, ao de espreitá-la em seu carro como alguém que arma sordidamente uma tocaia noturna? Em que momento havia trocado a compreensão pela desconfiança, a permissividade pelo detector de mentiras? Se ao menos tivesse havido uma primeira vez, uma data, uma cena chave que pudesse evocar para saber quanto mais ele teria de retroceder para restabelecer a ordem perdida... Mas, o quê? Repassou seu arquivo de alarmes recentes: alguns episódios lhe faziam sinais mais ou menos ostensivos, como atores amadores em busca do papel que os tornará famosos. Matutinos, por exemplo. Começa a clarear. Depois de lutar contra a insônia - um mal que o acompanha toda vez que Petra viaja, como se estivesse incluído no pacote da agência de viagens -, patrulha a casa para começar realmente a acordar e culmina sua ronda, completamente infrutífera, no quarto de Ela, que dorme com o braço direito e a cabeça para fora da cama, suspensos no vazio. Está quase lhe colocando uma coberta - não lhe importa o corpo, que de qualquer modo gostaria de ver um pouco mais vestido, mas não suporta a imagem de desamparo que seu ombro esquerdo oferece nas frias alturas onde reina - quando Ela ressona, sacode a cabeça como se espantasse um mosquito e suspira, ou geme, ou murmura uma frase perfeita, articuladíssima, que ele não entende, a tal ponto foi pego de surpresa, mas que o detém no ato e o leva a inclinar-se sobre ela, a deslizar uma orelha no raio de seu hálito (vitamina de banana com leite, batatas fritas de pacote, chiclete de framboesa, pepino) para capturar a próxima, que por fim chega e é esta: "As meias não, por favor. As meias não." E assim que ele a chama em voz muito baixa, só para libertá-la do pesadelo sem que leve um choque, Ela passa para a meia língua do sonho, que domina perfeitamente, e cospe um parágrafo feito apenas de consoantes, enquanto lhe acaricia com o canto da mão um lado do pescoço. Ou vespertinos. O telefone toca. Ela atende. Ele, da escrivaninha, pensa que talvez seja um pouco tarde para ser uma ligação de Petra. E pensa que Ela não costuma desligar o telefone tão rápido. Fiel a seu rito, vai até seu quarto e a encontra deitada no tapete, como sempre, só que de barriga para cima e um pouco mais perto da porta do que de hábito, tão perto que se esticar uma de suas longas pernas de quero-quero consegue empurrar a porta com um pé e, sorrindo, fechá-la em sua cara. Mas nada lhe parecia suficiente. Nem mesmo os dois marcos hormonais como os primeiros pêlos visíveis (essa seda que parece de bebê em sua axila direita e que o desconcertou num dia em que Ela levantou o braço para apanhar uma boina no cabide) ou a primeira menstruação (o sinal de sangue em forma de relógio de areia que descobriu certa manhã no lençol): comemorara-os como alvíssaras compartilhadas, achando que se revelavam a ele e a Ela ao mesmo tempo, mas a mancha estava longe de ser a primeira (Petra, de fato, já lhe dera alguns tipos de absorvente, pelo visto todos inúteis), e já fazia meses que Ela usava o desodorante de seus pais para atenuar, porque não havia maneira de apagá-la, a fragrância áspera de seus suores.
Quis saber as horas; o tremor com que arregaçou o pulôver para ver o relógio quase o faz chorar. Que charlatão imbecil teve essa idéia de desenhar o tempo como uma linha reta e os fatos como riscas perpendiculares periódicas, como se a história pudesse ser uma dessas fitas métricas flexíveis que as costureiras usam para tirar medidas de corpos que não cessam de mudar, de crescer, de se transformar? Não havia marcos nem fatos. E se havia, dissolviam-se na espuma dos anos, dos dias, dos segundos... A história da segunda Ela, essa Ela equívoca, pródiga em fraudes e duplos sentidos, que acabava de tomar posse do corpo da primeira, devia ser tão sub-reptícia - e suas raízes tão remotas - quanto a do simulacro de Parkinson que agora lhe complicava a tarefa de iluminar o quadrante do relógio para comprovar que eram... que horas? Dez e vinte já?
O hall da escola era um cubo brilhante e vazio. Nenhum movimento: só a projeção da sombra do vigia que desenferrujava as pernas no corredor do lado. Deu para detestar Ionesco, que sempre lhe parecera um farsante simpático. Irritou-se com aquela meia dúzia de professores que alardeavam seus patéticos estertores vocacionais diante das mesmas vítimas que nas horas de aula martirizavam com suas remelas, seu mau hálito, sua prepotência, suas provas surpresa, suas petulâncias demagógicas. Desde quando Ela se interessava pelo teatro do absurdo? Até onde sabia, Ionesco não figurava no programa de estudos desse ano; tampouco na biblioteca de Ela, que conhecia como ninguém, que ele mesmo - de uma indolência doentia na hora de ter de mobiliar algo - comprara, pintara e povoara de livros cuidadosamente escolhidos, até que um dia, procurando um dicionário francês-espanhol autorizado a viajar entre uma biblioteca e outra, topou com dois livros de Roald Dahl que ele não havia comprado, assinados e datados na primeira página pela mão trêmula de Ela, e perdeu o fôlego de tanta alegria.
Sexta-feira, dez e meia da noite. Exausta após uma longa semana escolar, era evidente que Ela devia estar em casa, saboreando as decapitações de "O Albergue II" ou chorando desconsoladamente com um documentário sobre matança de focas, jamais assistindo à agonia petulante de um palhaço de coroa e menos ainda longe de Marcia, a amiga, a cúmplice vil, a traidora com a qual se supunha que devia passar toda a peça rindo de piadas ruins. Mas, e ele? Cometera um erro fatal, um erro de avarento: aproveitar o tempo. O cálculo se fechava: tinha essa hora e meia morta, o Samurai estava perto, voltaria justo na hora em que a peça terminasse. Agora, um gosto rançoso que se arrastava desde as entranhas de seu estômago se deteve no umbral de sua garganta, despontou e voltou a descer como um animalzinho assustado. Polvo, provavelmente. Ou camarão. Esse camarão enorme, extraordinariamente carnudo, que de algum modo havia desencadeado o desastre. Empenhara-se em tirar a ponta escamosa do rabo para enfiá-lo inteiro na boca, mas estava com a mão esquerda ocupada no livro, mantendo-o aberto na página que lia, e era improvável que a direita resolvesse o problema por si mesma sem prejudicar a integridade da peça, de modo que somou a esquerda à faina. Assim que se sentiu livre, o livro, como um molusco pudico, deu um salto e quis se fechar novamente; a mão esquerda deu marcha a ré, tentou impedi-lo e só conseguiu empurrá-lo ainda mais, e o livro terminou caindo no chão pela fresta que separava sua mesa da do vizinho.
Um passo de comédia solitária. Só que os restaurantes japoneses são amplificadores prodigiosos: um sorriso retumba como uma gargalhada, uma lágrima é uma tragédia, qualquer meia levemente desbotada parece um trapo. Agachou-se para apanhar o livro, levantou-se enquanto tomava a primeira decisão sensata do dia, terminar de comer e só depois começar a ler, e ao voltar à superfície, onde o niguiri de camarão o esperava com a ironia de seu rabo intacto, viu o maître de pé junto à mesa, os braços bem colados ao corpo, em atitude expectante. "Não é bom ler comendo", disse-lhe, inclinando-se para corrigir o esquadro móvel em que o percalço deixara a travessa, o prato, a pequena tigela com molho de soja. Ele o tomou como um comentário pedagógico, quase médico, e sorriu. "Imagino", disse, e voltou a empunhar os palitos. "Mas estou sozinho, e quando estou sozinho gosto de comer lendo. Adoro comer e ler". Rondou o camarão com a ponta dos palitos e no último instante, com uma espécie de fruição vingativa, descartou-o e escolheu a peça de pele de salmão. Sustentando-a no ar, abriu o livro com a mão esquerda e procurou a página perdida. "Não, não", disse o maître, que não se movera de seu lado. "Antes de comer, sim. Depois, também. Durante, não". Não era fácil domesticar aquelas páginas jovens, cheias de energia, mas não quis se render e respondeu com os olhos cravados no livro: "Eu gosto. Me faz companhia." "Não", disse o maître. "Não é sério ler enquanto se come". Página 56. Caro Octave, o que me assusta é a violência de suas paixões, principalmente todo o caminho secreto que seguem em seu coração. Era por aí, estava perto. Achatou o livro com a palma da mão e levantou os olhos para o maître, sorrindo novamente. "Nem pensar. São duas coisas que eu levo muito a sério." O maître deu um passo à frente, quase colou a virilha no canto da mesa e inclinou-se levemente, como se procurasse se fazer entender sem equívocos, mantendo, ao mesmo tempo, certa discrição. "Aqui não é permitido ler." Sua voz mudara; já não era protocolar, mas grave, severa, ameaçadora. "Como?", espantou-se ele. O maître repetiu: "Não é permitido ler enquanto se come." "Não estou entendendo. É proibido?" "Neste restaurante sim." Olhou-o, olhou-o bem, com empenho, pensando que saberia detectar em sua boca ou em seus olhos o prelúdio da risada que transformaria todo aquele episódio no que era: uma farsa um pouco psicopática mas bem representada. O maître nem piscou: parecia petrificado. "Como assim, proibido? Como vai me proibir de ler?" "É uma falta de respeito com a cozinha". Ele riu, nervoso, incrédulo. A impaciência se instalava rapidamente. "Desculpe", disse-lhe, "a comida está ótima. Cumprimente o cozinheiro por mim. Mas o que tem a ver ler com faltar com o respeito à cozinha?" Houve uma trégua microscópica que ninguém aproveitou. "Aqui não se lê enquanto se come", decretou o maître, e de repente, de um modo abrupto e brutal, inclinou-se e ameaçou recolher a travessa. Foi apenas uma ameaça, a sombra ou o esboço de uma ação, como na disputa imaginária ao redor da travessa que se seguiu, mas foi tão nítida e realista que a situação lhe pareceu duplamente escandalosa. "Mas o que há com você?", disse, levantando a voz. "Eu leio. Não grito, não fumo, não fico dando gargalhadas, não desprezo a comida, não incomodo ninguém. Além do mais sou livre, e enquanto não incomodar ninguém, quando eu como faço o que me dá na telha. Já comi em muitos restaurantes japoneses, em toda parte do mundo, e nunca me aconteceu nada parecido." "Aqui é assim", disse o maître. "Aqui os fregueses não lêem. No Japão, se um filho lê enquanto come, o pai lhe dá um sopapo." "Não estamos no Japão", disse ele, mordendo as palavras, "e você não é meu pai. Estamos em Buenos Aires, você é o maître de um restaurante e eu sou um freguês..." "Aaahhh!", rugiu o maître, dando por encerrada a discussão, e retrocedeu alguns passos e se postou junto à pequena janela que dava para a cozinha, de braços cruzados, como um guardião. Foi um momento único, uma dessas conjunturas raríssimas em que a decisão mais espetacular, mais teatral, mais pomposa, talvez seja a mais justa e, talvez, a única. Não foi essa que tomou. Permaneceu no lugar, meio tonto de espanto e de raiva, fitando o maître nos olhos, nos pedaços de pedra opaca que tinha incrustados nas órbitas dos olhos. E com os últimos resquícios de dignidade equivocada que lhe restavam decidiu-se pelo pior: que tudo seguisse normalmente, mas em alta velocidade, como se as coisas rápidas fossem, de algum modo, invisíveis. Então limpou a travessa em menos de sete minutos, curvando-se um pouco mais sobre o prato a cada bocado, com o livro ao lado, aberto em qualquer página, fingindo ler frases que mal enxergava.
Cruzou o céu um avião que começava a descer. Petra estaria a bordo? De repente sentiu que precisava dela. Precisava de tudo o que nela lhe era difícil de suportar: sua impassibilidade, o desembaraço com que profetizava o que na verdade queria que acontecesse, a influência que exercia sobre ele, não importa o que fizesse. Também precisava de ar, de modo que desceu do carro e se deixou afagar pelo frescor da noite. Quando abriu os olhos viu gente saindo da escola. Pensou distinguir casacos compridos, roupa escura, um par de chapéus, saltos altos: pais de alunos, membros da cooperativa escolar, outros professores. Onde estava Ela? Onde o canalha com acne, voz em falsete e priapismo galopante que a beijara durante toda a peça? Onde os canalhas menores que tinham se masturbado olhando-os da última fileira de poltronas? Ouviu-se uma risada de mulher, alegre e falsa como uma moeda falsa caindo numa jarra de cristal falso. Ouviram-se estalos agudos, como disparos de uma arma de plástico, e os faróis de três carros estacionados piscaram na noite, em uníssono. Entrou de novo no carro e se encurralou contra a porta do passageiro, de onde dominava melhor a entrada da escola. O grupo de adultos se desfez em dois, três, quatro casais que se dispersaram em direções diferentes. Entraram nos carros, os motores rugiram, outro avião - estranhamente afinado uniu-se a eles lá do céu. E quando não restou ninguém, só o guarda-noturno que dava voltas junto à porta, fazendo malabarismos com um molho de chaves barulhento, começaram a aparecer os jovens, não mais que meia dúzia, surpreendentemente mais silenciosos, e mais bem vestidos, que os adultos.
Polvo. Camarão. O vinagre do arroz. Tinha a sensação de levar um aquário inteiro dentro do peito, uma espécie de colônia ictíica na qual seu coração ia naufragando lentamente, e achou que não ia resistir. De repente se viu morto no carro, a cabeça contra a janela, o peito estampado com os espectros de sua bandeja de sushi suculento, examinado bem de perto pelo crápula com acne cujo braço tatuado continuava maculando, impassível, os ombros de Ela... Não gostou disso. Não viu Ela, mas sim duas garotas que dançavam, com as mãos na cintura uma da outra, um cancan robótico, sem dúvida um dos anacronismos risqués com que o professor de química, ou de ginástica, ou de ciências naturais, ou qualquer fracassado que tivesse dirigido a peça, decidira revitalizar o legado de Ionesco. Teve medo. Começou a considerar com outros olhos o canalhinha com acne. Se para vê-la de novo tinha de vê-la de mãos dadas com ele... Os homens fumavam, afundavam as mãos nos bolsos, davam pontapés curtos e astutos nas panturrilhas. Ficaram um pouco na porta, indecisos, numa espécie de equilíbrio precário, até que saíram mais dois, um garoto e uma garota, não abraçados mas pendurados um no outro, que tocaram o grupo até a rua. Viu-os passar pela calçada, a seu lado. As garotas que dançavam ouviam música no mesmo fone de ouvido: uma nova raça de siamesas. Os garotos arrastavam os pés ou os levantavam demais, lutando com a gravidade de seus tênis-porta-aviões como os escafandristas de Verne, certa vez, com seus sapatões submarinos. Viu-os se afastando de costas pelo retrovisor. A entrada da escola ficara deserta.
Assim, pensou. Assim - como um pai que olha boquiaberto para a porta do colégio que engoliu sua filha e nunca mais a devolverá - começam essas histórias de capa das revistas de domingo que reconstroem a trama secreta do tráfico de adolescentes e viajam de Buenos Aires a Istambul, de Istambul ao Ceilão, do Ceilão a Sofia, seguindo o rastro de um estojo de pó-de-arroz Hello Kitty, uma camisola de algodão com a cara do Gato Félix, um par de pantufas de veludo com laço, um diário íntimo composto de listas: "Cinco discos para comprar", "Cinco sabores de sorvete", "Cinco garotos que eu beijaria", "Cinco garotas que eletrocutaria", "Cinco canções que escutaria debaixo d'água"... Esperou alguns minutos, e quando pensou que não veria ninguém mais aparecer no hall, nem naquele momento, nem amanhã, nem nos vinte séculos que viriam, ligou para o número de Ela. Atendeu-o uma canção que ele nunca ouvira.
Quando ela chora
Não sei se é dos olhos para fora
Não sei do que ri
Eu não sei se ela agora
Está fora de si
Ou se é o estilo de uma
grande dama
Quando me encara e desata
os cabelos
Não sei se ela está mesmo aqui
Quando se joga na minha cama
Ela faz cinema
Ela é a tal
Sei que ela pode ser mil
Mas não existe outra igual
E depois, quase mordendo outra igual, como se não conseguisse refrear certa impaciência, a voz gravada de Ela vinha a seu encontro: "Oi, é a Ela..." Reconheceu a rouquidão, o tom infantil de quando acabava de acordar e aparecia na cozinha de camisola, ainda de meias, repousando a cabeça alvoroçada em seu ombro e, mordendo a primeira cutícula do dia, falava: "Oi, papai. Amo você, papai. Faz um suco de laranja pra mim, papai?" Desligou e voltou a ligar enquanto olhava as horas e uma multidão em pânico aglomerava-se em seu peito em busca de uma saída. Tinha a boca seca; suava; parecia estar perdendo a sensibilidade nos dedos. A música, outra vez.
Quando ela mente
Não sei se ela deveras sente
O que mente para mim
Serei eu meramente
Mais um personagem efêmero
Da sua trama...
Não esperou até o final. Largou o telefone como se lhe queimasse a mão, saiu do carro e dirigiu-se para a escola devagar, tentando se acalmar, ensaiando o tom com que explicaria a situação ao guarda-noturno, sem perder de vista que, desconhecido e ainda uniformizado, o guarda-noturno era um aliado potencial, um meio para chegar a Ela, e não o elo menos notável de uma rede de proxenetas que acabara de seqüestrar sua filha. Passou os fatos a limpo, a ordem dos fatos, as horas...E quando a viu, atravessando sozinha o cubo claro do hall, tão sozinha e tão inconfundível que o angustiou, teve a impressão de que não era ela, não ela de carne e osso, mas a projeção perfeita de seu pensamento, que já a dera por desaparecida. Saía com a cabeça baixa, apressada, e abraçava a mochila contra o peito, como se não tivesse tido tempo de pendurá-la. Ia em direção a ele, absorta na ponta de seus tênis, ainda não o vira. Como gostou de ter outra vez seu nome na ponta da língua, saboreá-lo, saber que um segundo depois o pronunciaria e que essa simples emissão de ruído faria vibrar e existir e brilhar a criatura mais bela da terra... Ia chamá-la quando viu que mais alguém saía da escola. Um homem careca, ou quase careca, vestido com o que pareciam ser calças do século dezoito, que apareceu, varreu a rua com os olhos e assim que detectou Ela saiu atrás dela a passos rápidos. Alguma coisa pendia de sua mão e ele não fazia barulho ao caminhar. Ele parou, ouviu o homem gritar o nome de Ela e percebeu um sotaque estranho. Ela quis apressar o passo e perdeu alguma coisa, um livro, um penal, no caminho: ameaçou parar para apanhá-lo, mas seguiu em frente, e só aceitou parar quando ouviu seu nome pela segunda vez, mais gritado e mais triste.
Então levantou o rosto com resignação, dando-se por vencida, e topou com seu pai. Ele sorriu. Não a via bem, mas parecia haver algo borrado em seu rosto, uma espécie de sujeira ou de desordem. Aproximou-se, olhou-a melhor; tinha os lábios muito vermelhos, como que crestados pelo frio, ou pintados. "Acabei vindo, afinal", disse ele feliz, desculpando-se. Ela sorriu, deu uns passos frágeis e deixou-se abraçar, quase se sustentar por ele, enquanto o homem das calças, que começara a correr, diminuía rapidamente o passo e chegava até eles. Não fazia barulho porque estava descalço; tinha restos de maquiagem no nariz, um souvenir de barba na ponta do queixo e a marca de um beijo perto da boca, meio apagada mas ainda fresca. Movia os olhos o tempo todo, como se uma luz os fustigasse. "Você esqueceu isto", disse, e sua mão enfeitada com jóias estendeu a Ela o cachecol escocês. Ela sorriu e pendurou-o em volta do pescoço. Depois olhou para o pai: "O Rei, meu professor de português", disse, apontando para o Rei. E olhou para o Rei e apontando para seu pai, disse: "Meu pai".
"Leite Derramado" é o título do novo livro de Chico Buarque
Folha on line 02/03/2009
O compositor, cantor e escritor Chico Buarque lança no final deste mês seu novo livro "Leite Derramado".
O romance se passa no Rio de Janeiro e tem aproximadamente 200 páginas.
As informações foram divulgadas nesta segunda-feira pelo site da editora Companhia das Letras.
O livro anterior de Chico, "Budapeste" (2003), também foi lançado pela mesma editora. O romance ganhou o Prêmio Jabuti de melhor livro de 2003.
"Budapeste" está sendo adaptado para o cinema pelo diretor Walter Carvalho. No elenco, estão Leonardo Medeiros e Giovanna Antonelli.
A Cia. das Letras lançou também os livros "Estorvo" (1991) e "Benjamin" (1995).
06/12/2006
Lisboa, 05 Dez (Lusa) - Chico Buarque e Caetano Veloso participam da produção de "Fados", o novo filme do cineasta espanhol Carlos Saura, que será apresentado no próximo dia 13, no Palácio da Mitra, em Lisboa, disse nesta quarta-feira à Agência Lusa uma fonte da produção.
O filme foi gravado em Lisboa no verão europeu (de julho a setembro) e passa pela África e pelo Brasil, de acordo com Carlos do Carmo, que é um dos mais famosos fadistas portugueses e colaborador da produção.
O fadista descreveu o filme como sendo "uma visão do Saura sobre o fado", acrescentando que o cineasta "já tinha claro o que queria e quem queria".
Carlos do Carmo, que integra com o também fadista Rui Vieira Nery e o produtor Ivan Dias um grupo de consultores de Saura, reconheceu terem acrescentado "muito pouco" às idéias do cineasta espanhol, que estudou o projeto durante dois anos.
O fadista disse que "toda a informação", de DVD a discos, foi coletada por Saura, que visitou vários locais de Lisboa onde se canta fado, do profissional ao amador, e assistiu a grandes espetáculos.
O filme, orçado em 3 milhões de euros (cerca de R$ 8,6 milhões), é uma co-produção da Zebra Producciones de Saura com a Duvideo de Ivan Dias, e a Fado Filmes de Luís Galvão Teles, incluindo participações brasileiras e francesas.
"Falta ainda a fase da montagem que pode alterar tudo, mas pelo que vi parece-me que este filme está na linha do filme Flamenco que produziu em 1995", observou o fadista.
Carlos Saura tem rodado vários filmes relacionados com tradições musicais.
Em 1992 filmou "Sevillanas", em 1995 produziu "Flamenco" e três anos depois "Tango no me dejes nunca".
Em 2002 filmou "Salomé" e no Festival de Cannes do ano passado anunciou a realização do filme "Ibéria".
Na sessão de apresentação do filme, na próxima quarta-feira, estarão presentes o prefeito de Lisboa, Antônio Carmona Rodrigues, e o secretário da Cultura, José Amaral Lopes.
Ípsilom
Chico Buarque subiu anteontem ao palco do Coliseu do Porto e, durante largos minutos, a plateia manteve-se hirta, sem acenos nem meneios, sem palmas efusivas nem excessos de devoção. Quando surgiu à boca de cena, calça cinzenta vincada e camisa desportiva sem atributos especiais, as palmas calorosas fizeram-se, obviamente, sentir, mas, depois, seguiu-se um tempo de espera para se saber que Chico Buarque estaria ali naquela noite: o Chico de outros tempos, das modinhas trauteáveis, o Chico genial de Construção ou de Ópera do Malandro, ou outro Chico, o dos discos semidesconhecidos dos anos 80 ou o do ainda não digerido Cariocas? Ao quarto tema, quando soaram os primeiros versos de Morena de Angola, aconteceu pela primeira vez o júbilo e teve lugar a revelação das expectativas: nestes anos pós fim da História, ainda há necessidade de celebrar os mitos. Por muito que o novo disco seja bom (e é, de facto, bom), por muito que Chico continue a ser um personagem singular da cultura do Brasil, ainda que a sua voz mantenha os traços de ternura de outros tempos, por muito que as suas palavras e as suas melodias conservem o seu encanto carioca, o passado pesa excessivamente na sua imagem.Não é que os primeiros temas do alinhamento, todos centrados no repertório de Carioca, tivessem sido recebidos com frieza ou, ainda menos, hostilidade. A bem dizer, não houve falta de afectos entre o palco e a sala, mas era impossível não sentir na atmosfera um desejo ardente de se ouvir o que se estava à espera. Porque quando o que se estava à espera se cumpriu, fosse na fabulosa recriação de Imagina, que Chico compôs com Tom Jobim em 1983, fosse com As Vitrines, temas que, ainda assim, estão longe de ser os mais freneticamente cultivados pelos amantes da sua música, os aplausos sentiram-se com outra comoção e intensidade. Deve ser muito difícil para Chico Buarque carregar tão pesada biografia musical.
Uma pena, porque os que foram capazes de deixar os sentidos fluir sem a ansiedade da espera, sem limitarem a celebração do cantor à herança dos anos 60 e 70, puderam constatar que Chico Buarque é muito mais do que simplesmente já foi. Porque a sua música de hoje conserva a essência de outrora. Despojada, límpida, profundamente sensível, dedicada à melodia e significado das palavras; feita com samba, com chorinho, aqui e ali com laivos da pop, mas sempre tão autêntica como a atitude do cantor.
Era impossível que, com o decorrer do concerto, estes argumentos não se impusessem. E impuseram-se sem dúvida. A cada tema que passava, aumentava a sensação de conforto entre os espectadores, como se tivessem percebido que, com ou sem a Valsinha, com ou sem Cotidiano, aquele momento com aquela voz e aquele violão valiam por si. Claro que, já no primeiro regresso ao palco, a interpretação de Tanto mar, a invocação de um certo sonho de Abril que se começava a desvanecer no Portugal de 1975, causou uma enorme onda de aplauso. E, depois, com Quem te viu, quem te vê e João e Maria, a satisfação do desejo da plateia atingiu o auge. Não sendo ainda assim exactamente o concerto que muitos estavam à espera, o remate do concerto pudera ao menos suscitar os sorrisos que se ostentavam à saída. Para os outros, os que foram ao Coliseu com as emoções libertas do desejo exclusivo da memória, esse final de festa não foi mais do que o corolário lógico de uma grande noite de canções de um músico ao qual é pecado recusar o presente e ainda mais o futuro.
Veja Rio, 13/09/2006
Tutty Vasquezt
Ela é demais! A maneira segura como me disse que Chi-co Buarque não é tudo isso que se apregoa por aí dá uma idéia do tipo de mulher a que me refiro. Podia ser música dele, tem uma nesse último disco, chama-se Ela faz Cinema, feita para alguém que, olhando assim, ninguém sa-be se está fora de si ou faz o estilo de uma grande dama. Ela é assim!
"O Chico é bom em muitas coisas, mas na cama é bem fraquinho mesmo, isso é mais que sabido." Disfarcei minha ignorância com a naturalidade dos sem-assunto: "Ahã, ahã..:". O leitor por acaso estava sabendo dessa história, caramba'.
"Não é possível!", reagiu um grande amigo cuja mulher cultiva uma admiração meio insana, meio histérica pelo Chi-co Buarque. "Não conte isso para a Wandinha, não lhe dê esse desgosto." Deus me livre! Toquei no assunto com mais meia dúzia de colegas, todos muito bem casados coma fãs tresloucadas do artista, e também entre eles a indignação foi geral. "Era só o que faltava, essa não!" A idéia do símbolo sexual masculino inatingível, ideal para mulheres em crise conjugal, não pode cair assim a golpes de peteleco na virili-dade do mito. Neguinho não suportaria de repente descobrir que o tal cara por quem toda mulher não hesitaria em trocá-lo, elas por elas, pau a pau. tem um jeito manso que é só seu. Não sei como vão reagir as mulheres: os homens com quem falei não admitem a possibilidade, e pronto. "O Chico Buarque é o maior, e não se fala mais nisso!" A sociedade machista demorou, mas acabou entendendo que a possibilidade de o cara pegar a mulher dos outros é de uma para 10 milhões de loucas por ele soltas por aí. Cá pra nós. ainda que acon-teça, como naquele famoso banho de mar com uma morena no Leblon, quanta honra: o marido traído fica todo prosa por ser o primeiro abaixo de Chico Buarque na cadeia alimentar das mulheres de Atenas. Não deixa de ser uma distinção numa terra em que, co-mo dizia Nelson Rodrigues. "diante de Chico Buarque todo homem é una corno em potencial".
Peço desculpas às senhoras que me lêem - pe-lo menos três ou quatro tias, com certeza, por de repente estar aqui, logo eu que andava tão comportado, falando sem nenhum pudor da sexualidade do Chico Buarque. Lamento.
Mas é inevitável: sempre que o artista volta aos palcos, a imprensa entra no cio junto com a platéia. Antes de estrear Carioca, em São Paulo, Chico falou sobre essa doideira à sua volta. Disse a jornalistas que esse negócio de lindo pra cá, tesão pra lá, não passa de gozação de quem grita, piada de quem escre-ve. "Não estou mais em idade de acreditar que sou sex symbol."
A Folha quis conferir. Saiu pelas ruas de São Paulo com um display de papelão com a imagem do artista em tama-nho natural para testar o assédio das fãs. Fez fila! Depois, Luiz Caversan cunhou a seguinte definição para "O homem que elas adoram", titulo de seu artigo na Folha Onli-ne: "Nem todas as mulheres amam Chico Buarque de Hol-landa; apenas as normais". Aí incluídas, suponho, as que na hora agá fazem papel de loucas mesmo, gritam, sobem na cadeira, chamam o cara de gostoso e o escambau! Xico Sá. paulistano do Crato, cobriu a noite de estréia no Tom Brasil para o site NoMíninto e flagrou o instante em que a situação quase fugiu ao controle dos maridos ao redor: "Na vigésima primeira canção, a lei mais explícita e almodovariana do desejo prevalece, impera e ganha voz: 'Chico, eu quero dar pra você!'"
Naturalmente que gritou em vão. "Eu não lido com isso", disse Chico em entrevista. "Acho que as pessoas estão brincando." A brincadeira de gostar de alguém público - artista, político ou jogador de futebol - e não se decepcio-nar com o cara, francamente, virou coisa rara neste Brasil de grandes quebras de expectativa. Chico Buarque é de uma raça de homens em extinção. Quando entra em car-taz, o país volta a experimentar a sensação de que ainda tem gente por aqui que pode dar certo no final. Lindo. Lindo, lindoooo!
O "Chico Buarque profundo", esse que minha amiga trouxe à tona, não interessa a ninguém, a não ser a duas ou três sortudas que conseguem chegar perto dele a ponto de ver até os defeitos. Da platéia, parece perfeito.
Assim que parar de nevar nos Jar-dins, farei uma moça feliz levando-a pela mão para ver o Chico cantar do lado de lá da ponte aérea (ele fica no Tom Brasil até meados de outubro). O leitor também pode levar a sua mulher sem susto. Ela vai te amar para sempre! E mole? Minha amiga insiste que é mais ou menos... Chata!
A Notícia, 02/09/2006
Rubens Herbst Na abertura da turnê 'Carioca', Chico Buarque se esbalda com o fascínio que exerce sobre seu público
Era uma questão de tempo acontecer, como se houves-se um script com falas obriga-tórias. Lá pelas tantas, um segundo de silêncio antes da próxima canção, vem o grito feminino do fundo do Tom Brasil: "Eu te amo!" Risadas gerais, mas Chico Buarque não se abala. Dá um sorriso tímido - um dos muitos que daria ao longo do show de quarta-feira -, ajeita o violão e inicia outra música. E foi assim a estréia da turnê do dis-co "Carioca" em São Paulo: um misto de fascínio, respeito, familiaridade e descontração, a síntese do que Chico repre-senta para seu público.
Infelizmente, nenhum catarinense vai poder declarar seu amor pelo compositor, a menos que tome o rumo de uma das oito paradas previstas da turnê, a primeira de Chico em sete anos. Santa Catarina está fora dos planos. Para quem botar o pé na estrada, uma boa opção é São Paulo, já que, após esgotados os ingres-sos para a temporada de qua-tro semanas, a produção mar-cou oito shows extras na capi-tal paulista entre os dias 5 e 15 de outubro. A venda dos ingressos iniciou ontem. O fã que conseguir um bilhete poderá exibi-lo como troféu. Afinal, a procura é intensa, fruto do brilhantismo do artista e do fato de suas apresentações serem esporá-dicas. Tanta atenção fez o Tom Brasil lotar na quarta-feira. Na platéia, um público que, apa-rentemente, acompanha Chi-co há muito tempo; no palco, um Chico que ensaia timidez e um certo desconforto, mas que sabe que tem total controle sobre tudo e todos.
O show inter-cala momentos intimistas com outros mais ani-mados, inclui fai-xas, digamos, obscuras do largo repertório do ídolo. Começando por "Carioca", o novo disco - quase todas as músicas estão no show. Muitas criações dos anos 80, romantismo a toda prova, quase nada do Chico engajado, crítico. Ele abre com "Vol-tei a Cantar", de Lamartine Babo, passeia por vários clássicos ("Morro Dois Irmãos", "Mil Perdões", "A História de Lily Braun", "As Vitrines", "Já Passou", "Bye Bye Brasil"), resgata "Mambembe", nunca tocada ao vivo antes, faz um dueto com o baterista Wilson das Neves, co-autor de "Gran-de Hotel", Neves samba, Chi-co ri, mexe o quadril, mas dançar não é a sua.
Chico volta três vezes ao palco, estendendo o show para quase duas horas. Na saideira, duas mil vozes o acompanham em "João e Maria" - "Agora eu era herói, e o meu cavalo só falava inglês...". Para alguns, o cavalheiro perfeito; para outros, o nome máximo da MPB.
O reporter viajou a São Pàulo a convite da TIM LISTA
A Notícia, 30/08/2006
Show de Chico Buarque em SP marca o retorno do músico aos palcos
Após um longo período de ausência dos palcos, Chico Buarque inicia hoje, por São Paulo, a turnê nacional do show "Carioca", que o levará, até junho de 2007, a mais sete cidades brasileiras. O roteiro poderá incluir apresentações em Campinas, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Salvador.
A estréia, marcada para hoje, será na casa de espetá-culos paulista Tom Brasil, com 2.200 lugares, onde o show de lançamento do novo disco permanecerá em car-taz por três semanas, sempre de quinta a domingo.
Presença bissexta nos palcos, Chico Buarque fez apenas quatro temporadas nos últimos 30 anos: "Chico e Bethânia" (1975), "Francisco" (1988), "Paratodos" (1994) e "As Cidades" (1999). A banda que o acompanhará agora é a mesma da última turnê: o maestro, arranjador e diretor musical Luiz Claudio Ramos, (violão), João Rebouças (piano), Bia Paes Leme (teclados), Wilson das Neves (bateria), Chico Batera (percussão), Jor-ge Helder (contrabaixo) e Marcelo Bernardes (flauta e sopros). Os premiados Hélio Eichbauer e Maneco Quinde-ré assinam, respectivamente, cenário e iluminação, e Mar-celo Pies, os figurinos. A produção é de Vinícius França.
Duplo disco de ouro por mais de 100 mil cópias vendidas, o CD homônimo lançado pela Biscoito Fino no início de maio fornece a base do repertório de "Carioca". Suas 12 canções - entre elas, as inéditas "Subúrbio", "Outros Sonhos", "Porque Era Ela, Porque Era Eu", "As Atrizes", "Ela Faz Cinema", "Bolero Blues" e "Sempre" - serão acrescidas de outras de autoria do próprio composi-tor nunca interpretadas por ele ao vivo, como, por exem-plo, "Mambembe" (da trilha sonora do filme "Quando o Carnaval Chegar", de Carlos Diegues, de 1972.
Chico escolheu "Voltei a Cantar" para abrir o roteiro. Com isso, ele repete o ídolo Mário Reis, que usou esta mesma canção de Lamartine Babo para anunciar sua volta aos microfones após um longo perío-do de ausência. E Chico volta a cantar em plena forma vocal e no auge da maturi-dade artística. "Carioca" é o trabalho dele mais sofisticado em termos harmônicos e melódicos e no qual se faz mais nítida a influência da experiência literária sobre o seu trabalho corno letrista.
A partir do lançamento do seu primeiro romance, "Estorvo", em 1991, o artista vem alternando as atividades de músico com a de escritor. O padrão se repete desde então: após um livro, ele se submete a um período de transição em que lentamente retorna à música. Daí, compõe, grava, lança disco, faz turnê, para em seguida retomar o trajeto de volta à litera-tura. Após "Estorvo", Chico escreveu ainda "Benjamim" (1995) e "Budapeste" (2003).
Chico ganhou fama pela música que comenta a socie-dade brasileira. Para fugir da ditadura, criou um pseudôni-mo para continuar compon-do e não ser barrado pela censura. Ele também é famo-so pelas canções que falam sobre a beleza das mulheres. Entre as canções deste estilo destacam-se "Olhos nos Olhos", "Teresinha" e "Atrás da Porta". Em 1998, o cantor foi tema do samba-enredo da Mangueira, campeã do Carnaval naquele ano.
Bom Dia, 30/08/2006
Após sete anos longe dos palcos, cantor volta hoje com show 'Carioca'
O intérprete, compositor e poeta Chico Buarque sobe ao palco do Tom Brasil hoje, às 21h30, em São Paulo, após um hiato de sete anos.
Agora, ele deita sobre a poesia do Rio de Janeiro em canções cheias de lirismo na abertura da turnê nacional de "Carioca". O show leva o nome do disco homônimo lançado no ano passado pela Biscoito Fino.
Por várias vezes, o compo-sitor, também chamado de "Carioca", falou sobre sua dificuldade em fazer shows - daí a explicação para tan-to tempo sem ficar frente a frente com o público.
Os números da carreira confirmam. Ele fez apenas quatro turnês nos últimos 30 anos: "Chico e Bethânia" (1975), "Francisco" (1988), "Pararodos" (1994) e "As Cidades" (1999).
Inéditas
A justificativa para o re-torno à cena é plausível. Tra-ta-se de seu primeiro álbum repleto de inéditas, desde "As Cidades".
No repertório, destaque para canções como "Subúrbio" e "Outros Sonhos", além de composições de ou-tras fases de sua carreira, co-mo "Mambembe", trilha do filme "Quando o Carnaval Chegar", de Cacá Diegues (1972), nunca apresentada em show pelo compositor.
De quinta a domingo, Chico fica no Tom Brasil até 24 de setembro, e retorna a partir de 5 de outubro. Com a nova turnê, ele passará por outras seis cidades brasileiras (Campinas, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Belo Hori-zonte, Porto Alegre, Recife e Salvador).
Roteiro
O álbum "Carioca" e sua poesia "made in Rio" é, na verdade, um tributo aos pau-listanos. Uma fina ironia. O autor diz: "Eu morei em São Paulo e meu apelido lá era Carioca."
Intérprete, poeta e com-positor, ele fala sobre seu re-torno à música após ter vi-venciado experiências como escritor.
"O fato de se distanciar dá a impressão de que não se sabe mais fazer música, assim como terei a impressão que não sei mais escrever", diz. "Agora estou completamente músico."
A Notícia, 30/08/2006
Show de Chico Buarque em SP marca o retorno do músico aos palcos
Após um longo período de ausência dos palcos, Chico Buarque inicia hoje, por São Paulo, a turnê nacional do show "Carioca", que o levará, até junho de 2007, a mais sete cidades brasileiras. O roteiro poderá incluir apresentações em Campinas, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Salvador.
A estréia, marcada para hoje, será na casa de espetá-culos paulista Tom Brasil, com 2.200 lugares, onde o show de lançamento do novo disco permanecerá em car-taz por três semanas, sempre de quinta a domingo.
Presença bissexta nos palcos, Chico Buarque fez apenas quatro temporadas nos últimos 30 anos: "Chico e Bethânia" (1975), "Francisco" (1988), "Paratodos" (1994) e "As Cidades" (1999). A banda que o acompanhará agora é a mesma da última turnê: o maestro, arranjador e diretor musical Luiz Claudio Ramos, (violão), João Rebouças (piano), Bia Paes Leme (teclados), Wilson das Neves (bateria), Chico Batera (percussão), Jor-ge Helder (contrabaixo) e Marcelo Bernardes (flauta e sopros). Os premiados Hélio Eichbauer e Maneco Quinde-ré assinam, respectivamente, cenário e iluminação, e Mar-celo Pies, os figurinos. A produção é de Vinícius França.
Duplo disco de ouro por mais de 100 mil cópias vendidas, o CD homônimo lançado pela Biscoito Fino no início de maio fornece a base do repertório de "Carioca". Suas 12 canções - entre elas, as inéditas "Subúrbio", "Outros Sonhos", "Porque Era Ela, Porque Era Eu", "As Atrizes", "Ela Faz Cinema", "Bolero Blues" e "Sempre" - serão acrescidas de outras de autoria do próprio composi-tor nunca interpretadas por ele ao vivo, como, por exem-plo, "Mambembe" (da trilha sonora do filme "Quando o Carnaval Chegar", de Carlos Diegues, de 1972.
Chico escolheu "Voltei a Cantar" para abrir o roteiro. Com isso, ele repete o ídolo Mário Reis, que usou esta mesma canção de Lamartine Babo para anunciar sua volta aos microfones após um longo perío-do de ausência. E Chico volta a cantar em plena forma vocal e no auge da maturi-dade artística. "Carioca" é o trabalho dele mais sofisticado em termos harmônicos e melódicos e no qual se faz mais nítida a influência da experiência literária sobre o seu trabalho corno letrista.
A partir do lançamento do seu primeiro romance, "Estorvo", em 1991, o artista vem alternando as atividades de músico com a de escritor. O padrão se repete desde então: após um livro, ele se submete a um período de transição em que lentamente retorna à música. Daí, compõe, grava, lança disco, faz turnê, para em seguida retomar o trajeto de volta à litera-tura. Após "Estorvo", Chico escreveu ainda "Benjamim" (1995) e "Budapeste" (2003).
Chico ganhou fama pela música que comenta a socie-dade brasileira. Para fugir da ditadura, criou um pseudôni-mo para continuar compon-do e não ser barrado pela censura. Ele também é famo-so pelas canções que falam sobre a beleza das mulheres. Entre as canções deste estilo destacam-se "Olhos nos Olhos", "Teresinha" e "Atrás da Porta". Em 1998, o cantor foi tema do samba-enredo da Mangueira, campeã do Carnaval naquele ano.
Folha de São Paulo, Agosto/2006
Luiz Fernando Vianna
"Carioca", que estava com ingressos esgotados, ganha oito apresentações extras
Rio de Janeiro, teatro e cinema são temas que costuram o repertório; canções do novo CD se juntam a outras 16
As cortinas se abrem, e Chico Buarque já está no palco. Entoa "Voltei a Cantar" (Lamartine Babo), para demarcar seu novo retorno aos palcos, e emenda com mais duas canções, sem deixar espaço para palmas. Balbucia um "boa noite, obrigado" e só fala outra vez com a platéia na 20ª música.
Show sem encenações ou falatórios, "Carioca" inicia hoje temporada de seis semanas no Tom Brasil Nações Unidas -as quatro primeiras estão com lotação esgotada; os ingressos para as de outubro começam a ser vendidos nesta sexta-feira.
O ensaio da última quinta, realizado no auditório Ibirapuera para alunos de escolas de música, revelou duas horas de muita e boa música. O repertório de 29 itens supera o de 26 de "As Cidades" (1999) e o de 24 de "Paratodos" (1994), os dois espetáculos anteriores de Chico. Presença explícita no título, o Rio é o tema do cenário de Helio Eichbauer e de um terço das músicas. Mais do que a hegemonia do Rio, no entanto, o que se destaca é o encaixe das canções, às vezes muito sutil, sempre estimulante para o público.
Não que seja preciso ficar atento a esse quebra-cabeça para usufruir 28 composições de Chico, interpretadas pelo próprio e por uma entrosada banda de sete músicos. Mas observá-lo ajuda a entender como foram escolhidas as 16 do baú do artista que se somam às 12 de "Carioca", o CD.
Depois da vinheta de Lamartine, o show começa com "Mambembe", feita para o filme "Quando o Carnaval Chegar", e termina com "Na Carreira", que encerrava o balé "O Grande Circo Místico". Cantam a arte feita na estrada, bem diferente da reclusão das temporadas literárias de Chico.
O par formado por "Bye Bye Brasil" e "Cantando no Toró" (25ª e 26ª músicas) completa o painel da vida mambembe.
Terceira do show, "Dura na Queda" se liga ao teatro por ter sido feita para o musical "Crioula" e ao Rio pelo balanço de gafieira. Dedicada a Elza Soares, ainda faz par com a seguinte, "O Futebol", que tem Garrincha, marido da cantora, como um dos homenageados.
Bloco amoroso
Depois de "Morena de Angola", em que faz o gracejo de tocar calimba (caixinha de madeira cujo som lembra o de um chocalho), Chico apresenta um bloco romântico-onírico de cinco músicas que estão no novo CD. É o início da fase "sentada" do show, pois as primeiras e últimas canções ele interpreta em pé, sempre com o violão -a exceção é "Grande Hotel", em que divide o tamborim e o canto com o baterista e parceiro Wilson das Neves.
O bloco amoroso se liga a um de artes cênicas graças a "Mil Perdões", feita para "Perdoa-me por me Traíres", o filme baseado na peça de Nelson Rodrigues. Outro blues, "A História de Lily Braun", vem antes de "A Bela e a Fera" -ambas de "O Grande Circo Místico"- e de "Ela É Dançarina". O cinema, então, é exaltado nas novas "As Atrizes" e "Ela Faz Cinema".
O clima de bossa nova suingante da segunda é a chave para um grupo de músicas que têm o Rio como paisagem. A última, "Bolero Blues", parceria com o baixista Jorge Helder, se casa bem com "As Vitrines", ambas sobre um homem que não alcança a mulher sonhada.
"Subúrbio", que elenca bairros do "outro lado" da cidade maravilhosa e cita o alarido do funk e do rap, contrasta com "Morro Dois Irmãos", diálogo com a montanha imponente da zona sul.
Os diferentes Rios desembocam em "Futuros Amantes". "Na Carreira" fecha o show depois do xote-rap "Ode aos Ratos", parceria com Edu Lobo também feita para o palco. No bis, Chico cai no samba. Ou melhor, a platéia cai, enquanto ele canta "Sem Compromisso", "Deixe a Menina" e "Quem Te Viu, Quem Te Vê". É hora de o recital dar lugar à festa.
O Estado de São Paulo, 28/08/2006
SÃO PAULO - Após sete anos longe dos palcos, o cantor e compositor Chico Buarque inicia temporada de shows da turnê "Carioca" na quarta-feira, às 21h30, no Tom Brasil, com ingressos completamente esgotados para as quatro semanas de show. Mas o cantor anuncia nesta segunda-feira que fará mais oito shows extras entre os dias 5 e 15 de outubro, sempre de quinta a domingo. Os ingressos começarão a ser vendidos nesta sexta. Depois segue para sete cidades: Campinas, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Salvador, até junho de 2007. O roteiro do show prioriza as 12 músicas do CD homônimo, lançado em maio pela Biscoito Fino, mas terá 29 canções selecionadas pelo próprio Chico e por seu co-roteirista e produtor Vinícius França. O show começa com "Voltei a Cantar", de Lamartine Babo.
A proposta é enaltecer o Rio de Janeiro, como cartão postal ou na real do subúrbio, em canções como "Renata Maria", "Bolero Blues", "Leve", "Já Passou" e "Futuros Amantes".
O cinema é homenageado em canções como "As Atrizes" e "Ela Faz Cinema" ou músicas compostas para trilhas sonoras, como "Porque Era Ela, Porque Era Eu", de "A Máquina" de João Falcão, "Palavra de Mulher" de "Ópera do Malandro", dirigido por Ruy Guerra, e em três canções para filmes de Cacá Diegues: "Sempre", tema do inédito "O Maior Amor do Mundo"; "Bye, Bye Brasil", feita para o filme homônimo de 1979, e "Mambembe" de "Quando o Carnaval Chegar" (1972).
A parceria entre Chico e Edu Lobo aparece nas músicas da trilha do balé "O Grande Circo Mítico" (1982), "A História de Lily Braun", "A Bela e a Fera" e "Na Carreira" e do espetáculo teatral "Cambaio" (2001), "Ode aos Ratos". Chico divide o palco com Bia Paes Leme, cantando "Imagina" e com o baterista Wilson das Neves em "Grande Hotel", que compuseram em parceria.
Revista Expressions - Julho/2006
Regina Zappa
Com o CD "Carioca", carregado de lirismo, Chico Buarque deixa a literatura de lado, volta a ser "Totalmente Músico" e se prepara para sair em turnê pelo país nos próximos meses.
Seis da tarde no apartamento do Leblon, no Rio de Janeiro, com vista para o mar e para o morro Dois Irmãos. Lá de dentro, ao dirigir-se para a sala, Chico Buarque, prestes a completar 62 anos, avisa: "O artista ainda não almoçou". Voltou do futebol de todo sábado e nem teve tempo de almoçar. Chega comendo uma maçã e parece que as entrevistas para jornais, revistas, televisão, rádio e internet não o abalaram. Logo ele que não tem predileção especial pela exposição na mídia. O lançamento do seu CD Carioca, porém, exige, e ele não recua, que se abra a casa a uma boa conversa sobre o novo trabalho. É quando olhos e ouvidos se voltam para o músico e compositor, que deixa na estante, temporariamente, sua vocação literária e parte, mais uma vez, para o universo sonoro. É hora, então, de aproveitar a deixa para ter notícias frescas do compositor, da sua criação, do seu olhar sobre sua cidade, das suas idéias.
Chico admite que está feliz com o disco novo, lançado quase sete anos depois de seu último CD As cidades. De uns tempos para cá, ele vem se dividindo entre literatura e música, mas os dois ofícios não coexistem. Quando escreve, não compõe, e vice-versa. Agora, ele diz que está "totalmente músico", mas reconhece que a volta à criação de canções não é fácil. "Quando escrevo não há espaço para a música ou o violão, que fica guardado na caixa. E quando volto para a música, já sou um músico diferente daquele que deixou de fazer canções durante seis, sete anos”. Nesse período, Chico se dedicou, principalmente, a escrever Budapeste, seu último livro, vencedor de inúmeros prêmios literários. Para voltar à música, diz, é como se tivesse que reaprender a compor.
"Este disco demorou um ano e meio para ficar pronto. As oito músicas novas tomaram um ano e meio. Um tempo razoável para mim, hoje. Antigamente não, elas saíam com mais facilidade." Por quê? "Porque você tem impressão de que já falou de tudo. Uma impressão falsa, mas real. Ou seja, a primeira impressão é essa. Quase peço para me darem idéias. Ou um mote para escrever uma música. Então, eu fiz algumas músicas que estão nesse disco da mesma forma que fiz várias vezes em outros discos para cinema, para teatro, que não deixa de ser isso: uma encomenda para um trabalho."
Chico alega que a "encomenda" funciona como primeira centelha para desenvolver uma idéia musical, uma idéia de canção. E que fazer música não é um trabalho contínuo como o de escrever um livro. "Música tem a solução de continuidade. Você termina uma música, e uma puxa a outra." Quando começou a compor, chegou, primeiro, a três ou quatro músicas. Ai já sabia que ia completar o disco. Mas quando começou a gravar ainda não tinha todas as músicas prontas. Ele ri e diz que se fosse esperar todas as canções estarem prontas, as músicas novas iam começar a ficar velhas.
O CD se chama Carioca e fala, em algumas músicas, de um Rio de Janeiro sofrido, mas extremamente criativo. O disco não nasceu carioca, mas foi se fazendo assim. "Foi um acaso. Quando comecei eram canções soltas. Eu não tinha muito uma idéia de unidade, enquanto estava fazendo o disco. No final, quando escrevi a música Subúrbio, reparei que o Rio estava muito presente. Nas letras e também nas músicas, nos ritmos. A maioria das canções era muito carioca. Isso não foi buscado, foi acontecendo."
Embora carregado de um lirismo buarqueano permeando as canções que falam de amor e de reminiscências juvenis, Carioca passeia também pela dura realidade do Rio. Em Subúrbio, canção em que desfia uma extensa lista com nomes de bairros do subúrbio carioca, ele termina a canção, dizendo Fala Paciência, que parece ser a única coisa que se pode pedir aos habitantes do subúrbio e da cidade. "Achei um bom bairro. Há nomes muito bonitos no subúrbio do Rio, como Encantado, Piedade, Paciência. Achei que o último bairro que deveria ser citado era esse: Pa- ciência. Realmente, haja paciência."
Pode-se dizer que o disco tem duas vertentes. Um lado faz uma viagem aos sentimentos da adolescência (em As atrizes recorda o tempo de menino, quando ia ao cinema ver as atrizes francesas tirarem a roupa), ao estado de busca de um amor (Renata Maria, Bolero Blues, Imagina). "Quando se faz uma música de amor, você, queira ou não, mesmo que invente a personagem, começa a se envolver com aquela personagem. Inventa uma paixão e fica mesmo apaixonado, como um adolescente. Em As atrizes revivo aquela paixão pelas atrizes do cinema francês. Era uma coisa muito forte. Brigitte Bardot para mim, aos 17 anos, era um grande tesão. E relembrar isso é bom, faz bem para a saúde." No caso de Bolero Blues, Chico admite que a história é mais amarga. Nela, o autor reconhece que o tempo passou. É a história de um desencontro no tempo.
O outro lado fala do Rio, das mazelas da cidade, da realidade amarga (Subúrbio, Ode aos ratos e Dura na queda), do desejo de que fosse diferente (Outros sonhos). Mas mais que falar do Rio, no entanto, Chico diz que quer ouvir o Rio. "É, eu peço a esses bairros todos, ao subúrbio, que cante: faça ouvir os acordes do choro-canção. Não que eu ouça seguidamente rap ou música funk, mas isso me chega aos ouvidos mesmo que eu não ligue o rádio. Está aí. Está no ar. Porque o Rio de Janeiro é uma cidade muito musical. Há essa decadência toda, em toda parte. A gente percebe que a cidade está um pouco se deixando cair, se deixando entrar nesse processo de decadência, mas a música está sempre muito viva." A comparação com São Paulo é inevitável. Chico diz que o nome Carioca de seu CD é uma homenagem a São Paulo porque na infância, quando morava na capital paulista, tinha o apelido de "carioca".
"Se a gente comparar com São Paulo - tenho isso porque morei em São Paulo, tenho raÍzes lá, estudei lá - é a cidade onde está o poder mesmo, político e econômico-financeiro. E o Rio está cada vez mais na periferia, no subúrbio do Brasil. E, no entanto, a música parece que é uma resistência a esse processo de decadência. Por algum motivo, a música continua sendo muito poderosa no Rio de Janeiro."
Normalmente, quando termina um disco, Chico tem vontade de montar um espetáculo e sair cantando suas músicas novas. Com repertório novo fica motivado a fazer show. Por isso, nos próximos meses, quando voltar da Alemanha, onde vai se apresentar na Copa de Cultura e aproveitar para ver alguns jogos do Brasil - que ninguém é de ferro! - Chico vai passar um bom tempo dedicado a esses shows pelo país.
O palco já não o intimida como antigamente, quando a idéia de se apresentar em público tirava sua tranqüilidade e seu sono. Hoje ele sente prazer em estar com os músicos de sua banda e tem um controle do palco que lhe dá segurança. Aliás, apesar de ser reservado e de, sabidamente, não gostar de se expor, Chico também vem lidando melhor com esse lado da fama. Recentemente, gravou uma série de entrevistas que resultaram em nove DVDs, nos quais fala de quase tudo relacionado a sua carreira.
"As pessoas julgam que eu sou tímido. O que existe é que eu dou mais importância ao meu trabalho de criação do que de exposição, e o trabalho de criação é um trabalho que exige reserva, exige recolhimento. Então, eu dedico mais tempo e tenho mais prazer, certamente, em ser um artista criador de literatura e de música. Essa série de entrevistas, em que fui rememorando coisas da minha vida e da minha profissão me proporcionou esse desejo de escrever músicas novas."
Para o CD Carioca, Chico também inovou ao permitir que o diretor Bruno Natal filmasse um documentário sem restrições dentro do estúdio da Biscoito Fino, mostrando todo o processo de gravação do disco. No DVD, que acompanha o CD ou pode ser comprado em separado, Chico aparece alegre, bem-humorado, fazendo brincadeiras e se deixando filmar em todos os momentos das gravações. Mudanças?
"Mudanças, não sei. O que aconteceu com a série de DVDs é que apareceu a oportunidade de gravar entrevistas com a finalidade de recuperar e lançar em DVD todo o material de arquivo que o Roberto Oliveira tinha na televisão. Esse material se perderia e não havia interesse em lançar apenas as imagens de arquivo, que são muito interessantes. Sobretudo os encontros com grandes colegas, compositores, músicos, como Tom Jobim, Dorival Caymmi, Gil, Caetano, Bethânia."
E na vida e na criação, que rumo vai tomar agora? Diz, sorrindo, que está na hora de escrever outro livro. Claro, quando terminarem os shows. "Se eu puder manter essa alternância vai ser muito bom para mim." O segredo dessa energia criativa está no próprio interesse pela renovação artística. "Estar sempre criando significa que até agora não perdi o interesse pela criação. É o que eu gosto de fazer. Fico triste se não tiver alguma coisa para escrever, alguma música para compor. Isso me dá prazer. É só por isso."
Le monde - Julho/2006
Véronique Mortaigne
"O Brasil precisa descansar das nossas terríveis carícias", brinca, sorrindo, o intelectual brasileiro Chico Buarque de Holanda, citando o poeta Carlos Drummond de Andrade. O futebol não pode ser uma mera questão de nacionalismo. "Quando eu ouço gritar "Brasil! Brasil!", começo a pensar que é preciso deixar este país em paz, porque ele vai ficar esgotado com isso".
É quarta-feira, 21 de junho, o Brasil ainda pretende conquistar a Copa do Mundo de 2006, estamos em plena Festa da Música, diante das janelas da residência parisiense de um cantor que o diário espanhol "El Pais" acaba de comparar a Bob Dylan e a Jacques Brel pela força das suas letras.
"Em 1950, na minha infância, eu estava no Maracanã". O Brasil foi derrotado pelo Uruguai. Em grande estilo. "Ganhar com um estilo de jogo sem graça, como em 1994, não tem interesse algum. O que conta é a arte. Eu prefiro que a seleção perca com brio a vê-la ganhar com sabedoria". Os brasileiros terão, em 2006, perdido com sabedoria. Samba e futebol têm em comum a arte do fraseado, do gestual, o brio, o desafio. Chico Buarque, filho de um professor universitário, interrompeu há quarenta anos seus estudos de arquitetura para dedicar-se á arte popular. "A Banda", a música-farol daqueles anos de chumbo - ela data de 1966, a ditadura militar de 1964 -, celebra a atração ingênua do povo brasileiro pela festa e a beleza simples.
Mas Chico Buarque é também um erudito da língua portuguesa, como comprova a música "Construção". Este grande sucesso (1971), que conta a jornada trágica de um operário da construção, é inteiramente construído com palavras cujo acento tônico se dá na última sílaba.
Desde então, Chico Buarque, 62, se tornou um mito sul-americano, uma espécie de estátua do comendador das artes chamadas "menores". "Menores, porém maiores na profundidade", dizia (o cantor e compositor) Claude Nougaro (1929-2004), que admirava Chico Buarque e fez uma adaptação da sensual "O Que Será", com o título de "Tu Verras, Tu Verras" ("Você Verá, Você Verá").
Assim, este homem se revela intimidante, tímido, recalcado, constrangido, pudico. O íntimo é imediatamente descartado pelo olhar azul, intenso, e a voz excepcionalmente grave, que lembra uma flauta quando ele canta. Este homem delgado, reto, está mergulhado na literatura desde 1991. Ele vem publicando romances cujos heróis banham numa espécie de irreal constante.
Este jogador de futebol inveterado acaba de lançar "Carioca", o seu 53º disco de carreira, se incluirmos suas obras para o teatro, o cinema, as comédias musicais, etc. Ele viajou para a Alemanha, para a Copa do Mundo, por certo, mas também para fazer shows, o que não acontecia há mais de sete anos. Em Paris, no seu apartamento no bairro do Marais, Chico Buarque está comendo cerejas com gulodice. Este passageiro urbano, cujo mais recente romance intitula-se "Budapeste" - nele, todos os personagens levam os nomes dos jogadores da mítica equipe húngara de 1954 -, sabe desencavar nos interstícios da língua portuguesa instantes de encantamento.
"Eu adoro Paris", diz, "porque adoro andar, e andar é o mesmo que trabalhar. Além disso, eu estive aqui com os meus pais quando eu tinha 8 anos, e quando vi cartazes de mulheres nuas, em Pigalle, foi aquele choque! E havia o cinema francês, único no mundo, com pouca roupa, com Martine Carol e seus seios para fora! Até então, eu só tinha visto aqueles das minhas irmãs, aquilo não valia". Da Holanda, Chico Buarque tem "apenas o nome", mas da Itália ele recebeu "muito". Ele viveu neste país com os seus pais, e nele retornou em 1969, ameaçado pela ditadura, e foi lá que a sua filha primogênita, Silvia, nasceu. "Da França também, herdei a cultura, sempre muito presente no Rio".
Francisco, Chico é um apelido, é um Buarque de Holanda, "meio-campista" de uma equipe de sete irmãos e irmãs. O pai, Sergio (1902-1982), um dos maiores historiadores do Brasil, era "um universitário engraçado, que contava para os seus filhos anedotas divertidas, por exemplo, como se penteava o imperador Dom Pedro"... A mãe, a "dama de ferro" Maria Amélia, 90 anos bem vividos, que apóia desde sempre o Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula, apaixonada pela cultura francesa, pela boa educação, pela tolerância e por futebol, e que levava seus filhos para assistir aos jogos do Fluminense, a equipe do coração da família. Ele tem irmãs, sobrinhas, cunhados e genros cantores (Miúcha, Cristina, João Gilberto, Bebel Gilberto, Carlinhos Brown...) e cinco netos.
Chico Buarque sofreu com a situação "periférica" ocupada, segundo ele, pelo Brasil. Os seus silêncios sem apelo, os seus sumiços, a sua carência absoluta de perspectivas em termos de marketing, contribuíram para minimizar seu gênio. Na Europa, o seu nome apareceu com força uma primeira vez com "Morte e Vida Severina", uma montagem de um longo poema de João Cabral de Melo Neto, apresentada no Festival de teatro universitário de Nancy em 1965.
Então, ele ressurgiu em 1988 com uma propaganda da Schweppes ("Essa moça está diferente", uma música-alerta de 1972). Na França, ele se apresentou poucas vezes, e no Brasil as suas aparições no palco também são raras. Ele é cobrado por isso.
Chico Buarque votará em Lula no final de 2006, apesar dos escândalos que mancharam o PT e o governo. "No Brasil, entre outros, a cultura da corrupção está em todo lugar. É verdade, houve erros, mas quanto alvoroço contra Lula! A sua classe social acabou se voltando contra ele. Ele foi tratado de ignorante, de analfabeta, como se o recreio tivesse acabado!"
Um autor sutil, ele foi censurado pelos militares - o disco "Calabar", ou "O Elogio da Traição", uma comédia musical que visa a reabilitar Calabar, uma figura do traidor na guerra que opôs o colonizador português ao colonizador holandês, foi proibido. Mas, um malabarista de palavras, ele deixou em muitos casos os censores perplexos e o povo feliz.
Em 1984, quando o general João Baptista Figueiredo é instado a se retirar, Chico Buarque compõe "Vai passar": um desfile de samba para um hospício de idosos. O Brasil inteiro dança ao som desta mordaz e carnavalesca execução da gerontocracia.
Chico Buarque foi criado em São Paulo, mas ele nasceu no Rio. Ele possui o humor boêmio típico do carioca. É com este sentimento que ele descreve a outra face desta cidade, vista a partir da sua "Zona Sul" abastada, Copacabana, Ipanema e Leblon, onde o cantor hoje mora. Ele escuta noite e dia os sons muito próximos que vêm dos "morros", "vozes, rumores, ruídos de metralhadoras", e aquele ainda mais antigos, da periferia, epicentro "do samba, do choro, dessas músicas que me fizeram e que são o espírito do Rio".
Observatório da Imprensa - 05/04/2005
Maria Stella Faciola Pessoa Guimarães
Nas bancas de Paris, a última edição do Le Nouvel Observateur coloca Chico Buarque de Hollanda como centro de uma reportagem que o considera um dos melhores escritores da América do Sul. Na capital francesa, terra de grandes teóricos, estudiosos e críticos da literatura, o jornal Le Monde instituiu um prêmio destinado a quem desenvolver a melhor resenha sobre o livro Budapeste. E fiquemos apenas na França, para não detalharmos também as homenagens ao Chico que estão sendo desenhadas em Nova York e na Espanha, por exemplo.
Enquanto isso, aqui no Brasil, nos últimos tempos, o que se fala do autor, com grande alarde, está girando em torno de um suposto caso amoroso engendrado pela imprensa a partir de fotografias em praia do Rio de Janeiro.
O que há de surpresa nisso? Não é assim que atua grande parte da mídia nacional? O inglês George Orwell, no fim da década de 40, quando idealizou seu 1984, talvez não imaginasse que o Brasil seria aquele país fictício com câmeras acompanhando todos os movimentos dos habitantes. O Grande Irmão, ou o Big Brother, como naturalmente se prefere aqui, é o ditador onipresente que controla todos os passos de uma sociedade reprimida e sem privacidade. É o que Orwell, na sua obra antitotalitária, quando olhava o futuro, chamava de "distopia" ou "utopia negativa". E recordo mais uma expressão orwelliana: aqui tem "polícia do pensamento" ou, no original, "thought police". O Big Brother controla tudo e todos. E haja platéia! Parece que as exceções, indiferentes ao espetáculo, não contam.
Mas é bem verdade que, construindo inteligentemente uma outra notícia sobre Chico Buarque, este Observatório da Imprensa estampou para os internautas o artigo de Lucília Maria Sousa Romão [ver remissão abaixo], que coloca seu foco na vasta obra do brasileiro, procurando aproveitar os holofotes para mostrar a riqueza do acervo buarquiano.
Em torno de Cecília
Entro na corrente positiva de Lucília Maria e trago, como contraponto à fofoca, algumas reflexões a respeito da profundidade dos textos do compositor. Abordo, como exemplo, a letra de Cecília, do último CD gravado em estúdio por Chico Buarque - As cidades.
Na capa de As cidades, os olhos verdes e outros emblemas do semblante do artista são distribuídos - via montagem por computador - em quatro rostos diferentes (um nórdico, um negro, um oriental e um árabe) que representam tipos físicos encontrados no Brasil. Faz parte do interior da apresentação, como excelente material gráfico, mais um rosto (um índio com os olhos do Chico) e imagens de cidades. Esse trabalho é de Gringo Cardia, que já havia feito a capa do disco Paratodos.
Inicialmente, Chico pensou em chamar o compact disc de "Sonhos sonhos são" - uma das faixas -, mas depois a idéia evoluiu, pois queria encontrar um título que, além de remeter ao clima onírico, também enfatizasse os cantos das cidades sonhadas, de amores sonhados, de um sonhado mundo mais justo. Dessa forma, ficou eleito o nome "As cidades". É bom lembrar que Chico estudou Arquitetura e, como imagens de fundo das páginas que contêm as letras, aparecem traçados de cidades.
Declaração de amor
Por sorte, obra-prima tem plural, mas, falando sério, As cidades é a obra-prima do Chico, fruto da maturidade alcançada pelo artista após 35 anos de carreira.
Pela internet, pinço uma reportagem de O Estado de S. Paulo de novembro de 1998 (ano do disco), assinada pelo jornalista Mauro Dias: "As cidades é um disco difícil. Nada de canções de assimilação imediata, de assobio à primeira audição". E mais: "O compositor e seu arranjador, o violonista Luiz Cláudio Ramos, retrabalham, ajustam, burilam as partes de cada instrumento, embaralham as cordas dos violões, de forma que a beleza completa só será percebida depois da audição muito repetida e atenta". Concordo com ele. É um disco musicalmente sofisticado. Quanto às letras, Chico Buarque costuma criá-las e reelaborá-las várias vezes em busca da perfeição. Elas ficaram irretocáveis, a poesia é bem mais formada e organizada, com menos palavras e uma carga crescente de sentidos.
Lá vai a letra de Cecília:
"Quantos artistas
Entoam baladas
Para suas amadas
Com grandes orquestras
Como os invejo
Como os admiro
Eu, que te vejo
E nem quase respiro
Quantos poetas
Românticos, prosas
Exaltam suas musas
Com todas as letras
Eu te murmuro
Eu te suspiro
Eu, que soletro
Teu nome no escuro
Me escutas, Cecília?
Mas eu te chamava em silêncio
Na tua presença
Palavras são brutas
Pode ser que, entreabertos
Meus lábios de leve
tremessem por ti
Mas nem as sutis melodias
Merecem, Cecília, teu nome
espalhar por aí
Como tantos poetas
Tantos cantores
Tantas Cecílias
Com mil refletores
Eu, que não digo
Mas ardo de desejo
Te olho
Te guardo
Te sigo
Te vejo dormir".
Uma obra de arte só está completa quando envolve também o lado do receptor, isto é, de quem a observa, admira e lê. Portanto a minha leitura de Cecília é a minha leitura de Cecília. Outras leituras podem ser iguais. E outras mais podem ser bem diferentes.
Até comento aqui a reação do Chico quando algumas pessoas leram a canção Você, você - do mesmo disco de Cecília - de forma diferente da qual ele como autor tinha imaginado: o compositor foi convencido do contrário que havia pensado inicialmente, aceitando então a leitura de quem ouvia a obra. Da mesma forma, a escritora Clarice Lispector, cujos livros foram estudados pelo eminente professor Benedito Nunes, confessou que o crítico do Pará descobrira nuances que ela própria, como autora, ainda não tinha percebido. A razão é mais ou menos a seguinte: no processo de criação, o artista passa para a obra tanto aspectos conscientes como também é movido por impulsos inconscientes de arquétipos que sobrevivem no ser humano. Assim, muita vezes, o que é inconsciente para o criador é lido com mais clareza pelo receptor.
Volto à leitura de Cecília. É, sim, uma declaração de amor, mas não apenas uma declaração de amor. É a declaração de um amor impossível, inalcançável, platônico, desconhecido pela musa. E mais: é uma declaração que nunca foi dita, mas apenas pensada pelo cantor. Eu tentarei explicar. Cecília abrange 36 versos, divididos em 4 estrofes.
Eu-poético
A primeira e a segunda estrofes têm oito versos cada: são oitavas. A métrica é perfeita. São versos tetrassílabos, pentassílabos (as redondilhas menores) e hexassílabos (os heróicos quebrados). Todos têm rima. A primeira estrofe tem a rima "ABBCDEDE" e a segunda "ABBCDEED". Os versos aparentemente brancos da primeira estrofe (primeiro e quarto) na verdade rimam com os correspondentes na segunda estrofe. Tudo certinho...
Agora vejam as palavras dessas duas estrofes. Na primeira, o cantor diz que não é capaz de entoar música à altura da amada. Na segunda, não é capaz de fazer poesia (incapacidade e limitação da palavra) como grandes poetas.
E, no entanto, contradizendo a timidez do cantador, "Cecília" tem os maiores recursos musicais de As cidades, é tocada em nada menos do que 34 instrumentos: 1 violão, 1 piano, 1 baixo, 1 bateria, 2 trompetes, 2 trombones, 2 trompas, 2 flautas, 2 clarones, 12 violinos, 4 violas e 4 cellos. Fantástica orquestra!
Quanto à perfeição da parte poética, além do que já se disse em termos da forma, é preciso acrescentar mais. Como a primeira estrofe é relacionada à música e a segunda à poesia, o primeiro verso da primeira estrofe termina com "artistas" - referência à música - e o correspondente da segunda estrofe termina com "poetas" - referência à letra. E rimam entre si em estrofes diferentes. Da mesma forma, o quarto verso da primeira estrofe termina em "orquestras" - referência à música - e o correspondente da segunda estrofe termina em "letras". Enfim, se eu transporto para a matemática, posso dizer que "artistas" (no viés musical) está para "poetas" assim como "orquestras" está para "letras", tanto na localização quase cartesiana das palavras nos verbos como no sentido hermenêutico. E, com essa lógica, outras palavras da primeira estrofe têm correspondentes na segunda, poeticamente e - por que não dizer? - matematicamente colocadas. É um verdadeiro tecido de símbolos, não é?
Nota-se a timidez do cantor (eu-poético na primeira pessoa) nas duas estrofes iniciais. A grandeza é omitida, mas está lá. O dito maravilhoso tenta esconder o mais maravilhoso não-dito. O não-dito é interditado pelo acanhamento, mas aparece latente e forçosamente entre as sílabas das palavras e dissimulado no meio das notas musicais usadas para exaltar a musa.
Sem respiração
Os verbos murmurar (dizer em voz baixa) e suspirar (desejar ardentemente, ambicionar, almejar) são usados como transitivos indiretos - "Eu te murmuro / Eu te suspiro". Assim, também pelos vocábulos escolhidos, eu entendo que a declaração de amor foi apenas pensada ou sonhada (até pelo clima onírico do disco, assunto já comentado antes).
Após os murmúrios e os suspiros da segunda estrofe, na terceira, que é um quarteto, vejo que o cantor demonstra certo receio de ter sido percebido e aí (para não descortinar mais seus sentimentos) começa a se desculpar para ele mesmo (ele conversa com ele próprio como se dissesse a Cecília) - "Na tua presença / Palavras são brutas" -, clima que prossegue até os primeiros versos da quarta e última estrofe - "Mas nem as sutis melodias / Merecem, Cecília, teu nome espalhar por aí".
Coincidentemente, o rigor das rimas observado nas duas primeiras estrofes é abandonado na terceira e na quarta, o que me leva a supor que o cantor ficou desconcertado. E o desconcerto maior ocorre quando ele reconhece que o desejo é irremediável e confessa a si próprio: "Eu, que não digo / Mas morro de desejo". Penso que ele apenas revela a si mesmo, porque logo em seguida vêm os divinos versos finais: "Te olho / Te guardo / Te sigo / Te vejo dormir". Aí o "Te" repetido dá ritmo à letra e intensifica a imagem. É uma volta à razão - abandonada antes por ligeiríssimo momento - e ao discurso de voyeur. Na minha leitura, o verso final - "Te vejo dormir" - confirma que Cecília não sabe de nada, não ouviu nada e é amada a distância, de longe. Quero ainda chamar a atenção para mais dois detalhes que observei.
Primeiro, Chico usa algumas vezes o recurso clássico de repetições seguidas de sons iguais para firmar mais as idéias: "tantos" em "tantos poetas", "Tantos cantores" e "Tantas Cecílias"; "com" em "Com grandes orquestras", "Como os invejo" e "Como os admiro"; "eu" em "Eu te murmuro", "Eu te suspiro" e "Eu, que soletro".
Segundo, nas duas estrofes iniciais, o cantor fica sem respiração e no escuro por sua declarada e mentirosa impotência musical e poética, respectivamente. Depois, nas estrofes seguintes, os lábios são entreabertos (voltou a respiração) e há "mil refletores" (chegou a luz).
Chico Buarque e Goethe
Como a minha visão de Cecília é a do amor platônico, voyeur, inatingível, inalcançável, vou comentar alguma coisa de outra obra - um clássico - sobre o amor impossível: Os sofrimentos do jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). É o primeiro romance do escritor alemão (autor de Fausto, personagem associado à lenda de que vendeu a alma ao diabo em troca de sabedoria).
Werther - nome abreviado desse primeiro romance de Goethe - é uma história de amor descrita através de cartas e notas. O jovem Werther fica apaixonado por Lotte. Porém, antes de conhecê-la, por meio das cartas enviadas ao amigo, observa-se no livro o temperamento romântico e introvertido de Werther: "Reina em minha alma uma serenidade maravilhosa, semelhante à das doces manhãs de primavera que procuro fruir com todas as minhas forças. Estou só e abandono-me à alegria de viver nesta região criada para as almas como a minha". E ainda: "Concentro-me e encontro um mundo em mim mesmo".
Então Werther conhece Lotte e, mesmo sabendo que a moça tinha compromisso com outro homem, não deixou de transmitir seu entusiasmo ao amigo com o qual se correspondia habitualmente: "Conheci alguém que tocou o meu coração. Eu... eu não sei mais o que dizer". E, também, há o registro da personalidade introvertida, ensimesmada, como demonstra a expressão: "Só isto basta: ela tomou conta de todo o meu ser".
Werther se apaixona platonicamente por Lotte e as cartas assumem o tom: "Fiz-lhe um cumprimento qualquer, mas minha alma estava inteiramente presa no encanto do seu rosto". Seu estado de felicidade pode ser entendido pelas palavras: "Desfruto, no mais íntimo de mim mesmo, toda a felicidade que é possível ao homem desfrutar".
Ao lado de Lotte, o absorto personagem fica mudo: "Para mim, ela é sagrada. Todo desejo emudece em sua presença. Não sei o que sinto quando estou junto dela; é como se toda a minha alma revolvesse todos os meus nervos". Não vimos que Cecília também emudece seu cantor? Não é um sentimento parecido?
O amor de Werther é de contemplação, é celestial, é primoroso, é intocável: "Para eu ser feliz, basta-me contemplar seus olhos negros". E mais: "Já estive a ponto de apertá-la em meus braços centenas de vezes! Deus todo-poderoso, sabe o que se sente ao ver tanto encanto? e não poder tocar...". É como olhar Cecília e arder de desejo?
O sentimento de Werther por Lotte - que se casou com Albert - continuou platonicamente, mesmo depois do casamento da sua musa, até que o protagonista, em desespero, resolve se declarar à amada. O fim é trágico nessa obra essencialmente psicológica: após fase de desânimo e desalento, Werther se mata com a esperança de encontrar Lotte em outra dimensão espiritual.
Goethe foi um grande expoente da época do Romantismo, fase da cultura européia posterior ao Iluminismo. Na verdade, o Romantismo começou na Alemanha como reação à parcialidade do culto à razão apregoado pelo Iluminismo. Sentimento, imaginação, experiência e anseio eram novas palavras de ordem. Em pleno Romantismo, os contemporâneos de Goethe identificaram-se com os motivos de Werther, o número de suicídios aumentou, o romance chegou a ser proibido por algum tempo.
Chico Buarque e Fernando Pessoa
Em vários escritos de Fernando Pessoa (1888-1935), quando o artista português expressa em sua obra as angústias do homem moderno, está presente a figura do sentimento reprimido e do amor inatingível. Desde a apresentação de Ficções do Interlúdio - o título já nos sugere a busca das frestas das letras -, o poeta fala em dominar as suas emoções, se bem que não os seus sentimentos, assim como em viver "cada estado de alma antes pela inteligência do que pela emoção".
Como Alberto Caeiro, Pessoa escreve: "Sou um guardador de rebanhos / O rebanho é os meus pensamentos / E os meus pensamentos são todos sensações". E ainda: "Sou o argonauta das sensações verdadeiras". Ou mais uma marca da timidez: "Não sei o que hei de fazer das minhas sensações / Não sei o que hei de fazer comigo sozinho". E encontro mais: "Procuro raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, / Desencaixotar as minhas sensações verdadeiras, / Desembrulhar-me e ser eu". É o amor enrustido? Como o do cantador de "Cecília"?
Se o heterônimo é Álvaro de Campos, o poeta é introvertido quando fala da "angústia da forja das emoções" e em "viver as coisas pelo lado das sensações" ou "extravasar de emoção". E eu pergunto a vocês se "Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!" ou se "todos os sentidos em ebulição e todos os poros em fumo" não são semelhantes aos versos para Cecília? E o que é "olho e contento-me em ver"? É o voyeur outra vez?
Por fim, do Pessoa cito ainda o Livro do Desassossego. Lá está um texto chamado "O amante visual", onde o narrador diz que ama "com o olhar" e está sujeito a "paixões visuais". O autor se refere ainda a "figuras com cuja contemplação me entretenho" e completa: "vejo-as, e o valor delas para mim está só em serem vistas". E tem outro trecho: "Nada mais quero da vida senão assistir a ela".
Amor irrealizável
Mutatis mutandis, a natureza do amor irrealizável está nas obras de Chico, Goethe e Pessoa. Se comparamos Cecília e Werther, a diferença está no desfecho trágico no clássico de Goethe. Mas "Cecília" não tem desfecho explícito. Um amor impossível - por motivos mais variados - pode ser igual a outro na essência, na significação, na intensidade, mas eles diferem no desenvolvimento e no The End. Há quem se disponha a amar alguém celestialmente a vida toda ou por longo tempo, cedendo sempre à razão e à inteligência no que diz respeito à adoção de atitudes.
Os que pensam assim talvez entendam que é um amor próprio das almas nobres, quiçá identifiquem barreiras, e assim prosseguem no clima de "Te olho / Te guardo / Te sigo / Te vejo dormir". Retêm a imagem idolatrada enquanto tocam a vida. Há também quem adote uma saída mais explosiva ou até mesmo trágica. E há o amor impossível que acaba, morre, sem nunca ter sido declarado. Seja lá como for, disso os poetas e romancistas entendem muito bem e talvez Freud explique...
Folha de São Paulo - 13/01/2005
Janaina Fidalgo
Chico caminha na direção do espectador ao lado de paulistas, pernambucanos, mineiros e baianos. Enquanto ele não chega, o trajeto para alcançá-lo é longo. Afinal, não estamos no calçadão do Leblon, onde se passa a cena descrita. O percurso dessa viagem, iniciada há 60 anos, passa pela infância na casa da rua Buri, a visita de reconhecimento a Ismael Silva e Noel Rosa, as parcerias com Vinicius de Moraes, Tom Jobim e João Gilberto, os dribles de Julinho da Adelaide na censura militar e a paixão pelo futebol.
A visita ao compositor, cantor e escritor é guiada por seu sobrinho Zeca Buarque Ferreira, 30, curador de "Chico Buarque - O Tempo e o Artista". Idealizada pelo presidente da Biblioteca Nacional, Pedro Corrêa do Lago, a exposição foi inaugurada no ano passado no Rio, em homenagem aos 60 anos do artista, e é aberta hoje no Sesc Pinheiros, em São Paulo, com acréscimos, como o discurso feito quando Chico obteve o título de cidadão paulistano.
"É um certo salto e me pareceu um certo salto no escuro porque eu nunca tinha feito exposição", diz Zeca, que trabalhou com Nelson Pereira do Santos em "Raízes do Brasil", ajudando o cineasta a reunir material sobre os Buarque de Hollanda. "Fiquei assustado. Ao mesmo tempo era uma grande sedução [fazer a mostra]."
Notória, a aversão de Chico à exposição pública toma proporções maiores quando o personagem em questão é ele. Consultado por Corrêa do Lago, fez piada ("Pô, Pedro, eu não morri ainda não") e, se não havia como recusar a homenagem, tratou de avisar que ficaria longe. "Liguei para o Chico num telefonema em que eu falei pouco e ele falou quase nada. Disse que não ia participar de uma auto-homenagem", conta. "Não é que ele não goste da exposição, ele não gosta de exposição."
O Chico privado aparece em raros e bons momentos. Num deles -um retrato familiar feito no fim dos anos 70 por sua irmã Maria do Carmo, a Piii- está vestido como um juiz de futebol ao lado de Marieta Severo e das três filhas do casal -Silvia, Luisa e Helena- vestidas com trajes antigos.
"É claro que revela um momento de intimidade, mas acho que está no limite do aceitável", diz. "Eu não quis expor o que ele não queria expor. E eu não tenho essa intimidade, não sei segredos. Que ninguém venha à exposição esperando ver um Chico privado que ninguém viu e agora será revelado. Não sou essa pessoa que foi lá e vasculhou papéis."
Para não tropeçar na tênue linha divisória entre o público e o privado, Zeca usou o particular quando ele teve algo a contar sobre a formação do Chico artista.
Da infância, presente em "Retrato em Branco e Preto", há fotos da família, bilhetes e uma história em quadrinhos feita por ele. "É o Chico criando. Quis mostrar a construção do que ele é hoje."
Embora não seja um registro infantil, mas que remonta à riqueza criativa dos tempos passados, quando Chico inventava mapas de países, há nesta parte da mostra um original de Torgona, cidade imaginária criada nos anos 70 e desenhada no verso de um cartaz da peça "Calabar". Em São Paulo, o mapa ganhou uma plotagem.
Sonorizada de acordo com a época em questão, o bloco da infância tem como trilha sonora canções do belga Jacques Brel, frevos e marchinhas. "É uma trilha sonora maluca. É aquela casa com sete crianças, um radinho de pilha e um pai historiador", resume Zeca, que teve a ajuda da tia Miúcha para criar o set.
Em "Construção", o curador agrupa compositores fundamentais na formação musical de Chico, com fotos e músicas de Ismael Silva, Ataulfo Alves, Noel Rosa e Dorival Caymmi, além de imagens dos inventores da bossa nova João Gilberto, Vinicius e Tom.
Aqui, vale se ater a uma foto em preto-e-branco, onde se vê a escalação quase completa dos músicos brasileiros: de Braguinha a Paulinho da Viola, passando por Francis Hime e Zé Ketti e, é claro, Chico. Há também um manuscrito de "A Banda" (1966) e a correspondência trocada por Chico e Vinicius, na qual discutem a letra de "Valsinha" (1970).
A pérola do bloco sobre sua participação na história política brasileira é um dos dois cartões enviados a Chico em 1979 e 1980, no qual se lê um "aviso": "O Comando de Caça aos Comunistas deseja a você, ativista da canalha comunista que enxovalha nosso país, um péssimo Natal e que se realize em 1980 nosso confronto final".
No terceiro piso, foram agrupadas outras paixões de Chico: o teatro, a literatura e o futebol. Parceiros musicais e intérpretes inesquecíveis completam o bloco.
A linha de passe imaginada pelo compositor sai do campo dos sonhos para ganhar "corpo" no campo da parede: surge estampada uma seqüência de passes entre Pelé, Garrincha, Didi, Pagão e Canhoteiro. Há a camisa do time de Chico, o Polytheama, e a versão comercial de Ludopédio, jogo inventado por ele durante o auto-exílio na Itália (1969-70), cuja versão comercial chama-se Escrete.
Enquanto vê as paixões de Chico, o público pode aplacar a própria, ouvindo o repertório completo e assistindo a três vídeos.
Em fevereiro, uma adaptação da exposição, com painéis e reproduções, será exibida em Cuba.
Ciência Hoje - Dez/2004
Música e Literatura
Eneida Maria de Souza (*)
Durante a ditadura militar brasileira, compositores e artistas desempenharam um papel relevante na defesa dos ideais de liberdade e de cidadania.
A análise da obra e da trajetória profissional de Chico Buarque de Holanda, um dos mais importantes nomes da música popular, recupera esses momentos de crise política, e presta homenagem ao compositor pelos seus 60 anos.
A música popular brasileira, na sua complexidade conceitual, atingiu o prestígio que tem hoje graças à atuação dos compositores representativos dos anos 60, de nível universitário, e com forte engajamento social e político. Em consonância com a revolução musical instaurada pela bossa nova, no final dos anos 50, inserida no contexto das mudanças realizadas pelo governo - 1956 a 1961 - do presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976), delineia-se no país um desenho cultural e político de dimensão significativa para a compreensão do imaginário da época.
Embora o samba tenha exercido, em períodos anteriores, papel relevante para a legitimação dos conceitos modernos de nacionalidade e de identidade popular, articulando-se em torno de compositores de classes sociais distintas, somente mais tarde é que esse papel foi devidamente estudado.
A retomada da linha evolutiva da música popular brasileira resultou do diálogo iniciado entre a classe intelectual e a classe artística, que ocorreu de modo incipiente nos anos 20-30 e teve sua efetiva realização nos anos 60-70.
Chico Buarque de Holanda conversa com o samba urbano de Noel Rosa, assim como Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros mesclam as inovações da música internacional aos ritmos nacionais. Motivados pela lição revolucionária da 'batida' de João Gilberto, das variações jazzísticas de Antônio Carlos Jobim (1927-1994) e da poética de Vinícius de Moraes (1913-1980), aquela nova geração de artistas-intelectuais exerceu um papel de destaque na consolidação da música popular contemporânea.
Como representante dessa classe de compositores, a escolha recaiu em Chico Buarque, não só pelo valor de sua obra, mas por estar o Brasil comemorando os seus 60 anos de idade. Com ele estariam contemplados outros artistas dessa época, igualmente defensores de princípios de cidadania e liberdade assumidos na luta contra o governo ditatorial instaurado em 1964. A função que a canção popular exerce hoje como formadora de opinião pública decorre, em grande escala, da posição mantida por Chico Buarque ao longo de sua trajetória profissional, na condição de pensador - e de inventor - da cultura nacional. Como motivo condutor desta proposta de análise, será enfocada a apropriação da música como antídoto e saída para os males da nação, tendo como núcleo a canção Paratodos, homenagem feita por Chico Buarque aos compositores brasileiros.
O meu pai era paulista / meu avô, pernambucano / o meu bisavô, mineiro / meu tataravô, baiano / meu maestro soberano / foi ant0nio brasileiro / foi antonio brasileiro / quem soprou esta toada / que cobri de redondilhas / pra seguir minha jornada / e com a vista enevoada / ver o inferno e maravilhas / nessas tortuosas trilhas / a viola me redime / creia, ilustre cavalheiro / contra fel, moléstia, crime / use dorival caymmi / vá de jackson do pandeiro / vi cidades, vi dinheiro / bandoleiros, vi hospícios / moças feito passarinho / avoando de edifícios / fume ari, cheire vinicius / beba nelson cavaquinho / para um coração mesquinho / contra a solidão agreste / luiz gonzaga é tiro certo / pixinguinha é inconteste / tome noel, cartola, orestes / caetano e joão gilberto / viva erasmo, ben, roberto / gil e hermeto / palmas para todos / os instrumentistas / salve edu, bituca, nara / gal, bethania, rita, clara / evoé, jovens a vista / o meu pai era paulista / meu avô, pernambucano / o meu bisavô, mineiro / meu tataravô, baiano / vou na estrada há muitos anos / sou um artista brasileiro
Um artista brasileiro
Em 1993, a canção Paratodos vem selar a linha genealógica instaurada por Chico diante dos pais legítimos e pais musicais: trata-se de uma toada homenagem aos personagens que integram a tradição da música popular. A letra contém uma bem-humorada saudação à música produzida em todo o território nacional, justificada pela origem múltipla do compositor, que se nomeia filho de paulista, neto de pernambucano, bisneto de mineiro e tetraneto de baiano. Partidário do conceito de música popular que privilegia o aspecto nacional em sua heterogeneidade - uma proposta distinta da modernista -, o compositor considera as manifestações locais como diferenças que se suplementam ao conceito de nação.
A herança musical completa a genética, por reunir, na figura do "maestro soberano", Antonio Brasileiro (Tom Jobim), o nome e a função próprios à gestação musical do compositor brasileiro, inserido na tradição do samba, do chorinho e da bossa nova. O artista nasce do duplo poder de Antonio Brasileiro, a quem são atribuídas as funções de iniciador, maestro e legítimo representante da música popular brasileira: "O meu pai era paulista/Meu avô, pernambucano/O meu bisavô, mineiro/Meu tataravô, baiano/Meu maestro soberano/Foi Antonio Brasileiro."
A leitura da música popular sob esse ângulo esclarece não só a reflexão sobre a sua tradição como a discussão sobre questões de identidade. O músico e crítico José Miguel Wisnik, em A gaia ciência: literatura e música popular no Brasil, aborda a presença, em Paratodos, de vários pais, entre eles o pai paulista, o sociólogo e historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), "autor de Raízes do Brasil, remetendo a toda uma linhagem de fundações colhida nessa toada serenada". À herança genética se acrescentam a livresca e a intelectual, responsáveis por um pensamento moderno e canônico sobre a identidade brasileira.
Nos anos 30, o samba carioca "começou a colonizar o carnaval brasileiro, transformando-se em símbolo de nacionalidade", como afirma o antropólogo Hermano Vianna, em O mistério do samba, ao relegar os demais gêneros regionais. Tal atitude respondia pelo projeto de modernização e de nacionalização da sociedade. O mesmo não se verifica na posição de Chico Buarque em Paratodos, ao deslocar o samba de seu lugar anterior, de origem negra e carioca, e alçá-lo a símbolo de nacionalidade. Ao optar por compor uma toada, cantiga popular, de melodia simples e não circunscrita a uma região específica, o compositor dirige a saudação aos intérpretes de vários ritmos nacionais, do samba ao rock, e confirma a natureza heterogênea, híbrida e mestiça da música popular, avessa a critérios de pureza criativa ou de essência étnica.
O mesmo não se dá com o Samba da bênção, de Baden Powell (1937-2000) e Vinicius de Moraes, modelo musical de Paratodos, composto nos anos 60. Nesse samba, é saudada a comunidade de compositores negros, homenagem que a bossa nova presta aos seus precursores e à tradição musical. Nas palavras da socióloga política Maria Alice Resende de Carvalho, citada pela psicanalista Maria Rita Kehl, em Da lama ao caos: a invasão da privacidade na música do grupo Nação Zumbi, essa comunidade não era brasileira, mas carioca, tendo alcançado o status brasileiro a partir das palavras de Vinicius, que se posiciona como "o branco mais preto do Brasil".
Eleger Tom Jobim o "maestro soberano" é ainda legitimar a filiação à bossa nova, representada por um de seus maiores símbolos, além de colocá-la como marco revolucionário da música brasileira em todos os seus aspectos. Por ocasião dos 90 anos do arquiteto Oscar Niemeyer, em 1997, Chico Buarque, em texto de homenagem, reitera as afinidades eletivas com Tom Jobim e as estende ao arquiteto. Ao sentimento de decepção do compositor por não ter morado em casa projetada para o pai por Niemeyer se mescla sua dívida diante da profissão de arquiteto, por não ter concluído o curso. Nesse texto, Niemeyer e Tom Jobim são evocados como símbolos do desejo de perfeição buscado pelo artista, aliando o sonho do arquiteto à música. O livro do jornalista Fernando de Barros e Silva, Chico Buarque, recupera esse texto e o elege como abertura do ensaio. A passagem citada é retirada daí: "Quando minha música sai boa, penso que parece música do Tom Jobim. Música do Tom, na minha cabeça, é casa do Oscar."
A escolha do precursor, assim como a linha evolutiva seguida por ele, insere Chico na mesma tradição de Caetano Veloso, representada pela bossa nova, embora tenham preferido eleger pais e caminhos diferentes. As distinções entre eles tornam-se mais visíveis por ter o compositor nomeado João Gilberto como seu precursor, afinidade que permite desenhar poéticas próprias e justificar posições. Em ambos persistem a intenção de legitimar influências e o propósito de assumir o pertencimento (o sentimento de fazer parte de) a um país inventado pelas suas canções. A admiração de Chico Buarque por Antonio Brasileiro reside na defesa de uma estética pautada pelo lirismo, pelos temas amorosos e pela harmonia musical que se apropria das imagens e dos sons da natureza sob a forma de metáforas nacionalistas. É brasileiro o tom, revolucionária a urgência em preservar o desgastado sentimento de nação, através de resíduos da voz inaugural dos pássaros. O primeiro encontro entre eles talvez tenha sido com Sabiá, de 1968, nova canção do exílio que, durante o Festival da Canção, foi considerada distante dos ideais políticos do momento.
Concorrendo com a politizada Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, Sabiá foi a escolhida e recebeu homérica vaia.
O canto melancólico do exílio não correspondia ao tempo marcado por gritos e mordaças causados pela repressão. O recado era sofisticado, tanto no nível melódico quanto textual, tornando-se incompreensível para os ouvidos da opinião pública, voltada para o estilo eloqüente das canções próprias ao ambiente espetacular dos festivais. A letra denuncia, em tom lírico, o silêncio imposto pela censura, pela evocação da paisagem emudecida do país das palmeiras. A emergência do canto e da voz "da sabiá" é uma metáfora da expressão artística reprimida: "Vou voltar/Sei que ainda vou voltar/Para o meu lugar/Foi lá e é ainda lá/Que eu hei de ouvir cantar/Uma sabiá."
O meu samba é uma corrente
O poder atribuído à música em Paratodos refere-se ao seu valor de antídoto, capaz de curar a humanidade de todos os males, motivo recorrente na obra de Chico Buarque. A função libertária da música se anuncia desde sua primeira canção, Tem mais samba, de 1965, em que ele afirma que, "se todo mundo sambasse, seria tão fácil viver". Mas a trajetória do artista, no empenho de ler a realidade pela mediação do discurso musical, passa por transformações e acarreta mudanças no tratamento desse discurso. O período vivido sob repressão política abala o impulso revolucionário do samba, como em Essa moça tá diferente, Corrente e Agora falando sério, notando-se que a ênfase no recurso auto-reflexivo e metalingüístico de sua obra contém uma leitura alegórica e denunciante do momento histórico: "Agora falando sério/ Eu queria não cantar/A cantiga bonita/ Que se acredita/Que o mal espanta/Dou um chute no lirismo/Um pega no cachorro/E um tiro no sabiá/ Dou um fora no violino/Faço a mala e corro/Pra não ver banda passar."
Em Paratodos, a mensagem musical retirada dos intérpretes nacionais atua em todos os sentidos, ultrapassando o auditivo, uma vez que o seu consumo antropofágico se reverte em força positiva e em experiência de vida. A formação do artista se vale do exemplo da música, a ponto de se redimir dos males pelo exercício salutar da profissão. Na sua ação catártica, propicia ao outro a vivência da tristeza e da alegria, como prova do valor a ela atribuído. Seguindo o modelo das cantigas populares que se revestem de lição exemplar, o narrador-artista dirige-se ao público para aconselhá-lo, cumprindo missão instrutiva, comum aos repentistas de feiras nordestinas: "Nessas tortuosas trilhas/A viola me redime/Creia, ilustre cavalheiro/Contra fel, moléstia, crime/Use Dorival Caymmi/Vá de Jackson do Pandeiro/Vi cidades, vi dinheiro/Bandoleiros, vi hospícios/Moças feito passarinho/Avoando de edifícios/Fume Ari, cheire Vinicius/Beba Nelson Cavaquinho."
Se a experiência da ditadura provocou sentimentos de mal-estar no artista e descrença na denúncia política pela música, em Paratodos o clima é de bem-estar e de purgação da dor pela alegria, em que se exercita o conceito de "gaia ciência", o "saber alegre" do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). A positividade existencial se nutre da experiência da dor, sem haver a superação de um pólo pelo outro. Os discursos do ressentimento, do luto e da melancolia são substituídos pela alegria restauradora. A abertura política no país havia sugerido o extravasamento de emoções, por meio do desfile alegórico e metafórico pela avenida do bloco da ditadura, em Vai passar (1984), em que se reforça o desejo de restauração da democracia e da vitória do samba popular.
Semelhante posição se encontra na mais famosa canção do autor, A banda (1966), momento de exaltação do poder mágico e revolucionário da música. Durante a passagem da banda, vivencia-se, por instantes, a participação do homem comum, motivado a sair da alienação e a despertar para a ação. O tom lírico dessa composição, aliado à sua melodia contagiante, marcou o lançamento oficial de Chico Buarque no cenário nacional, embora tenha se convertido em argumento negativo no balanço de sua obra feito pela crítica. O efeito catártico de Vai passar se realiza pelo desfile do "bloco do sanatório geral", anunciando o fim da ditadura militar.
A década de 1990 registra o convívio dos países periféricos com o processo político e econômico da globalização, o que resultou não só no poder de igualar as qualidades locais com as estrangeiras, mas de ampliar as desigualdades, integrando globalmente as minorias. A imagem de nação moderna vai perdendo o seu traçado original, como na canção de 1998, Iracema voou, revisão do modelo romantizado da personagem Iracema, do livro de José de Alencar (1829-1877). O vôo de Iracema em direção à América, em busca de emprego, serve como emblema do destino de milhares de habitantes das nações periféricas, embalados pelo ritmo desconcertante do neoliberalismo. América refere-se ao nome do continente que se incrusta e se alegoriza no nome de mulher, Iracema, efetuando-se a inversão do sul pelo norte e a perda da identidade, causada pela falta de pertencimento ao lugar de origem. Rompe-se o sentido positivo de Iracema representar o continente e se impor como mito fundador da colônia, como no romance romântico, ao ser relida na condição de desterrada na própria terra: "Iracema voou/Para a América/Leva roupa de lã/E anda lépida/(...) Não dá mole pra polícia/Se puder, vai ficando por lá/Tem saudades do Ceará/Mas não muita/Uns dias, afoita/Me liga a cobrar:/É Iracema da América."
Um sambista que escreve livros
Se a força revolucionária do samba pode se realizar no espaço público da rua, da avenida, do carnaval ou das manifestações populares como as passeatas, os comícios das diretas, a literatura de Chico Buarque tem menor poder de "levantar poeira". Estorvo (1991), Benjamim (1995) e Budapeste (2003), além de Fazenda modelo (1974), compõem o seu acervo literário, mas se desvinculam - com exceção dessa primeira novela - de força alegórica e política, do apelo emotivo e sedutor das canções. O efeito truncado e labiríntico da narrativa atende ao descompasso das personagens com o mundo, à falta de saída dos problemas que atingem a sociedade pós-urbana e pós-moderna. A praça pública perde a função de ser o local de convivência humana e de palco de discussões, ao ceder lugar para a dispersão dos grandes centros urbanos, povoados pela fantasmagoria dos falsos encontros e de troca de experiências. Com a ruína dos discursos utópicos, pelo esvaziamento do ideal de mudança alimentado pelo espírito revolucionário das décadas anteriores, Chico Buarque se reduplica em artista e escritor e abandona o palco da rua. O narrador de Budapeste é retratado na sua função invisível de ghost writer, o escritor fantasma que perde a identidade e se torna autor de livros que nunca escreveu. Por meio de um processo irônico, instaura-se o clima de estranhamento do escritor com a própria imagem.
Chico Buarque é hoje um escritor pop, o duplo do artista consagrado, que, em virtude de seu temperamento e de estratégias mercadológicas, cultiva o sonho de se transformar em artista invisível, não cedendo à solicitação esquizofrênica da mídia. O compositor se esconde na pele do escritor, o artista detesta o palco e o espetáculo, alcança a popularidade por se mostrar avesso a ela e se consagra muito mais pela negação da celebridade. Ao contestar a participação mais efetiva na vida pública, furtando-se a emitir opiniões políticas ou se recusando a comparecer a sessões de homenagens, defende a vida privada como refúgio e se fecha para o populacho. Comparece ao festival do livro em Parati, declarando: "Às vezes é bom que o escritor se exiba um pouquinho, que saia da toca e se reúna com outros escritores. Senão viram bichos esquisitos." Bicho esquisito ou não, Chico Buarque responde por uma participação efetiva na história da música popular brasileira e na defesa de uma imagem de país que ajudou a inventar com seus acordes dissonantes. Se os sonhos ficaram no meio do caminho, a intenção em realizá-los pela mediação da música permanece e se desdobra na revitalização de sua obra pelos futuros leitores.
SUGESTÕES PARA LEITURA
BARROS E SILVA, F.
Chico Buarque. São Paulo, Publifolha, 2004.
CAVALCANTE, B.; STARLING, H. & EISENBERG, J.
Decantando a república. Inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira.
Rio de Janeiro e São Paulo, Nova Fronteira/Faperj e Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
MATOS, C. N.; TRAVASSOS, E. & MEDEIROS, F.T.
(orgs.) Ao encontro da palavra cantada. Poesia, música e voz. Rio de Janeiro, Sete Letras/CNPq, 2001.
VIANNA, H.,
O mistério do samba. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ/Jorge Zahar, 1999.
(*) Professora de Literatura da
Universidade Federal de Minas Gerais
Revista dos Bancários - 04/07/2004
Vitor Nuzzi
No final de 1964, um jovem cantor, 20 anos, recebeu o seu primeiro cachê, equivalente a 30 dólares (em moeda nacional, acima do salário mínimo da época), por uma apresentação em Campinas. Gastou o dinheiro em um passeio pelo interior. E levou bronca da mãe, quando ela soube que seu filho do meio havia recebido dinheiro para cantar.
Marcado pelo golpe que derrubou o presidente João Goulart, 1964 foi também o ano da primeira apresentação desse mesmo jovem em São Paulo, em um show no Colégio Santa Cruz. Foi, segundo o próprio, o marco zero da carreira de Chico Buarque, ou Francisco Buarque de Hollanda, que em 19 de junho completa 60 anos – provavelmente sem alarde, como é de seu estilo. Filho de escritor e o quarto de sete filhos, ele nasceu em um hospital no tradicional Largo do Machado, no Rio de Janeiro. Morou em São Paulo e em Roma, onde é Francesco.
“São muitos os escritores que têm a música como eixo vital. García Márquez cantou a sério, na juventude. Mas, ao menos que eu saiba, jamais compôs canção alguma. Julio Cortázar disse e redisse que se pudesse escolher teria preferido ser músico de jazz a escritor. Chico não precisou enfrentar a tensão da escolha: sempre viveu cercado de músicas e leituras, e agora compõe e escreve”, definiu o escritor Eric Nepomuceno, que um dia recebeu telefonema do amigo para saber em que lugar ele, Eric, gostaria de ficar na estante.
“Chico tem um ar de bom rapaz, esses que todas as mães com filhas casadoiras gostariam de ter como genro. Esse ar vem da bondade misturada com bom humor, melancolia e honestidade. Tem o ar crédulo, mas diz que não é, é apenas muito preguiçoso”, escreveu, em 1971, a escritora Clarice Lispector.
Em 1971, Chico e a mulher Marieta Severo (com quem viveu durante 30 anos) já haviam voltado do exílio na Itália, e com uma bagagem preciosa: a filha, Sílvia, apadrinhada por Vinícius de Moraes. Depois, viriam Helena e Luísa.
Foram, segundo reportagem de capa da revista Manchete (4 de abril de 1970), 443 dias fora do Brasil. Um exílio inevitável, já que os tempos andavam difíceis – principalmente após a decretação, em dezembro de 1968, do AI-5. Roma não chegava a ser novidade. Ao lado da mãe, dona Maria Amélia, e dos irmãos, Francesco desembarcara pela primeira vez na capital italiana em fevereiro de 1953. O pai, o escritor e historiador Sérgio Buarque de Hollanda – tema de documentário recente do cineasta Nelson Pereira dos Santos –, já estava lá, como professor de Estudos Brasileiros.
Chico estranhou a primeira noite no palazzo (edifício antigo) da Via San Mariano, mas foi se acostumando, ele mesmo conta, com a pastaciutta, o copo de vinho, os cines Capranica e Capranichetta. E viu, certa noite, o cineasta Federico Fellini sair de um restaurante. Viu e ficou mudo, “porque me pareceu que viesse a cavalo”. Enfim, havia “amore e fantasia”, lembrou, ao receber em 2003 o prêmio Roma-Brasília das mãos do prefeito romano.
Dos sete filhos de Sérgio e Maria Amélia, quatro se envolveram com música, a começar pela primogênita, Miúcha. Foi ela que teve de correr à delegacia em dezembro de 1961 para libertar o irmão de 17 anos, preso com um amigo por furtar um carro nas proximidades do estádio do Pacaembu, onde morava a família (a famosa casa da Rua Buri fica em frente à Praça Raízes do Brasil, homenagem a Sérgio Buarque). A travessura viraria a primeira aparição pública de Chico Buarque na imprensa. No jornal Última Hora, ele e o colega aparecem de olhos vendados: “Pivetes furtaram um carro. Presos”. Um deles era o menor F.B.H. Não foi bem uma estréia triunfal.
Estudante de Arquitetura, boêmio-bom- de-copo, com apelido de Carioca em São Paulo, Chico não tardaria a largar a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da USP. A música fisgou-o em definitivo após a audição do LP Chega de Saudade, de João Gilberto, no final dos anos 50. “Tão logo dominou a batida da Bossa Nova, Chico começou a compor”, conta Humberto Werneck em livro de 1989. Os anos 60 foram de grande agitação cultural e política. No livro, Werneck conta que o golpe de 1964 foi uma decepção para Chico principalmente pela falta de reação. Ele chegou a guardar na garagem de casa garrafas destinadas à confecção de coquetéis molotov, que nunca foram feitos.
“Acusado” de comunista – chegou a receber bilhetes ameaçadores do antigo Comando de Caça aos Comunistas –, Chico nunca teve filiação partidária, embora sempre tenha participado de atividades políticas. Viagens a Cuba e Angola, a partir do final dos anos 70, reforçaram a imagem de “esquerdista”. O que o incomodava era a cobrança: “A pressão contra o posicionamento político nunca me inibiu, o que me inibia era a pressão a favor. (...) Parei de fazer show por isso. (...) A minha música passou a ser menos importante do que aquilo que esperavam que eu dissesse”.
Motor
Para o amigo Frei Betto, a indignação é que o move. “Chico não é um militante, desses que exibem carteirinha de partido e atestado de tendência ideológica. Nem ‘militonto’, que pula de palco em palco, acreditando que, com o seu violão, vai salvar a pátria e acabar com a fome do Brasil”, escreveu, no livro Cotidiano e Mistério. “Chico tem uma grande liberdade de pensamento. Tem idéias muito firmes a respeito de certas coisas. Só que catalogavam, rotulavam, tentavam dar conotações”, reforça Marieta, em depoimento à jornalista Regina Zappa, autora de livro sobre Chico.
Com fama de tímido, ele era mais envergonhado. Tanto que em programas da antiga TV Tupi, o produtor Fernando Faro teve a idéia de apontar a câmera de baixo para cima, porque ele sempre ficava com o rosto voltado para o chão. “Lembro de um programa em que ele me disse que tinha uma música que queria estrear. Era Olê, Olá”, recorda Faro, para quem Chico seja talvez “a principal figura da cultura brasileira: poeta, compositor, escritor”. Os dois se conhecem há mais de quarenta anos. “Nossa amizade começou com o futebol”, conta Faro.
Torcedor do Fluminense, Chico, não satisfeito, criou o seu próprio time, o Politheama, com direito a hino. Para ele, futebol é sagrado. Certamente não foi por outro motivo que Tom Jobim, em Carta ao Chico (1989), concluiu assim, em referência a poema de Carlos Drummond de Andrade sobre Charlie Chaplin: “Ó Francisco, nosso querido amigo/Tuas chuteiras caminham numa estrada de pó e esperança”.
A fama surgiu em 1966, com a vitória no festival da Record com A Banda, interpretada por Nara Leão. O prêmio foi dividido com Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, interpretada por Jair Rodrigues. Dividido por imposição de Chico, que avisou que não iria receber o prêmio se A Banda vencesse, segundo revelou o jornalista e crítico musical Zuza Homem de Mello. A Banda de fato venceu, sete votos contra cinco, mas os jurados e a Record mudaram o resultado, estabelecendo o empate, para evitar polêmica.
Esse rigor de Chico pode ser notado até mesmo em seu site oficial na internet, criado no final de 1998. “Ele fez a revisão de todas as letras. Quando sugeri que puséssemos críticas, pediu: tá bom, desde que coloque crítica que meta o pau também”, revela o curador do site, Wagner Homem. Ele recebe, “na baixa”, cem e-mails por dia. “Setenta por cento é gente querendo saber se tem show”, explica Wagner, que tem uma pasta chamada “Coisas estranhas”, com mensagens incomuns destinadas a Chico – que, aliás, não usa internet. “Algumas coisas eu mando por fax”, diz o curador. São pessoas querendo contratá-lo, outras que mandam músicas... Houve quem quisesse ter aula de piano com Chico Buarque. E já aconteceu de um antigo professor do Colégio Santa Cruz entrar em contato e mandar fotos.
Nos anos 70, ficaram famosos os embates de Chico com a censura. A marcação se intensificou a partir de 1970, com Apesar de Você, que virou hino contra a ditadura, em seu período mais feroz (assim como Vai Passar viraria, em 1985, hino informal do fim do regime). A perseguição era tanta que o compositor criou um pseudônimo, Julinho da Adelaide, e gravou música com esse nome, para despistar os censores – “Julinho”, inclusive, deu entrevista antológica ao jornal Última Hora, em 1974. A brincadeira acabou quando a censura passou a exigir documentos do autor para liberar a obra.
Cálice, composta por ele e por Gilberto Gil, hoje ministro da Cultura, ficou cinco anos na gaveta. Durante o show Phono 73, em São Paulo, Chico tentou cantá-la, mas à medida que se aproximava dos microfones eles iam sendo desligados. A música só seria gravada (com Chico e Milton Nascimento) em 1978, período em que se falava na abertura política com mais insistência. Foi quando o movimento sindical começou a ressurgir, contando com apoio de Chico em atividades para arrecadar fundos.
Os vaivéns com a censura renderam histórias curiosas. Em show com Maria Bethânia no Rio de Janeiro, o censor presente à apresentação queria proibir Tanto Mar. E era ninguém menos que Augusto, zagueiro do Brasil na Copa de 1950, perdida para o Uruguai em pleno Maracanã. Chico não deixou por menos: “Porra, Augusto, você perde a Copa e ainda vem me aporrinhar...” No show, Tanto Mar foi apenas tocada, sem a letra.
Criação
Uma das perguntas que Chico mais ouve é sobre seu processo de criação. “É uma coisa muito íntima, você tem que estar sozinho, com suas caretas e esgares, como diz um poema do João Cabral”, disse em entrevista em 2000. Em 1965, o jovem Chico Buarque musicou o poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. “Às vezes tem aquela coisa, parece que tá tudo na mão, mas falta uma coisinha... Mas não tem sofrimento, não”, afirmou na mesma entrevista, à revista Bundas.
Claro que nem sempre é fácil. O compositor argentino Astor Piazzolla, já falecido, foi uma das “vítimas” de Chico. Certa vez, ele mandou uma música para Chico fazer letra – que nunca saiu. Ficou aborrecido, mas acabou sendo acalmado por Tom Jobim, homenageado por Chico na música Paratodos (“Meu maestro soberano/Foi Antônio Brasileiro”). Na vida real, eles às vezes brigavam na hora de compor. A música Wave tem uma participação curiosa de Chico: apenas o primeiro verso (“Vou te contar...”). “Não saía nada além do “vou te contar”, e aí ele disse: pô, Chico, você não quer ficar rico?”, contou o compositor, lembrando da brincadeira do amigo.
Algumas das composições deram origem a lendas. Apesar de Você seria um recado direto ao então presidente Emílio Garrastazu Médici. Jorge Maravilha teria referência a Ernesto Geisel (“Você não gosta de mim/Mas sua filha gosta”). E até no trabalho mais recente, As Cidades (1999), houve quem percebesse indícios de uma indireta a Fernando Henrique Cardoso em Injuriado. Chico sempre contestou essas teses. Mas Jorge Maravilha, pelo menos, foi feita pensando nos policiais que iam prendê-lo durante os anos 70 e, no elevador, pediam autógrafo para a filha. Nas eleições municipais de 1985 em São Paulo, Chico chegou a fazer versão de Vai Passar para apoiar Fernando Henrique, (o vencedor foi Jânio Quadros). Em 1989, 1994, 1998 e 2002, apoiou Lula nas eleições presidenciais. Neste ano, manifestou preocupação com os rumos do governo.
Bomba
Apesar da grave crise econômica em seus primeiros anos, a década de 80 trouxe de volta a democracia. Com sustos como o do Riocentro, em 1981, quando uma bomba levada por militares explodiu antes do tempo enquanto artistas se apresentam em show comemorativo ao 1º de Maio – Chico era um dos organizadores. Em 1984, ano em que as Diretas-já não passariam no Congresso, ele fazia uma espécie de acerto de contas com Vai Passar (“Dormia a nossa pátria-mãe tão distraída/Sem saber que era subtraída/Em tenebrosas transações”).
A partir do final dos anos 80, os discos e apresentações tornaram-se mais esparsos: Francisco (1987), Chico Buarque (1989), Paratodos (1993) e As Cidades (1999) foram os mais recentes. O primeiro LP saiu em 1966. De lá para cá, são quase vinte discos-solo, sem contar os projetos e shows gravados. Ele também escreveu peças (Roda Viva, Calabar, com Ruy Guerra, Gota d’Água, com Paulo Pontes, e Ópera do Malandro) e uma “novela pecuária” (Fazenda Modelo).
Nos últimos doze anos, mergulhou na literatura, com Estorvo (1991), Benjamim (1995) e, ano passado, Budapeste. Uma nova face do compositor de olhos ardósia que ainda faz suspirar o público feminino. Um homem, como ele mesmo disse, que “não se veste de celebridade”, ou “um andarilho contumaz”. Que gosta de caminhar, falar sobre futebol – e, às vezes, cantar. “Enquanto eu puder sorrir, enquanto eu puder cantar, alguém vai ter de me ouvir.”
Zero Hora - Junho/2004
Celso Loureiro Chaves/Músico
Ao longo de quatro décadas, o artista se fixou como uma unanimidade, uma instituição nacional, o nosso mestre maior na fabricação de uma poética urbana, baseada na união indissociável entre letra e música
Lembro quando Chico Buarque surgiu. Amanheci tarde para a bossa nova, perdi o seu apogeu e nem me dei conta dos seus estertores. Agora, no início da ditadura, havia toda uma confusão de repertório à minha volta, simbolizada pelas canções da peça Opinião e seus temas políticos indefinidos. Foi então, em algum momento da segunda metade de 1966, que comecei a ouvir repetidamente, em todo lugar, Pedro Pedreiro, ("esperando o sol, esperando o trem, esperando o aumento para o mês que vem..."). Pois não é que até o incendiário Flávio Cavalcanti, nos seus programas porta-vozes da ditadura, achava "aceitável" a mensagem política daquela letra? Mas Pedro Pedreiro me pareceu muito mais que isso. Ali estava finalmente a recuperação da união indissolúvel entre letra e música que sempre caracterizara a canção brasileira e que se perdera um pouco naqueles anos de indefinição. Finalmente os temas praieiros excessivamente localizados estavam sendo abandonados, recuperando também o foco social afiado que tinha sido a característica, muitas décadas antes, de Noel Rosa.
Logo depois veio a explosão de A Banda no Festival da Record de outubro de 1966. Aqui se ouvia os festivais pelo rádio, naquele tempo. A torcida era feita na ausência da imagem e naquele ano era especialmente difícil torcer, optar entre a mensagem panfletária, em letra, música e queixada de burro, de Disparada, de Geraldo Vandré, e a inocência suburbana de A Banda, com Nara Leão e tudo. Primeiro lugar repartido entre as duas canções, dias depois chegaram as imagens do festival, e Chico Buarque começou a ganhar um rosto. Não apenas um, pois vieram logo dois: o primeiro vinil surgiu com dois Chico Buarque na capa contra fundo azul. Entre as canções, a Rita, "que levou meu sorriso no sorriso dela", e um aviso neo-Noel: "tem mais samba no som que vem da rua". Tudo confirmando a recuperação da tradição da canção brasileira de temática social, urbana e suburbana, terrosa, de cimento armado e sentimental.
O lançamento do segundo vinil demorou uma eternidade de poucos meses para quem estava atento e curioso para descobrir quem era, na realidade, o bom moço Chico Buarque, vencedor de festivais, participante do Essa Noite se Improvisa televisivo, já anunciando a unanimidade que logo viria. Um ano depois, veio o Volume 3 e, nele, a Carolina que "guarda tanta dor nos olhos fundos" e também a acidez de Roda Viva ("faz tempo que a gente cultiva a mais linda roseira que há, mas eis que chega a roda-viva e carrega a roseira pra lá"), primeira fissura no bom-mocismo. Nesse terceiro vinil dialogavam a bossa nova moribunda e a música popular brasileira nascente, depois de alguns confrontos entre um e outro. Mas a ditadura afiava seus dentes.
Os anos de bem-estar de letra e música foram dilacerados com dois golpes certeiros. O primeiro golpe: os ataques à peça Roda Viva por um autodenominado Comando de Caça aos Comunistas, em julho de 1968, em São Paulo, repetido, semanas depois, em Porto Alegre. Quase autobiográfica, a estréia de Chico Buarque no teatro descrevia o progressivo dilaceramento de um bom moço pelas armadilhas da fama, quase reproduzindo O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, numa versão modernizada da antropofagia. O segundo golpe: o surpreendente primeiro lugar de Sabiá, no Festival Internacional da Canção de 1968, misteriosa Sabiá, de Tom e Chico, que por detrás de um apelo aparentemente, e meramente, ecológico falava, em realidade, das "noites que eu não queria", das palmeiras e das flores "que já não há". A simpatia governamental pelo porta-voz da canção acabava aí, poucas semanas antes do AI-5.
Nesses anos entre 1966 e 1968 houve um tumulto na canção brasileira que não seria mais repetido. Rapidamente a indefinição marcada pelos afro-sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes ou pelos refrões cruamente panfletários da denúncia social feita à distância (como o "nordestismo" de Opinião) foi substituída pela clareza de uma canção que definiria o significado original de "música popular brasileira". Em seguida, esta mesma música popular brasileira foi colocada em xeque pelas forças opostas da Tropicália e da Jovem Guarda. Finalmente, todas elas foram empurradas em maior ou menor medida para o exílio interno e externo ou para os mistérios do sumiço simples da prisão sem denúncia.
A canção brasileira pós-bossa nova nasceu e chegou à idade adulta em pouquíssimos anos através dos jornais, dos festivais, da televisão e apesar, cada vez mais, da repressão institucionalizada. Quando Chico Buarque lançou o seu vinil com Construção, em janeiro de 1971, depois do auto-exílio na Itália, a música popular brasileira mudara e se preparava para enfrentar os embates com a censura que caracterizariam os anos seguintes.
A canção de Chico Buarque, que é a canção que define "música popular brasileira", pode ser bem descrita. Antes de tudo, há a indissociável união de letra e música, característica de tantas canções pelo mundo afora, mas sempre específica de autores/cantores de aguda consciência social. É o caso de Joan Manuel Serrat ou Lluis Llach na Catalunha, Pete Seeger ou Bob Dylan nos Estados Unidos, Angelo Branduardi na Itália. É justamente da Itália que vem a melhor definição para estes músicos. São os cantautori, compositores que cantam eles próprios as suas criações, dando-lhes sua melhor voz. Basta ver o modo com que Chico Buarque interpreta suas canções e compreende-se logo o que é um cantautor: poucos gestos faciais, nenhum movimento físico desnecessário, toda expressão surgindo de boca e voz. A melodia é portadora do texto, mas este não existe sem aquela. Esta união esconde a riqueza infindável de soluções harmônicas, de giros melódicos insuspeitados, que caracteriza a canção da música popular brasileira. Assim como as letras têm espesso significado semântico mas guardam sempre os limites da compreensibilidade, assim as melodias são imediatamente "cantáveis", sem que se percebam suas sofisticações. Este modelo da canção urbana brasileira vem de longe, no tempo. É urbana porque é nos centros urbanos que se concretiza. É brasileira porque seu alcance é nacional, com pouquíssimas barreiras regionais. Não é canção "popular" porque nem suas origens e nem seus receptores se particularizam neste ou naquele segmento social. Suas origens são socialmente mais disseminadas, seus receptores são muito mais difusos do que os quereriam os teóricos. A unanimidade em torno de Chico Buarque vem daí, deste modelo quase atávico de canção que nos remete à década de 1920 e a Noel Rosa, mas que ultrapassa o modelo original ao depurar seus componentes estruturais, letra e música, seus conteúdos semântico e sônico. Essa depuração está também na agudeza da observação crítica da realidade social e nos matizes que às vezes transferem esta denúncia para o território do sentimental.
Lembro da canção brasileira dos anos 1970, ao tempo de Apesar de Você ("você que inventou a tristeza, ora, tenha a fineza de desinventar"). Havia uma luta incessante contra a censura oficial, cuja violência se manifesta, para mim, em três situações-símbolo. Uma delas é o vinil Milagre dos Peixes, de Milton Nascimento, impedido de circular com suas letras, das quais não sobrou muito mais do que Clementina de Jesus cantando "volto do trabalho, êêê" e um garoto repetindo "meu nome é Pablo". Outra situação-símbolo são as duas palavras cortadas a navalha da trilha de Calabar, peça que Chico Buarque escreveu em parceria com Ruy Guerra: "sífilis", pelas suas múltiplas conotações, e "duas", para evitar a sugestão de lesbianismo em "vamos ceder, enfim, à tentação das nossas bocas cruas e mergulhar no poço escuro de nós duas". Ainda outra situação-símbolo é o aparecimento de um certo Julinho da Adelaide num vinil, Sinal Fechado, em que Chico Buarque se viu obrigado a gravar apenas canções de outros, já que suas próprias criações não furavam mais o bloqueio oficial. Julinho da Adelaide surgiu aí: era o próprio Chico Buarque travestido de sambista driblando a censura, clamando: "acorda amor, são os homens e eu aqui parado de pijama, eu não gosto de passar vexame, chame o ladrão!". Como não há mal que sempre dure, a luta contra a censura começou a ser vencida em 1977, quando Elis Regina conseguiu gravar a letra integral de Caxangá, de Milton Nascimento e Fernando Brant, lá do Milagre dos Peixes. Foram muitos os desmandos, foram imensos os danos. Mesmo assim, Chico Buarque aparece sorridente em 1978, de cabelo engomado, na capa de um novo vinil. Dentro, porém, é desfechado o golpe mais contundente contra a repressão, Cálice, e nela se encerram as fases de juventude e de primeira idade adulta de Chico Buarque.
O apogeu do período vem também em 1978, com a estréia da Ópera do Malandro no Rio de Janeiro. Há de tudo nesta partitura para teatro musical que depois virou vinil duplo, filme e, muito mais tarde, novamente teatro musical. Há desde a depressão sentimental que é marca de uma vertente da canção brasileira ("oh, pedaço de mim, oh, metade amputada de mim") até a sátira que vem do teatro de revista ("joga pedra na Geni, joga bosta na Geni!"), passando pela releitura do samba-canção-bolero dos anos 40 ("mas na manhã seguinte não conta até vinte, te afasta de mim, pois já não vales nada, és página virada do meu folhetim"). Nem bem se completavam 15 anos de carreira musical e o primeiro acerto de contas de Chico Buarque com sua própria história está terminado, o que é assinalado por uma sintomática troca de gravadora em torno de 1980.
Em O País da Delicadeza Perdida, especial para a televisão francesa de 1990, Chico Buarque comenta o quanto o Brasil viera se modificando desde os tempos da (relativa) inocência bossanovista, tornando-se quase irreconhecível em múltiplas violências. É o que acontece, tal e qual, com as canções que ele produziu a partir dos anos 1980. Neste período Chico Buarque foi perdendo a eterna juventude para ser suplantado, como convém ao passar do tempo, pelos mais jovens. Se suas canções parecem perder força diante da vitalidade do rock nacional, por outro lado adensaram-se em precisão de denúncia. Da realidade imaginada ou idealizada que marca muito do repertório anterior, Chico Buarque saltou para o avesso das meias-palavras e das metáforas sempre que se tratasse de, senão denunciar, assinalar uma violência. Assim é que Almanaque, o vinil de 1981, traz O Meu Guri e, em 1984, Chico Buarque traz Brejo da Cruz. São duas canções que representam o melhor da vertente de denúncia. O Meu Guri é a canção mais crua de Chico Buarque sobre a violência urbana ("e ele chega estampado, manchete, retrato com venda nos olhos e as iniciais; eu não entendo essa gente, seu moço, fazendo alvoroço demais, o guri no mato, acho que tá rindo"); Brejo da Cruz confirma uma visão contundente das transgressões cotidianas que explodiram num Brasil em descontrole ("a novidade que tem no Brejo da Cruz é a criançada se alimentar de luz, alucinados, meninos ficando azuis e desencarnando lá no Brejo da Cruz").
Da violência urbana para os assentamentos agrários foi um passo e logo Chico Buarque estava compondo Assentamento para Terra, livro do fotógrafo Sebastião Salgado sobre os migrantes e seus movimentos, os quais ainda vestiam certa máscara romântica palatável aos da cidade. O amolecimento de repertório dos anos seguintes, do samba-exaltação à homenagem ao futebol, ainda guarda certa dose de choques (como em Paratodos, de 1993), mas as canções de Chico Buarque foram ficando cada vez mais à distância, diversificando temas e alcances, surgindo a cada par de anos em novos discos, como era esperado de alguém que veio se tornando porta-voz de uma nação-em-canção. Tal como toda aquela geração ultrapassada pelas invenções musicais dos anos 1980 e 1990, também Chico Buarque tornou-se instituição nacional, mas sem transformar-se em caricatura de si mesmo como tantos outros que não evitaram a polêmica fútil e o debate desnecessário.
Ele segue sendo um fabricante de canções e é através delas que ele se manifesta, de tempos em tempos, sobre temas tão variados quanto o permitem a realidade à qual ele está "como sempre esteve" atento. As canções de Chico Buarque provavelmente não são nem boa poesia nem boa música, se tomados estes elementos em separado. Isto porque poesia e música só encontram justificativa quando unidos um ao outro, só existem plenamente na presença indispensável um do outro. Mais do que no texto de teatro lido fora da realidade da cena, ou do roteiro de cinema lido fora da realidade da imagem na tela, a canção urbana tem esta característica de simbiose que é só sua e que permanece como sua marca distintiva. Chico Buarque é o nosso mestre nesta união que quase submergiu na inovação da canção não discursiva ou não-melódica que surge a partir dos anos 1980 (a vontade é de falar em Paralamas do Sucesso e em Legião Urbana, mas não convém o desvio). A unanimidade em torno de Chico Buarque não é mais do que isso, o reconhecimento a um fabricante de canções que vem lendo e relendo as realidades brasileiras, tal como elas se apresentam em sua multiplicidade, em letra e música. Há compositores que vendem mais discos. Há compositores mais polêmicos. Há até compositores que imitam Chico Buarque. Mas é em Chico Buarque, lembrando a primeira vez que ouvi Pedro Pedreiro, em 1966, que encontro permanência no que faz e diz e longevidade no seu olhar arguto sobre os Brasis. Pois através de Chico Buarque e de suas canções urbanas brasileiras temos ido longe. Através dele temos aprendido constantemente a repensar quem somos.
Zero Hora - Junho/2004
Luís Augusto Fischer *
Nos romances, o criador reafirma seu talento, embora, de certa forma, pareça um outro artista: alguém que surge como espelho do compositor
Diz "Chico Buarque" e a memória desata lembranças e associações positivas, imagens, sons e experiências que nos constituem, nos fazem ser o que somos, nos permitem pertencer a este tempo, a este específico país. Ninguém é brasileiro nos últimos 40 anos sem algum naco de Chico Buarque na vida: pode ser a antiqüíssima banda, que passava por uma cidade já remota no tempo em que a canção apareceu, pode ser aquela procissão alucinada que vai passar, pode ser uma Carolina que ficava na janela sem perceber que o tempo passa, pode ser uma Geni que serve de desafogo para tudo que é nêgo torto. Tanta coisa.
Poucos outros artistas fizeram tanto quanto ele por seu povo - a gente fica tentado à grandiloqüência, até recupera um termo velho e complexo como "povo", ao pensar num sujeito como ele, numa obra como a dele. Trata-se de um daqueles casos em que realmente não é possível saber a extensão ou a profundidade de sua importância, tal é a sua qualidade, tal é nossa dívida para com ele. Acresce que somos seus contemporâneos, e essa circunstância fortuita, que de uma parte nos beneficia porque vemos a matéria bruta da vida ser transformada em arte elevada, de outra nos impede qualquer visada panorâmica, qualquer abordagem de conjunto - pelo bom motivo de que sua obra ainda não está acabada.
Cancionista de primeiríssima qualidade, um dos talentos nascidos nos anos 40, integrante da melhor geração em conjunto da cultura brasileira (está feito o desafio: alguém encontrará, em qualquer época ou metiê, escalação melhor que Chico, Caetano, Gil, Paulinho, Edu, Rita, Milton, Roberto, Tavinho, Jorge, Lô, João, Aldir, Tom Zé, Raul e vários, inumeráveis outros?), Chico Buarque acontece de ser também dramaturgo e romancista. É esta última faceta, mais saliente hoje do que nunca em sua obra, que ganhará o centro da cena neste raciocínio.
Para avançar neste campo, porém, será preciso estabelecer uma preliminar, nem tão óbvia assim. Justamente pela enorme presença das canções de Chico Buarque em nossa cultura, sua obra romanesca vem precedida de uma expectativa que é, simultaneamente, justa e perniciosa. O leitor se aproxima do romance com a cabeça (o coração) lotada(o) de Joana, Pedro, Rita, Malandro, Construção, Gostosa, Quentinha, Tapioca, Iracema da América - e depara com uma outra coisa. Nos romances, Chico é o mesmo talento mas é, de certa forma, outro artista, um artista complementar ao outro, espécie de espelho do cancionista: ali onde a canção estampa em poucas linhas e breves segundos uma vida inteira, uma personagem completa, o romance oferece lentamente enredos mais áridos, personagens complexos e obscuros, tempos difíceis de mensurar. Mas sempre grandes narrativas, excelentes romances.
A rigor, a primeira experiência de narrativa longa de Chico é, vista de hoje, frágil. Lançada em 1974, sua Fazenda Modelo é uma alegoria de alcance limitado. Trata-se de uma novela empenhada em comentar, com ironia e de vez em quando com sarcasmo, a ditadura militar brasileira, na hora em que ela estava no auge.
Com estilo fragmentado, ao gosto das experimentações do tempo (como Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, ou Reflexos do Baile, de Antônio Callado), Fazenda Modelo conta o processo de modernização e racionalização operado numa fazenda. O foco de atenção se fixa nos animais. Há um touro que vira fornecedor de sêmen, e por isso é isolado do contato com as vacas, incluindo sua antiga namorada, ganhando, em compensação, um status de estrela da fazenda; há um boi que vira operário-padrão; há bois e vacas de variados tipos. Tudo vai-se conduzindo como paródia do discurso oficial da época: desde o Prefácio, assinado por um dos operadores da modernização, lemos coisas como "devemos confiar na nossa juventude", e todos "estão participando de nosso desenvolvimento"; páginas depois, aparece Juvenal, o líder do novo tempo desenvolvimentista, que aparece na tela novíssima da televisão a repetir a famosa frase do real ministro Delfim Netto: "E as riquezas da Fazenda, é mister concentrá-las antes de se pensar numa distribuição".
O relato vai desmanchando as ilusões de que o país, isto é, a fazenda, teria chegado ao futuro sempre almejado. Antigas relações de amizade e solidariedade foram desmanchadas e substituídas pela lógica fria do dinheiro; só se dá bem quem trabalha e cala o bico; trata-se de exportar sêmen e coisas pelo estilo. Mas nem todo esse esforço reverte a condição subordinada da Fazenda (pensando bem, não seria má idéia sugerir a leitura deste livro ao presidente Lula...). Chegando ao fim da história, alguns bois ensaiam uma revolução, que não dá certo por vários motivos, e finalmente o projeto da fazenda é descartado, com a terra sendo vendida para plantação de soja, que dá mais dinheiro. Retrato do tempo, com justeza.
O ângulo da narração é sessenta-e-oitista e nacional-popular: em várias passagens, dá a entender que tinha havido um passado mais ou menos paradisíaco na região da fazenda, atropelado pela lógica da produção para o mercado. Aquele boi operário-padrão, que trabalha mais que os outros para ganhar algumas vantagens do patrão (usar a kombi dele para transportar material para arrumar o barraco em que vive com sua família numerosa), é descrito como colaboracionista, como inocente útil que não ajuda aos bois do sindicato, que querem fazer uma greve etc. Quer dizer: Fazenda Modelo é uma espécie de Apesar de Você em forma de alegoria, combatendo diretamente a ditadura. Por isso mesmo, tem alcance limitado. Relida agora, deu mostras de quase não sobreviver à ideologia que a anima.
Mas nem tudo é equívoco. A linguagem já experimenta procedimentos que aparecerão com crescente qualidade nos textos seguintes. Dois exemplos: um, a volúpia das enumerações, e outro, o gosto pelos nomes estranhos. Em Fazenda Modelo, como nos romances futuros, a cada passo encontramos séries como "Lubino, Latucha, Lactâncio, Lia, Lin, Lucrécia, Luar, Lembrança", neste caso os terneiros filhotes de Juvenal. Que papel têm tais listas? Um, ao menos: mesmo contando uma história, Chico continua um poeta atento para a forma, a superfície das palavras, aquela camada que faz o contato entre arte e espectador.
Naturalmente, nas canções esse esforço da forma é mais saliente, já pelos aspectos propriamente musicais, como melodia e ritmo, que podem ser reforçados por repetições como aquela famosa descrição "Pedro pedreiro penseiro esperando o trem", ou "Todo mundo homenageia Januária na janela, até o mar faz maré cheia pra chegar mais perto dela". Mas nos relatos este recurso também comparece e é saliente. (Numa cultura como a brasileira, em que a literatura narrativa tem afeição pela subserviência da linguagem em relação ao conteúdo, ao enredo, um artista da palavra como Chico se destaca no cenário do romance de tema urbano de nosso tempo, talvez quase tanto quanto Guimarães Rosa em relação ao romance de tema rural.)
O segundo romance, primeiro excelente, é Estorvo, de 1991. Desde a primeira página, é desconcertante: narrado em primeira pessoa, num fluxo contínuo de tempo em deslocamentos espaciais incessantes, o romance nos dá a percepção de um sujeito que começa fugindo de sua própria casa ao ver, pelo chamado olho mágico, uma figura que talvez seja a de um antigo conhecido, cuja presença é incômoda. O protagonista sai dali fugindo, procura a irmã, que mora numa mansão de luxo, pede grana a ela, como habitualmente faz, vai até a rodoviária, pega um ônibus e se dirige ao sítio da família.
Lá, naquele que deveria ser o símbolo do reencontro com a paz, o verde, as amenidades da memória familiar, ele vai deparar com uma sucessão de horrores - o sítio está tomado por plantadores de maconha, traficantes, gente mancomunada com o crime organizado, incluindo a polícia; os velhos funcionários o toleram, mas nada mais faz o sentido que costumava fazer. Nem um eventual encontro com sua mãe, que vive num mundo à parte, em confortável apartamento da Zona Sul e numa ética que não tem mais lugar no presente degradado, nem o reencontro com sua ex-mulher, que trabalha numa butique sofisticada, nem a possível recuperação da amizade de um velho parceiro, nada mais será capaz de estruturar o que quer que seja. Estorvo.
É tal o esquema narrativo, com a voz que nos conta tudo encravada na vida miserável de um anômalo, anômico, atônico, atônito protagonista. Passamos as páginas perseguindo os passos dele pela geografia mas com a eterna dúvida sobre a natureza do que estamos lendo, cada cena podendo pertencer ao mundo dos fatos ou ao da fantasia. O desfecho é horrível, e não melhora nada da sensação de desconsolo que nos sufocou ao longo das páginas. Nem amor filial, nem amor fraternal, nem marital; os velhos são torpes e as crianças perversas; em certo momento, ele pensa, ao quebrar a porta de vidro da butique: "Não há mais porta, mas também não tenho mais vontade de entrar". Este é o resumo da ópera.
De toda a ópera narrativa de Chico. Passe-se a Benjamim, romance de 1995: um ex-modelo fotográfico, Benjamim Zambraia, cujo auge ficou lá nos anos 60, por acaso enxerga Ariela Masé, que talvez seja filha de Castana Beatriz (os nomes, os nomes: ar de coisa conhecida, mas forma esquisita), esta uma antiga namorada de Benjamim, de quem o pai a afastou, mandando-a para a Europa, de onde ela volta - estamos nos anos 60 nesta altura - e se liga a um grupo que estuda história da América Latina. No presente da história, ele é uma pose, um sorriso de que só restou a arquitetura, perdida para sempre a alma, como numa das incontáveis fotos em que ela aparecia e que ele guarda em pastas organizadas por ano.
Quem sabe amar? Quem pode se livrar do passado? Quem pode viver o presente? As perguntas que atropelam o leitor não são feitas diretamente pelo narrador, que neste romance é, atipicamente, de terceira pessoa, sugerindo um distanciamento que não existe - já nas primeiras páginas, este narrador está acompanhando Zambraia e nos relata que o ex-modelo passou sua vida adulta sempre atuando, sentindo-se num filme, que nem por não existir de verdade deixa de ter certa consistência, quando menos na retina do leitor do romance de Chico Buarque.
É uma narrativa triste, medonhamente triste; não tem a violência de Estorvo (nem esse título, que é todo um juízo sobre o lugar do protagonista no mundo); segue aqui o estilo ultraminucioso da narração, que pega qualquer objeto ou aspecto e nos dá poesia - "Talvez não se surpreenda mais com Ariela porque, toda vez que vai pensar nela, é tarde: ela já se encontra instalada em seu pensamento". É lírico, mas o lirismo, pelo que nos informa a narrativa, não tem mais lugar no mundo.
Ano passado, mais um grande romance, igualmente perturbador, como a dizer que, em matéria de literatura de livro (para além da canção e do teatro, portanto), Chico Buarque é artista exigente, que não quer as facilidades nem do aplauso fácil, nem do mercado. (O que não impediu seus romances, em conjunto, de venderem mais de 400 mil exemplares, com tradução para mais de 10 línguas.) Estamos falando de Budapeste, livro que intriga desde o título. Por que esta remota cidade?
Há um enredo, mais forte aqui que nos romances anteriores - que parecem ocupar-se mais de acompanhar apenas a errância de um personagem por sua cidade -, que tem no centro José Costa, escritor, brasileiro. Aliás, escritor-fantasma, ghost-writer, que aparece na cidade húngara, já de si composta de duas metades (Buda e Pest), onde foi parar por acaso, retornando de um congresso... de escritores-fantasma, coisa de existência improvável.
Mas não mais improvável do que a vida de Costa, que tendo família (mulher e filho) no Brasil construirá outra em Budapeste, duplicando também isso. Ele tomará o desafio de aprender o húngaro, língua complicada para quem não é nativo, mas aprendê-lo a ponto de parecer não tê-lo aprendido, como se fosse natural em sua vida. O supremo requinte será o de se tornar escritor-fantasma naquela língua, conhecedor dos meandros antigos e fenecidos do húngaro.
O duplo, figura antiga como a literatura, aqui ganha uma realização superior, a marcar, talvez, a dilaceração da identidade não apenas de José Costa, mas a da cultura da língua portuguesa, de qualquer cultura nacional, no ritmo da vida global irreversível. Para dar um exemplo: a esposa brasileira de Costa é apresentadora de telejornal, enquanto a companheira húngara conta histórias num manicômio. A pergunta que o leitor se faz dirige-se à base da comparação: quem é mais integrado, entre o telespectador nosso de cada dia ou o ouvinte internado no hospício?
Todos os quatro romances de Chico merecem leitura e reflexão, como se vê. Se não for pela linguagem, em realização superior no quadro da cultura de nossa língua, se não for pela reconhecida genialidade do autor, que nos brinda com iluminações metafóricas a todo momento (Budapeste: "E me perguntei se algum dia saberia viver longe do mar, em cidade que não terminasse assim num acidente, mas agonizando para todos ao lados"), que seja pelo ataque crítico que fazem, os quatro, a pelo menos dois dos pilares da civilização de nossos dias - por um lado, a televisão, o olho mágico, a foto, a cultura da imagem, isto é, o abismo e a estranha solidariedade entre as várias máscaras que aprendemos a usar ali onde alguma vez houve uma face verdadeira, definitivamente enterrada no passado; por outro, o mercado, a mercadoria, o consumo, a ética pragmática e subsumida pelo dinheiro que nos equiparou a todos pela pior das igualdades, a de valor de troca.
No romance, assim como na canção e no teatro, Chico não está para brincadeira: está para nos ajudar a viver com a cabeça sobre os ombros, nesse equilíbrio precário que sua arte diagnostica, desconstrói mas também repõe, a favor de nossa humanidade.
* Escritor, doutor em Letras, professor do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), autor de Rua Desconhecida, entre outros livros
Zero Hora - Junho/2004
Renato Mendonça
Em um exercício de imaginação e colagem poética, Cultura esboça um texto autobiográfico, no qual Chico Buarque sugere que sua vida e sua arte sempre andaram juntas
Meus caros amigos me perdoem, por favor / Se eu não lhes faço uma visita / Mas como agora apareceu um portador / Mando notícias nesse texto. Fazer 60 anos não é fácil, continuo procurando um lugar, uma espécie de bazar / Onde os sonhos extraviados / Vão parar / Entre escadas que fogem dos pés / E relógios que rodam pra trás. A vida, afinal, é como a mulher - curiosa, tonta e colorida. E olha que eu não peço muito: Pra mim basta um dia / Não mais que um dia / Um meio dia / Me dá / Só um dia / E eu faço desatar / A minha fantasia.
No início, lá por 1964, havia muita que exigia que eu ficasse trocando em miúdos o que pensava. Lembram da Carolina? Lembram que Caetano, Gil e os Mutantes achavam que eu era um alienado? Depois, todos nos tornamos caros amigos, mas houve um momento, lá por 1969, que deixei claro meu rumo. Rugi que eu queria não cantar / A cantiga bonita / Que se acredita / Que o mal espanta / Dou um chute no lirismo / Um pega no cachorro / E um tiro no sabiá / Dou um fora no violino / Faço a mala e corro / Pra não ver banda passar.
Lembram que época difícil? Era uma roda-viva, tipo aquelas em que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu / ... / A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega o destino pra lá. Lembra como era difícil mandar no destino, nos anos 70? O regime militar ainda não havia passado - longe disso. E lá fui eu, para Roma, com Marieta e as crianças. Cruzei o oceano mas deixei uma maldição para os que me perseguiam: "Você vai saber de mim / Mambembe, cigano / Debaixo da ponte, cantando / Por baixo da terra, cantando / Na boca do povo, cantando". A saudade batia forte, me fazia mandar recados para a terrinha, me fazia pedir ajuda ao Vinicius para criar um lamento: "Vai meu irmão / Pega esse avião / Você tem razão / De correr assim / Desse frio / Mas beija / O meu Rio de Janeiro / Antes que um aventureiro / Lance mão".
Mas nunca deixei de denunciar, não por gosto ou desfeita - mas porque a ética regia minha estética na época. Eles eram gente de rosto escuro: enterravam suas vítimas no mar. Eu reagia cantando a dor das mães de quem era supliciado: "Quem é essa mulher / Que canta sempre esse estribilho / Só queria embalar meu filho / Que mora na escuridão do mar". Às vezes era engraçado, como quando mudei meu nome para Julinho da Adelaide. Tentei e consegui enganar Dona Censura, e o Brasil cantou amargamente "Que o bicho é brabo e não sossega / Se você corre o bicho pega / Se fica não sei não / Atenção / Não demora / Dia desses chega a sua hora". Meus olhos cor de ardósia - pausa na modéstia - faziam tanto sucesso que eu podia chegar para um dos presidentes da República e dizer "Você não gosta de mim / Mas sua filha gosta".
Meus versos, levei 60 anos para descobrir isso de coração, sempre andaram de mão com o brasileiro, foram um diário de uma nação. Como quando registrei a ressaca da campanha das Diretas, criando um samba com minha cabeça já pelas tabelas. Mas claro que ninguém se tocou com minha aflição / Eu via todo mundo na rua de blusa amarela. A partir dos anos 90, meu compromisso já não era tanto com a liberdade democrática, mas com a liberdade de criar, me orgulhava de desfilar na praça outra vez / Caminhando na ponta dos pés / Como quem pisa nos corações / Que rolaram dos cabarés.
Continuei jogando futebol, escrevi livros, fiz filhos e plantei esperanças, mas não deixo de sentir. Continuo tocado pela vocação de ser artista, tradutor da dor, caro amigo com talento. Sei que meus 60 anos estão multiplicados no peito de cada um de nós. E estou aliviado por confirmar que eu estava certo quando escrevi: "Imagino o artista num anfiteatro / Onde o tempo é a grande estrela / Vejo o tempo obrar a sua arte / Tendo o mesmo artista como tela".
Mas não me levem a sério: fiz o que fiz só para poder, um dia, escrever um verso superlativo de despretensão. E vou aproveitar as prerrogativas de aniversariante até a última linha. Lá vai: "Tem um japonês trás de mim"...
Para construir este texto, foram usados versos das seguintes músicas de Chico Buarque: Meu Caro Amigo, 1976; A Moça do Sonho, 2001; Vai Levando, 1975; Basta um Dia, 1975; Trocando em Miúdos, 1978; Carolina, 1967; Agora Falando Sério, 1969; Roda Viva, 1967; Mambembe, 1972; Samba de Orly, 1970; Angélica, 1977; Acorda Amor, 1974; Pelas Tabelas, 1984; A Volta do Malandro, 1985; Tempo e Artista, 1993; e Bye Bye, Brasil, 1979.
Cíntia Moscovich
Zero Hora
Conhecido como o compositor que melhor conhece as mulheres, Chico Buarque ultrapassa em sua lírica, no grande e no completo, a simples questão de gênero
Dizem, em voz uníssona - mesmo que a unanimidade irrite o belo par de olhos verdes -, que Chico é o compositor que melhor entende as mulheres. Existiria, assim, um muito prezado e referido "feminino em Chico". Ou o equivalente, traduzido no jargão erudito: "a representação das mulheres em Chico".
O problema é que, por onde se olhe, qualquer que seja o recorte, o viés ou a entrada, a obra desse Francisco forma um sistema tão consistente e denso e sólido que se torna difícil, senão impossível, isolar uma parte do todo, considerando-o com autonomia suficiente para elevá-lo ao status de objeto de análise.
De um lirismo desassombrado, que não se disfarça de outra coisa a não ser puro lirismo, com vocação de arder de sentimento, ironia e sentido de humor - poesia na veia -, as canções de Chico (ah, as letras de Chico) cavoucam o essencial do humano, alcançando um miolo tão diáfano quanto amplo. A poesia chicobuarquiana é assim: paira num registro tão alto que dá vertigem, voragem que puxa, seduz e emaranha porque nela todo mundo se vê. Criativo sem ser espertinho, original falando do velho, o moço desenha a cartografia da gente inteira, sem fatiar a humanidade em setores.
Se, como se tentou dizer, Chico é paratodos - assim, junto, para usar o título de um de seus discos -, são muitas as mulheres que nomeiam suas canções. Uma pequena lista incluiria Carolina, Cristina, Iolanda, Iracema, Luciana, Madalena, Maria, Cecília, Joana, Ana, Bárbara, Rosa, Beatriz e mesmo Geni. No contrabalanço, também há uma legião de escafandristas, funileiros, gigolôs, bilheteiros, mochileiros, bagunceiros, bêbados, pederastas, pivetes, malandros, rastaqüeras - todos anônimos pedros-pedreiros destinados a morrer na contramão atrapalhando o tráfego. Gente de todo o dia, cuja dor não sai no jornal.
Mas se é para quebrar o espelho e admirar o estilhaço, que seja. A legenda do Chico-mulher começou quando ele era apenas um guri faceiro estampado na foto de um elepê de 1966. Numa das faixas, falam as mulheres-amélia de Com Açúcar, com Afeto ("fiz seu doce predileto / pra você parar em casa"), que iniciou o dito ciclo feminino do bom moço. Gostou da brincadeira de ver o mundo assim, o jogo de espelhos dos gêneros sempre um prato cheio, e não parou mais. Das homossexuais Bárbara e Anna de Amsterdam (da peça Calabar, em parceria com Ruy Guerra, em 1972, que teve o verso "mergulhar no poço escuro de nós duas" abafado por palmas em cumprimento à maravilhosa exigência da Censura), Chico chegou à dupla de Mar e Lua ("uma andava tonta, grávida de Lua / outra andava nua, ávida de mar"), composta em 1980 para a peça Geni, de Marilena Ansaldi, e gravada com competência emocionada por Simone.
Antes ainda, em 1977, foi a vez de Chico unir-se a Miltinho e compor Angélica, lembrando as mães mortas depois de feitas órfãs de filhos pela ditadura ("Quem é essa mulher / Que canta como dobra um sino / Queria cantar por meu menino / Que ele já não pode mais cantar"), homenagem à estilista Zuzu Angel que perdeu o filho, Stuart, para a tortura. Em 1972, Chico, que quase sempre trabalhou por encomenda, fez a vontade de Cacá Diegues, que realizava o filme Quando o Carnaval Chegar. Foi vez e hora de compor Soneto, que, primeiro com Nara Leão e depois na voz de Maria Bethânia, contemplava mulheres a quem o amor se desvela ("Com que mentira abriste meu segredo / De que romance antigo me roubaste / Com que raio de luz me iluminaste / Quando eu estava bem, morta de medo"). Isso sem esquecer Teresinha, da Ópera do Malandro, de 1977, ("Ele não me trouxe nada / Também nada perguntou / Mal sei como ele se chama / Mas entendo o que ele quer / Se deitou na minha cama / E me chama de mulher"), mesma montagem em que surgia Geni e o Zepelim, sobre o travesti que salva a cidade dando-se ao poderoso do dirigível prateado ("De tudo que é nego torto / Do mangue e do cais do porto / Ela já foi namorada").
Há ainda mais, muito mais, que Chico tem o dom de recolher o sentimento e botar no corpo uma outra vez. Em parceria com Augusto Boal - autor da peça Mulheres de Atenas, de 1976 -, Chico visitou as mulheres mitológicas: as helenas, que "não têm gosto ou vontade / Nem defeito nem qualidade / Têm medo apenas". Quase 10 anos depois, no CD As Cidades, de 1997, apareceu, como resultado de parceria com Guinga, a graciosa Você, Você, que tem como subtítulo Uma Canção Edipiana ("Que roupa você veste, que anéis? / Por quem você se troca? / Que bicho feroz são seus cabelos / Que à noite você solta? / De que é que você brinca? / Que horas você volta?"), na qual a relação homem/mulher subverte a passividade do açúcar/afeto da década de 60 - agora o macho é pequeninho e fraco e choroso diante da amada-mãe. (A canção faz um pendant com Mãe, de Caetano Veloso, esta mais escrachadamente edipiana desde o título).
Dois enormes pedaços de eternidade estão em O Grande Circo Místico, peça em parceria com Edu Lobo, de 1982. Sobre Todas as Coisas ("Pelo amor de Deus / Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem / Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém / Abandonado pelo amor de Deus") e Beatriz, uma estonteante canção de amor para a atriz Marieta Severo, sua mulher à época: "Olha / Será que é de louça / Será que é de éter / Será que é loucura / Será que é cenário / A casa da atriz / Se ela mora num arranha-céu / E se as paredes são feitas de giz / E se ela chora num quarto de hotel / E se eu pudesse entrar na sua vida". De se ouvir rezando.
E, na aflição de esquecer - as músicas de Chico não podem esperar na posta restante da História -, lembre-se de Palavra de Mulher, A Mais Bonita, Folhetim, Tatuagem, Valsinha, As Vitrines. E da fartura sobrevivente de um mundo ralo que existe em Eu te Amo, Todo Sentimento e na supimpa Suburbano Coração - algo meio sagrado de tão lindo.
E que importa que Chico conheça a alma feminina? Resta catar a poesia que ele entorna no chão. Paratodos.
Zero Hora - Junho/2004
Arthur de Faria/Músico e jornalista
O Chico dos últimos anos, mais maduro, não se oferece tão facilmente ao consumo. Mas no âmbito estritamente musical, teria atingido o seu melhor
É possível que isso não faça grande diferença a não ser para neuróticos-obsessivos como eu, sempre obstinados em descobrir "o melhor do mundo", "o maior do planeta", "os três mais influentes da música missioneira" ou "a segunda melhor banda punk de Cacequi". Mas o fato é que já faz um tempo que eu venho pensando nisso: é muito possível, até mesmo provável, que, neste sábado em que completa 60 anos, Chico Buarque de Hollanda seja O Maior Cancionista Sobre a Terra. Ao menos no seu nível de sofisticação. Senão, vejamos: Bob Dylan é musicalmente muito simples. Tom Waits e Roger Waters, ainda que não pareçam, também. Paul McCartney (solo) não é nenhum Dylan Thomas em termos de lírica. E o mesmo vale pra Goran Bregovic. Cole Porter? Jobim? Mortos. Rodgers & Hart? Ira & George? Brecht & Weill? Lennon & McCartney? De dupla não vale!
É aquela velha história (que parece ter diminuído nos últimos anos) de ficar procurando O Novo Chico Buarque, assim como passaram tanto tempo procurando a Nova Elis que a coisa acabou se resolvendo em família. Mas me diga: quantos países do mundo, fora o nosso, tem um Chico Buarque?!?? E a gente ainda quer OUTRO?!?? É o mesmo que se passa com a tão comentada Geração dos Anos 60, que está justamente completando 60 anos de vida. No Brasil, tivemos duas safras como essa: nos anos 30 e nos anos 60. E ainda tem quem reclame! Poucos lugares e momentos fomentaram tamanha conjunção de gênios em música popular quanto a cena carioca dos anos 30 (repleta de mineiros e baianos, registre-se) e a carioca-paulista dos 60 (com mais baianos e menos mineiros). Quem teve isso em música popular? A Inglaterra do rock nos mesmos anos 60. Os Estados Unidos do jazz e a Cuba de mil ritmos nos 50. A Argentina do tango nos anos 40. E deu (se teve isso na Croácia nos anos 10, me avisem!).
E aí chegamos a Chico. Não é preciso falar mais nada quanto à sua relevância como letrista, poeta, cancionista ou cantautor. Chame você como preferir, o fato é que isto é "dado dado" há pelo menos 35 anos: é um dos maiores poetas da língua portuguesa. Assim como Caetano, Gil e outros poucos. Afinal - e felizmente -, desde a bossa nova que os compositores brasileiros gozam de um status intelectual que me parece único no mundo (o Fischer falaria mais e melhor sobre isso, mas o recente espanto do mundo com um vasto ensaio teórico recentemente publicado sobre as lyrics de Bob Dylan é o suficiente pra comprovar o que eu digo).
Mas o que eu queria chamar atenção aqui é para a música de Chico Buarque. Um sujeito que diz que tudo o que compôs, o fez pensando no que que o Tom Jobim ia achar.
Geralmente eu não concordo com meu querido companheiro de páginas Celso Loureiro Chaves na sua defesa de que, pra escrever sobre música, precisa ser, ainda que amadoristicamente, músico. Geralmente não concordo, disse. Prefiro me perfilar ao lado de meu outro companheiro e ainda mais querido Luís Augusto Fischer (que, diga-se, toca e canta bem): não, não precisa. Quase nunca precisa.
Mas, mais uma vez, Chico é exceção.
Me dei conta disso recentemente, lendo matéria publicada na última Carta Capital. Nela, o respeitável escriba diz discordar de uma opinião sedimentada ao longo de gerações de críticos não-músicos: a da superioridade das letras de Chico sobre sua música. Diz o texto que não é que Chico seja melhor poeta que músico, como muitos pensam. O caso é que sua obra é tão simples, tão singela que, por isso, beira a perfeição.
Com mil Adonirans! Simples, singelo e perfeito é o nariz da Audrey Hepburn! Qualquer pobre rapaz que, na terceira aula de violão, tenha tentado tocar uma do Chico achando que era moleza sabe do que eu estou falando. Principalmente a partir da virada dos anos 60 pros 70 e, cada vez mais, nada ali é simples. As harmonias são muito elaboradas e ainda mais personais, ainda que de linhagem claramente jobiniana. Um truque muito usado, com inatacável maestria: pegar um encadeamento harmônico de samba tradicional e retrabalhá-lo de tal forma que mantenha suas funções harmônicas (não, eu não vou explicar que porra é essa), mas as coloque num mundo de sutis dissonâncias e pequenas surpresas no mínimo surpreendente para quem, como ele, não tem estudo formal na área (como tiveram Jobim, Custódio Mesquita, Edu Lobo...).
E não acontece só nos sambas, claro. São muitas vezes canções que partem de portos seguros e conhecidos - a valsa, o samba, o fox e, cada vez mais, ritmos nordestinos como o baião e o maracatu -, para levar seus navios a mares tão distantes que soam por vezes como se nunca antes navegados. E estamos falando, pura e unicamente, de música.
Esqueça a letra (como se isso fosse possível), e pense em melodias e harmonias como as das relativamente recentes Iracema Voou, A Ostra e o Vento, Morro Dois Irmãos ou a vertiginosa O Futebol, que traduz como nunca dantes em música os dribles de um jogo de craques (coisa só possível de ser composta por alguém craque em música, letra e... futebol). E aí chegamos a outro ponto que eu queria tocar, ainda que rapidamente, num texto ligeiro como deve ser esse: a crescente maestria do sujeito.
A gente podia passar um longo tempo teorizando sobre os motivos, mas não é hora nem local pra isso. O fato é que, ao contrário de, por exemplo, Caetano Veloso, os discos mais recentes de Chico não tiveram nem perto da visibilidade que deveriam ter - e que têm, até hoje, seus trabalhos dos anos 70, por exemplo. E aí está uma injustiça tão grande quanto reparável. Esqueça os discos ao vivo e as compilações, até porque dinheiro não é uma coisa que sobre, e vá direto ao ponto. Concentre-se apenas nos seus discos "de carreira" destes últimos 15 anos. É moleza, são "apenas" três: Chico Buarque, de 1989, Paratodos, de 1993, e As Cidades, de 1998. Somado a eles, a obra-prima pouquíssimo escutada que é Cambaio, de 2001, trilha de um espetáculo em que as músicas são todas de Edu Lobo e as letras, de Chico.
O que você tem ali? Nada menos que, ouso dizer, o melhor do que O Maior Cancionista Sobre a Terra já escreveu. Se no conjunto canção = música/letra essa produção "recente" mantém o nível conquistado por ele desde a metade dos anos 70, no âmbito estritamente musical são o que de melhor o sujeito fez. E isso, em muitos casos, resulta em canções que não têm aquela imediata e luminosa empatia com o ouvinte de suas obras de juventude ou da primeira maturidade. Mas que são como devem ser um (bom) homem maduro, uma mulher madura, uma obra madura: esfinges que não são decifráveis na pressa desses tempos tão ansiosos. Que não encontram fácil seu lugar nos balcões das lojas ou nas estantes da alma - e aí vale tanto pra música quanto pra prosa de Chico. Que não se oferecem fácil ao consumo imediato. Mas que são, por isso mesmo, parte do mais sagrado do que a vida pode nos oferecer de mistério
Zero Hora - Junho/2004
Exposição
Exposição da Biblioteca Nacional, no Rio, com fotos e documentos do acervo pessoal de Chico Buarque, entre elas uma raridade foi encontrada nos arquivos da família Buarque de Hollanda: são três histórias em quadrinhos desenhadas por Chico Buarque quando o compositor tinha 11 anos. A preciosidade foi achada por Zeca e Antônio, sobrinhos de Chico, que estão reunindo tudo o que há de mais relevante para a exposição sobre a vida do cantor.
Livro
Chico Buarque do Brasil (Editora Garamond, R$ 54), organizado por Rinaldo Fernandes, professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal da Paraíba, e que reúne ensaístas, jornalistas, ficcionistas, poetas e estudiosos que interpretam as canções, o teatro e a ficção do artista. Na seção inicial, os depoimentos de Augusto Boal, Aquiles (MPB-4), Chico César, Frei Betto, Gerald Thomas, Marcelo Brum-Lemos e Silvio Rodríguez. Na segunda seção estão os jornalistas e escritores. Carlos Ribeiro avalia a diferença entre o ficcionista e o compositor. Chico Alencar bate bola com os versos do compositor, em texto agradável e lúdico. José Castello, enfocando a questão do duplo e/ou do jogo de imagens, volta-se para Benjamim. Leonardo Boff interpreta Gente Humilde e Deus lhe Pague à luz do humanismo cristão. Moacyr Scliar defende que Chico fica em primeiro plano na geração 60. Na terceira seção, os poetas José Nêumanne Pinto, Ricardo Soares, Sérgio de Castro Pinto e Thereza Christina Motta revisitam A Banda. E na quarta seção, a mais ampla do livro, ensaios produzidos por estudiosos traduzem a obra poética de Chico Buarque. Dois textos foram transcritos de livros anteriores - Chico Buarque: A Música contra o Silêncio, de Affonso Romano de Sant'Anna, que se encontra em Música popular e Moderna Poesia Brasileira, e Chico Buarque - O que não tem Censura nem Nunca Terá, de Tárik de Souza.
Caixa
Francisco, editada pela BMG (preço médio R$ 700), que reúne a obra do compositor a partir de 1987, incluindo o disco Per un Pugno de Samba, gravado na Itália, em 1970, mas lançado no Brasil somente no ano passado. São 12 CDs e dois DVDs. Um libreto de 90 páginas traz textos em português, inglês e francês sobre a obra de Chico, com discografia comentada pelo artista. Os álbuns Francisco (1987) e Chico Buarque (1989) foram remasterizados, sendo que o primeiro volta ao catálogo com as três capas diferentes da edição original, em vinil. Além de alguns poucos discos de carreira, como Paratodos (1993) e As Cidades (1998), a caixa traz CDs ao vivo e projetos especiais como Uma Palavra (1995), Chico Buarque de Mangueira (1997), Álbum de Teatro (1997) e Duetos (2002). Todos os títulos foram reeditados no formato de digipack, com a preservação da arte gráfica original das capas e encartes.
CD
Des Construção (ainda em produção, sem preço definido) em que a cantora portuguesa Eugénia Melo e Castro recria a obra de Chico Buarque. O disco conta com a participação do compositor e também de Adriana Calcanhotto, que aderiu ao projeto e pôs voz na faixa Bem-Querer, Chico canta em três faixas (Injuriado, Bom Conselho e Olê Olá), gravadas na semana passada no Rio. Para os colecionadores, uma surpresa: o disco terá uma tiragem especial de 500 exemplares em vinil.
Livro
Chico Buarque da série Folha Explica (Publifolha, R$ 19,90), da Folha de S. Paulo, que traz um perfil de Chico escrito pelo jornalista Fernando de Barros e Silva. Combinando traços biográficos com análises de canções e leituras dos romances, o livro arrisca ainda uma tentativa de interpretação, sustentada por uma idéia central: a de que a utopia brasileira do período anterior ao golpe de 1964, de alguma forma, se mantém e se renova na obra de Chico.
Zero Hora - Junho/2004
Márcio Pinheiro
É na distância do seu apartamento em Paris que um recluso Chico Buarque pretende passar o dia em que completa 60 anos. Em silêncio e longe das efemérides
Tijolo por tijolo num desenho sólido, o arquiteto Chico Buarque construiu em quatro décadas a mais completa obra da música brasileira. Com os 60 anos que completa hoje, Chico está um pouco deprimido. Na verdade, há muito tempo ele escapa de comemorações, costuma sumir, ficar escondido. Isso, desde que fez 50. Também é raro ir a aniversários de amigos. Como não gosta de comemorações, nem de homenagens e muito menos de manifestações públicas, Chico optou por viajar no começo da semana para Paris - onde tem um apartamento no último andar de um prédio no Marais - já que o local onde vive no Leblon não ofereceria a reclusão necessária e o devido afastamento das efemérides.
- Chico não é recluso. É falante, engraçado, mas só gosta de dar entrevistas quando tem algo a dizer, como no lançamento de um CD ou de um livro, na estréia de um show - justifica Mário Canivello, 40 anos, há 17 assessor de imprensa do compositor, tentando explicar o cinturão de silêncio que se formou em torno de Chico.
A pedido do músico - ou até mesmo por prévio conhecimento da ojeriza de Chico por exposição pública de sua imagem - amigos, parentes, assessores e parceiros têm se negado a falar nos últimos tempos. Todas as pessoas do círculo mais próximo do compositor, como a ex-mulher, a atriz Marieta Severo, as filhas, Sílvia, Helena e Luíza, a irmã Miúcha e os amigos que incluem Mané da Consolação e Barão (companheiros do tempo de São Paulo que Chico tem visto pouco ultimamente), os músicos Edu Lobo e Carlinhos Vergueiro, os cineastas Ruy Solberg e Miguel Faria, e o escritor Eric Nepomuceno, adotaram a mesma estratégia que Chico utiliza há anos: ficar em silêncio.
"E na fachada escrito em cima que é um lar"
Exceto por situações como a atual, Chico consegue manter a privacidade sem precisar atravessar o Oceano Atlântico. Nesses momentos, ele se recolhe ao apartamento que fica no Alto Leblon, local onde passou a morar depois que deixou de dividir a casa que tinha com Marieta, na Gávea. O apartamento fica numa rua sem saída, na cobertura de um prédio que, lá de cima, dá para toda a praia do Leblon e de Ipanema, e vê-se até o Arpoador (como mostra a foto da capa do Cultura de hoje). Tão alto e isolado que o terraço vira um tombadilho: o apartamento parece flutuar sobre o mar.
É um apartamento indevassável, ou seja, de lugar algum você consegue enxergar o terraço, a piscina, ou qualquer coisa. O máximo que se vê da rua é se tem alguma luz acesa. Chico tem obsessão por privacidade. É um apartamento amplo, um dúplex. No andar de cima, sala, cozinha, varanda, sala de televisão, um pequeno quarto de hóspedes - que ninguém usa -, escritório, quarto dele e banheiro. No de baixo, outro escritório, um home theater para ver filmes em DVD com os netos, banheiro e um outro quarto pequeno de hóspedes. Tem bons quadros: um Daniel Senise, um Flávio de Carvalho (retrato do pai, Sérgio Buarque de Hollanda), um Carlos Scliar e um Di Cavalcanti (que originou a canção Januária). O apartamento de cima é o tombadilho. O de baixo, o franciscano. Não há ligação interna entre um apartamento e outro. Como quem se obriga a sair de casa e ir trabalhar, ele desce um andar e se tranca. No escritório de cima, ele é músico, no de baixo, escritor. Em casa, é de hábitos simples e tem uma empregada que cuida de tudo.
Quando está escrevendo, como no ano passado, quando lançou o best-seller Budapeste, fica ainda mais reservado. Escreve no computador desde mais ou menos 1991, influenciado pelo escritor e seu ex-consogro Rubem Fonseca (a filha mais velha de Chico, Silvia, foi casada com o filho de Rubem, José Henrique). A não ser para escrever, Chico quase nem toca no computador. Não lê nada na Internet e seu e-mail - recente, passou a ter no começo de 2004 - é quase secreto. Trabalha em um estúdio que fica no canto à esquerda da cobertura. No local, há mais livros à vista do que discos. Ouve pouca música quando está em casa. Gosta dos clássicos do samba (Ismael Silva, Mauro Duarte, Cartola, Noel Rosa) e de gigantes não tão famosos (como Haroldo Barbosa e Luis Reis), além de muito Tom Jobim e os seus contemporâneos. Também admira os americanos Cole Porter, Irving Berlin e Frank Sinatra. Além disso, Chico é muito fixado em canções, o que nem sempre significa que seja fixado nos autores dessas canções. Por exemplo: Mucuripe, de Belchior e Fagner, é uma canção que gosta muito. E os cubanos, tanto os da velha guarda quantos os mais novos, como Pablo Milanés e Silvio Rodríguez, chegam a comovê-lo. É atencioso com os que lhe enviam "demos". É ligado, pode até não gostar, mas ouve de tudo.
Quando escreve, Chico lê mais do que o normal. Onívoro e insaciável, lê muita poesia (Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar), literatura contemporânea brasileira (Sérgio Sant'Anna e Rubem Fonseca) e literatura estrangeira (Ernest Yunger, Gabriel García Márquez, Primo Levi e Eduardo Galeano). Quando jovem, lia muito os russos (Dostoiévski e Tolstoi), os franceses (todos, muitas vezes no original) e os norte-americanos (com predileção por William Faulkner ou F. Scott Fitzgerald, John dos Passos e Ernest Hemingway). Também lê diariamente três jornais - Folha de S. Paulo, O Globo e o Jornal do Brasil. É bem-informado, desses que lê da seção de economia ao necrológio, passando pelo horóscopo e pelos classificados. Lê também, esporadicamente, jornais e revistas da França e dos Estados Unidos.
Em casa, Chico vê pouca televisão. Apenas telejornais, futebol e filmes tardios na madrugada, quando está insone. Acompanha a programação de cinema, costumando ir em sessões noturnas de começo de semana, quando tem menos gente. Recentemente, emocionou-se com o documentário de Nelson Pereira dos Santos sobre o pai, Sérgio Buarque de Hollanda.
"Todo dia ele faz tudo sempre igual"
Afora isso, Chico Buarquer ainda caminha cerca de três vezes por semana, uma hora pelo menos, por volta da uma da tarde. O trajeto é quase sempre o mesmo, de sua casa até a divisa do Leblon com Ipanema (entre ir e voltar são aproximadamente uns seis quilômetros). É um andarilho rápido, acompanhá-lo exige fôlego de atleta. Seus parceiros mais habituais são Miguel Faria e Carlinhos Vergueiro. Já aconteceu de ter "convidados especiais" para essas caminhadas, quando alguém quer ter alguma conversa mais discreta.
Nessas ocasiões, Chico, extremamente gentil, diminui um pouco o ritmo de seus passos, fazendo com que o acompanhante apenas fique absolutamente exausto depois dos primeiros dois quilômetros, mas sem chegar a desmaiar.
"Para estufar esse filó como eu sonhei só se eu fosse o Rei"
Tamanho preparo físico permite a Chico jogar futebol outras três vezes por semana. Sábado é dia do "jogo oficial", que envolve todo um ritual no campo que ele tem no Recreio dos Bandeirantes, que recebeu como parte do pagamento de um contrato com uma gravadora no final dos anos 70.
Quando menino, fundou um time de futebol de botão chamado Politheama. O nome ressuscitou no Rio quando Chico criou seu time de futebol, com uniforme e campo próprio. Tudo é levado extremamente a sério. Chico diz aos amigos que - como Elton John, que comprou um time inglês - "somos proprietários de equipe". Duas outras vezes, em geral segunda e quarta, é pelada, jogo-treino, ou exibição, quando vem algum estrangeiro, por exemplo. Nos jogos, calça uma chuteira Umbro tamanho 42 e assina a súmula como Pagão, em homenagem a um antigo atacante do Santos de Pelé. No futebol profissional, torce pelo Fluminense. Já foi integrante da torcida Young Flu, mas há muitos anos não vai mais ao estádio, preferindo ver todos os jogos pela televisão.
"Meus caros amigos"
Religioso também é o jantar semanal com os amigos. A Osteria é um dos restaurantes, o outro é o Gero. No Gero, aliás, costuma reunir-se com a turma dos íntimos mais íntimos (Edu Lobo, Miguel Faria e Ruy Solberg, os outros integrantes do "quarteto do apocalipse"). Essa turma costuma receber "convidados especiais", amigos dos quatro, mas que são tão especiais que não contam para ninguém essa especialidade. Toma essencialmente vinho. E, às vezes, depois do jantar, uma grapa. Não toma destilado algum (exceto a grapa, claro). Cerveja ou chope, uma vez na vida, outra na morte. Refrigerante, só diet, mas é o rei do suco de laranja.
Quase sempre Chico pede espaguete com camarões e pimenta, ou ao molho de pesto. Às vezes, quando está em fase light, peixe grelhado. Em ocasiões mais especiais ainda, Chico se revela na cozinha. Ensinou a Eric Nepomuceno sua receita de espaguete à carbonara que - aliás - foi prato central de um torneio internacional entre Chico e Pablo Milanés. O júri era formado por Eric, Martha Vianna (mulher de Eric), o casal Helena e Eduardo Galeano, e Sandra Milanés (mulher de Pablo). Chico venceu por quatro a um, mas é bom não perguntar pelo voto de Sandra... Também sabe dissimular quando tem algum interesse: certa vez, na dúvida sobre uma receita de pesto, ligou para a jornalista Regina Zappa (autora de seu perfil biográfico lançado em 1999) e, antes de qualquer consulta, foi logo dizendo: "Eu, que sou o rei do pesto, queria conferir com você um detalhe...". Na verdade, o que Chico queria mesmo era a receita do pesto de dona Aparecida, mãe de Regina, uma campeã absoluta da cozinha. Em hipótese alguma ofereça a Chico um prato de miúdos.
No final de cada refeição, Chico fuma um dos oito cigarros Charm do dia. Resultado de um esforço brutal de disciplina de quem chegou a fumar mais de dois maços por dia.
Chico sabe dirigir e gosta bastante de andar de carro. É um motorista do tipo audaz, desses que deixam o passageiro desavisado sem fôlego. Tem um Honda Civic champanhe, automático, ano 2002, mas durante vários anos teve especial predileção pelo Vectra. Troca de carro a cada dois anos, mas não escolhe: quem decide por ele é Márcia, a secretária, que entende de automóveis.
Autor de um jogo para a Grow nos anos 70 chamado Ludopédio, Chico também é o responsável pelo maior palíndromo da língua portuguesa. Antes da proeza de Chico, o maior dos palíndromos era "Socorram-me. Subi no ônibus em Marrocos". Agora, com o novo recorde, o maior é "Até Reagan sibarita tira bisnaga ereta". Leia de trás para a frente e confira.
- Quantos existem dentro de Chico Buarque? - perguntava um espantado Julio Cortázar diante da multiplicidade e da densidade de um criador que antes dos 30 anos já havia se tornado imortal. Um autor que, ao se rebelar contra a "unanimidade nacional" em que se transformara, paradoxalmente passou a ser mais amplo, atingindo diferentes classes e gerações.
Antena da raça, mais completo repórter de seu tempo, o Chico Buarque que hoje chega aos 60 anos comprova que se nos últimos tempos ele perdeu o pathos e a capacidade de produzir em linha de montagem, tem se revelado atualmente um artesão paciente e elaborado. A riqueza poética é a mesma, aperfeiçoada pela sutileza, pelo rigor e pela exigência. O lirismo denso e o estilo elíptico ainda permeiam sua obra. E se, nos anos 70, precisava tergiversar para dizer o que pensava - fossem denúncias políticas ou desilusões amorosas -, Chico envelhece com a sabedoria de quem sempre soube o que anda na cabeça, anda nas bocas. E que não é preciso se afobar porque nada é para já.
Qual o seu verso favorito?
Olivia Byington, cantora:
"Saiba que os poetas
como os cegos podem
ver na escuridão"
De "Choro Bandido"
Adriana Calcanhotto, cantora e compositora:
"...É assim como se o
ritmo do nada
Fosse, sim, todos os
ritmos por dentro
Ou, então, como uma
música parada
Sobre uma montanha em
movimento"
De "Morro Dois Irmãos"
Nei Lisboa cantor e compositor:
"Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão"
De "As Vitrines"
"A saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu"
De "Pedaço de mim"
"Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir"
De "Eu te Amo"
Luis Fernando Verissimo,jornalista e escritor:
"Se você beijar um outro
pode se partir
a valsa
mas se roendo-as-unhasmente me quiser ouvir
descalça no breu
pé ante pé
abra o peito bem devagar
e deixe
sete notas a vibrar
e feche"
De "Uma Canção Inédita", 2001
Miltinho, cantor do MPB-4:
"Como, se na desordem
do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu"
De "Eu te Amo"
Caetano Veloso, cantor e compositor:
"A mesa posta de peixe
deixa um cheirinho da
sua filha"
De "Flor da Idade"
Hermínio Bello de Carvalho, poeta, escritor e letrista:
"Te dei meus olhos pra tomares conta
agora, conta como hei de partir?"
De "Eu te Amo"
Joyce, cantora e compositora:
"Quem sabe então o Rio
será alguma cidade
submersa"
De "Futuros Amantes"
Vitor Ramil, cantor e compositor:
"Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri"
De "O meu Guri"
O Globo - Junho/2004
Qual é a melhor música de Chico Buarque? A pergunta, feita para cem personalidades da cena brasileira, foi encarada por todos como uma escolha de Sofia. - Isso é uma maldade - reagiu a cantora Evinha, antes de votar em "Mar e lua". - Destacar apenas uma canção na obra deste monstro é a maior injustiça que já cometi na vida - rebateu o cineasta Fernando Meirelles. - Em se tratando de Chico Buarque, a solicitação correta seria pedir a lista das cem melhores músicas - acrescentou, antes de apontar "Pedaço de mim", do repertório de "Ópera do malandro".
- Vou sentir uma angústia profunda em ter de escolher uma só - disse a atriz Ana Beatriz Nogueira.
- Pensei, pensei, jamais pensei tão sério assim - confessa a cantora e compositora Joyce ao revelar seu voto em "Futuros amantes".
A apresentadora Mônica Waldvogel também passou um fim de semana inteiro pensando, pensando... Até que escreveu o nome de dez músicas em pedaços de papel e... sorteou! Deu "O que será" na cabeça, a mesmo escolha angustiada de Ana Beatriz Nogueira.
"O que será" foi considerada a melhor música de Chico por mais sete eleitores: o diretor de TV Dennis Carvalho, o cineasta Paulo Morelli, a atriz Stela Miranda ("Uma só? Como, se a gente tem um Chico nosso de cada dia?"), o ministro Eduardo Campos, o deputado Chico Alencar, o compositor Toquinho e o ator Paulo José.
Paulo José é do time de Fernando Meirelles, aquele das cem melhores:
- A música do Chico de que eu mais gosto são cem. Dessas cem, cada uma traz uma lembrança particular, uma memória carregada de açúcar e afeto, para não fugir do plágio banal.
De qualquer forma, a escolha de Paulo José garantiu a eleição de "O que será" com apenas um voto de diferença da segunda colocada, "A banda".
A turma de eleitores de "A banda" merece respeito: o presidente Lula (é também a favorita de dona Marisa, mas no colégio eleitoral foi computado um voto só), o prefeito Cesar Maia, o diretor de teatro Domingos Oliveira, Janeth do vôlei, o senador José Sarney, o senador Eduardo Suplicy, o ministro Tarso Genro e o arquiteto Pedro Paranaguá.
Os cem eleitores citaram 48 músicas diferentes, o que mostra a inacreditável quantidade de obras-primas que Chico Buarque compôs. Cada voto que aparecia era uma música diferente que entrava na lista. Ronaldinho votou numa que, ele mesmo diz, quase ninguém conhece, "Leve", parceria com Carlinhos Vergueiro. A designer de sapatos Constança Basto deu o voto único de "Gente humilde", parceria com Vinicius de Moraes e Garoto (ela se lembra da tia Zezé tocando-a ao violão em serenatas na fazenda da avó no Espírito Santo). A atriz Arlete Salles foi a única que se lembrou de "Meu guri" ("Quando a ouvi pela primeira vez, fiquei tão emocionada que não parava de chorar. A música me pegou desprevenida").
Todo mundo já foi pego desprevenido, pelo menos, uma vez na vida por uma música de Chico Buarque.
- Chico desvenda o universo feminino com muita facilidade e isso me irrita. Não gosto quando o homem faz isso - confessa a senadora Heloísa Helena ao votar em "Uma canção desnaturada", também de "Ópera do malandro".
O presidente do PT, José Genoíno, tem uma razão particular para escolher "Apesar de você":
- Eu cantava muito lá na selva, no Araguaia. E também dentro da prisão.
O ministro da Saúde, Humberto Costa, é misterioso quanto ao voto em "Eu te amo":
- Marcou uma fase muito especial da minha vida.
A vitória de "O que será", composta para a trilha de "Dona Flor e seus dois maridos", premia uma canção que, na verdade, são duas. Chico compôs duas letras diferentes para a mesma melodia.
- As duas versões revelam mas não mostram, sugerem mas não entregam e, com sua linguagem cifrada, insinuam-nos um país em efervescência e um homem apaixonado - analisa o cineasta Paulo Morelli, eleitor da campeã. - Dizer tudo sem deixar explícito, isso é arte das grandes.
O Globo - Junho/2004
Artur Xexéo
Completar 60 anos, como acontece amanhã com Chico Buarque de Hollanda, não é muito diferente de completar 61 ou 59. O bom é que é uma data redonda e, portanto, propícia a homenagens. Chico não gosta de homenagens. Mas a gente adora homenagear Chico. Todo brasileiro tem alguma história para contar com uma de suas músicas como fundo musical. Tocava uma - "A banda" - por exemplo, quando o presidente Lula conheceu dona Marisa. "Sempre que ouço 'Pedaço de mim', minha consciência fica desarmada", conta o ator Lázaro Ramos. "Ela toca em lugares da minha sensibilidade que eu nem sabia ter." Todo brasileiro é tocado assim por uma ou outra música de Chico. "Chico é a trilha sonora da minha vida", constata a atriz Julia Lemmertz. Não só da Julia. Chico que nos perdoe, mas este caderno é uma homenagem àquele que, há 40 anos, compõe a trilha sonora do país.
O Globo - Junho/2004
Presidente Lula - "A banda". É a preferida também de dona Marisa e foi um dos hits da festa junina na Granja do Torto.
Fernando Meirelles - "Pedaço de mim". "O verso 'Oh metade exilada de mim...' é a mais verdadeira, profunda e linda declaração de amor que jamais ouvi."
Carlos Alberto Parreira - "Quem te viu, quem te vê". "Chico Buarque é um compositor que agrada independentemente da faixa etária. Coisa de gênio."
Ferreira Gullar - "Roda viva". Gullar é autor, ao lado de Dias Gomes, da peça "Doutor Getúlio", que se encerrava com um samba-enredo composto por Chico.
Renata Sorrah - "Gota d'água". "É a 'Medéia' do Chico, e esse é meu momento-Medéia." Ela está em cartaz como protagonista da tragédia carioca que também foi adaptada por Chico e Paulo Pontes para o teatro.
Jorge Ricardo - "Quem te viu, quem te vê". "Ela fala de amor de carnaval e tem um refrão inesquecível."
Joyce - "Futuros amantes". "Junta tudo: a sofisticação musical, a letra deslumbrante e, principalmente, a grande sacada - 'quem sabe então o Rio será alguma cidade submersa' (o medo oculto de todo carioca)."
Carlos Tufvesson - "Vai passar". "Adoro as músicas da 'Ópera do malandro'. Mas, quando me falam de Chico, o que me vem à cabeça é 'Vai passar'. Essa lembrança é mais forte que minha opinião."
Sandra Werneck - "Futuros amantes". "Esta eu guardo no coração. Ela me inspirou enquanto eu filmava 'Pequeno dicionário amoroso.'"
Hebe Camargo - "Carolina". "É difícil escolher só uma canção do Chico. Ele é um artista maravilhoso e muito atuante no cenário político do país. Tive o privilégio de gravar 'Carolina'."
Mônica Waldvogel - "O que será". "Ela acompanhou toda minha vida, da adolescência à maturidade, e sempre me ajudou quando quis compreender o que não tem sentido, nem nunca terá."
Flávia Quaresma - "O meu amor". "Até hoje sofro quando ouço essa música. A letra é bárbara, tem força. Eu sinto que aquele amor é de verdade. É a top, um espetáculo."
Lya Luft - "Todo o sentimento"
Gilberto Braga - "Bye bye Brasil"
Senadora Heloisa Helena - "Uma canção desnaturada". "É do repertório da 'Ópera do malandro'. É a música que mais expressa a alma feminina."
Patrícia Pillar - "Eu te amo". "Se a engenharia de palavras do Chico é sempre surpreendente, nessa música, em especial, ele cria imagens incríveis."
Luiz Pizarro - "Fantasia". "Lembra momentos do fim dos anos 70, na universidade, quando todos sonhávamos com a liberdade. Era um sonho coletivo."
Alcione - "Trocando em miúdos". "Chico é genial ao dizer no fim da música: 'Eu fecho o portão sem fazer alarde, eu levo a carteira de identidade, uma saideira (...) e a leve impressão de que já vou tarde.'"
Ministro Márcio Thomaz Bastos - "Noite dos mascarados". "Pela qualidade literária e pela emoção que a música transmite."
Chico Anysio - "A Rita". "É um samba que Noel Rosa assinaria e ele o fez com 19 anos de idade."
Senador Eduardo Suplicy - "A banda". "Essa música tem um sentido de alegria com as coisas bonitas que gostamos de ver passar."
Walter Salles - "Construção". "A letra não é somente brilhante, como também descreve como poucas o país em que vivemos."
Jô Soares - "Fado tropical". "Não sou uma donzela desvairada que suspira ao escutar sua música preferida. Gosto da obra do Chico como um todo."
Ana Beatriz Nogueira - "O que será"
Domingos Oliveira - "A banda". "Chico é único e insubstituível, como todos nós. Só que tem uma alma deslumbrante, uma inteligência de gênio."
Cesar Maia - "A banda". "Me traz lembranças fortes de um momento importante na minha vida e na minha formação."
O Globo - Junho/2004
Mauro Ventura
Era uma oportunidade rara aquela, e as mulheres trataram de aproveitá-la. Chico Buarque dançava, desajeitado, na pista e um cortejo feminino se revezava à sua volta - a maioria para tirar onda mais tarde com as amigas e dizer que dançou com o ídolo.
Umas, mais recatadas, contentavam-se em ficar por perto. Outras, mais afoitas, arriscavam afagos na nuca, faziam propostas sem rodeios, diante de um Chico mais sem jeito do que propriamente envaidecido. Uma jovem, recém-chegada à casa dos 20, quem sabe movida pelo álcool, talvez estimulada pela chance única, sussurrou:- Você é Deus - disse a moça, emendando em seguida um convite, nem aí para a mistura de sagrado e profano.
O compositor alternava-se entre a pista de dança e o sofá, onde, copo d'água na mão, era cercado por garotas que até de joelhos se posicionavam, em busca de um melhor ângulo. Apesar do cerco feminino, Chico seguiu às 4h para o hotel na capital paulista, acompanhado de seu assessor de imprensa, Mário Canivello, não sem antes parar num posto de conveniência para comprar cigarros e dar um autógrafo escondido para o vendedor - "É proibido", desculpou-se o rapaz.
Amanhã, Chico completa 60 anos, ainda cortejado pelas mulheres, como se vê. Avisou aos amigos que estaria em Paris, onde tem apartamento, mas pode muito bem ter inventado a história só para evitar os parabéns.
Antes da festa em São Paulo - feita em homenagem à cineasta Monique Gardenberg, diretora do filme "Benjamim" - Chico já havia experimentado a euforia do público paulistano, na pré-estréia do longa-metragem inspirado em seu livro.
- Suas músicas me deixam fora de si - gritou uma senhora na chegada ao cinema, errando na concordância, mas acertando no sentimento.
Como ela, não foram poucas as mulheres - e os homens - que buscaram abrigo nas canções de Chico. Suas músicas serviram para consolar, seduzir, desabafar, refletir, fazer sonhar ou, simplesmente, divertir. Elas deram esperança, aplacaram tristezas e se instalaram em definitivo na intimidade das pessoas, desde que ele surgiu no cenário artístico brasileiro, há 40 anos.
No calçadão, quando se dão conta, ele já passou
Se as aparições noturnas se tornaram raras com o passar dos anos, as incursões diurnas não perderam o fôlego. Semana passada, ele podia ser visto, como de hábito, caminhando pelas praias do Leblon e de Ipanema. Quando está acompanhado do amigo Miguel Faria Jr., o que é mais comum, vai pelo calçadão. Naquela quarta-feira de sol ameno, temperatura a 24 graus, sozinho, vestindo apenas short azul claro, preferiu ir pela areia, perto da beira d'água. Chegou às 12h30m - afinal, Chico dorme de madrugada e costuma acordar por volta das 11h. Os passos largos e o andar ligeiro inibem as abordagens mais demoradas.
- Obrigado pelo seu talento, felicidades - saúda um senhor, recebendo de volta um polegar levantado.
- Seu Chico - reverencia um garoto, ganhando em troca um sorriso.
Duas turistas de Curitiba ficaram em dúvida se era ele mesmo.
- É o Chico? Não pode ser!
- Eu acho que é, mas está muito bronzeado.
- Mas o nariz e os olhos são os mesmos.
Quando chegaram a uma conclusão, ele já estava longe. Miguel diz que é uma cena corriqueira: quando cai a ficha, a pessoa se vira, admira-se, mas aí já não há tempo de falar nada, só de ver as costas de Chico se afastando.
Ao fim da caminhada - que incluiu duas corridas curtas, alguns cumprimentos e uma parada num posto de salvamento para guardar o chinelo e a camiseta com o vigia - o compositor comentou que, em geral, o carioca não dá maiores bandeiras.
- Quando tem gente de fora, é que às vezes pede para tirar foto junto ou quer um autógrafo - disse ele, um tanto quanto constrangido de não poder oferecer uma água-de-coco ao repórter: - Trago o dinheiro contado.
Chico estava com pressa para almoçar com a filha Silvia e o bate-papo não se alongou.
Era esperado. Algumas semanas antes, naquela noite em São Paulo, já prevendo o assédio por conta de seus 60 anos, ele explicava a decisão de não dar entrevistas sobre o aniversário.
Em primeiro lugar - desculpava-se - se falasse com um jornalista, teria que falar com todos. Além disso, julgava cabotino participar de homenagens a si mesmo - algo que sua autocrítica impiedosa não lhe permite. E, por fim, não estava achando a menor graça em fazer 60 anos.
Não que tenha motivos para queixas. A saúde, como atestam os check-ups periódicos, vai bem. A forma física - 1,79m e 70 quilos, mantidos às custas de futebol às segundas, quintas-feiras e sábados, e caminhadas às terças, quartas, sextas-feiras e domingos - também não dá sinais de maiores abalos.
A verdade é que o compositor leva uma vida mais regrada. Deixou de varar as madrugadas em bares e parou de beber pesado graças a um bruxo que lhe foi apresentando pelo amigo Tom Jobim e que lhe receitou um preparado de ervas nos anos 80. Hoje, contenta-se com vinho no jantar e uma ou outra grappa.
Os 50 cigarros diários - sempre da marca Charm - reduziram-se drasticamente. Há alguns anos, Chico fez duas promessas de Ano Novo: não parar com o vício e só fumar oito cigarros por dia. Tem cumprido o trato. Ao longo dos anos, ele já vinha tentando diminuir a fumaça. Chegou a estabelecer uma cota: um cigarro por hora. Depois, decidiu que seriam três maços a cada dois dias. Até que fixou o número oito. E por que oito? Há quem diga que ele considera como se fossem três, porque teria ouvido falar que cinco não fazem mal à saúde. Outros dizem que são oito porque é o número de horas úteis, dentro de uma matemática toda peculiar, que passa a contar a partir do almoço.
Como muito do que envolve Chico, lenda e realidade se confundem de tal maneira que fica difícil separá-las. Muito por culpa do próprio compositor, que tem um temperamento gaiato e uma habilidade incomum para criar histórias, contar piadas, pregar trotes, inventar trocadilhos, dar apelidos e imaginar personagens.
Certa vez, mais de 15 anos atrás, num vôo para Cuba, disse à filha Silvia que esteve no país de Fidel Castro com Harry Belafonte.
- Pensei: "Ele inventou esse nome" - lembra Sílvia. - E quanto mais ele falava, mais eu achava que ele estava inventando.
A irmã Helena e a amiga Janaína Diniz também não acreditaram. O cantor americano virou um código particular: toda vez que achavam que Chico estava contando lorota, diziam:
- Lá vem o Belafonte.
São muitas as passagens curiosas. Como no dia em que, no Uruguai, o motorista de táxi disse que o estava reconhecendo e ele inventou que era filho do goleiro Manga. De outra feita, num bar em Colatina, no Espírito Santo, ouviu de um sujeito:
- Ué, eu conheço o senhor. É da TV, né?
Chico explicou que era o novo técnico do Colatina, que lutava para sair da terceira divisão, e os dois começaram a conversar sobre o time. Juntou gente ao redor "da mais recente contratação da equipe". O "treinador" inventou até que estava atrás de uma cobertura na cidade. Dias depois, saiu numa coluna social que Chico Buarque tinha ficado maravilhado com Colatina e estava procurando uma cobertura para alugar. No interior paulista, fingiu-se de sul-africano ao se registrar num hotel. Diante da incredulidade da recepcionista, criou na mesma hora um idioma para convencê-la de que falava a verdade.
O escritor Eric Nepomuceno lembra-se do dia em que chegou com Chico no restaurante e reparou que o maître estava com cara de poucos amigos.
- Ele estava me tratando mal e eu não entendia por quê.
Depois descobriu a razão. Chico tinha inventado que Nepomuceno era o crítico gastronômico que, na véspera, demolira o serviço da casa no jornal.
Amigo fingia ataque epilético para fugirem
Uma vez, vestiu-se como motoboy - com direito a capacete com visor - e foi entregar flores a uma amiga que aniversariava. Ganhou até gorjeta, e saiu feliz da vida por ter conseguido circular pela cidade anônimo. Nos anos 60, tinha um acordo com o amigo Carlos Jaguaribe Ekman, o Barão. Toda vez que a tietagem à sua volta tornava-se exagerada, o amigo fingia um ataque epilético e ele escapulia dizendo que tinha que levar Barão ao hospital.
Tem mania de inventar cidades e ler mapas - não por acaso escreveu "Budapeste" sem nunca ter ido à capital húngara.
- Ele tem uma bússola na cabeça. Daria um ótimo agente ou guia turístico - brinca a irmã Miúcha.
Em 1969, imaginou um país, chamado Tita, onde, como conta o jornalista Humberto Werneck no texto "Gol de letras", "as pessoas se expressavam numa língua monocórdia em que as sílabas tinham o mesmo peso" - Teresa virava Térésá.
Quando criou o pseudônimo Julinho da Adelaide para driblar os censores, tratou de preparar uma elaborada história em volta do personagem. Chegou a dar entrevista para o jornal "Última Hora" contando que não queria ser fotografado por causa das cicatrizes obtidas quando foi atingido no rosto pelo violão de Sérgio Ricardo e reclamando que "o Chico Buarque está faturando em cima do meu nome". Passou a colaborar com palavras cruzadas para jornal assinando como a mãe do compositor, Adelaide Kuntz, moradora da favela da Rocinha que adotou o hobby depois de ficar paralítica.
As escaramuças com a ditadura militar eram constantes e Chico tornou-se o alvo principal da Censura. De cada três canções que enviava às autoridades, duas eram interditadas e a terceira, mutilada. Algumas eram criadas propositalmente para serem vetadas - uma espécie de boi de piranha. Mesmo com toda marcação, volta e meia suas letras de duplo sentido conseguiam enganar os censores.
O espírito arteiro e moleque vem de longa data. Em 1961, menor de idade, saiu com um amigo para "puxar" um carro e dar umas voltas pela madrugada de São Paulo, hábito nada incomum entre a garotada bem-nascida de então. Acabou preso, algemado, espancado e notícia de jornal. A "Última Hora" publicou reportagem com o título "Pivetes furtaram um carro: presos", ilustrada com uma foto dos dois com tarja preta cobrindo os olhos. O castigo dos pais - Maria Amélia e o historiador Sérgio Buarque de Hollanda - foi duro: ficou proibido de sair sozinho à noite até fazer 18 anos, seis meses depois.
Chico Buarque leva uma vida simples - para os padrões de um astro de primeira linha do $ís. Não gosta de comprar roupas, tem pavor de segurança - "chama mais a atenção", argumenta - não tem motorista e não liga para carros. Seu Honda Civic, de dois anos atrás, só vai ser trocado quando começar a quebrar na ida para o campo de futebol, no Recreio, ou quando a secretária, Márcia, começar a insistir:
- Chico, está na hora da troca.
Mesmo assim, ele vai tentar regatear:
- Ainda está bom.
Seus programas prediletos são ver os três netos - a mais nova, Lia, chama-o de voíco - encontrar as três filhas, caminhar e jantar com os amigos Ruy Solberg, Edu Lobo e Miguel Faria Jr., em geral no Gero. E, claro, jogar futebol - ele é dono de um time, o Polytheama. Outro dia, ao apresentar um amigo à mãe, a maneira que encontrou para demonstrar o afeto foi:
- Mãe, esse é um amigo meu, ele joga no Polytheama.
Quem se aproxima de Chico fica em geral intimidado, preocupado que está em caprichar no discurso e elaborar frases brilhantes. Esqueça.
- Às vezes, as pessoas acham que estamos conversando sobre grandes projetos. Mal sabem da bobagem elevada a dez que rola - conta Edu Lobo.
- Começa sempre sério. A primeira parte é como se fosse um jantar de negócios. Mas depois da segunda garrafa de vinho começamos a falar besteira - completa Miguel.
Cinema não é um tema muito freqüente, apesar da presença de dois cineastas na mesa, Miguel e Solberg.
- Eu pergunto qual foi o último filme que ele viu e ele responde sempre: "Corra, Lola, corra" - brinca Solberg. - Ele disse que ia comprar um DVD e falou: "Você vai ver só, vou poder conversar."
O tom é tão informal e descontraído que um dia, restaurante cheio, os quatro foram se sentar na cozinha e por lá mesmo ficaram.
Quem conversa com Chico aprende com o tempo a conhecer o que o cineasta Ruy Guerra chamou de silêncios eloqüentes e o músico Edu Lobo classificou de estado catatônico - momentos em que o compositor, olhar vago e distante, desliga-se do mundo, deixando o interlocutor inseguro, sem saber se está agradando, quando na verdade ele está com a cabeça ocupada na criação. O tempo buarquiano é outro, como conta a ex-mulher, Marieta Severo, no livro sobre Chico escrito por Regina Zappa: "Não fale com ele na primeira hora, hora e meia, depois que acorda. Não é que acorde de mau humor, mas demora a incorporar, fica um tempo fora deste mundo. Tem um corpo que acorda, que abre o olho, que se movimenta, faz as coisas, mas o resto está em outra galáxia. Cuuuuusta! Nesse vagaroso tempo de despertar não se pode perguntar coisas e querer uma resposta coerente." Os dois se separaram em 1997, após 30 anos de casamento, mas conservaram a amizade e costumam almoçar aos domingos na casa da atriz.
Os amigos dizem que a timidez de Chico é para consumo externo - entre parentes e amigos sobressai a figura brincalhona. Mas, se a fama de tímido não resiste a um exame mais profundo, a aversão aos holofotes é verdadeira. Chico se esmera em preservar seu espaço, a ponto de ter escolhido sua cobertura no Alto Leblon, colada ao Morro Dois Irmãos, somente após conferir que não seria alvo de nenhuma foto de paparazzi. Os amigos também ficam cheios de dedos na hora de dar depoimento sobre o compositor, com medo de invadir a privacidade que Chico tanto preza.
O recato talvez seja herança materna.
- Mamãe sempre foi muito drástica nessa questão de não se exibir e de não se expor ao ridículo - diz Miúcha, para quem Chico era o mais extrovertido dos sete irmãos.
Um dia, no Satyricon, jantava com Nepomuceno e um pintor amigo quando, animado, quis mostrar em primeira mão para os dois uma nova música. Cantou baixinho, certo de que ninguém mais prestava atenção. Quanto terminou, o restaurante inteiro aplaudiu e ele ficou constrangidíssimo, com medo de que pensassem que estava se exibindo.
A discrição fez com que recusasse uma foto de capa do disco "As cidades", que realçava seus olhos e valorizava sua estampa.
- Estou muito bonito na foto - justificou, receoso de que parecesse estar vendendo uma imagem de galã.
Ver sua vida privada esquadrinhada pela imprensa é das coisas que mais o chateiam - como quando se separou e passou a ser seguido $um fotógrafo e uma repórter de uma revista. Saiu do sério quando um deputado curitibano, a fim de se promover, resolveu dar a ele o título de cidadão honorário. Sem consultá-lo, o político marcou a cerimônia na Assembléia Legislativa, distribuiu 500 convites e, quando o compositor soube, disse não, avesso que é a formalidades. Toparia receber no campo de futebol. O deputado deu uma entrevista chamando-o de mal-educado e ele reagiu:
- Eu posso ser qualquer coisa, menos mal educado. Vou ligar para ele.
Acabou deixando para lá.
Show, um sacrifício combatido com Lexotan
Chico não quer ficar sozinho - daí recusar a imagem de Greta Garbo tropical. Ele gosta de se misturar à vida da cidade, ir à farmácia, freqüentar a padaria, caminhar no calçadão. Não que não adote estratégias - no domingo, prefere caminhar pelo parque perto de sua casa a enfrentar a praia cheia.
Mas, ao contrário do amigo Gilberto Gil, que adora uma platéia - "subo nesse palco, minha alma cheira a talco, feito bumbum de bebê" - Chico evita o quanto pode os shows. Na TV Record, onde fazia junto com Nara Leão o musical "Pra ver a banda passar", ficava tão inibido que o produtor Manoel Carlos disse que eles formavam a maior dupla de "desanimadores" de auditório da televisão brasileira.
O pânico de antigamente, enfrentado à época com uísque sem gelo, foi acalmado, mas ele ainda prefere estar em outro lugar a encarar a multidão. É um sacrifício combatido com comprimidos, cada vez mais raros, de Lexotan. Na época do show "As cidades", recusou o convite de se apresentar na praia. Ele só não pára porque, como diz Regina Zappa, o cantor é o provedor, aquele que sustenta com os shows o escritor e o compositor.
O próprio Chico brinca com o status diferente do músico e do escritor. Ele comprou o apartamento debaixo da cobertura e lá instalou o escritório, onde se enfurna para escrever - o espaço onde compõe fica na parte nobre, em cima.
- O escritor vive modestamente e viaja de classe econômica - diz ele, que só há pouco sucumbiu à internet.
Chico levou dois anos para escrever "Budapeste". Em geral, após um livro vem um disco. Por enquanto, ainda está envolvido com a literatura, acompanhando de perto as traduções de sua obra para o italiano, o inglês, o espanhol e o francês.
Gal Costa, que estréia show novo dia 24, pediu a ele uma música e Chico entregou-lhe uma melodia inédita, feita há dois anos para a versão em italiano de "Dona Flor e seus dois maridos". A letra será de José Miguel Wisnick.
- O violão ainda não me chamou - tem dito.
Na música, como na literatura, Chico atormenta-se pela busca da palavra mais certa. O LP "Chico Buarque", de 1989, já estava indo para a fábrica, onde ia ser prensado, quando ele cismou de trocar "podar" por "anular" na letra da música "O futebol". Resultado: correu para o estúdio, emendou às pressas a fita (eram tempos pré-digitais) e finalmente pôde relaxar - por pouco tempo, porque logo a angústia da criação voltaria a atormentá-lo. Maria Bethânia também teve provas do perfeccionismo. Chico deu a ela a música "A moça do sonho". Quando ouviu a fita, a cantora ficou eufórica e decidiu incluí-la no disco "Maricotinha". Bethânia foi para Londres, gravou as músicas e, disco pronto, voltou ao Brasil. Apenas para ouvir do amigo:
- Fiz umas modificações na letra.
Ela teve que entrar em estúdio de novo e refazer o trabalho - só pôde usar uma parte do arranjo de cordas gravado em Londres.
- Chico me deixou desesperada - comentou com um amigo.
O compositor tem um medo, como revelou o deputado Chico Alencar no livro "Chico Buarque do Brasil", de Rinaldo de Fernandes: ser olhado pelos netos, daqui a 20 ou 30 anos, como nós olhamos hoje um Olavo Bilac - com respeito, desinteresse e estranhamento.
Miúcha aposta que não.
- Você vê todas as gerações saboreando suas letras. A fórmula dele é impermeável ao tempo.
O Globo - Junho/2004
Arnaldo Bloch
Existem maneiras simples e complicadas de se ouvir Chico Buarque. Falar sobre Chico, e sobre essas várias maneiras de ouvi-lo , é que são elas. Ainda mais para a turma que, também na marca dos 60, integra a geração do aniversariante e cruza a sua trajetória, lado a lado e/ou em campos diferentes. Para fugir a essa dificuldade, um artista como Roberto Carlos, que é mais de cantar que de falar, prefere ser lacônico, resumindo numa frase o máximo de síntese possível, e, no entanto, acertando o alvo:
- É um compositor fantástico, que escreve canções lindas, simples ou sofisticadas, sempre com altíssima categoria.Toda a sua obra é maravilhosa.
Edu Lobo, ao contrário, escolhe o aprofundamento. Para sondar os mistérios que norteiam a arte de seu parceiro em mais de 40 canções, busca inspiração em T.S. Eliot. O poema é "Naming cats" ("Dar nomes aos gatos"). Nele, o escritor americano diz que todo gato tem um nome secreto, que só o bicho conhece, e que nenhum dono é capaz de adivinhar. Esse seria seu único, inescrutável e verdadeiro nome, muito além da compreensão humana.
- Da mesma forma - compara Lobo, complementando a idéia - toda música, antes de ser letrada, já vem com uma letra secreta. E são raros, no mundo, os letristas que sabem descobri-la, ou decodificá-la. O Chico é um desses. Cole Porter é outro.
Para exemplificar o que diz, ele cita "Beatriz", um dos standards da dupla:
- Nessa composição, a nota mais grave corresponde à palavra "chão", e a mais aguda, à palavra "céu". Para chegar a esse tipo de solução, Chico se tortura muito, é minucioso ao extremo, a ponto de chatear-se se a gente altera uma nota depois para ajustar um arranjo, porque aquela nota não corresponde mais à palavra ou à sílaba que ele havia concebido. A letra de Chico comunica-se com as notas para além da simples divisão rítmica e melódica, e mesmo para além da metalinguagem - conclui Lobo.
Sueli Costa: "Meu amor maior por ele vai no caminho da música"
A análise de Edu Lobo obriga a trazer para a discussão um imbroglio clássico, que vem animando discussões acadêmicas (e outras nem tanto) sobre a obra de Chico: é ou não é a arte de um poeta? Lobo estuda a equação:
- Concordo que poesia e letra de música são artes diferentes. Vinicius conseguiu ser grande poeta e grande letrista. Um grande poeta, por outro lado, quase nunca é um grande letrista, assim como uma boa poesia raramente dá uma boa letra. A estrutura musical tem sutilezas, ritmos e climas que a poesia não comporta, não sabe dizer. Apesar disso, Chico Buarque é um poeta. Obviamente ele é um poeta. É impossível dizer que não, diante do que produz.
Saber o nome do gato é apenas uma das faces de Chico Buarque. Há mesmo quem ache que o forte de Chico é a música. Saudosa dos tempos do Luna Bar, em que disputava os "olhos esmeralda" (que ela prefere aos ardósia) de Chico com o mulherio, a compositora Sueli Costa inverte os sinais:
- Como todas, fui apaixonada por Chico. Mas meu amor maior por ele vai no caminho da música. O Chico letrista, infelizmente, encobre o Chico músico, ao passo que, na realidade, os dois se equivalem, no mínimo, em termos de valor. Quando escreve letra para música dos outros, ele psicografa o que a música dos parceiros quer falar. Mas, quando compõe sozinho, a música e as palavras vêm juntas, e aí a coisa fica muito séria. Um sujeito que compôs sozinho "Olê olá" aos 16 anos tem um raro dom.
Milton Nascimento, consagrado como a grande voz masculina do Brasil, adiciona a essas capacidades de Chico o talento para ser dono da própria voz, e construir, com ela, um cantar original e destacado:
- A voz do Chico tem um troço de contar uma história. É uma voz recitativa. Eu tinha muito essa sensação quando gravamos juntos "O que será". Na hora em que entrava a voz dele, parecia a de um orador, um contador de histórias, que transformava a canção, levava-a a uma outra dimensão. Sem falar na beleza da música, quando ele é parceiro de si próprio. Os arranjos, muitas vezes, estragam o que o Chico compõe e canta. O que ele faz é mais bonito. O ideal seria não mexer no Chico, nunca.
Parceiro de clássicos como "Pivete" e "Meu caro amigo", Francis Hime eleva em alguns tons a discussão e chega a ver em Chico um potencial compositor de concertos e sinfonias.
- Eu ficava aqui tocando horas seguidas e ele sentadinho lá, na máquina de escrever. Depois saía mostrando as letras, demorava para estar certo de que a coisa estava boa. Mas falar de letra é covardia. Acho é que o Chico, se quisesse, e acredito que já teve este desejo, seria um grande sinfonista, um grande compositor do ponto de vista formal, ou um grande arranjador. Bastava seguir os passos. Mas são tamanhas a originalidade e a versatilidade do que faz, que ele percebeu que a fonte da sua criação musical é mesmo misteriosa, está num terreno à parte, que deve ser preservado porque é dali que vêm as suas melhores coisas. Ele vai por caminhos que um sujeito já comprometido com um estudo acadêmico nunca seguiria. Se ele aprendesse essas noções, não teríamos a arte do Chico, que fez dele o que é.
Gismonti: "A arte é amiga de Chico, e ele respeita essa amizade"
Os enigmas de Chico levam Egberto Gismonti (que musicou a versão cinematográfica de "Estorvo") a atribuir-lhe um caráter quase divino:
- Não me importa muito se Chico é poeta ou não, se é letrista ou músico. O fato é que Nelson Cavaquinho, Tom Jobim e Chico Buarque são os três compositores que, pelo conjunto da obra, norteiam-me há muitos e muitos anos. O que admiro é o fato de que a arte é amiga de Chico, e não o contrário. E Chico respeita essa amizade com seu caminho de devoção, sacerdócio, contemplação e paciência. Chico é o maior ícone do artista brasileiro contemporâneo. A História reconhecerá isso.
A profecia de Gismonti encontra eco em ensejos inflamados de Caetano Veloso, que vê incompreensão por parte de uma certa intelligentzia em relação à obra de Chico.
- Antes de morrer eu quero que sumam os caras que pensam que são fodões só porque escrevem que não querem ver estudos acadêmicos dedicados a prosa ou verso de Chico Buarque (ou meu!). Quem precisa de trabalhvos acadêmicos? A obra de Chico seguramente os terá, alentados e entusiastas, quando tivermos uma Academia. A exuberância discreta de seu trato com as palavras terá de ser reverenciada quando os ciumentos que atrapalham já estiverem mortos.
Caetano faz uso de veia crítica para apontar suas preferências musicais e poéticas na obra do colega:
- Muitas vezes sinto que a minha canção favorita entre tantas peças perfeitas por Chico Buarque de Hollanda é "Sonho de um carnaval". É um "poemelodia" mais du coté de chez Batista do que du coté de chez Rosa, para tomarmos o modelo da clássica polêmica, embora esse seja um modelo muito simplificador, dada a riqueza da obra buarquiana. Também "Flor da Idade" me impressiona de maneira especial (mas aqui é particularmente a letra): aquela "mesa posta de peixe deixa um cheirinho da sua filha" é talvez seu verso meu preferido. E a série perfeita dos refrãos em que apenas uma letra (sempre a mesma: um erre) entra no primeiro substantivo e o transforma em outro, pertinente, antes da repetição de "o primeiro amor". Assim: "Ah, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor..."/ "Ah, o primeiro copo, o primeiro corpo,o primeiro amor..."/ "Ah, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor..." Como esses refrãos ficam separados uns dos outros por estrofes feitas de versos no nível da "mesa posta de peixe", o texto todo parece Arnaut Daniel.
Parceiro de Caetano no movimento tropicalista, cuja visão estética era oposta ao caminho mais tradicional de Chico, o cantor, compositor, instrumentista e ministro da Cultura Gilberto Gil ligou para ele quando recebeu o convite de Lula, e aconselhou-se.
- Ele disse: "Acho ótimo para o Lula e para o Brasil. Se é bom para você, você é quem sabe". Depois a gente se encontrou, e ele comentou: "Você sabe que eu só disse o que você queria ouvir".
Convidado a focar seu depoimento no aspecto político, Gil vê na obra buarquiana uma síntese de luta e engajamento:
- O nome e a obra de Chico estão ligados à idéia de música de protesto no Brasil. O Chico é o grande símbolo dessa dimensão, por ter ela permeado, de maneira exemplar, toda a sua trajetória. Surgimos juntos com a ditadura, e juntos acompanhamos a redemocratização, mas privilegiamos outros fronts. Chico perseverou, continuou.
Girando o olhar para outros Chicos (como o Chico parceiro em "Cálice" e "Baticum" e na inacabada "Pau de sebo"), Gil enxerga um músico que recupera elementos importantes da tradição, do samba e da canção brasileira clássica. E de um cantor de voz e postura de palco em metamorfose:
- Antes era diferente. Ele adorava cantar e se apresentar. Com o tempo, foi criando um desconforto. Hoje, faz um show como quem vai ao hospital fazer check-up. Mas é tão bom na coisa que assim mesmo o show fica sensacional. E a voz? Se a gente escutar hoje uma gravação como "Carolina", vai perceber que a voz está lá com todos os harmônicos e todo o veludo muito mais projetados. Isso foi sumindo com o passar dos anos. Hoje a voz de Chico é marcada por uma não-descontração, que se incorporou à sua expressividade. Agora, vai perguntar a razão... não sei responder.
Rita: "Quis acreditar que 'Rita' foi feita para mim, mera mortal"
Nesse sentido, Chico e Gil hoje são, na cena, o contraponto um do outro.
- O Chico, quando se apresenta, fica parado ali, quieto, não quer explorar outro elemento relacional com a canção a não ser o estar ali, cantando. Quando vai nos meus shows, depois vem e me diz: "O que você faz é completamente diferente do que eu faço, você faz o diabo, dança, pula, fica ali à vontade. Isso me assusta." - conta, rindo, Gil.
Por telefone, de Los Angeles, Dori Caymmi, antitropicalista emblemático, entra na peleja para embolar o meio-de-campo com uma farpa no ministro. Ou no músico?
- Chico é a prova de que as pessoas não precisam misturar Brasil com Bob Marley tendo um Chico Buarque. Ele já faz parte da História, é da grande turma, de Dorival e Tom. Mas o tempo passa, a gente fica velho e os Bobs Marleys estão mandando. Sem falar nos craques que fazem apologia do hip hop.
Não que Chico seja só Brasil. Sua música está conectada também a matrizes estrangeiras, como ele mesmo afirmou numa entrevista à TVE nos anos 80, causando espécie ao dizer seu fazer musical tinha mais relação com a Europa que com o Brasil. Confrontado com isso, Dori não perde o rebolado:
- Nós somos estrangeiros. Temos uma influência européia. Não temos essa coisa do Martinho, do Pagodinho, de fazer só samba. A gente usou o samba para fazer melodias que são européias. Temos um pouco essa vagabundagem brasileira com molho europeu. E aí dá nessa coisa maravilhosa que é o Chico. Mas a gente não pode esquecer que Bach é pai.
De São Paulo, Rita Lee, involuntariamente, põe pilha na discussão:
- Assim como Nara, Chico não era um tropicalista mas simpatizava conosco, não era um "inimigo indignado" como Geraldo Vandré, por exemplo, e mais camufladamente Edu Lobo... Chico era lindo e tímido, certa vez disse que gostava das minhas sardas e eu em resposta disse que gostava d'aquellos ojos verdes.... Mais tarde quis acreditar que "A Rita" tinha sido feita para mim, mera mortal!... Estive com ele pouquíssimas vezes e sempre fico desconcertada, é uma figura enigmática ao mesmo tempo que criançola... Já tentei cantar alguma coisa dele mas nossos santos musicais não se cruzam muito, apesar de achá-lo um compositor bacanudo para caramba.
A menção a São Paulo de Rita é oportuna para se explorar outro aspecto do enigma buarquiano: o quanto ele é, ao mesmo tempo, profundamente paulista e carioca. O olhar de Caetano, neste particular, pende para Sampa:
- Chico para mim é São Paulo. Aprendi a amar as madrugadas paulistanas com ele e Toquinho. Foi lá que ele cresceu e estudou; foi lá que ele compôs e gravou as canções de seus primeiros álbuns. Somos todos cariocas. Chico não precisa se considerar paulista como eu o considero. Mas São Paulo não pode abdicar de contabilizar sua obra entre as maravilhas que a cidade produziu. Adoniran, Vanzolini, Nogueira, Vassourinha, Chico Buarque... É por isso que uma das emoções mais fundas que experimentei após 60 anos foi ouvir Chico cantan$"Sampa" no maravilhoso disco de Dori.
Marcos Valle, uma das expressões mais eloqüentes do carioquismo, também conheceu Chico em São Paulo.
- Foi nos anos 60, quando fiz minha primeira temporada no João Sebastião Bar, onde tocavam os principais músicos da cidade - recorda Valle, que não sabia quem era Chico mas já impressionava-se com sua figura.
Valle: "Quando o vi com Tom, pensei: 'caramba, virou carioca' "
A impressão que Valle guardou de Chico em Sampa foi bem diferente da Caetano:
- Ele segurava o cigarro de maneira peculiar, elegante mas paulista, séria demais para a idade. Ficava na porta fumando, e de repente seguia o caminho dele. Quando fomos contratados pela TV Record, eu ainda achava sua música paulistona. De repente, comecei a vê-lo no Antonio's, cercado de figuras como Vinicius, Tarso de Castro, Roniquito, Carlinhos de Oliveira. Aí tudo começou a mudar, a presença na cena cultural do Rio, a paixão pelo Flu e pelo futebol em geral. Quando se juntou com o Tom, eu falei: "Ih, caramba, agora vai virar carioca mesmo...". E fui percebendo em muitas músicas a ligação com Noel, com a Lapa, com Moreira da Silva, o modo moleque como tratava assuntos sérios.
Em 1971, em conseqüência do episódio do manifesto contra a Censura durante o festival da TV Globo, Marcos Valle e Chico (Gismonti também estava nessa) viveram juntos uma experiência exra-musical.
- Fomor recolhidos, os três, no mesmo camburão. No Dops, o Chico disse que não falava com general. Gismonti foi na aba do Chico. Na hora que o milico entrou, adivinha quem teve que soltar o verbo? Combinei que voltaríamos com os outros signatários em quatro dias. Quando chegou a hora, todos foram para o Zepelin em vez de comparecer. Aí apareceu a Marieta chorando com os filhos, dizendo que estava sendo ameaçada, e mudamos de idéia. Esse episódio nos aproximou, e tornou Chico, definitivamente, um amigo carioca.
Gismonti, então, que espante as trevas do general com uma mensagem de encerramento:
- Não sou exatamente da mesma geração. Tenho cinco anos menos. Quando veio "A banda", eu era um menino ouvindo rádio em Friburgo. Os 60 de Chico são um momento muito alegre, ao qual todos devem se juntar em reverência.
O Globo - Junho/2004
Hugo Sukman
Miguel Faria Jr. não acha que "Para viver um grande amor" seja propriamente seu melhor filme. - Mas é inteiramente por culpa minha, que não fiz o filme direito, a idéia era ótima - ri Miguel, um dos amigos mais próximos de Chico, com quem janta pelo menos uma vez por semana, e que atribui grande parte da tal ótima idéia ao seu co-roteirista, ele mesmo, Chico Buarque. - A idéia era adaptar o musical de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, "Pobre menina rica", a um outro Brasil, um Brasil em grave crise, em que os ricos fugiram para o exterior e os pobres começaram a ocupar os prédios vazios. Neste contexto se dá a história de amor entre o mendigo ( Djavan ) e a menina rica ( Patrícia Pillar ).
Imaginar a adaptação da história de amor criada por Vinicius, concebida para se dar num terreno baldio da idílica Ipanema dos anos 60, para um Brasil em plena conflagração social dos anos 80 é mesmo uma boa idéia cinematográfica. A atividades evidentemente mais conhecidas de Chico, como a canção, a literatura, o teatro, o futebol, etc. então some-se essa, a de roteirista.
Chico participou da feitura de pelo menos três roteiros filmados: "Quando o carnaval chegar" (1972), de Cacá Diegues, no qual vive, ao lado de Nara Leão e Maria Bethânia, o papel de um artista mambembe; "Para viver um grande amor" (1983); e "Ópera do malandro" (1985), adaptação de sua mais famosa peça para o cinema, dirigida por Ruy Guerra. Colaborou ainda no argumento de "Os saltimbancos trapalhões" (1981), também inspirado no musical infantil "Os saltimbancos", adaptado por ele para os palcos nos anos 70. Em todos os filmes, naturalmente, Chico fez as canções.
Cacá transformou compositor em roteirista
Cacá Diegues foi o primeiro a convocar Chico para escrever para o cinema. E o fez não só pela amizade e proximidade - Nara Leão, mulher do cineasta na época, foi a primeira grande intérprete de Chico - mas por ver no compositor a "encarnação da utopia brasileira".
- Chico é o sonho da conciliação brasileira, que une o erudito ao popular, a alta cultura à cultura de massas, etc., esse projeto mário-andradiano que ele prossegue - diz Cacá, que encomendou para seus filmes canções que virariam clássicos do repertório buarquiano, "Bye bye Brasil", "Joana Francesa", além das sete canções do score de "Quando o carnaval chegar". - Em 1972, quando cheguei do meu exílio voluntário em Paris, reencontrei um Brasil deprimido, fracassado. Quis fazer um filme que celebrasse a alegria, a música e a vontade de viver como elementos revolucionários. Pensei logo no Chico, e na Nara e na Bethânia como símbolo da força da música brasileira, da alegria.
Cacá, Chico e Hugo Carvana criaram então uma espécie de dramaturgia da alegria brasileira, inspirada nas chanchadas da Atlântida.
- E não é que eu tenha transformado o Chico em ator, na verdade a gente apenas criou uma dramaturgia e eu documentei Chico, Nara e Bethânia vivendo aquilo - diz Cacá. - Mas o bom mesmo era estar com Chico. Conviver com ele, jantar com ele, com aquele humor, aqueles comentários ferinos já é divertidíssimo. Trabalhar é melhor ainda.
Essa "dramaturgia da alegria" da trupe de artistas que se diverte na tela para desanuviar o peso da ditadura em "Quando o carnaval chegar", a música e o humor para satirizar o imperialismo americano no Brasil de "Ópera do malandro", o humor infantil para mostrar a crueldade do capitalismo selvagem em "Os saltimbancos trapalhões" e o lirismo da história de amor em meio à convulsão social brasileira de "Para viver um grande amor" revelam um roteirista curiosamente coerente. Alguém que recorre às formas tradicionais de entretenimento, sobretudo o musical, para abordar os problemas reais.
- O que o Chico busca é a linguagem do musical - diz Miguel Faria. - Ele, o Edu Lobo e eu falamos em fazer mais musicais até hoje, mas, não sei bem por quê, ninguém mais quer fazer musicais.
Chico escreveu quase 50 canções especialmente para filmes. A primeira memorável foi "Um chorinho", para "Garota de Ipanema" (1967), de Leon Hirszman, no qual faz uma ponta como ele mesmo, o jovem compositor que acabava de voltar de São Paulo para o Rio. Mas foi depois do exílio e da experiência em "Quando o carnaval chegar" - cujo score traz clássicos como "Partido alto" a maravilhas não tão lembradas, como "Baioque" (que usa de forma inusitada metáforas sertanejas, "Quando rio/Rio seco/Como é seco o sertão/Meu sorriso/É uma fenda escavada no chão") - que Chico virou um autor de canções-tema para o cinema brasileiro.
- "Vai trabalhar, vagabundo" tinha uma carga de ironia, de picardia, que era natural chamar o Chico para fazer a música, além de ele estar muito próximo naquela ocasião - diz o diretor do filme, Hugo Carvana, amigo de juventude de Chico, a quem já havia dirigido em show, e que lhe apresentou à futura mulher Marieta Severo. - Mas, tirando a proximidade, o fato de ele ter visto o roteiro nascer, o Chico é um compositor ideal para o cinema, pois ele conversa muito, conhece os personagens, tem total noção dramática.
Temas para filmes viraram clássicos
Todos os temas que Chico faria para o cinema, a partir dali, seriam uma seqüência impressionante de clássicos: a valsa bilíngüe "Joana Francesa"; "A noiva da cidade" (com Francis Hime) reproduzindo aquela inocência maliciosa do universo de Humberto Mauro homenageada no filme de Alex Viany; "O que será", na verdade um tríptico - "Abertura", "À flor da Terra", "À flor da pele" - sobre a convulsão interior da personagem de Sonia Braga em "Dona Flor e seus dois maridos", de Bruno Barreto, maior sucesso da história do cinema brasileiro; "Bye bye Brasil" (com Roberto Menescal), uma nova aquarela; "Eu te amo" (com Tom Jobim), sua mais linda canção de despedida.
Exerceria, também, o tal talento dramático de que fala Carvana, fazendo músicas para personagens. Para o policial carioca "República dos assassinos", o primeiro filme de Miguel Faria Jr. em que Chico faria canções de amor estranhas e opostas: o bolero "Sob medida", uma canção de amor da prostituta vivida por Sandra Bréa para o policial do esquadrão da morte interpretado por Tarcísio Meira, e o xaxado "Não sonho mais", uma estranha declaração ("Ai amor, não grita/ai não me castiga/Ai, diz que me ama e não sonho mais", diz, depois de sonhar que está torturando seu amor) feita por um travesti (Ancelmo Vasconcelos) para o mesmo policial.
Ainda viriam scores inteiros para musicais como "Os saltimbancos trapalhões" e "Ópera do malandro", totalmente diferentes das canções feitas para o teatro, e a obra-prima de sua produção para o cinema, em parceria com Djavan e Tom Jobim, "Para viver um grande amor", de onde são "Imagina", "A violeira", "Meninos, eu vi", "Tanta saudade", "Sinhazinha", "Samba do grande amor", tanta música boa.
Chico nunca parou de fazer música para cinema - só no período pós-retomada fez "A ostra e o vento", "Forrobodó" (com Edu Lobo, para "Xangô de Baker Street") e "Lara" (com Dori Caymmi) - mas ultimamente tem trabalhado até como ator, reencarnando Noel Rosa no "Mandarim" de Julio Bressane ou sendo uma das faces do Silva, o especialista em disfarces procurado em "Ed Mort". De Cauby Peixoto a Zé do Caixão, o Silva adquire várias aparências do filme. Nenhuma tão inesperada quanto a do compositor que, cinematograficamente, Glauber Rocha comparou a um Errol Flynn que desembanhava sua espada contra a ditadura.
O Globo - Junho/2004
João Máximo
"Atrás da porta", "Olhos nos olhos", "Trocando em miúdos", "De todas as maneiras", "Meu guri" não foram feitas para teatro, mas bem poderiam ter sido. Todas têm o movimento, a força visual, o conteúdo dramático, o começo-meio-e-fim de breve texto teatral, só que vestido de música. É dos traços que fazem de seu autor, Chico Buarque, o mais ativo e bem-sucedido nome criativo do teatro musical brasileiro, mesmo quando muitas de suas melhores canções não são escritas para palco.
Por vocação, acaso ou o que seja, o teatro desde cedo faz parte de sua vida e de sua obra. Da vocação nos dão conta as lembranças familiares das operetas que o menino escrevia em parceria com a irmã Miúcha, lá pela década de 50. O acaso está no fato de "Tem mais samba" - oficialmente o seu opus número um - ter sido feito por encomenda para "Balanço de Orfeu", peça de Luís Vergueiro, produzida em São Paulo em fins de 1964.
Embora o artista consagrado viessem a ser o compositor e o letrista dos discos, dos recitais e dos programas de TV, quase sempre intérprete dele mesmo, o Chico Buarque-homem de teatro de fato tem sido, de várias maneiras, atuante. Musicando poesia alheia, escrevendo letra para música de parceiros, compondo música e letra a quatro mãos, vertendo canções teatrais para o português ou cuidando de tudo sozinho, texto, música e letra, nenhum outro tem feito tanto e tão bem. Como se disse, até em canções independentes que funcionam como breves cenas musicais.
- Realmente há teatralidade em muitas de suas canções - concorda o poeta Ferreira Gullar, autor com Dias Gomes de "Doutor Getúlio", uma das peças para as quais Chico escreveu canção. - Como ele fez música antes de fazer teatro, é possível que suas letras tenham aberto caminho para seus textos teatrais.
O crítico Sabato Magaldi, mesmo sem chegar a ressaltar o caráter dramático das canções de Chico, ao menos admite que a relação possa existir.
- Chico é maravilhoso compositor com canções de primeiríssima ordem - observa. - É pena que não se tenha dedicado mais ao teatro.
A dedicação a que se refere o crítico fez-se cada vez menor à medida que o compositor e o letrista foram prevalecendo. De início, a relação música & teatro era mais estreita do que aparentava. Não se pode deixar de lembrar que, pouco depois de "Tem mais samba", Chico já estava musicando os versos de "Morte e vida severina", adaptação para o teatro musical do auto de Natal de João Cabral de Melo Neto. Encenada em setembro de 1965, "Morte e vida severina" aconteceu na mesma época em que Chico aceitava compor tema incidental para "Os inocentes", de Maxim Gorki, produção do Teatro Oficina (mais tarde letrado pelo próprio Chico, o tema ainda viraria canção de ninar), e na mesma época também em que já tinha prontas "Pedro pedreiro", "A Rita", "Ole olá" e outras canções que integrariam seu primeiro e já arrebatador LP. Enfim, música & teatro caminhando juntos.
Menos de três anos depois, já sendo um nome nacional como compositor, o homem de teatro se assumiu por inteiro pela primeira vez, responsável por texto, música e letra de "Roda viva", uma reflexão sobre sua própria condição de ídolo popular esmagado pelas engrenagens da indústria cultural. O espetáculo, que estreou no Teatro Princesa Isabel em janeiro de 1968, ganharia notoriedade mais pela audaciosa direção de José Celso Martinez Correa. Mais notoriedade ainda tiveram os acidentes políticos vividos pela peça em São Paulo e em Porto Alegre, incluindo destruição de cenários, repressão policial e até espancamento e seqüestro de atores.
A teatralidade do cancionista passaria por um recesso de quatro anos. O reencontro ocorreu quando aceitou traduzir, com a colaboração de Ruy Guerra, o texto de "Man of La Mancha", musical de Mitch Leigh e Joe Darion, sucesso da Broadway em 1966 e inauguração do Teatro Bloch em 1972.
Foi a primeira experiência de Chico como versionista de teatro (a última seria a balada "Die Moritat von Mackie Messer", convertida em samba na abertura e no fim da "Ópera do malandro"). De certa forma, foi mais um desafio que uma experiência. Em vez de uma tradução literal, palavra por palavra, ou de preocupar-se em respeitar os sons originais, Chico recriou letras rigorosamente dentro do sentido que a peça exigia, mas com sua própria poesia. Pouco importa que para isso tenha optado por acentuações suas (a da palavra nem sempre coincidindo com a da música) e por quase imperceptíveis alterações na melodia para que seus versos a ela se ajustassem. O melhor exemplo disso está na canção principal "O sonho impossível", em que ele transita por entre os versos em inglês de Darion e os da versão francesa de Jacques Brel, sem cair na tentação de seguir-lhes as pegadas. Resultado: em muitos momentos o Quixote brasileiro tem mais força que os de outras terras.
Claudio Botelho - dos mais requisitados versionistas do teatro atual, responsável, como ator, diretor e produtor, de remontagens de peças de Chico, entre elas a produção em cartaz, revista, aumentada e enriquecida da "Ópera do Malandro" - é um dos que acham "O sonho impossível" exemplar.
- Acho que a partir do Chico nosso teatro rompeu com as formas antigas de versão, que evitavam versos na ordem direta, não se preocupavam com as rimas, não atentavam para o fato de que, em letra de música para teatro, a forma está a serviço do conteúdo - diz ele.
Com Edu Lobo, musicou dois espetáculos de dança
Converter "Medéia" num musical era idéia antiga de Oduvaldo Vianna Filho que Paulo Pontes (o diretor de "O homem de La Mancha") mantivera viva depois da morte do amigo. Chico escreveu todas as canções, música e letra, e colaborou com Pontes na adaptação do texto. Bibi Ferreira, a nova Medéia, recorda:
- O Chico Buarque de "Gota d'água" está muito ligado ao meu melhor momento. Foi quem me deu meu maior trabalho, meu canto mais alto.
O êxito do musical, estreado em 1977, não foi o bastante para fazer Chico esquecer a frustração vivida um ano antes com a proibição pela Polícia Federal de "Calabar, o elogio da traição", música sua, texto seu e de Ruy Guerra, sobre um pernambucano que no século XVII aliou-se aos invasores holandeses contra colonizadores portugueses e foi por isso enforcado como traidor, condição que, no mínimo, os autores questionavam.
Ao público sonegava-se o melhor trabalho de Chico Buarque para o teatro musical até então. Problema que o LP lançado meses depois, com o próprio Chico cantando todas as canções, atenuava em parte. O disco, hoje em CD, é obrigatório para que se conheça melhor o teatro de Chico Buarque. Resistem nele preciosidades como "Tira as mãos de mim", perfeito texto dramático em forma de canção. Ou ainda "Tatuagem", na qual a sensualidade se antecipa à tragédia que está por vir.
Chico não teve mais problemas com a censura em seus musicais a partir de "Gota d'água". É verdade que um deles, de 1977, a versão para o português do italiano "Os saltimbancos", de Luis Bacalov e Sergio Bardotti, era uma peça infantil. Os tempos, contudo, tornavam-se menos sombrios, de modo que "Ópera do malandro", destinada a ser seu maior sucesso (viraria filme e ganharia a citada remontagem recente), pôde falar de política sem maiores percalços. Outras obras-primas do teatro buarquiano, se se pode dizer assim, estão no repertório: a irreverente "Tango do covil", a descrente "Viver do amor", a anti-romântica "Folhetim", a insolente "Se eu fosse o teu patrão", a comovente "Pedaço de mim", uma após outra numa formidável coleção.
Do musical seguinte - "O rei de Ramos", texto de Dias Gomes, música de Francis Hime, letras de Chico, produzido em 1979 - não resultou nenhuma canção destinada a ter vida própria fora da peça, com toda a qualidade que há pelo menos em "Dueto", só de Chico. A mesma sorte teria "Cambaio", de 2001, texto de João e Adriana Falcão, canções de Edu Lobo e Chico, até aqui o último trabalho dos dois últimos para o teatro. Mas Chico e Edu já tinham a seu crédito excelentes trabalhos juntos para poderem se permitir "Cambaio". É o caso de "O corsário do rei", de 1985, do qual bastaria citar uma das 12 canções para atestar a excepcionalidade do roteiro musical: "Choro bandido".
Também de Edu e Chico são dois espetáculos de dança cantados, ambos encomendados pelo Ballet Guaíra de Curitiba. "O grande circo místico", de 1982, é talvez o ponto mais alto da obra teatral da dupla. Grandes canções contextuais são "Valsa dos clowns", "A história de Lily Braun", "Ciranda da bailarina", "Sobre todas as coisas" e, pelo menos no nível de obras-primas, "Beatriz", bela construção melódico-harmônica de Edu e aquela letra que um estranho acaso levou Chico a usar a palavra céu na nota mais alta e chão na mais baixa. "Dança da meia-lua", de 1988, pode não ser trabalho tão brilhante, mas são do melhor Chico com Edu várias canções e mais uma obra-prima, "Valsa brasileira".
Sozinho ou com parceiros vários, Chico Buarque teve canções interpoladas em várias peças de teatro, musicais ou não. A qualidade é sempre a mesma. Os textos de alguns de seus musicais, naturalmente incluindo as letras, já estão publicados em livro. O que não deve significar tanto para o autor, compositor e letrista para quem sua obra poética não é necessariamente poesia. Ou seja, não existe para funcionar no papel, sem a música para a qual foi feita. Ferreira Gullar concorda:
- Chico sabe das coisas. Poesia é uma coisa e letra de música, outra. O poeta já incute em seus versos todos os elementos necessários para que eles funcionem por si mesmos. O letrista está preso à música, limitado por ela.
Gullar lembra que, no teatro, as limitações são ainda maiores:
- No teatro, a palavra está ligada à ação dramática. Se os versos da canção não têm nada a ver com a história, com o personagem, com a cena que ilustram, não significam coisa alguma. Chico entende isso muito bem. Veja o quanto de ação dramática há naquela canção que diz: "Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria..."
Versos de "Quem te viu, que te vê", outra canção que Chico não escreveu para o teatro.
Revista Época - Junho/2004
Graziela Salomão
Ele já foi considerado 'unanimidade nacional', chamado de 'alienado' pelos tropicalistas e invocado como 'a voz dos exilados brasileiros'. Hoje, é 'apenas' uma referência obrigatória em qualquer citação à música brasileira a partir dos anos 60 e foi eleito recentemente o músico brasileiro do século. Esse é um mero resumo do papel de destaque na música nacional exercido por Francisco Buarque de Hollanda, ou melhor, Chico Buarque. Nos últimos quarenta anos, não há como separar a influência poética, harmônica e melódica de suas composições do amadurecimento da MPB. Chico também fica marcado na música brasileira como o homem que melhor conseguiu compor como mulher. 'Mulheres de Atenas' é uma das pérolas de seu lirismo feminino.
Chico Buarque, atualmente, não é só o compositor de Construção ou o intérprete de A Banda. Ele conseguiu ampliar suas investidas e produzir trabalhos de muita profundidade como poeta e escritor.
Em comemoração aos seus 60 anos, a BMG lança a caixa Francisco, com doze CDs e dois DVDs, reunindo todos os discos de Chico lançados pela gravadora desde que ele passou a fazer parte de seu cast, em 1987.
Berço de ouro
Chico nasceu no dia 19 de junho de 1944, no Rio de Janeiro. Foi o quarto de sete filhos do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda e da pianista amadora Maria Amélia Cesário Alvim. Com dois anos de idade, mudou-se com a família para São Paulo, onde o pai assumiria a direção do Museu do Ipiranga.
A infância de Chico Buarque ainda seria completada em Roma, para onde foi aos nove anos de idade, quando o pai fora convidado a dar aulas na Universidade de Roma. Na Itália, Chico tornou-se trilingüe, uma vez que estudava em escola americana, conversava com os colegas em italiano e, em casa, falava o português. É no país, também, que começou a escrever suas primeiras 'marchinhas de carnaval'.
A formação cultural do pequeno Chico seria composta, ainda, pelas constantes visitas de figuras importantes do cenário artístico brasileiro, como Vinicius de Moraes, Baden Powell e Oscar Castro Neves, por intermédio de seu pai ou pela amizade à sua irmã mais velha Miúcha.
A volta ao Brasil - a música delineia-se em sua vida
No meio dos anos 50, Sérgio Buarque de Hollanda volta com a família para o Brasil. Chico começa a dar seus primeiros passos no mundo da música, escrevendo pequenas 'operetas', as quais cantava com suas irmãs mais novas Ana, Cristina e Pii.
Os sambas tradicionais de Noel Rosa, Ismael Silva e Ataulfo Alves eram os preferidos do jovem Chico, junto com as canções estrangeiras, que faziam sucesso na época, de artistas como Elvis Presley e The Platters. Mas, sua relação com a música foi definitivamente influenciada por João Gilberto e seu disco Chega de Saudade. Chico dizia que seu sonho 'era cantar como João Gilberto, fazer música como Tom Jobim e letra como Vinicius de Moraes'. Mal sabia o garoto que, algumas décadas depois, ele desbancaria esses grandes nomes e seria considerado o músico do século no Brasil.
Ainda sem se decidir pela música, Chico ingressou em 1963 na FAU - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Mas, sua turma gostava era mesmo de um bom samba e cachaça e, no terceiro ano do curso, Chico abandonou a faculdade.
Em 1964 aconteceria a estréia de Chico na música, cantando 'Canção dos Olhos' em uma apresentação no Colégio Santa Cruz. O ano seguinte delimitaria, definitivamente, a incursão de Chico Buarque no cenário musical do país com seu primeiro compacto - com a música 'Pedro Pedreiro' - e com o convite de Roberto Freire, diretor do TUCA, para musicar o poema 'Morte e Vida Severina', de João Cabral de Mello Neto. Esse foi um sucesso e, durante excursão pela Europa, a peça conquistou o festival de teatro universitário de Nancy, na França.
A vida de Chico Buarque de Hollanda
Os festivais e o endurecimento do país
Os festivais de música que aconteciam nos anos 60 eram a mostra do turbilhão criativo intelectual e artístico pelo qual o país passava. Os compositores escreviam e interpretavam suas músicas fervorosamente. Chico tornava-se uma celebridade no país com várias de suas músicas inscritas nos festivais. 'A Banda', por exemplo, foi uma das vencedoras do II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record e propiciou o reconhecimento de Chico em várias partes do Brasil e até mesmo do exterior. Carlos Drummond de Andrade chegou a se referir ä música como a marchinha, 'tão antiga em sua tradição lírica', que trazia ao país o amor de que ele precisava. Foi a glória para Chico: com apenas 23 anos, ele conquistava um público diversificado, tinha depoimentos gravados no Museu da Imagem e do Som e, segundo Millôr Fernandes, tornara-se a única 'unanimidade nacional'.
Enquanto o cenário cultural se voltava para um momento de grande criatividade e qualidade, o país sofria o endurecimento da ditadura. Às vésperas do AI-5, que instauraria de vez um duro regime militar, os envolvidos na produção cultural eram 'obrigados' a tomar posições. Enquanto de um lado o tropicalismo propunha um rompimento estético com o belo e uma absorção do que também era considerado feio, a música de Chico tendia para o que ainda era bonito. Mesmo suas composições mais nostálgicas declamavam uma alegria contagiante.
Chico começou a ser criticado como 'alienado'. Sua música 'Bom Tempo' foi vaiada, pois não era possível falar em dias claros enquanto o céu brasileiro escurecia com a mancha da ditadura. 'Sabiá', uma parceria de Chico e Tom Jobim, recebeu a maior vaia da história dos festivais em 1968 e, mesmo assim, foi escolhida vencedora, desbancando o hino da oposição 'Pra Não Dizer que Não Falei das Flores', de Geraldo Vandré. Mas, a premonitória 'Sabiá' teria seu valor reconhecido tempos depois, quando se tornou um hino dos exilados brasileiros pela ditadura.
O alienado cercado pela ditadura
Chico Buarque promoveu um auto-exílio em Roma, onde a gravadora tinha um plano de divulgação de seu trabalho pela Europa. Lançou dois discos fora do Brasil, que não obtiveram sucesso. Em 1970, voltou ao país e lançou seu quarto LP, marcado por um amadurecimento de seu trabalho. Chico deixou de lado o lirismo nostálgico e descompromissado que antes o identificava, e suas letras passaram a transmitir um protesto político mais duro ao regime ditatorial em que o Brasil estava imerso. 'Apesar de você' registra essa nova fase do compositor. 'Apesar de você/Amanhã a de ser outro dia' dizia a canção em uma referência implícita ao general Emílio Garrastazu Médici, então presidente da República, cujo governo foi marcado pelas mais atrozes barbaridades cometidas contra os opositores do regime.
Muitas músicas de Chico começaram a ser barradas pela censura. Como forma de burlá-la, o compositor decidiu criar um personagem heterônimo chamado Julinho de Adelaide, fazendo com que suas canções passassem com maior facilidade pelos censores. A estratégia surtiu efeito e músicas como 'Acorda, amor' e 'Milagre brasileiro' passaram sem maiores problemas. Entretanto, uma reportagem publicada em 1975 pelo Jornal do Brasil desmascarou o verdadeiro Julinho de Adelaide.
Por outros mares
Chico Buarque procurou outras formas de artes pelas quais pudesse se expressar. Chegou a atuar no filme Quando o Carnaval Chegar (1972), de Cacá Diegues, produzir a trilha sonora de Vai Trabalhar Vagabundo, de Hugo Carvana e escrever o roteiro e as músicas da peça 'Calabar', com Ruy Guerra.
Em 1978, Chico conquistou o Prêmio Molière como melhor autor teatral do ano com a peça 'A Ópera do Malandro', com texto e música escritos por ele. Chico também ingressou no campo da Literatura com obras como a novela 'Fazenda Modelo', em 1974, e 'Estorvou', em 1991.
Os anos noventa se anunciaram como um divisor de águas para parte daqueles que fizeram a MPB dos anos 60 e 70. Chico, Caetano e Gil foram segmentados e o popular perdeu a dimensão desses artistas, fazendo com que suas músicas ficassem voltadas para uma pequena parcela da população brasileira de classe média.
CURIOSIDADES
Chico é apaixonado por futebol e torce freneticamente para o Fluminense. Entretanto, seu ídolo no esporte vestia a camisa alvinegra do Santos: o número 9 Paulo César de Araújo, o Pagão. Até hoje, quando joga pelo seu time Politheama, Chico veste a camisa nove em homenagem ao jogador.
Quando jovem, Chico gostava de ler os clássicos da literatura francesa, alemã e russa e só se interessou pela literatura nacional quando um colega de escola o criticou por ler apenas livros estrangeiros.
Chico Buarque envolveu-se com um grupo ultraconservador da igreja chamado 'Ultramontanos'.
Chico foi casado com a atriz Marieta Severo com quem teve três filhas: Sílvia, Helena e Luiza. Em 1997, após trina anos de união e boatos de casos extraconjugais de Chico, o casal se separou.
Revista Época - Junho/2004
Martha Mendonça
Ao completar 60 anos, o compositor ganha exposição, dois livros e caixa com 12 CDs e DVDs
Sem cabotinismo
Avesso a homenagens, ele vai comemorar o aniversário com a família, em Paris
''Não sou cabotino a ponto de fazer uma auto-homenagem.'' Assim Chico Buarque foge das entrevistas sobre os eventos comemorativos de seus 60 anos, a ser completados no dia 19. O compositor vai soprar as velas com a família, em Paris. Enquanto isso, no Brasil, não vai faltar comemoração pelo aniversário do artista, que desafia a máxima de Nelson Rodrigues - torcedor do Fluminense como ele. Em se tratando de Chico, pode ser que a unanimidade não seja burra. ''Existe um respeito ímpar por esse artista, que, além da obra, é exemplo de cidadão. É uma referência ética'', diz o professor Rinaldo Fernandes, organizador de Chico Buarque do Brasil - Textos sobre as Canções, o Teatro e a Ficção de um Artista Brasileiro.
Por mais que já se tenha falado em Chico ao longo de quase quatro décadas, sempre há uma nova forma de olhar. Em Sobre Chico, nas livrarias a partir desta semana, o jornalista Fernando de Barros e Silva define o compositor como a representação de uma utopia perdida depois da ditadura. Uma ponte entre os anos dourados do desenvolvimentista Juscelino Kubitschek e a amargura dos anos de chumbo. 'O Brasil se reconcilia consigo mesmo na obra de Chico Buarque', diz o autor. Ele acredita que existem poucos trabalhos a respeito do compositor, se comparados com o gigantismo de sua obra e sua importância histórica. 'Estudou-se muito o tropicalismo, por exemplo, mas Chico é um movimento de um homem só', diz.
Grande parte da obra desse artista único está na caixa Francisco, que a BMG, sua gravadora, lança até o fim deste mês. São 12 CDs e dois DVDs de seus principais trabalhos desde 1987. Discos como Paratodos, Uma Palavra e As Cidades, entre outros da fase mais recente de sua carreira - e a 'musicalmente mais madura', como ele mesmo define -, misturam-se aos dois únicos DVDs: Chico e o País da Delicadeza Perdida, dirigido por Walter Salles para a TV francesa, em 1990, e o registro do show As Cidades em São Paulo, em 2000. Junto com a caixa, um encarte com texto do jornalista Mauro Dias traz curiosidades - como o fato de ter sido de Chico a idéia da capa do CD Paratodos, famosa pelos instantâneos de gente anônima. Há ainda depoimentos do artista sobre seu processo criativo, suas influências e a paixão pela escola de samba Mangueira.
Lançamentos mostram formas diferentes de olhar o compositor
Chico, cada vez mais reservado sobre sua intimidade, terá vida e obra expostas numa mostra audiovisual da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, a partir de julho. Haverá fotos de família, imagens de seus trabalhos para teatro e cinema, uma recriação do escritório de seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, além de todas as suas músicas à disposição dos visitantes. Um dos segmentos da exposição aborda a ligação de Chico com o futebol e recria, num painel, a linha de seus sonhos: Pelé, Garrincha, Didi, Pagão e Canhoteiro, como ele mesmo canta na música 'O Futebol'.
E o futebol, é claro, também homenageia os 60 anos de Chico com um programa especial no canal a cabo ESPN. Na data de seu aniversário, um sábado, a emissora apresenta, às 13 horas, o especial inédito O Bom e Velho Chico. O programa reúne imagens e depoimentos de arquivo, como a entrevista dada a Tostão, em Paris, durante a Copa de 1998, e cenas de suas tradicionais peladas com o time Polytheama. Chico pensou seriamente em seguir a profissão, fez até teste para o Juventus, em São Paulo, e jogou numa equipe semiprofissional na Itália, em 1969. Acredita que há uma característica brasileira de 'músicos que querem ser jogadores de futebol e jogadores de futebol que querem ser músicos'. Se vale a comparação, Chico é o Pelé da música popular brasileira.
Folha de São Paulo - Junho/2004
Luiz Fernando Vianna
Da sucursal do Rio
A cantora Ana de Hollanda recorda a cena: o irmão chega em casa, todo prosa por ter sido reconhecido na rua, e faz pose para perguntar: "Você está me achando com cara de Chico Buarque?". Era 1965, ele tinha 21 anos e saboreava seus primeiros sucessos. Hoje, unanimidade nacional, ele certamente adoraria ser Chico Buarque sem ter a cara tão conhecida de Chico Buarque.
"É significativo que o personagem de "Budapeste" seja um ghost-writer que se isola para escrever e pode observar o resultado daquilo que escreve sem se expor. É o que ele gostaria para ele", diz a amiga Regina Zappa, jornalista que escreveu um livro sobre Chico para a série Perfis do Rio.
Nesse quesito, ele certamente inveja o amigo Rubem Fonseca, que anda pelo Rio sem ser reconhecido. Mas Chico não chega a ser recluso. Caminha no calçadão da praia quase diariamente: do Leblon, onde mora, até o Arpoador, onde costuma mergulhar. Janta uma vez por semana com os amigos Edu Lobo, Miguel Faria Jr. e Ruy Solberg. Só se expõe menos. "Ele está muito mais caseiro", reconhece a primogênita Sílvia, 35. Chico já deixou a boemia faz tempo. Em tempos de democracia, não se sente mais obrigado a exercer um papel político permanente. Está livre para ter uma vida mais privada do que pública.
Até pouco tempo, nem e-mail e celular tinha. Hoje já tem, mas não usa muito. Prefere ver filmes e futebol no home theater, ler e escrever. Mas essa rotina mais de escritor do que de músico parece estar chegando ao fim.
"Ele só vai se sentir liberado quando acabarem todos os compromissos ligados ao livro ["Budapeste']", diz Regina Zappa.
Certamente antes de 2005 não haverá novo disco, muito menos novo show. Voltar à música significa ficar mais exposto e lidar com cobranças do senso comum.
"Ficam me perguntando: "Por que você não faz aquelas músicas de antes?". Não faço porque eu já fiz, quero fazer coisas diferentes", disse ele numa entrevista de 1995.
Além da literatura, o perfeccionismo é um fator que explica a diminuição da produção musical. E, como em todo processo criativo, insegurança também existe.
"Eu me lembro de ele me perguntar uma vez se tinha gostado de um disco dele", conta Ana de Hollanda. "Eu disse "é claro", e comentei algumas coisas. Jamais imaginei que ele ainda precisasse disso. Mas ele falou: "Se as pessoas não falam, como eu vou saber?'".
As irmãs Ana, Cristina e Maria do Carmo, a Piii, atuavam no coro das primeiras experiências musicais do adolescente Chico. Os irmãos Sérgio e Álvaro sempre adoraram música, mas sem tocar instrumento. Miúcha, a primogênita de Sérgio Buarque de Hollanda e de Maria Amélia, foi a primeira a aprender violão e saiu de casa para casar com João Gilberto. "Mamãe não gostava da idéia de a gente ter a música como profissão", conta Miúcha, lembrando que o pai era mais simpático à idéia. Ana recorda, emocionada, que o pai ficou tentando se lembrar da letra de "O que Será" na sua última noite de vida, em 1980. E era comum ele exaltar achados poéticos do filho. Achados tão poderosos que deixaram os outros artistas da família numa sombra. "Mesmo eu, que era mais velha, era tratada como "irmã do Chico". Diziam: "Coitadinha, não tem olho verde'", diz Miúcha, rindo. Ela e Ana evitaram o Buarque para criar uma diferença.
A família participa da exposição que comemora os 60 anos de Chico, em julho, na Biblioteca Nacional. O curador é o sobrinho Zeca, que tem reunido fotos e imagens de TV pouco ou nada conhecidas.
Folha de São Paulo - Junho/2004
Danuza Leão
Colunista da Folha
Encontrar Chico Buarque em algum lugar -qualquer lugar- cria sempre uma tensão. Mesmo nunca tendo visto Chico, todo mundo sabe quem ele é, acha que conhece e, num momento de distração e deslumbramento, cumprimenta (mas poucos ousam pedir seu autógrafo). Há os que nem olham, para fingir que estão respeitando sua privacidade, mas é impossível ignorar a presença de Chico.
Quando ele chegou ao Rio vindo de São Paulo, ainda garoto, freqüentava o Antonio's, que era o segundo lar dos boêmios da cidade; sentava com os amigos e durante a madrugada era o troca-troca de mesa -como todo mundo, aliás.
Nesse tempo, no Rio, os shows brotavam assim, do nada: uma noite era na Faculdade de Arquitetura, outra, num teatro meio abandonado, e houve uma no colégio Sacré Coeur de Marie, onde Chico cantou. Os brotinhos babaram, mas ele saiu correndo apavorado.
Quando começou a se profissionalizar, morou na rua Prado Jr., uma espécie de Boca do Lixo do Rio, para ficar perto da boate Arpège, uma muvuca onde se apresentava. D. Maria Amélia, sua mãe, achava a boate chiquíssima, talvez por causa do nome.
Seus amigos são verdadeiros anjos de guarda e construíram uma sólida proteção em volta do seu ídolo. Se alguém pergunta a algum deles de que cor são os olhos de Chico, vai ouvir um "não sei". E tem filhos? Não sabem. É compositor? Também não sabem, nunca ouviram falar: fidelidade é isso aí.
Segundo Ruy Guerra, Chico não existe, é ficção, e bem que pode ser. Ele é um mistério: nem precisa dar entrevistas, pois todo mundo sabe o que pensa, o que acha de quase tudo e em quem vota. Sorri muito, mas não fala: para escutar sua voz, só ouvindo um CD.
Chico foi responsável por grandes paixões e dores de cotovelo que pareciam eternas, quando as moças ouviam suas canções. Quem não cantou baixinho "mas devo dizer que não vou lhe dar o enorme prazer de me ver chorar"? Ou: "Deixa em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa", "e quantas águas rolaram, quantos homens me amaram bem mais e melhor que você"? Qual a mulher que não amou, sofreu, deu a volta por cima e se vingou, ouvindo e cantando Chico? Qual?
Ele nunca foi de sair muito, freqüenta pouquíssimos restaurantes, onde só é visto jantando com a ex, Marieta, e uma das filhas, joga futebol no estádio Vinicius de Moraes, seu campo particular, e continua fiel às suas preferências do tempo em que morou na Itália: massas e grapas. Campeão de futebol de botão, Chico modernizou-se e agora passou para os videogames - de futebol, é claro.
Está fazendo 60 anos, e nenhuma mulher do mundo trocaria ele por dois de 30.
Chico lindo, Chico dono dos olhos cor de ardósia mais bonitos do mundo, Chico sensível, Chico feminista, Chico machista, Chico que finge que não olha pra mulher nenhuma, Chico sonso, Chico moita, Chico tudo.
Folha de São Paulo - Junho/2004
Ensaio capta a utopia e a dor do Brasil que não somos
Heloisa Maria Murgel Starling
Especial para a Folha
Em poema muito conhecido, "Hino Nacional", publicado ainda em 1934, Carlos Drummond de Andrade já se encarregava de evocar uma via própria à imaginação social e política brasileira, que insiste em apontar a persistência de uma zona de hesitação, inconsistência e indefinição, de um enredo problemático onde fica presa a construção da figura nacional, perenemente extraviada entre o exótico e o singular, entre autonomia e dependência, entre imagem e simulacro, entre modernidade e arcaísmo: "Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?".
Cerca de meio século passado, o que torna o livro de Fernando de Barros e Silva, editor de Brasil, "Chico Buarque", um dos melhores trabalhos já escritos sobre a obra do artista é precisamente o esforço de trazer à tona, como fio unificador de uma obra imensa e variada, o projeto de construção de uma narrativa musical e literária sobre os descompassos dessa nacionalidade permanentemente deslocada, sempre em trânsito, sempre distante daquilo que é comum. Descompassos que na obra de Chico vão contaminando os princípios formadores da sociedade brasileira até hoje.
Organizado sob a forma do ensaio, "Chico Buarque" é construído em torno de uma idéia: tentar desvendar em palavras e imagens a metáfora de Brasil implícita na produção do artista. Essa capacidade de dizer o país dentro de uma perspectiva não convencional, argumenta Barros e Silva, está constituída sempre a partir das margens, num deslocamento de significado, por exemplo, entre o que virá e não vem, entre o que é tão recente que permanece à espera de conclusão, tão deteriorado que também não conseguiu envelhecer. Ou ainda, entre o que poderia ter sido e que, por falta de história, coube à imaginação do artista inventar. Por vezes mergulhada num desalento trágico, por vezes imersa numa esperança de felicidade que aqui permanece como incógnita, a aventura nacional brasileira se deposita e se revela nas canções e na literatura de Chico, ambas dotadas de um rigor formal incomum, com todo seu potencial de utopia e toda a dor do Brasil que não somos, chão de desterro, pátria em abandono.
Talvez não por acaso o caminho adotado pelo livro seja o ensaio. A rigor, ensaios são uma forma de exposição que desconfia do sentido definitivo ou único dos acontecimentos e das idéias, apresentado pela teoria ou pela história, perseguem as condições de acesso ao que neles foi preterido, eclipsado ou anulado como inútil, e reconhecem o heterogêneo, o dissonante, ou fragmentário como um método para interrogar o presente.
Visto pelo ângulo do ensaio, interpretar, ainda que parcialmente, a produção artística de Chico, como procura fazer Barros e Silva, significa, por exemplo, ingressar em canções carregadas de interpelações sobre o passado recente do país, canções que funcionam como uma fantástica abreviação narrativa fisgada pela melodia e que, quando ouvidas, acarretam uma espécie de auxílio, não pragmático, não utilitário, para elaboração de uma certa imagem comum do país que possa ser válida para seus habitantes.
De certo modo, então, na leitura de Barros e Silva, o alvo dessas canções é a história, e o projeto da obra do artista inclui repensar de maneira radical, isto é, pela raiz, como é próprio à genealogia dos Buarque, Sérgio e Francisco, as questões sem resposta apresentadas pela história contemporânea brasileira. Nessa leitura, a produção artística de Chico carrega dobrada dentro de si o horizonte da utopia que se desenhou no país principalmente durante a década de 50 e o início dos anos 60: a expectativa de afirmação de uma nacionalidade comprometida com um amplo programa democrático e modernizador, disposto a produzir mecanismos de integração dos brasileiros ao tempo da modernidade, a estimular o desejo de integração do interior ao centro, do Brasil ao mundo, da tradição à modernidade.
Contudo essa obra carrega também, e simultaneamente, o espanto e a impotência de seu autor diante do desmanche desse Brasil meio singelo, abortado pelo golpe militar de 1964. No seu lugar, frustra-se o compositor, plantou-se uma figura nacional ufanista, militarizada e intimidante, fez-se um país de silêncio imposto, solidão e medo.
Mas o ensaio de Barros e Silva vai além: a obra de Chico também carrega consigo o avesso da utopia nacional-populista e de seu esforço ingênuo em modernizar o país procedendo à síntese apressada e artificial entre povo e nação. O Brasil que ressurge democratizado, a partir dos anos 80, é um país paradoxal mergulhado no reconhecimento da legitimidade dos valores, das instituições, dos princípios e das escolhas que conformam o repertório democrático e republicano da modernidade e, ao mesmo tempo, incapaz de ampliar o acesso aos frutos sociais gerados pela introdução da democracia política.
Por conta desse paradoxo, hoje, tudo está por um triz: a malandragem assume na corrupção sua forma moderna, anônima e institucional, o sonho de uma civilização brasileira parece perder-se em um cenário de indivíduos privados, cínicos, desinteressados do mundo público e desprovidos de responsabilidade perante seus semelhantes.
Algo se perdeu e no entanto permanece ainda que sem pouso certo, mais uma vez em trânsito. A percepção dessa dialética de limiar fundando a obra de Chico num lugar, invariavelmente instável e incerto, onde uma passagem se constrói e onde o Brasil sempre está por fazer-se, traduz a surpreendente inventividade do ensaio de Fernando Barros e Silva.
Traduz, igualmente, a astúcia da engenharia do autor: no seu livro, como, de resto, em toda a produção artística de Chico Buarque, canções e romances também tratam de citar uns aos outros e, na oportunidade da citação, apresentam o virtual que flui sob a superfície de compreensão do texto factual, do traço historicista da obra, deixando ainda mais evidentes os diversos nós temáticos por onde Chico parece fazer o esforço de "escrever a história duas vezes, nos revelando o que somos e aquilo que não nos tornamos".
São apenas histórias contadas por um narrador de periferia, de "fim de feira" feito Chico, que deixam suspensas no tempo os sons do que foi abandonado, eclipsado, anulado na aventura nacional brasileira. Uma espécie de sons onde estão inscritos os traços de uma vida compartilhada por todos e onde os caminhos de vivência comum se cortam, se encontram e se extraviam fortuita e incessantemente. Nesses sons, a memória do Brasil se agasalha e deles nasce o país sobre o qual se conta uma história, sobre o qual Chico pode compor uma canção ou fazer dele uma canção.
"Sambando na lama e causando frisson."
Folha de São Paulo - Junho/2004
Cassiano Elek Machado
Da reportagem local
Todo dia ele não "faz tudo sempre igual", como a mulher de sua música "Cotidiano". Chico Buarque é o compositor, é o letrista, é o músico e cantor, claro, mas chega aos 60 mais do que nunca escritor. Desde 1991, quando estreou oficialmente na literatura (expurgados aí um infantil, peças e a novela "Fazenda Modelo", de 1974), Chico foi o exemplo mais bem acabado no Brasil do bordão "sucesso de público e crítica".
"Estorvo", "Benjamin" e "Budapeste", seus três romances, na ordem de nascimento, já venderam a maiúscula marca de 435 mil exemplares, segundo sua editora, a Companhia das Letras. É bem menos do que Paulo Coelho, mas uma média muito maior do que a de quase qualquer outro romancista brasileiro vivo.
No quesito crítica, a banda passa fazendo ainda mais barulho. Basta olhar a seção "fortuna crítica" instalada no escanteio das páginas voltadas à literatura no site www.chicobuarque.com.br. Intelectuais como o saudoso escritor português José Cardoso Pires, seu compatriota Saramago, críticos como Roberto Schwarz, poetas como o saudoso José Paulo Paes, coleguitas como Caetano Veloso: todos parecem se acotovelar para catar a poesia que encontram em seu chão.
Mais? O mundo. "Estorvo" está em dez países, o circuito Elizabeth Arden e um pouco mais; "Benjamin", mais esquivo, em cinco. "Budapeste", lançado há menos de um ano, já está negociado com 15 idiomas, aí incluídos norueguês, turco, polonês e o húngaro, "protagonista" do romance.
Em inglês o livro recente do autor ganhará outro charme às 19h15 do dia 10 de julho. Uma espécie de "Chico Buarque" da literatura norte-americana, Paul Auster lerá trechos de "Budapeste" na Festa Literária Internacional de Parati, a Flip.
Folha de São Paulo - Junho/2004
Período de exílio do autor será tema de tese na Itália
Da reportagem local
A órbita de Chico Buarque se estende a outros países, e não é só pelo nomadismo dos CDs e das traduções de seus livros mundo afora. O período em que passou na Itália, auto-exilado após o decreto do Ato Institucional nº 5 (1968) no Brasil, inspirou o pesquisador italiano Luca Bacchini, 29, a focar em Chico sua tese de doutorado.
Sediado no departamento de estudos americanos da Universidade de Roma 3, Bacchini pretende defender, em "Francesco-Francisco - Chico Buarque de Hollanda e a Itália", que seu país desempenhou papel decisivo na formação do artista.
Diz que esse papel se anunciou nos dois anos que o Chico menino passou com a família na Itália, nos anos 50, para se consumar nos meses de exílio em 69-70.
Afirma Bacchini, em entrevista por e-mail à Folha: "O período italiano marcará uma decisiva maturação da personalidade de Chico, cidadão de um agudo espírito crítico que começará a emergir nos artigos escritos como correspondente italiano do "Pasquim" e em canções como "Samba e Amor", "Apesar de Você", "Agora Falando Sério" e "Samba de Orly", compostas em Roma, mas pensando no Brasil do regime de exceção".
O pesquisador inverte o espelho e fala também sobre a relevância de Chico na Itália: "Sua importância para a cultura italiana foi enorme, apesar de que, como artista, ele não conseguiu fazer grande sucesso por aqui. A sua foi uma presença sedutora para o mundo artístico e cultural italiano. Ele nos revelou um Brasil diferente daquela clássica imagem estereotipada de país exótico".
Bacchini diz que a passagem pela Itália provocou o nascimento de uma geração de "artistas ítalo-brasileiros" -cita Lucio Dalla, Sergio Endrigo, Fiorella Manoia e Enzo Jannacci.
Sua pesquisa passa a abranger também episódios cotidianos da fase italiana, descrita por ele como de insucesso e dificuldades. "Na verdade, Chico só fazia sucesso enorme com "A Banda", conhecida graças à versão italiana de Mina. Ele não era conhecido pelo nome, mas como o cantor brasileiro que era "autor de "A Banda"." "Por isso, em vários shows, a dupla Chico-Toquinho acabava cantando coisas feito "Mamãe, Eu Quero" e marchinhas de Carnaval, para agradar o público", relata, emendando à história a rápida passagem de Chico pelo Mentana, um time italiano de futebol da terceira divisão.
Como atividade paralela à de sua tese, Bacchini também coordena um número especial todo dedicado a Chico na revista acadêmica local "Letterature d'America", que antes só se debruçou sobre escritores como Mário de Andrade, Jorge Amado e Carlos Drummond de Andrade.
Entre os ensaístas convidados, quase todos brasileiros, estão Renato Janine Ribeiro, Adélia Bezerra de Meneses e Heloísa Starling. Bacchini já esteve no Rio entrevistando pessoas ligadas a Chico. O objeto de seu trabalho em pessoa, no entanto, ainda não o atendeu.
Folha de São Paulo - Junho/2004
Chico Buarque completa 60 anos no próximo sábado e ganha homenagens em série de lançamentos
Pedro Alexandre Sanches
Da reportagem local
Dentro de seis dias, ele terá 60 anos. Nessa data querida, Chico Buarque, um dos definidores centrais da cultura nacional das últimas quatro décadas, não estará no Brasil. Nestes anos de vida, tem estado avesso aos holofotes e ao discurso, distante de palcos em que seja o ídolo principal e dos discos de músicas inéditas (que não freqüenta desde 1998).
Não significa que tenha resolvido se ausentar. Em sua década dos 50, publicou livros que redirecionaram sua produção artística, rumo a uma literatura de intricado labirinto de personalidades espelhadas. Na música, foi se transformando num homem que ainda é o mesmo que norteou um país -mas é outro, oposto.
Hoje Chico se irrita com a identificação entre sua produção musical nos anos 60 e 70 e um heroísmo militante de resistência contra a ditadura. Não parece casual, então, que a efeméride venha marcada pelo lançamento, nos próximos dias, da caixa de CDs "Francisco" (BMG, R$ 650, em média).
Ali se agrupará a obra do compositor e cantor de 87 em diante, quando mergulhou numa musicalidade jobiniana, intimista, cujo imaginário flutua em sonhos confusos parecidos com os dos narradores de "Estorvo" (91), "Benjamim" (95) e "Budapeste" (2003).
Em 84 Chico lançara "Vai Passar", uma espécie de réquiem para o período ditatorial, que se esvairia mesmo com a derrota do movimento pelas eleições diretas, de que o samba-enredo tratava.
Naquele dia-ano, Chico resolveu quebrar o espelho. Esperara ansiosamente pela festa democrática, desistiu dela assim que sentiu seu cheiro -herói do porvir, argumentou em silêncio que o porvir que vinha não era satisfatório.
Mesmo apoiando o PT de Lula nas quatro primeiras eleições diretas pós-ditadura, afastou-se da politização na música em ritmo idêntico ao do reencontro com a musicalidade contemplativa de Tom Jobim (1927-94). "Francisco" (87), o abre-alas desse admirável mundo novo, ainda continha a picardia subversiva de "Bancarrota Blues" (uma regravação). Mas o estandarte se abrigava em outras mãos, as do lirismo triste tipo "Todo o Sentimento" e "Estação Derradeira".
Dali por diante, o Brasil continuaria a associá-lo teimosamente com o herói que desafiou a ditadura munido de baionetas como "Apesar de Você" (70), "Cálice" (73), "Jorge Maravilha" (74, do alter ego Julinho da Adelaide, inventado para driblar a Censura antibuarquiana), "Corrente" (76) etc. Chico, divergente de seu público, passaria a não se enxergar mais naquele espelho.
O disco "Chico Buarque" (89) preparou, no diapasão desse dilema, a entrada nos anos 90. Nele e em tudo que fez a partir de lá, em música ou em literatura, o autor passou a opor resistência de igual magnitude contra a dureza da realidade, em favor da proteção de um universo paralelo irreal, feito de sonhos (e pesadelos).
Quis ser cada vez menos celebridade. Nunca parou de crescer como celebridade. Para seu público fiel, foi virando mansa esfinge. Seus trabalhos, embora não menos intensos, se tornaram menos empolgados, menos comunicativos. A estranheza diante de um suposto esmorecimento do herói não raro bateu no espelho como pressão pela volta do líder político -cargo que Caetano Veloso já ocupava com zelo e prazer.
Chico disse não, não e não. Suportou opiniões sobre uma angulação supostamente "menor" de sua obra de maturidade em comparação com os anos heróicos (reunidos na caixa "Construção", 2001, Universal, cerca de R$ 570).
Se isso puder ser verdade parcial, ainda assim a produção recente guarda lancetas como "Paratodos" (93), reflexão sobre o auto-exílio equiparável à do "Estrangeiro" (89) de Caetano.
Trata-se de "um dos momentos mais fortes na trajetória de Chico, algo como um reencontro dele com a cultura nacional-popular, com sua própria obra e com as ilusões perdidas da juventude", nas palavras de Fernando de Barros e Silva, no volume dedicado a ele na série "Folha Explica". É um de vários lançamentos-eventos que marcarão a conversão de Chico aos 60, entre caixa de CDs e livros e ainda uma mostra na Biblioteca Nacional do Rio (prevista para julho).
Incorporando um autor ausente suspenso no ar, que é filho do Julinho da Adelaide dos anos de repressão e irmão do ghost-writer de "Budapeste", Chico Buarque, ao que parece, vai escapulir de todas as homenagens. Ah, mas se diz por aí que voltou a compor.
Jornal do Brasil - Junho/2004
E a musiquinha feita para os 60 anos de Sérgio Buarque, que hoje se aplica a Chico
Andréa Thompson
Especial para o JB
Avessa a formalidades, a família Buarque de Hollanda, recentemente cinebiografada em Raízes do Brasil, se reúne quando dá, se telefona quando pode e se presenteia quando lembra. ''Não tem muito nhenhenhém'', conta a atriz Sílvia Buarque, de 35 anos, filha mais velha de Chico e da atriz Marieta Severo. Além dos queijos e dos vinhos, um apetite quase genético entre o clã, sobressai na família outro traço comum: a aptidão em narrar histórias. Muitas delas desmistificam a timidez de Chico. Outras são contadas quando se reviram as gavetas da ''antiga cômoda de velhas magias'', parte de uma infância regada a muito Vinicius de Moraes - o poeta era freqüentador assíduo da residência de Maria Amélia e do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, pais de Chico, das cantoras Cristina e Miúcha, da diretora musical da Funarte, Ana de Hollanda, e de mais três filhos.
''Quando Vinicius chegava, podíamos dormir mais tarde. Ouvíamos Noel Rosa, Ismael Silva, Ataulfo Alves e fazíamos concursos de quem conhecia mais marchinhas de carnaval'', lembra Miúcha. As vitórias consecutivas deram a Chico o gabarito para passar adiante o gênero musical, mas em forma de canção de ninar skindô-lelê, como lembra a filha Luísa: ''Meu pai não ouvia música em casa, nem cantava muito, a não ser quando nos colocava para dormir, quando cantava umas marchinhas. Parece incrível, né?'', diz a caçula, 28 anos, integrante da Intrépida Trupe. A música era o ponto de encontro de Chico com as irmãs - apesar de o violão ter sido, muitas vezes, alvo de discórdia. ''Eu tinha o meu próprio violão, que guardava a sete chaves, e Ana tinha o dela, um horroroso, chamado Catupiry, com uma borda vermelha e sem verniz. Mas o Chico pegava emprestado de todo mundo'', conta Miúcha, a mais velha da trupe, responsável por orquestrar a turminha à moda do Quarteto em Cy. Ana revela que, se à irmã mais velha cabia o papel de maestrina, era o irmão quem dava as cartas nas brincadeiras, muitas vezes demonstrando imaginação fértil além da conta, para um menino de 12 anos: ''Chico era um líder. Ele montava operetas em que fazia o papel de rei. Brincava de imperialista, dominando países imaginários. Passava trotes com histórias incríveis, e que iam crescendo cada vez mais. Chegava a bancar o urbanista, desenhando mapas de cidades em papel de pão'', declara a irmã. Na juventude, Chico entraria para a faculdade de arquitetura e, para desgosto da mãe, deixaria o curso no meio do caminho.
O temperamento efusivo também é lembrado pelas irmãs. Com a alcunha de ''o carioca'', designada pela mãe, Chico era menino travesso, sempre levava bronca, entrava em casa gritando e de acanhado não tinha nada. ''Chico tímido? Pelo contrário. Era muito aprontador e brincalhão. Hoje ele é reservado, que é uma coisa diferente'', observa Ana. Miúcha tenta explicar: ''Esse negócio de fazer sucesso desde garoto deve tê-lo deixado mais retraído''. Se Chico é ou não tímido, há controvérsias, mas a placidez do artista é comprovada pelas filhas Sílvia e Luísa, que revelam o estilo sossegado do pai: ''Ele nunca foi aquele pai do tipo ativo, de iniciativas, mas sempre foi muito afetuoso e até hoje se ajeita para as minhas estréias. Verdade que, em casa, era sempre a minha mãe quem mandava. Os dois eram muito liberais, tanto na nossa infância como na adolescência'', conta Sílvia. ''Meu pai não ia muito às apresentações e reuniões da escola, mas era normal em casa e me estimulou em tudo. Agora nos encontramos muito em função da Lia (filha de Luísa com o acrobata Claudio Baltar), que sempre pede para ver o avô'', diz a caçula.
Chico é chamado de ''Voíco'' pela neta e almoça quase todo domingo com Marieta e filhas. O encontro é mais certo ainda quando Helena, a filha do meio, de 33 anos, casada com o cantor e compositor Carlinhos Brown, vem para o Rio, com os filhos Francisco e Clara, para deleite do avô: ''Ele é mesmo um vô bacana. Tem até um certo código com as crianças. Mas às vezes inventa umas historinhas tão complicadas que elas não entendem. Para gente, na nossa época, ele fazia uns truques bobos, que sempre descobríamos'', relembra Sílvia. Chegando aos 60, Chico ainda tem demonstrado fôlego de sobra, não apenas para as habituais caminhadas pelo Leblon, mas para trilhas com a filha Luísa. Ela conta: ''Meu pai anda bem, mesmo agora, mais velho. Geralmente escolho umas trilhas que não exigem muito, mas posso dizer que já fizemos percursos bem pesados''.
No dia de seu aniversário, sábado que vem, Chico estará com parte da família em Paris, na França. Os festejos pelos 60 anos do integrante mais famoso dos Buarque de Hollanda fazem, por exemplo, Miúcha se lembrar de uma cançãozinha que os irmãos fizeram em conjunto, ainda adolescentes, para homenagear o chefe do clã, Sérgio Buarque. Ele fazia justamente 60 anos. Chamava-se Salve o novo sessentão e era mais ou menos assim: ''Salve o novo sessentão/ que ainda vai ser quatrocentão/ mas chamar de velho, isso é demais/ ele até que ainda tem panca de rapaz/ gosta de uísque, de bom papo, de fofoca/ dança tuíste com qualquer velha coroca/ mas chamar de velho, isso é demais''. Quem diria, os versos aplicam-se, agora, a Chico.
Observatório da Imprensa - 22/06/2004
Stella Pessoa (*)
Reflexões sobre um gênio contemporâneo
O aniversário de Chico Buarque de Hollanda fez toda a mídia dedicar preciosos espaços ao artista - ou gênio - brasileiro contemporâneo. Que bom!
No entanto, penso que principalmente a mídia impressa não poderia perder a oportunidade de aprofundar estudos e discussões sobre a obra do Chico. Não basta falar da biografia do autor ou citar a sua rica discografia. É importante também abordar mais o Chico no viés do conteúdo das suas mensagens. Que contribuições para a educação? Onde entram a História, a Literatura e a Psicologia nos textos do compositor? Por que os livros de Língua Portuguesa citam cada vez mais os escritos do autor? O que os exames vestibulares têm enfocado a respeito dele? Como profissionais da educação convivem com o Chico na sala de aula? O que dizem as teses de pós-graduação, nas diversas áreas, que progressivamente abrem espaço para ele?
A leitura das letras do Chico deixa rastros que tantos, como eu, procuram desvendar, sempre em busca das raízes e essencialidade da obra. E não esqueçamos um dado importantíssimo: Chico é nosso contemporâneo e está vivo! Gilberto Gil, como ministro da Cultura, disse que "Chico Buarque tem sido levado a fazer-se fonte, a tornar-se ponte, a seguir caminhos por onde trilham gerações como a minha". Percorrendo a obra do Chico, encontro tanto elementos históricos como influências ou ecos dos livros provavelmente escolhidos por ele para leitura, mas também noto traços psicológicos, religiosos, sociais, lingüísticos etc. São facetas que mexem com o imaginário das pessoas e se apresentam nas suas formas artísticas, sugerindo que estas, lado a lado com os conteúdos, aumentem minha capacidade de ver e sentir os ricos significados.
Chico e a História
Quando penso do ponto de vista histórico, acho letras referentes a outros tempos - olhos do presente no passado, com reelaboração de referências históricas - , como em Dr.Getúlio (Getúlio Vargas) - "o chefe mais amado da nação"-, onde se manda olhar "a evolução da história", pedindo que "abram alas para Gegê desfilar / na memória popular".
Há, também, o repertório da peça Calabar, no clima das invasões holandesas no século 17. Nela, o traidor - passa para o lado holandês - é executado, deixando a viúva guerreira "que sabe dos caminhos dessa minha terra" e "dos segredos / que ninguém ensina / onde guardo o meu prazer", misturando geografia e corpo, campanhas e entranhas.
A Inquisição no Brasil certamente serviu de referência para Chico elaborar Não existe pecado ao sul do Equador.
As invasões francesas ao Rio de Janeiro estão no espírito de Bancarrota Blues.
Encontra-se, ainda, a música do Chico para Romanceiro da Inconfidência, o recontar poético de Cecília Meireles sobre a Inconfidência Mineira (século 18), que nos remete ao mártir Tiradentes.
Porém, ao lado de outras criações sob a vertente histórica, o que mais deixou marcas do Chico nos seus admiradores foi a coleção de letras ligadas ao longo período da ditadura militar no Brasil. Ele soube captar o clima histórico que viveu intensamente. Seus versos caracterizam a atmosfera que marcou uma geração inteira. Foram criadas canções que nasceram do movimento de negação do estado de coisas predominante.
Talvez os maiores destaques, nessa linha, sejam Apesar de você - quando "hoje você é quem manda" mas "amanhã será outro dia" - e Vai passar - a "página infeliz da nossa história".
Todavia há tantos outros que considero inesquecíveis como Quando o carnaval chegar - "eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando / e não posso falar / tou me guardando pra quando o carnaval chegar" -; Cálice - "como é difícil acordar calado / se na calada da noite eu me dano" -; Acorda amor - "se eu demorar uns meses / convém, às vezes, você sofrer / mas depois de um ano eu não vindo / ponha a roupa de domingo / e pode me esquecer" -; O que será (À flor da terra) - "que anda nas cabeças, anda nas bocas" -; Angélica - "só queria agasalhar meu anjo / e deixar seu corpo descansar" -; Roda viva - "a gente quer ter voz ativa / no nosso destino mandar / mas eis que chega roda viva / e carrega o destino pra lá" -; Sem fantasia - "eu quero te mostrar / as marcas que ganhei / nas lutas contra o rei / nas discussões com Deus" - etc. Hoje, basta que se percorra essas canções ancoradas na história recente do país para trazer à tona episódios, cacos, fragmentos e experiências.
É difícil não lembrar de canções desse viés histórico e político, mas ligadas a outros países, como Fado tropical - "ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal / ainda vai tornar-se um imenso Portugal" -; Tanto mar - "já murcharam tua festa, pá / mas certamente / esqueceram uma semente / nalgum canto do jardim" -, alusiva à Revolução dos Cravos; e a tradução da Canción por la unidad latinoamericana do cubano Pablo Milanês - "já foi lançada uma estrela / pra quem souber enxergar / pra quem quiser alcançar ". Chico manifestou assim seu elevado grau de sentimento em relação a momentos históricos, inclusive emprestando solidariedade a outros povos.
A literatura nas letras de Chico
Se a vereda para ler e entender Chico é analisar a presença da Literatura, isto é, pesquisar obras literárias - do passado ou do presente - que podem estar dentro das letras do Chico por influência da sua leitura, aí eu vejo aberto outro leque imenso para estudos. Algumas relações já foram pesquisadas até mesmo academicamente em programas de pós-graduação universitária, pois as criações do Chico servem de campo fértil para a análise literária e as relações entre as letras do compositor e clássicos da Literatura brasileira e estrangeira.
É oportuno lembrar que Chico é filho de Sérgio Buarque de Holanda, historiador brasileiro, professor, escritor, membro da Academia de Letras, autor de Raízes do Brasil - uma revisão de nossas etnias e sua repercussão na constituição das classes sociais. Sérgio conviveu com Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Rubem Braga, Antonio Candido, Afonso Arinos, Oscar Niemeyer, Antônio Houaiss e Antonio Callado, apenas para citar algumas figuras ilustres que compunham o tom intelectual do mundo da infância e mocidade do Chico.
Em Perfis do Rio, a escritora Regina Zappa destaca que as paredes da casa de Chico eram cobertas de livros: "Em casa fora criado num clima propício ao desenvolvimento de uma forma crítica de ver o mundo. É evidente que o convívio doméstico contribuiu decisivamente para a sua formação humanista. Ninguém é filho do autor de Raízes do Brasil impunemente". Assim, é enorme o campo de possibilidades de associação da obra de Chico Buarque com outras obras literárias. Pinço alguns exemplos.
Pedaço de mim - "oh, pedaço de mim / oh, metade afastada de mim / leva o teu olhar" -, de 1977 e 1978, nos leva de volta a O Banquete, diálogo que é a obra-prima de Platão (337 a.C).
Gota d'água - quando o coração é "um pote até aqui de mágoa / e qualquer desatenção, faça não / pode ser a gota d'água" - de 1975 vem de Medéia de Eurípides - último dos três dramaturgos clássicos da Grécia, depois de Ésquilo e Sófocles - de 431 a.C.
Mulheres de Atenas - elas "sofrem por seus maridos" e "quando eles embarcam, soldados / elas tecem longos bordados / mil quarentenas" de 1976 pode vir também do clássico Lisístrata de Aristófanes - grande representante da comédia grega antiga - de 411 a.C.
De 1982, Beatriz - "sim, me leva para sempre, Beatriz / me ensina a não andar com os pés no chão" e ainda "será que é comédia / será que é divina / a vida da atriz" - e Sobre todas as coisas - "não, Nosso Senhor / não há de ter lançado em movimento Terra e Céu / estrelas percorrendo o firmamento em Carrossel / pra circular em torno ao Criador" - trazem as marcas inegáveis da alegoria A Divina Comédia (1320) de Dante Alighieri. Aí também entra a base de Jorge de Lima em O Grande Circo Místico.
A escritora Adélia Bezerra de Meneses, doutora pela USP, identifica paralelos entre Cálice - no que a letra tem de fantasmagórica - de 1973 e a fábula Silêncio de Edgar Allan Poe - poeta, crítico e contista americano famoso por suas histórias de mistério e medo, que viveu no século 19. A estudiosa faz também relações que unem Vida - "luz, quero luz" - de 1980 e Fausto de Goethe (1749-1832). E ainda encontra ecos dos franceses Charles Baudelaire (1821-1867) e Gustave Flaubert (1821-1880) em As vitrines de 1981 e Pelas tabelas de 1984, respectivamente.
Ópera do malandro foi inspirada nas óperas do alemão Bertolt Brecht (1898-1956) e do inglês John Gay (1685-1732).
Pra citar alguns exemplos brasileiros de associações entre as criações de Chico e a nossa Literatura, lembro que Gonçalves Dias está em Sabiá - "sei que ainda vou voltar / para o meu lugar / foi lá e é ainda lá / que eu hei de ouvir cantar / uma sabiá" -; Fernando Pessoa podi ser o autor de Cecília - "Te olho / te guardo / te sigo / te vejo dormir -; Nelson Rodrigues marca Mil Perdões - "te perdôo / por te trair" -; Carlos Drummond de Andrade contribui para Até o fim - "quando nasci veio um anjo safado / o chato dum querubim / e decretou que eu tava predestinado / a ser errado assim" - e Flor da idade - "Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo" -; José de Alencar influi em Iracema voou - "voou para a América" e "tem saudades do Ceará" -; Guimarães Rosa inspira Assentamento - "quando eu morrer / cansado de guerra / morro de bem / com a minha terra" -; Chico fez O Rei de Ramos para a peça de Dias Gomes e musicou Morte e vida severina de João Cabral de Melo Neto, que fala da terra, da morte, da miséria.
Mais Chico
Vai longe o conjunto de associações com a História e a Literatura, vínculos que são frutos da percepção aguçada de Chico Buarque. Constato que é incrível a versatilidade temática do artista. Além do que abordei aqui, em linhas gerais, é preciso também extrapolar as letras das músicas e comentar profundamente o Chico do teatro, o Chico do cinema, o Chico de Estorvo, o Chico de Benjamim, o Chico de Budapeste... Quantos espelhos!
É tempo de multiplicar caminhos e apreender mais sobre os ricos conteúdos dos textos deste gênio contemporâneo. E a mídia tem a ver com isso.
(*) Engenheira civil e analista de sistemas de informação
Observatório da Imprensa - 22/06/2004
Aquiles Rique Reis (*)
Excerto do livro Chico Buarque do Brasil, de Rinaldo de Fernandes (org.), Editora Garamond e Edições Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2004
Ora, me perguntas quem é Chico Buarque, o artista!? Direi de supetão, já que queres a resposta à vista: fantasista de truz é o que ele é. Homem que come luz, credo-em-cruz! O cara é bem mais que humanista, ele é estrategista a viver, simbolista, sua missão idealista. Irrealista, tu fazes-me a pergunta e ainda de mim esperas resposta?! Pois eu digo e não desdigo: numa bolsa de aposta ele que, de um milhão a um segundo, já no segundo e seguinte segundo, vale mais de um quatrilhão. Sem afetação, longe de mim a bajulação.Pois é, Tamandaré, levastes um passa-pé e a maré deu marcha à ré.
E aí veio ele junto à banda. Feito em roda de ciranda que anda-que-anda e não desanda, agora vem ele ainda mais perfumoso de lavanda, o de Hollanda. Pede só que o deixem na varanda com a vianda, a sonhar com a moça se chacoalhando lá em Benguela, com o chocalho farfalhando na canela.
Feito um menino, lá vai ele de cantiga em cantiga, a torcer para que o siga só quem for mais forte que viga de pinho-de-riga que verga, verga e não fadiga. Vento que gira o mundo. Rosa-dos-ventos que orienta o iracundo. Roda que é viva no sonho fecundo. Rosa-de-bobo que fede feito o imundo que ergueu a construção num microssegundo, para ela tombar e revelar o submundo vagabundo desse furibundo mundo.
Rita, Carolina e Beatriz, e a quem mais Chico quis, transformou-as em lis e por um triz não viraram cada uma sua rainha, pondo-se com ele a sonhar na pracinha onde pousam as rolinhas e onde à noite caem centenas de mil estrelinhas. Todas mais que as primeiras e todas damas estreladas da sua Estação Primeira que é Mangueira. E se lembrem que foi pra lá que subiu o piano. Piano que era do beltrano, mas tocava nele o sicrano, aquele que acompanhava o soprano que achava profano meter-se a ufano com o escorpiano que morreu ao bater no gelo-baiano antes de correr no pan-americano, em pleno verano italiano.
Recorro neste momento a ti, nosso maestro Soberano. Tu que nunca me pareceste insano, nem mesmo ao nadar no profundo oceano machadiano onde nenhum ser humano cigano ou pós-diluviano ousou pisar ou teve para tal tutano, revele a nós quem é Chico, o tal artista buarquiano". "Sois de todo louco, desista de tal intento, pois nem se fosses aqualouco mergulharias no âmago do mago, esse detento das presas do encantamento".
E tu ainda vens e me perguntas quem é Chico Buarque, o artista!?
Observatório da Imprensa - 22/06/2004
Tatiana Maia (*)
Chico Buarque fez 60 anos, dia 19 de junho. Enquanto escrevo, no Rio não se fala em outra coisa. Chico é capa de revista, assunto de caderno especial no jornal de domingo, tema de festas em casas noturnas, de palestras, exposições, livros e de caixas de música, claro. Foi semana de estréia do filme biográfico sobre Cazuza, outro carioca "bem carioca". Só que, mais uma vez, Chico é unanimidade.
Porém, esta síndrome "chicólatra" (ele vicia, tal qual chocolate) não é algo particularmente carioca. Expandiu-se país afora. Chico terá até sessão solene na Câmara dos Deputados, em sua homenagem - mas não participará. A proposta partiu de outro Chico, o Alencar (PT-RJ), seu amigo.
A Folha de S. Paulo (25/5/04) publicou um teste com perguntas curiosas sobre a vida de Chico: "O que será que será?". E mocinhas de todas as idades brigaram para ver quem faria mais pontos. (Eu, inclusive, fui uma delas... A advogada recifense Juliana Simas, outra... O teste pode ser encontrado em http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/teste-20040524.shtml).
O Jornal do Brasil, por outro lado, e talvez para não ficar para trás, fez um Caderno B especial no domingo (13/6) . Trazia, entre matérias e cópias da certidão de nascimento de Chico e de um autógrafo - onde antes de assinar, ele escreve "te amo" -, 60 depoimentos sobre o aniversariante. De Pelé a Fernando Henrique Cardoso e Fernanda Montenegro. Se não bastasse, o JB ainda fez uma promoção: o leitor que escrever a melhor frase sobre Chico Buarque ganhará todos os livros dele.
A CartaCapital trouxe Chico na capa. Foi mais um dos veículos que se propôs a fazer uma varredura nos 60 anos dos olhos brasileiros tão famosos quanto os de Frank Sinatra. O Globo trouxe um especial enorme, com 18 páginas (sexta, 25/6). Será que ainda há algo de diferente a ser dito sobre Chico?
Recolha parisiense
A assessoria de imprensa do cantor, compositor, escritor, jogador de futebol e queridinho de dez entre dez mulheres brasileiras intelectualizadas ainda não sabe a real dimensão das homenagens. Mas confirma que a imprensa do Brasil inteiro está dando grandes espaços à comemoração dos 60 anos de Francisco Buarque de Hollanda. O seu site já registrou 28 novas matérias sobre Chico, sem contar com publicadas nas 18 páginas do monumental registro do Segundo Caderno de O Globo. Com toda esta mídia, Chico, que segundo sua biógrafa Regina Zappa não é nada tímido, apenas reservado, deve estar apavorado. Sua vida está esmiuçada. O que deveria ser pura homenagem, pode estar sendo interpretado como um tormento. Mário Canivello, seu assessor de imprensa, afirmou que Chico está sim incomodado com a superexposição de sua imagem.
Para fugir desse fuzuê todo, Chico fará sua festinha de aniversário em Paris.
Chato não é?
(*) Jornalista
Jornal do Brasil - Junho/2004
Lula Branco Martins
Os documentos que o JB reproduz ao lado foram encontrados pela historiadora e pesquisadora de MPB Maria Clara Wasserman no Arquivo Nacional, ao fim de seis meses de consultas quase diárias, durante o ano passado. São letras batidas à máquina, com um mesmo nome para autor e intérprete: Chico Buarque de Hollanda. Chamam-se Vigília e Primeiro encontro e têm a mesma data, 27 de julho de 1971.
Uma equipe do JB esteve no Arquivo Nacional, há três semanas, e teve acesso aos documentos originais das letras. Constatou-se que elas fazem parte do mesmo pacote de canções do LP Construção, lançado por Chico naquele ano. Seus registros têm numeração seqüencial. Lá estão, entre as duas surpresas, canções de Chico bem conhecidas, como Deus lhe pague e Cordão. O papel de todas é igual: uma folha fina, como seda, já bem amarelada, com furos de fichário na parte lateral. A tipologia das letras é a mesma. Minúcias como o estilo de rasura e o espaçamento entre as linhas também foram verificadas. Na comparação destes detalhes com as músicas que acabaram entrando no LP, tudo bate.
Consultando novas papeladas da repartição, em meio à poeira o JB descobriu, semana passada, uma terceira música desconhecida, também assinada por Chico, chamada Noturno. Trecho: ''Quando anoitece, vem ver meu coração/ quanto padece, quanto se encanta/ e sorrateiro, feiticeiro, canta''.
Há duas semanas, o JB consultou o próprio Chico, através de sua assessoria de imprensa, sobre uma destas músicas, a que mais lembra a poética do artista na época: Vigília. Primeiro o artista foi informado sobre o título: não lembrava, disse que nunca fez uma canção com esse nome. No dia seguinte, ele pediria que o JB enviasse, por e-mail, a letra da música - o que foi feito, de novo por intermédio de seu assessor de imprensa, Mário Canivello. Então, Chico pôde conferir os versos, e afirmou: ''Esta música não é minha''.
Sexta-feira agora, ao receber e ler com mais calma, em sua casa, cópias dos documentos com as letras de Vigília e Primeiro encontro, Chico mudou o discurso. Mandou dizer que ''é possível'' que as letras sejam dele. Contou ainda que costumava enviar à Censura algumas letras que serviriam apenas como ''bois de piranha'', para enganar os funcionários do órgão, e que de fato não pretendia usar. Vigília e Noturno têm carimbo de liberadas. Primeiro encontro (que tem um subtítulo, Susana) foi vetada por ser contrária ''à moral e aos bons costumes''. Naquela época, também era comum, conforme Chico relatou agora, mandar letras com estrofes a mais. Seria uma garantia que, caso a Censura fosse voraz com alguma parte da idéia, pelo menos alguma coisa poderia restar para ser cantada. Aconteceu, por exemplo, no chorinho Meu caro amigo, parceria dele e de Francis Hime - o pianista guarda até hoje uma cópia da ''letra em versão maior''.
Outro recurso que Chico usava, ao enviar suas letras para a Censura, era atenuar o começo e o fim das canções, com versos românticos. O objetivo: se o censor desse apenas uma olhadinha rápida, deixaria passar o miolo - e, conseqüentemente, a nitroglicerina de seu conteúdo. Isso foi feito em Jorge Maravilha. O JB teve acesso a estes versos - desconhecidos até hoje, eles estarão à mostra, mês que vem, numa exposição na Biblioteca Nacional: ''Você não entendeu/ que o amor dessa menina/ é a chama que ilumina a minha solidão/ meu amor por ela é uma cidadela/ construída com paz e compreensão''. No fim, depois do trecho efetivamente gravado de Jorge Maravilha, este verso, ''construída com paz e compreensão'', era repetido várias vezes.
Jornal do Brasil - Junho/2004
Cleusa Maria
Editora da revista Domingo e colunista do JB
Houve um tempo em que nossos ídolos - ou melhor, nossos entrevistados - não raro estavam ao alcance de nossas mãos. Nos primórdios do fenômeno ''assessor de imprensa'', não era de todo impossível que Dedé atendesse o telefone e colocasse o então marido Caetano Veloso do outro lado da linha (mas, claro só depois das três da tarde). Nem era tão improvável que Tom Jobim recebesse uma ligação às nove da manhã e ainda convidasse para um café, adoçado com mel e piano, em sua casa no alto do Jardim Botânico.
Com Chico, não. Sempre foi difícil, arredio. É verdade que, naquele tempo, ainda não entrava mudo e saía calado, como tem feito ultimamente, mesmo nos lançamentos de seus livros. Ele falava pouco, mas falava.
Em 1985, Chico estava em ebulição artística: viajando, fazendo shows, preparando peças. Acabou concordando que a repórter o acompanhasse uma semana inteira, incluindo uma viagem a São Paulo. Lá, depois de um jogo de seu time, o Polytheama, pude visitar o vestiário com um fotógrafo. Chico tomava uma chuveirada - de short, é bom dizer.
Nos anos seguintes haveria outros encontros, outras entrevistas. Lembro, por exemplo, das garrafas de vinho tinto que ele mesmo carregava para saborear no estúdio da PolyGram, na Barra, enquanto ensaiava e reensaiava a estrofe ''eis o malandro na praça outra vez/ caminhando na ponta dos pés''. Lá pelas tantas, a fome chegou e fui encarregada de escoltar o tímido Chico até um restaurante italiano, onde compramos uma provisão de pizza para músicos e técnicos. Desconfio que foi num destes dias que, pegando uma carona com o entrevistado, e insistindo em uma pergunta, levei um puxão de orelhas. Chico reclamou: ''Você é muito mandona''. Mas não deve ter ficado muito bravo, pois ao fim da cobertura acabei ganhando um autógrafo.
Jornal do Brasil - Junho/2004
Chico seria mais inovador escrevendo livros ou fazendo canções?
Alexandre Amorim
Mestre em Letras
Chico Buarque é um esteta. Mesmo que seu primeiro conto publicado tenha sido uma tentativa não muito original de traduzir o mito de Ulisses para as odisséias cotidianas, ou mesmo que sua primeira novela remeta ao livro Revolução dos bichos, de George Orwell, aplicado aos dias de ditadura militar no Brasil, sua preocupação com a palavra já estava presente nesses textos. No conto Ulisses, o homem comum é retratado em seu desespero de ser acolhido pela companheira, apesar de sua mediocridade: ''Talvez você espere contos fantásticos... Mas não, Penélope, não ouvi o canto das sereias''. As respostas de Penélope não são ouvidas. As técnicas narrativas se mostravam como um desafio ao autor, meticuloso já em suas primeiras obras.
Em entrevista a um jornal argentino, Chico disse em 1999 que se achava mais inovador em seus livros do que em suas canções, pelo maior conhecimento literário do que musical. Mesmo que esse conhecimento por vezes se traduza em influências, patentes em seus textos, é fácil descobrir o escritor experimentando romper ou fundir estilos literários para buscar o seu próprio. Assim como Ulisses, o livro infantil Chapeuzinho Amarelo, nascido de uma historinha contada a Luísa, uma de suas filhas, também foi escrito como paródia, mesmo que subvertendo a moral do conto original de Perrault. No caso de Fazenda modelo, o livro de Orwell foi o mote para que sua voz libertária apresentasse como patéticos os rumos seguidos pelos dirigentes deste país nos anos de chumbo. Chico ainda tentou se esquivar da comparação em 1975, declarando ao Pasquim que ''nem conhecia'' Revolução dos bichos quando escreveu sua novela pecuária. Mas se os porcos de Orwell são uma metáfora genérica do ameaçador absolutismo de então, os bois que habitam a fazenda imaginada por Chico Buarque eram retratos específicos do desgoverno brasileiro, onde os militares alimentavam o povo com o sonho da casa própria, loteavam a Floresta Amazônica e se incumbiam de fazer crescer o bolo, para poder então dividi-lo. ''Escrevi não por uma necessidade literária, mas política'', afirmava o autor, numa entrevista concedida à revista Bundas, em junho do ano 2000.
Ainda em Estorvo, de 1991, essa amálgama de influências volta a acontecer, agora dando maior espaço à originalidade de estilo do autor. Não é à toa que a Companhia das Letras e o próprio Chico apresentam esse livro, Estorvo, como uma novidade, deixando suas experiências literárias anteriores guardadas em um baú. É uma nova fase na escrita de Chico Buarque, na qual ele busca com mais maturidade sua própria maneira de se expressar na literatura. Aponta-se claramente a influência de Rubem Fonseca no modo narrativo e de João Gilberto Noll na questão do deslocamento e da submissão ao devir, mas em nenhum momento duvida-se da assinatura do autor: é Chico Buarque quem escreve a história, onde o título prediz a sensação contínua de incômodo que nos causa o personagem principal, sempre incompatível com os ambientes em que se encontra.
O protagonista de Estorvo não se sente em nenhum momento abrigado ou resguardado, em qualquer lugar que esteja. Ao contrário, ele se vê perseguido e está sempre em fuga, mesmo que em sua própria casa, na casa da irmã que prefere ignorá-lo, no sítio abandonado de sua família ou na casa da ex-mulher que o despreza: ''Não adianta ficar aqui parado. Eu não posso me esconder eternamente de um homem que eu não sei quem é''. Este deslocamento pode ser utilizado com um duplo sentido, já que o personagem está em constante movimento e ao mesmo tempo é um elemento desarticulado do sistema em que vive.
Lançado no ano de 1995, Benjamim volta ao tema do homem deslocado de seu meio. Talvez seja o livro mais incompreendido de Chico.
O idealizado triângulo amoroso entre Benjamim, Castana e Ariela é formado por uma narrativa calcada em linguagem cinematográfica, e pode causar estranheza no leitor a abordagem nervosa do narrador, como se fosse uma câmera que nunca estivesse presa a um tripé, mas sempre sendo carregada na mão de quem nos mostra o que está se passando. Essa narrativa rápida pode nos remeter a flashbacks e tenta nos enxertar na cabeça do personagem-título, um homem que já não distingue completamente suas memórias daquilo que vive no presente. O próprio Chico reconhece que pode haver algo de nouvelle vague no modo de narrar, o que pode ser uma pista para acompanhar as desventuras de um homem cuja história ele mesmo põe em xeque. Mas escolher pistas não é a melhor maneira de se ler um livro. Se Estorvo e Benjamim são considerados livros ''difíceis'', a dificuldade de lê-los deve ser considerada mais um prazer a ser desvendado. Ler os livros de Chico Buarque não se resume a entender as histórias, mas também a saborear as palavras, as frases e as vozes que as formam.
As palavras, tratadas com harmonia em suas canções, são quase que protagonistas de sua última obra. Talvez por isso Budapeste, publicado no ano passado, tenha sido seu livro de maior aceitação pelo público. São outras palavras - escritas, e não cantadas. Mas em nenhum livro de Chico Buarque um assunto é trabalhado com tanta leveza. Se a narrativa sempre foi lapidada, Budapeste traz a matéria-prima da escrita, a linguagem, para a frente do texto, tornando explícito o talento do autor. Influências ainda existem: a metalinguagem anda em voga e o autor não vive isolado do mundo. A história do ghost-writer José Costa e seus textos atribuídos a outros nomes torna-se, entretanto, bastante autoral quando, mais uma vez, seu deslocamento vai influenciar sua identidade. Se em Estorvo e Benjamim as identidades dos protagonistas se apresentam fragmentadas, Budapeste mostra o processo de ruptura da identidade através da busca de sentido para as palavras e para a escrita. Chico está à vontade, brincando em seu próprio quintal.
Escrever romances pode ser uma mostra de ecletismo do compositor Chico Buarque. Pode também ser um descanso do músico ou uma fuga da escassez temporária de inspiração melódica. Não importa muito qual a explicação, até porque Chico costuma concordar com todas elas, quando é perguntado sobre isso. Importa aproveitar mais uma faceta de um compositor (e autor) genial. Importa notar que o autor (e compositor) sabe lidar com a prosa de seus livros tanto quanto com a poesia de suas letras. E quem há de afirmar que esta lhe é superior?
Jornal do Brasil - Junho/2004
Beatriz Kushnir
Por definição, censor é o funcionário público encarregado da revisão e dos cortes de obras literárias e artísticas, ou do exame dos meios de comunicação de massa. No Brasil de fins da década de 1980, pós-Constituinte, a função teve seu sentido esvaziado. Mas quando, nos anos 70, os órgãos de Censura trabalhavam sem parar, o compositor Chico Buarque foi protagonista de vários episódios, vários embates, muitos deles até curiosos. A censora Carolina, que atuou no Departamento de Censura de Diversões Públicas do Rio, até hoje tem certeza de que, na letra de Jorge Maravilha, os versos ''você não gosta de mim/ mas sua filha gosta'' são uma mensagem direta a ela e a seus colegas.
Margarida, por sua vez, lembra que, ao receberem as letras das músicas, ela e os companheiros de ofício costumavam cantar alto uns para os outros (mesmo sem saber as melodias verdadeiras), tentando adivinhar qualquer segunda intenção, qualquer jogo de palavras sorrateiro. Em relação a Chico, Margarida revela que havia uma prática toda especial: era de lei carimbar como interditadas todas as letras de autoria de Chico, assim que chegassem à repartição. Antes mesmo do exame. Gatos escaldados.
Para driblar este esquema pesado, o compositor cunhou um heterônimo batizado Julinho da Adelaide, que seria filho da favelada Adelaide de Oliveira. A estratégia deu resultado. Músicas como Acorda, amor, Jorge Maravilha e Milagre brasileiro passaram sem grandes problemas pelo pente-fino e Julinho ficou tão personalizado que chegou a conceder uma entrevista ao jornalista Mário Prata, publicada na Última Hora. Mais do que com músicas, Chico teve problemas com uma peça: Calabar, dele e de Ruy Guerra, cinco vezes proibida, a partir de 1973, pelo general Antônio Bandeira, diretor-geral do Departamento da Polícia Federal nos anos 70. Ela só seria liberada cinco anos depois.
Beatriz Kushnir é doutora em História Social e autora de 'Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988'. Alguns censores que entrevistou para escrever o livro pediram para manter seus nomes em sigilo, o caso das duas censoras citadas no texto, que receberam pseudônimos '
O Estado de São Paulo - 19/06/2004
Ubiratan Brasil
São Paulo - Em uma entrevista a um jornal argentino em 1999, Chico Buarque de Holanda confessou que se achava mais inovador em sua literatura que nas letras de suas canções. E, se assim acreditava, era para reforçar também a influência literária que sempre marcou suas histórias em livros. Foi assim, por exemplo, com a história infantil "Chapeuzinho Amarelo" (1979), surgida a partir das fábulas que contava para a filha Luisa. Ou ainda em "Fazenda Modelo" (1974), que imediatamente remete a "Revolução dos Bichos", de George Orwell, mote escolhido para revelar e criticar a difícil situação vivida então pela sociedade brasileira, tolhida por uma ditadura militar.
O grande passo de Chico Buarque, porém, foi dado com "Estorvo", publicado em 1991, em que o próprio autor considera a virada para a maturidade literária. Trata-se de uma nova fase de sua escrita, em que ele busca alternativas para expressar seu pensamento. Conta, basicamente, a trajetória de um homem que não se sente bem em nenhum ambiente onde está.
"Estorvo é um livro brilhante, escrito com engenho e mão leve", observou o ensaísta e professor Roberto Schwarz, autor do artigo "Um Romance de Chico Buarque", que figura no livro de ensaios "Seqüências Brasileiras" (Companhia das Letras). "Em poucas linhas, o leitor sabe que está diante da lógica de uma forma."
Segundo Schwarz, o grande achado do autor é construir uma narrativa que corre no ritmo acelerado (na primeira pessoa e no presente), ao mesmo tempo em que busca ser despretensiosa. "A expressão simples faz parte de situações mais sutis e complexas do que ela", afirma ele, que considera o livro uma forte metáfora que Chico Buarque escreveu para o Brasil contemporâneo.
O mesmo tema (um homem que não se sente bem em seu meio) foi retomado com "Benjamim" (1995). Novamente, Chico Buarque fez da própria escrita o seu material, criando uma intrincada estrutura da narrativa, em que uma história é contada simultaneamente no presente e no passado.
Trata-se da história de um homem, Benjamim, que descobre em uma bela jovem, Ariela, os mesmos traços de uma mulher que o deixou apaixonado nos anos 1960, a rica Castana Beatriz. As duas épocas se cruzam ao longo da narrativa, criando um quebra-cabeça em que cada nova peça acaba negando o dado anterior - o presente e o passado correm em paralelo.
A linguagem é cinematográfica e o próprio autor, na época do lançamento, reconheceu uma certa influência da nouvelle vague na forma de narrar. Mesmo assim, parte da crítica não se sentiu seduzida pelo jogo proposto por Chico Buarque e considerou "Benjamim" sua obra menor. Fantasma - O habilidoso jogo de palavras voltou no ano passado, com a publicação de "Budapeste". É a história de um ghost-writer, ou seja, alguém que escreve o que outras pessoas assinam, artigos para jornal, autobiografias e até poesia. Um autor anônimo, porém, brilhante. José Costa é o ghost-writer que, certo dia, é convidado a comparecer, em Melbourne, na Austrália, a um congresso internacional de escritores anônimos. Por conta de problemas no vôo, fica retido em Budapeste. A capital da Hungria o fascina, especialmente a língua. Lá, começa a perder a própria identidade ao imaginar ter perdido o sotaque, transformando-se em Zsoze Kósta. Novamente, Chico Buarque volta a brincar com as palavras e, ao utilizar um personagem que vive da escrita, faz com "Budapeste" se transforme em seu texto mais autoral.
O Estado de São Paulo - 19/06/2004
Beth Néspoli
São Paulo - "Não se afobe não, que nada é para já/O amor não tem pressa, ele pode esperar" - canta Chico nos versos da canção "Futuros Amantes". "Claro, Chico, eu espero, o tempo que você quiser", suspira a ouvinte. Essa cena, fictícia, representa um desejo feminino bastante comum, e não restrito a adolescentes, quando se trata de Chico Buarque. Já se tornou folclórica a sedução que Chico exerce sobre as mulheres. Mas agora falando sério, por que ele é tão atraente? A julgar pelas entrevistas colhidas pela reportagem, um dos aspectos fundamentais - para além da evidente beleza de sua poética e de seus olhos - é a sua discrição, a forma elegante como preserva sua vida privada, qualidade atualmente rara entre famosos, cada vez mais falastrões, exibicionistas, prepotentes e tolos.
"É uma qualidade fantástica a forma como ele se preserva", diz a jovem atriz e produtora Fernanda D´Umbra. "Os homens ficaram muito pavões de uns tempos para cá. O Chico nunca caiu nessa. Apesar de ser uma figura pública, ele fica na dele, joga futebol com os amigos, leva a mesma vida de sempre. Jamais foi seduzido por esse glamour cafonérrimo de programas de televisão ou revistas de celebridades. Isso é muito atraente."
A experiente atriz e diretora Denise Weinberg concorda. "Ele nunca está envolvido em fofocas, sabe preservar sua dignidade. Aquele jeitinho contido cativa as mulheres, sobretudo as fortes, é uma atração fatal", brinca. "Atrai nele a discrição. Foi admirável a forma elegante como lidou com a separação. E ele vem conseguindo manter a mesma atitude ética e digna em todas as fases da vida. Ao contrário de outros artistas que eu admirava, ele está envelhecendo muito bem", observa a tradutora e ensaísta Fatima Saadi.
Se a discrição é a qualidade mais apontada no ´homem´ Chico, a obra é admirada sob muitos ângulos. Porém, o que mais seduz as mulheres é a forma como ele as retrata em suas músicas. "Nenhum outro compositor compreende a alma feminina como ele. Ele tem uma capacidade ímpar de traduzir poeticamente as coisas mais cotidianas do amor", diz Walderez de Barrros. Para reforçar seu argumento, ela lembra os versos de uma canção sobre separação, "Eu te Amo": "como (partir) se na desordem do armário embutido/meu paletó enlaça o teu vestido/e teu sapato ainda pisa no meu" ou "teus seios ainda estão nas minhas mãos". "É lindo isso! São essas pequenas coisas que doem mais fundo nesse momento." Bem semelhante é o pensamento da atriz Denise Weinberg. "Ele lida com o prosaico de forma tão poética que o transcende. Por exemplo: ´todo dia ela faz tudo sempre igual´. É simples demais, porém a gente ouve isso e chora." Ambas, Walderez e Denise, ressaltam o misto de simplicidade e sofisticação como uma das mais sedutoras virtudes de Chico. "Não é fácil ser simples. A cada vez que um diretor diz ´é simples´ eu fico arrepiada, pois isso é muito difícil", diz Walderez. "Chico fala do caos urbano, de crianças de rua, de traição, de amor, com harmonias e arranjos sofisticados, que emocionam, porém são cantáveis e podem ser tamborilados na mesa do bar. Atingir o simples, requer muita humildade. E isso cativa", completa Denise.
Fernanda D´Umbra não fica atrás em sua admiração ao compositor. "Chico escreve muito bem e isso é extremamente sedutor. Nenhuma mulher fica imune a seus versos. Ele é um poeta sensível e um profundo conhecedor da língua portuguesa. Chico é a prova cabal de que é possível ser sofisticado e popular a um só tempo."
Como se não bastasse ética, elegância, sensibilidade e talento - ainda tem aqueles olhos verdes! "Além de tudo ele é fisicamente lindo. Nem precisava, mas é. Não se pode esquecer isso, jamais", ressalta Fernanda. "Ele foi um jovem lindo; amadureceu e ficou um homem lindo e, se a gente tiver sorte e espero que tenhamos, ele vai viver muito e vai se tornar um velho lindo."
O Estado de São Paulo - 19/06/2004
Luiz Carlos Merten
São Paulo - Em quase 40 anos de carreira, Chico Buarque virou a exceção que confirma a regra - nem toda unanimidade, ao contrário do que dizia Nelson Rodrigues, é burra. Chico já surgiu, instantaneamente consagrado como grande músico e poeta popular - um novo Noel Rosa - com "A Banda". Nos anos seguintes, virou símbolo de resistência contra a ditadura e expressou, melhor do que ninguém, os segredos e aspirações mais íntimos do universo feminino. Será por isso que virou objeto de desejo das mulheres brasileiras de classe média? Se a música foi o seu primeiro campo de atuação, logo ele expandiu seus talentos pelo teatro e pelo cinema, onde foi até ator.
É difícil imaginar um filme como "Dona Flor e Seus Dois Maridos", de Bruno Barreto, sem a música que Chico e Milton Nascimento compuseram. Ele também produziu clássicos para outros filmes - "Eu Te Amo", de Arnaldo Jabor, e "Vai Trabalhar, Vagabundo", de Hugo Carvana. A melhor parceria no cinema, talvez tenha sido com Cacá Diegues. "Joana Francesa", a valsa triste que compôs para o belo filme com Jeanne Moreau, foi uma espécie de prelúdio para a esfuziante trilha de "Bye Bye Brasil". E Chico foi ator de "Quando o Carnaval Chegar", outro filme triste. Sobre a expectativa de uma festa que só poderia ocorrer, e efetivamente ocorreu, com o fim da ditadura militar. Chico compôs, na mesma linha, uma de suas obras-primas imortais, "Vai Passar". Foi também ator de Júlio Bressane, fazendo o Noel Rosa de "O Mandarim".
Ultimamente, de músico e, ocasionalmente ator, Chico passou a fornecedor de histórias para o cinema. As adaptações que Ruy Guerra e Monique Gardenberg fizeram de seus romances "Estorvo" e "Benjamim" trabalham com a linguagem, seguindo a sugestão dos livros, que se constróem na fascinação das palavras de forma criativa e original, destacando-se no panorama da produção nacional mais convencional. Chico tem investido tanto nessa nova e bem-sucedida carreira como escritor, que só cabe um reparo - o ideal seria que com os livros ele pudesse também cumprir o ritual de oferecer um disco a cada ano. O escritor é importante, mas o compositor nos faz falta.
O Estado de São Paulo - 19/06/2004
Lauro Lisboa Garcia
São Paulo - É curioso que o Chico melodista tenha sido sempre legado a segundo plano, mesmo sendo tão genial quanto o letrista. A melhor solução para esse equívoco foi o projeto do violonista Paulinho Nogueira (1929-2003), que gravou em 2002 um álbum todo dedicado às canções da primeira fase de Chico, em versões instrumentais sem floreios, para acentuar a beleza de suas melodias e harmonias.
Os melhores álbuns de Chico, lançados entre 1966 e 1985, estão reunidos na caixa "Construção" (gravadora Universal, R$ 700 em média), com 21 CDs, atemporais em grande maioria. A caixa "Francisco", que a BMG lança agora a propósito dos 60 anos da "unanimidade nacional", flagra um compositor menos motivado, mas nem por isso sem brilho. "Francisco" tem 12 CDs e 2 DVDs: "Chico e as Cidades" e "Chico ou o País da Delicadeza Perdida". Apenas quatro são projetos-solos de canções inéditas - "Francisco" (1987), "Chico Buarque" (1989), "Paratodos" (1993) e "As Cidades" (1998). Dois são registros de shows - "Paris, Le Zenith" (1990) e o duplo "Chico ao Vivo" (1999) -, que trazem porções generosas de clássicos, e outros dois são trabalhos em parceria com Edu Lobo para encenações musicais: "Cambaio" (2001) e a compilação "Álbum de Teatro" (1996). Há ainda um álbum de regravações, "Uma Palavra" (1995), a coletânea "Duetos" (2002) e um projeto coletivo, "Chico Buarque de Mangueira" (1998).
A caixa pode não flagrar os melhores momentos de Chico - já que cobre um período em que a criatividade foi gradativamente transferindo-se para a literatura -, mas tem pequenas obras-primas subestimadas, como pode ser constatado em "Cambaio" e "As Cidades", e revela sua maturidade musical. "Foi nesse trabalho que comecei a me achar músico", diz o autor sobre o álbum "Chico Buarque" (1989) no libreto que acompanha a coleção. E é a partir da parceria com o arranjador Luiz Cláudio Ramos que a pauta se acerta. Basta comparar as releituras contidas em "Uma Palavra". Chico teve intérpretes superiores para inúmeras de suas canções - Elis Regina, Milton Nascimento, Zizi Possi, Elizeth Cardoso, Maria Bethânia, Ney Matogrosso, Nana Caymmi, Gal Costa. Embora não se compare com os donos da voz, a voz do dono fala por si.
O Estado de São Paulo - 19/06/2004
Lauro Lisboa Garcia
Muitas homenagens ao compositor e escritor, que mantém seu estilo reservado
São Paulo - Chico Buarque completa seis décadas de existência neste sábado, mas evitou ficar no centro de qualquer comemoração. Nem quis dar entrevistas sobre a data e as homenagens em torno dela. Para os íntimos andou dizendo: "Acho uma bobagem isso tudo. Não estou fazendo aniversário de carreira são 60 anos de idade. E não vejo a menor graça nisso. Ainda bem que a gente não envelhece de uma hora para outra, assim vai acostumando com a idade." Os familiares confirmam: nada de agito. "Ele não quer nem fazer 60 anos, que dirá dar uma festa!" assegura a irmã Miúcha. "Papai nunca foi de comemorar aniversário e este ano será do mesmo jeito", garante a filha Sílvia.
O silêncio do homem discreto, sempre avesso à exposição desnecessária, é uma afronta sábia à grotesca roda-viva das celebridades no país da delicadeza perdida. Mas a engrenagem em torno da efeméride não pára. O lado bom é que o Chico sexagenário, que cogitou até se refugiar em Paris, é lembrado em música, teatro, literatura - searas em que o múltiplo artista deixou impressão digital como poucos -, virou tema de tese de doutorado do pesquisador Luca Bacchini na Itália e de exposição no Rio, vai aparecer em programas de tevê e até num livro-agenda Anotações com Arte, criado pelo produtor Fred Rossi para 2005.
A gravadora BMG lança na data de seu aniversário a caixa Francisco, com12 CDs, lançados entre 1987 e 2003, mais dois DVDs, os únicos de sua carreira. A montagem do musical Ópera do Malandro", dirigida por Charles Möeller e Cláudio Botelho, é o maior êxito da temporada carioca, com casa lotada há dez meses no Teatro Carlos Gomes, e vai estrear em São Paulo no dia 15 de julho, no Tom Brasil. A exposição Chico Buarque - O Tempo e o Artista será aberta terça-feira na Fundação Biblioteca Nacional, do Rio.
Além do sucesso de seu terceiro romance, Budapeste (2003), em negociação para ser vertido para 15 idiomas, a Companhia das Letras relança com novas capas os anteriores Estorvo e Benjamim, este recém-adaptado para o cinema. O americano Paul Auster lerá trechos de Budapeste na Flip - Festa Literária Internacional de Parati, que começa no dia 7 de julho e da qual Chico é um dos palestrantes. As livrarias já receberam também dois ótimos títulos de ensaios sobre o artista. Um é Folha Explica Chico Buarque (PubliFolha, 184 págs., R$ 19 90), assinado por Fernando Barros e Silva. O outro é Chico Buarque do Brasil, organizado por Rinaldo Fernandes.
Jornal do Brasil - Junho/2004
Eles discutiam se a letra era boa ou ruim antes da decisão
Maria Clara Wasserman
Mestre em História, professora e pesquisadora de MPB
A relação entre Chico Buarque e a Censura, durante os anos 70, tem sido motivo de inúmeras análises acadêmicas. Os recursos do compositor para escapar do crivo dos censores ficaram bastante conhecidos: utilização de palavras ambíguas (Cálice), inversões irônicas (Deus lhe pague), pseudônimos (Julinho da Adelaide e Leonel Paiva) e ainda construções de versos dotados de duplo sentido (Corrente).
Mas como foi que a Censura julgou Chico Buarque? O Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) reunia técnicos encarregados de julgar a viabilidade das letras, na época obrigatoriamente encaminhadas ao departamento. Durante a década de 70, ali era decidido sobre os temas que deveriam ou não ir a público. Chico protagonizou vários embates, que fizeram do artista um ícone da resistência à ditadura. A edição do Ato Institucional 5, em dezembro de 1968, regulamentou e intensificou a ação da Censura. O artista, que já tivera uma música vetada na década de 60 (Tamandaré), sofreu, a partir de então, várias intervenções em sua obra - isso aconteceu até a revogação do ato, em 1978.
A mudança política, no fim dos anos 60, se refletiu na obra artística. O disco Chico Buarque de Hollanda volume 4, produzido entre o fim de 1969 e 1970, marca a ruptura do compositor lírico. Nesse álbum, Chico denunciava abertamente a ditadura, (Rosa dos ventos, Cara a cara) e provocava os tropicalistas (Essa moça tá diferente). Apesar da contundência de algumas canções, o disco não sofreu sanções e na verdade não fez grande sucesso.
O divisor de águas da carreira do compositor se deu na virada de 1970 para 1971, com a repercussão do compacto simples que trazia Apesar de você. O samba-denúncia passou despercebido pelos censores e foi liberado. O sucesso foi instantâneo, vendendo mais de 100 mil cópias em sete semanas, no início de 1971. Quando o órgão censor percebeu o deslize, a repressão logo se fez sentir: a execução pública foi proibida, os discos recolhidos e o compositor autuado. A partir desse momento, o SCDP agiu com mais cuidado. Um veto ou aprovação passava, às vezes, a depender de dois ou três censores, para que nada mais escapasse: para barrar o craque, nada melhor do que vários marcadores. Na seleção de músicas para o LP Construção, também em 1971, a Censura apertou o cerco ao compositor. Várias canções foram ameaçadas de ficar de fora, entre elas a versão da italiana Gesubambino, de Dalla e Pallotino. Recriada por Chico com o título Minha história, seria vetada ''por ser incompatível com o respeito que se deve às convicções religiosas existentes no país'', como está escrito ao lado da letra enviada para a Censura, hoje constante do Arquivo Nacional.
O parecerista acreditava, com o veto, defender os valores morais da dita ''Revolução'' brasileira. Minha história acabou liberada e foi lançada também em compacto simples, ficando por várias semanas entre os dez mais vendidos. Outra canção do disco, Cordão, foi analisada com rigor. Passou pela Censura, apesar da observação de ser ''um protesto contra a ordem vigente''. Outras músicas da época, como Primeiro encontro (ou Susana), não tiveram a mesma sorte de Cordão. Foram vetadas e permaneceram desconhecidas até nossos dias.
O compositor, que se tornaria conhecido pela valorização do feminino em sua obra, passa a sofrer um outro olhar por parte dos censores quando é vetada a canção Bolsa de amores. E o texto de sua proibição voltava a mencionar a versão de Gesubambino: ''O autor parece, de uns tempos para cá, estar muito preocupado em denegrir a reputação de todas as mulheres, vide uma de suas últimas composições, Minha história, que relata a vida de um homem, filho de uma prostituta''. Foi a partir dessa época, por causa de episódios como esse, que a Censura tornou-se um fator estrutural no procedimento de criação do compositor, como ele mesmo reconheceria em entrevistas posteriores.
Em 1972, Chico contracenou com Nara Leão e Maria Bethânia no filme Quando o carnaval chegar. O disco com a trilha sonora do filme trazia sete músicas inéditas do compositor, entre elas Partido alto, que teve versos cortados por ser considerada ofensiva: ''Se é engraçado ou uma infelicidade para o autor ter nascido no Brasil, país onde ele vive e encontra esse povo tão generoso que lhe dá sustento comprando e tocando seus discos, e pagando-o regiamente nos seus shows, afirmo que ele está nos gozando. Opino pelo veto'', escreveu o censor.
Outra faixa da trilha sonora do filme também foi, num primeiro momento, proibida. Trata-se da música Caçada. Por ter sido apenas proibida ''de ser executada em lugares públicos'', por muitos anos permaneceu praticamente desconhecida. Um aspecto peculiar nesse parecer foi a curiosa manifestação de opinião estética, por parte dos censores: ''A música é uma toada, uma verdadeira obra de arte, mas isso não justifica sua liberação'', diz um. ''Todo o veio poético do autor foi posto à prova nessa composição. Ele foi procurar em outras palavras uma definição que está na própria Bíblia, qual seja o ato sexual. Temos uma obra musical limpa, uma criação de alto sentido poético'', diz outro. Mas os pareceristas, ao fim e ao cabo, entenderam a música da seguinte forma: uma obra de arte, sim, mas com apelo erótico e que não seria apropriada para execução em rádio.
É importante lembrar que, no início dos anos 70, Chico não era o único que sofria pressão sob sua obra - e provavelmente nem foi o mais vetado. A Censura atuou em vários segmentos da música popular, tanto no aspecto político, como no moral. Chico driblou bem. Mandava muitas músicas que caíam em mãos de diferentes pareceristas e utilizava recursos poéticos sofisticados. Tal como um jogador, iludiu a censura o quanto pôde e conseguiu manter a palavra circulando, numa época em que o silêncio forçado pairava sobre a vida cultural brasileira.
O Globo - 18/06/2004
Daniela Name
Chico Buarque prefere dizer que sua carreira literária começou com "Estorvo", terminado em 1990, em Paris, e lançado em novembro do ano seguinte. Com isso, vira a página de todos os seus escritos de juventude, que começaram a ser publicados em 1966, ano em que "A banda" chegou às prateleiras. Este primeiro livro reunia manuscritos das primeiras canções, o conto "Ulisses" e um texto de Carlos Drummond de Andrade sobre "A banda", trampolim de sua carreira como compositor. Antes, Chico já tinha escrito, entre 1963 e 1964, o poema "A bordo do Rui Barbosa", que só seria transformado em livro em 1981, com ilustrações de Vallandro Keating, um colega da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU).
"O poema é de 63 ou de 64. Anos que nós dois dedicamos a não estudar arquitetura. Ele era o malandro e eu era o carioca. Fazíamos bossa nova nos porões da FAU. Lembro que o malandro usava umas calças sem bolso e, como homem não podia andar de bolsa, ele vivia cheio duns papéis na mão. Quinze anos depois, o Vallandro me aparece com esse poema. Custei a me reconhecer", lembrou Chico.
Em 1974, ele lançou "Fazenda modelo" (Civilização Brasileira), ambientado numa fazenda de gado. Mas não costuma levar muito em conta esta novela no seu currículo como escritor.
- Não sei o motivo, mas ele prefere dizer que a carreira começou com "Estorvo" - diz Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, que publicou os três últimos livros de Chico.
O compositor também escreveu "Chapeuzinho Amarelo" (1979, José Olympio), história infantil ilustrada por Ziraldo em que relê o clássico "Chapeuzinho Vermelho" para falar dos medos de criança. "Fazenda modelo" já foi comparado a "Revolução dos bichos", de George Orwell, e contesta claramente a "vida de gado" dos brasileiros durante a ditadura militar. O livro também fez a reciclagem de um tema clássico da literatura brasileira - o boi.
"Estava com vontade de comprar um sítio e comecei a ver bichos e a gostar deles. Comprei livros sobre a técnica pecuária, não com intenção de montar uma fazenda, mas porque achei que ali tinha assunto, talvez para um outro conto", contou Chico em 1974, numa entrevista ao GLOBO em que também revelava que "Fazenda modelo" tinha sido escrito ao longo de uma viagem de dois meses. "Quando cheguei, tinha produzido um livro. Mal delineado, mas com começo, meio e fim. Deixei de lado o botequim, o cinema e o teatro, e não larguei mais o livro".
"Fazenda modelo" dividiu a crítica. No "Jornal do Brasil", destacou-se que "por incapacidade de sustentar literariamente o tom de sátira, ou empolgado, quem sabe, pelos acordes de uma deliberada manifestação política, Chico Buarque apresenta apenas idéias. Idéias em bruto". Já O GLOBO disse que "a novela pecuária transcende o aspecto do gado vacum e assume características sobre a paranóia do poder". Dezoito anos depois deste primeiro romance, "Estorvo" ficou pronto. Com medo do preconceito contra Chico, Schwarcz criou uma estratégia de lançamento arriscada, quase kamikaze: em vez de mandar as provas do romance para jornalistas, enviou-as para a casa de críticos como Leila Perrone Moysés e José Paulo Paes.
- Tinha ido almoçar com um jornalista importante e ele comparou a iniciativa de Chico com a biografia de uma atriz - lembra Schwarcz. - Resolvi arriscar e o livro recebeu numerosas críticas positivas.
Mas o crítico Wilson Martins, colunista do GLOBO, não gostou. E chegou a dizer que "Estorvo" era uma cópia de "Zero", de Ignácio Loyola Brandão.
Crítico comparou Chico ao "novo romance" francês
"Estorvo" é narrado em primeira pessoa e alterna vários tempos e estados de consciência. O narrador-personagem e os tempos que se interpenetram também aparecem em "Benjamim" (1995) e "Budapeste" (2003), romances seguintes. "Benjamim" também foi duramente criticado por Martins, numa coluna em que juntava o livro e "O Xangô de Baker Street", de Jô Soares, sob o rótulo de "literatura amadora":
"Por deliberação ou reminiscência involuntária, Chico Buarque escreveu pelo modelo já arcaico do 'novo romance' francês (que era 'novo' na década de 50). É a 'literatura do olhar', como a chamaram Robbe-Grillet e outros tratadistas, clara transposição das técnicas cinematográficas para o texto literário. A exemplo desses ancestrais, Chico Buarque entrega-se a descrições minuciosas em que o olho da câmera cinematográfica se transforma em microscópio (...) desde as primeiras linhas ele volta ao velho lugar-comum segundo o qual toda a vida pregressa perpassa vertiginosamente pelas pupilas do condenado no momento de sua morte - 'tal qual um filme', acentua o ficcionista".
Não se sabe se Chico escreveu mesmo pensando no cinema, mas é certo que o cinema tem lido Chico. Os direitos de "Budapeste" já começam a ser negociados, e tanto "Estorvo" quanto "Benjamim" ganharam versões para a tela, a primeira assinada por Ruy Guerra; a outra, por Monique Gardenberg.
- "Benjamim" tem um tom de observação aguda da realidade e das pessoas - diz Monique. - Isso é cinema hitchcockiano, ou de Godard, ou de Visconti. Um cinema menos verbal, que, no fundo, me interessa mais, porque ele está mais próximo da poesia do que da prosa, da tragédia do que do drama. Para se fazer um bom cinema é necessário desrespeitar a obra que o originou. Esta foi minha maior dificuldade na adaptação.
A crítica literária Beatriz Resende não acha que Chico escreva pensando no cinema:
- Há muitos contistas da nova geração desperdiçando texto literário ao criar contos que vêm decupados, pensados para uma futura adaptação cinematográfica. Mas Chico não comete este pecado. Se os cineastas se interessam por seu texto, é porque enxergam ali uma linguagem bem-acabada.
Beatriz acha que Chico pertence a uma família latino-americana de escritores. Diz que vê em "Budapeste" uma narrativa labiríntica, que aproxima o autor do jogo de espelhos de Borges e de Cortázar. Entre os autores mais jovens, Chico teria, para ela, parentesco com Ricardo Piglia, de "Plata quemada".
- Chico e Piglia são cronistas da cidade - diz ela. - E eu acho que é justamente a cidade que aproxima o Chico literário do Chico músico. Mas a cidade da literatura não é tão identificável quanto a das canções, em que os lugares são mapeados por meninos no sinal ou na citação explícita de bairros e ruas.
Além desta linhagem latino-americana, a literatura de Chico já foi comparada ao universo fantástico de García Márquez e ao jogo de acasos feito por Paul Auster. Schwarcz diz que, como leitor, nunca conseguiu identificar estas influências.
- Acho que ele pode ter lido García Márquez e Kafka, mas isso não fica tão explícito quando escreve - conta o editor, que se diz um privilegiado por publicar Chico. - Não é qualquer um que jogaria fora um livro quase pronto para melhorá-lo, como ele fez com "Budapeste". Ninguém jamais vai poder acusá-lo de ter pouco cuidado com a linguagem.
O Globo - 18/06/2004
Daniela Name
Durante o exílio na Itália, Chico Buarque procurava ocupação para preencher as longas horas vagas. Ignorado pelos vizinhos, ganhou popularidade no bairro onde morava ao servir de motorista e cicerone para Garrincha quando o jogador esteve em Roma. O futebol também deu uma forcinha contra o tédio quando ele resolveu criar, entre 1969 e 1970, Ludopédio, um jogo de tabuleiro que simulava a montagem de times e as jogadas de uma partida através de cartas. Sátira a um esporte que já começava a ser invadido pelos cartolas, o jogo incluía personagens curiosos, como o do pai-de-santo, essencial para garantir o resultado de algumas partidas no Brasil.
Mais tarde, Ludopédio foi lançado pela Grow com o nome de Escrete e as regras bastante simplificadas. E ainda assim foi considerado complicado e saiu de circulação, frustrando fãs que até hoje fazem campeonatos e discutem partidas nos blogs da internet. Talvez em vão:
"As regras estão aí mesmo para serem desrespeitadas", dizia Chico no texto de apresentação do jogo da Grow.
O Globo - 18/06/2004
Ele atua em diversos campos: literatura, cinema, teatro... Mas Francisco Buarque de Hollanda é Chico Buarque graças à música. E se nos anos 60 e 70 concentra-se a maior parte de seu repertório, e ainda as suas canções mais populares, o cantor e compositor da fase mais recente é tão bom quanto. Aproveitando a data redonda, a gravadora BMG - à qual Chico está ligado desde 1987 - está lançando uma caixa com 12 CDs e dois DVDs que têm muitas provas de como o tempo fez bem à sua música.
Nela estão seus quatro discos de carreira - "Francisco" (87), "Chico Buarque" (89), "Paratodos" (93) e "As cidades" (98) - e também o CD duplo "Uma palavra" (95), no qual Chico reviu, em estúdio, com novos arranjos, seus clássicos. No palco, o show de lançamento de "As cidades" pode ser conferido no DVD homônimo "Chico e as Cidades" e no CD "Chico ao vivo". Outro destaque é a trilha do musical "Cambaio" (01), seu último trabalho com Edu Lobo. Por sinal, as principais parcerias para o palco dos dois integram a coletânea "Álbum de teatro" (97), enquanto "Duetos" (02) traz encontros que estavam espalhados em diversos discos. Fundamentais.
O Globo - 18/06/2004
Leonardo Aversa
Meus encontros com Chico são sempre um exercício de sadismo. Ele detesta ser fotografado. O que me faz sentir como macaco em loja de louça. Prometo que, desta vez, vou ser mais rápido ( quatro anos atrás, demorei 15 minutos). Quem sabe agora, com tecnologia digital? Marcamos na Praia do Leblon, em frente ao Marina. Quando chego, ele está parado, distribuindo autógrafos. Anda todo dia por lá e sabe que o segredo é não parar. O carioca é blasé, mas resistir ao Chico parado, de bobeira, já é demais. Todos querem tirar foto do lado, pedir autógrafo, homens, mulheres, crianças, cachorros e papagaio. Todo mundo ali com cara de bobo, olhando para ele. Inclusive eu. Se é verdade que Deus não dá asa a cobra, ele deveria ser chato e grosso. E arrogante. Mas não. Fica pacientemente ali, atendendo um por um. Para tentar me enturmar, pergunto como é a sensação de completar 60 anos. "É uma desgraça", responde sorrindo. Fico pensando na passagem do tempo, na inexorabilidade do fim etc. Só depois me dou conta que a desgraça a que ele se refere é o assédio por conta da efeméride. Minhas fotos, por exemplo.
Tenho menos de dez minutos antes de ele começar a pensar em suicídio. Peço pro Chico andar pela beira do mar. Ele está ótimo, mais magro do que há quatro anos. O vento forte cola a roupa no corpo. O assessor de imprensa pergunta se isso não vai sugerir um princípio de barriga. A maioria das pessoas ao ouvir um comentário desses se ajoelharia clamando a Deus para parar com o vento, ou a mim por um retoque no computador. O Chico, não, o Chico acha graça. E continua andando, rápido. Não sei se ele está posando ou fugindo. Na dúvida, peço pra ele voltar. Ele atende e já volta perguntando se acabei. Tinha guardado os últimos dois minutos para um comentário inteligente, mas achei melhor aproveitar o tempo para mais fotos. Quem sabe daqui a quatro anos eu invento algo. Termino a sessão e ele vai embora, aliviado. Foram 12 minutos.
O Globo - 18/06/2004
Artur Xexéo
A notícia foi desanimadora: Chico Buarque não vai dar entrevistas. Não que isso nos surpreendesse. Pelo menos, quatro vezes por ano, uma entrevista com Chico é pautada aqui no Segundo Caderno. E, pelo menos, quatro vezes por ano, a pauta não é cumprida. Chico não dá entrevistas. Mas, quem sabe, desta vez, sendo uma homenagem... Não adianta, Chico é irredutível. Será que valia a pena mesmo fazer um caderno especial?
Paulinho não deu entrevista e Gabi cantou ao telefone
Bem, a gente poderia ouvir os amigos, os colegas de profissão, escrever sobre a obra teatral, o Chico do futebol, o Chico do cinema, uma enquete para escolher a sua melhor música... Fomos em frente, dava para fazer um caderno de dez páginas.
O colunista Joaquim Ferreira dos Santos tentou fazer uma foto de Sílvia Buarque para a Gente Boa. Ela foi supergentil, mas quem sabe noutra ocasisão? O repórter Arnaldo Bloch tentou ouvir Paulinho da Viola. Quem sabe noutra ocasião? A sucursal de Brasília tentou o voto do presidente Lula para a enquete. Ele estava na China!
Tecnicamente, este caderno começou a ser feito há dois meses, quando o repórter Mauro Ventura foi a São Paulo cobrir a estréia de "Benjamim". Chico estaria presente. Dava para começar a colher material. Em Brasília, a repórter Isabel Braga era bem-sucedida na colheita de votos no Congresso para a eleição da melhor música:
- Os políticos, sempre tão sisudos e ocupados, transformaram-se quando fiz a pergunta - relata ela. - Em vez de reagir de forma irônica ou irritada, como fazem quando ouvem perguntas sobre política, desarmaram-se: não resistiram e cantaram um ou mais versinhos da música e ensaiaram uma certa nostalgia. João Paulo, presidente da Câmara, cantou duas estrofes de "Minha história". Até mesmo o formal Marco Maciel cantou um pedaço de "Paratodos", não escondendo o orgulho ao comentar que o avô de Chico era pernambucano, como ele.
Estava dando certo. Pensando bem, talvez o material segurasse um caderno de 12 páginas.
Toca o telefone. É Marília Gabriela cantando um trecho de "Todo o sentimento". Mais um voto. Roberto Carlos promete mandar um texto. Chico topou posar para fotos. Quem sabe 14 páginas?
Mauro segue Chico numa caminhada e o acompanha da ponta do Leblon até a Rua Joana Angélica, em Ipanema. Ida e volta. Pela areia. Chico só de calção. Mauro de calça comprida, camisa social, sapatos e mochila. Está com dor no joelho até hoje.
- Você deu sorte - tripudia o compositor. - Geralmente eu vou até o Arpoador e volto.
Pelo joelho de Mauro Ventura, topamos fazer 16 páginas.
Arnaldo consegue reunir depoimentos de um festival da canção completo (Milton, Gil, Caetano...). O repórter Hugo Sukman localiza Cacá Diegues no Recife. E a sucursal de Brasília, enfim, consegue o voto de Lula. Não há dúvida, o caderno merece 18 páginas. Imaginem se o Chico tivesse dado entrevista!
O Globo - 18/06/2004
Em cerca de quatro décadas de carreira e exposição pública, Chico Buarque não tem jogado conversa fora. Se não chega a integrar o time dos escritores J.D. Salinger e Dalton Trevisan e do cantor João Gilberto, notórios alérgicos a entrevistas, dosa com cuidado suas aparições na imprensa, como contou, em junho de 2000, à finada revista "Bundas": "Tenho que dar entrevistas porque sou escalado pra isso, quando tem lançamento de um disco, de uma peça de teatro, principalmente quando envolve outras pessoas. Aí você não pode ficar se fazendo de 'doce'. Agora, tem épocas em que eu não tenho nada pra falar." Quando quer, e tem o que falar, Chico Buarque se expressa com clareza, sem rodeios, como a coletânea abaixo, com trechos de entrevistas feitas entre 1966 e este ano, confirma.
Governo Lula: "É evidente que não estou satisfeito, que ainda falta muita coisa. Nem o próprio Lula está satisfeito. Mas acho que ele ainda tem tempo de realizar pelo menos parte do que prometeu". ("Folha de S. Paulo", março de 2004)
Edu Lobo: "Nos anos 60, quando nos conhecemos, eu não costumava fazer parceria com ninguém. Fiz umas coisas com o Tom, como 'Retrato em branco e preto' e 'Sabiá', mas muito pouco. Fui aprendendo aos poucos, e só nos anos 70, quando comecei a compor para valer com o Francis (Hime) , é que comecei a pegar o jeito. Quando encontrei o Edu em 'O Grande Circo Místico', eu já estava dominando mais essa história." (O GLOBO, agosto de 2000)
Segundo mandato de FH: "Tentei acreditar no primeiro governo, do fundo do meu coração. No segundo, eu já não acreditava. Já discordei da reeleição. Há muito tempo que me sinto sozinho em relação a esse governo." ("Folha de S. Paulo", agosto de 2000)
Bossa Nova: "Quando apareceu 'Chega de saudade', foi um choque tremendo, me lembro perfeitamente. Ficava horas, a tarde inteira ouvindo aquilo, ouvindo, ouvindo, ouvindo... Conhecia o violão de João Gilberto desde o disco da Elizeth Cardoso 'Canção do amor demais', um disco que freqüentou muito a Telefunken dos meus pais." ("Songbook Chico Buarque", dezembro de 1999)
Tom Jobim: "Quem me levou na casa dele foi Aloysio de Oliveira, dono da gravadora Elenco. (...). A partir de 1967, a gente ficou parceiro. A primeira letra que fiz para ele foi para uma música já gravada, chamada 'Zíngaro'. Com a letra, ganhou o nome de 'Retrato em branco e preto'. Vinicius estimulou muito a parceria. Mas eu achava que era um risco muito grande fazer letra para Tom, até porque a minha única experiência de letrista para música pronta tinha sido para 'Lua cheia', de Toquinho. Compor com Tom foi uma coisa que me deu trabalho mas muito orgulho também. Era a glória." ("Songbook Chico Buarque", dezembro de 1999)
Vinicius de Moraes: "Eu não via o Vinicius. Eu queria ser o Vinicius, que conhecia desde criança, porque ele era amigo do meu pai. Queria ser o Vinicius, com mulheres bonitas, tomando aquele uísque, tocando violão, fazendo poesia. Não queria mais nada." ("Songbook Chico Buarque", dezembro de 1999)
Férias: "Quando estou escrevendo, me divirto à beça, quando estou compondo também, quando estou criando, encontro o prazer que não encontro nas férias. As férias, pra mim, são um grande aborrecimento, fico aflito, ou porque acabei de concluir um trabalho, ou porque estou procurando o que fazer em seguida - é um intervalo inócuo." ("Caros Amigos", dezembro de 1998)
Música & Literatura: "Acho que ficou ainda mais clara para mim a fronteira entre essas duas coisas. Quando eu digo que vou fazer um experimento literário em música, é em música popular e com linguagem de música popular. As palavras que vou escolher surgem em função da música, aqueles nomes de cidades estão ali por causa da música. Se eu fosse escrever um livro, não seria aquele texto. A escolha das palavras seguiu um critério musical." ( O GLOBO, novembro de 1998)
Preguiça & Paciência: "Não tenho preguiça. Se eu ficar com fama de preguiçoso, não vou me incomodar, mas não é isso. Não tenho preguiça de trabalhar. Na verdade, gosto muito de compor, de lançar disco, tudo isso. Não faço mais porque não consigo mesmo, porque hoje me custa muito mais tempo. Cada vez me custa mais tempo escrever uma canção. Isso não é preguiça. Talvez seja mais paciência do que preguiça." ("Época", novembro de 1998)
Futebol: "Não entendo de futebol. Vou a essa Copa, que é a primeira a que pretendo assistir do começo até o fim, mas a minha idéia de escrever é um pouco de escrever sobre futebol também para quem não entende de futebol que nem eu. A Copa é um acontecimento que interessa até a quem não se interessa por futebol (...) Geralmente a gente gosta das coisas que não entende exatamente. Não entendo nada de música e gosto de música e trabalho com isso." (O GLOBO, maio de 1998)
Ofensivo: "Eu só gosto de futebol ofensivo, só gosto de ataque. Aliás, não entendo nada de jogador de defesa." (O GLOBO, maio de 1998)
Mangueira: "Sou Mangueira como sou Fluminense. Sinto uma vibração pela Mangueira que vem desde criança e chegou através das músicas que falam sobre a escola, aquelas pessoas, aquele lugar. É uma coisa mitológica para mim. Mas eu não conheço a fundo escola de samba, não tenho intimidade com samba-enredo. 'Vai passar' é um samba-enredo estilizado." ("Jornal do Brasil", novembro de 1997)
Cinema: "Gosto muito de Fellini e de Buñuel. Me sinto mais em casa com Buñuel, mas não é um juízo de valor. É apenas uma questão de afinidade." ("Folha de S. Paulo", junho de 1994)
Beatles: "Conversei isso outro dia com o Djavan, que é pouco anos mais novo que eu(...). Os Beatles pra ele representaram o que a bossa nova foi pra mim. Existe uma idade, 15, 16 anos, quando você está aberto pras novidades musicais. Quando apareceram os Beatles, eu já estava fazendo minha música. É claro que eu gosto dos Beatles, mas não teve o mesmo impacto que teve pra mim a bossa-nova. " (Rádio Eldorado, setembro de 1989)
Drogas: "Já experimentei, sim. Maconha, cocaína, mescalina, ácido e haxixe (...) Eu não sou um drogueiro. Sou contra as drogas, eu as conheço e te digo que não vale a pena. Pelo menos no meu caso não vale a pena mesmo, até porque, se bobear, eu sou uma pessoa que, por temperamento, é capaz até de ir longe em qualquer viagem dessas, até pelo desafio, pelo gosto da aventura." (Revista "Afinal", 1987)
Unanimidade: "Como dizia Nelson Rodrigues, 'toda a unanimidade é burra'. Eu suspeito muito da unanimidade, pois ela só serve para as pessoas jogarem pedra. Principalmente em quem está em evidência, sempre convidado a dar declarações sobre tudo, polêmicas, que nem sempre agradam."( O GLOBO, fevereiro de 1985 )
Festivais: "Eram uma conseqüência do ambiente que existia. O que houve com os festivais foi que as pessoas tiveram a inteligência de pegar o que estava acontecendo nos bares, nos teatrinhos, coisas assim, e levar tudo isso para o grande público. E como tudo aquilo estava no ar, o público também se interessou por aquilo. (...) Isso acontecia especialmente em São Paulo, em 66, 67. E a televisão então pegou, captou isso. Só. Tanto que depois ficou uma coisa artificial. " (Revista "Música", maio de 1977)
Moda: "Eu quase não faço compra nenhuma e ando meio mal vestido. Acho mesmo que reajo em sentido contrário às imposições da sociedade de consumo. Talvez por me sentir ameaçado, eu sou um cara fora de moda, tenho um certo fascínio pelas coisas fora de moda, não estou falando em nostalgia, é claro, que é moda. Não uso muito as gírias do momento, gosto de contrabaixo de pau, de piano de pau, toco violão de pau e sou um compositor de pau." (Revista "355", 1976)
Herói: "Tem gente pensando que tenho vocação de herói, ou pretenda me transformar em bandeira ou num líder das oposições do Brasil. Não é isso, não sou político. Sou um artista. Quando grito e reclamo, é porque estou sentido que se estão pondo coisas que impedem o trabalho de criação, do qual eu dependo e dependem todos os artistas. Mas, se defender a liberdade de criação é hoje um ato político, também não tenho por que fugir dele." (Revista "Realidade", 1972)
Subversivo: "Não sou subversivo, não, porque inclusive não pretendo dizer nada por baixo... Se alguém me faz subversivo, é a própria Censura. Porque eu quero dizer as coisas claramente. Não quero dizer sub não. Inclusive eu acho chato que às vezes tenha que procurar uma imagem, uma metáfora, pra dizer um negócio. Eu gosto de dizer as coisas claras." (Revista "Bondinho", 1971)
Infância: "Eu não vivia entre intelectuais, eu não vivia fechado. Minha infância foi toda mais aberta, com 5 anos era moleque de rua, jogava pelada. Atrás de casa tinha um circo, ia pro circo, era um moleque, como outro qualquer, não vivia fechado em nada. Meus pais nunca me fecharam em casa. Desde moleque eu tinha uma vida que era povo, afinal." (Museu da Imagem e do Som, novembro de 1966)
Noel Rosa: "Eu não vejo uma ligação com o Noel como fazem. Até me constrange um pouco. Eu gosto muito do Noel, mas não é um negócio absoluto. 'O segundo Noel'... essas coisas... Eu não me identifico com ele a esse ponto. Com a Bossa Nova, depois que apareceu o Vinicius (na parte de letra, na parte de música acho que não tem que ver) apareceu uma porção de outros letristas seguindo a linha ou procurando seguir a linha do Vinicius. Depois veio a fase rural, e meu samba é urbano, porque eu nunca morei em fazenda e não gosto da vida do campo. Meu samba é urbano e é objetivo. Isso é mais ou menos o que o Noel fazia, mas não é só o Noel que fazia isso." (Museu da Imagem e do Som, novembro de 1966)
O Globo - 18/06/2004
Rodolfo Fernandes
Uma das maiores lendas do showbiz nacional é a de que Chico Buarque é tímido. Nada mais falso. Todos os amigos são unânimes em rejeitar esta versão para a imagem do artista. Tão falso quanto isso só dizer que Chico é recluso, não sai de casa, não é visto nos lugares. Há variadas teorias no mercado para os motivos que levaram essas duas características a virarem quase sinônimos da personalidade de Chico, mas o próprio compositor já tentou desfazê-las em entrevistas e não conseguiu. O fato é que ninguém acredita. "No Brasil, se você não quer posar para revista de celebridades, te chamam de Greta Garbo", reclamou recentemente, ao saber que estava sendo comparado à atriz sueca que virou mito por viver reclusa.
Decididamente, recluso Chico não é. Talvez nenhum outro artista possa ser visto com tanta freqüência e regularidade nas ruas do Rio. Alguém sabe onde estarão hoje Roberto Carlos, Bethânia, Gal ou Milton? Impossível. Mas Chico estará na mesma hora de sempre fazendo a sua caminhada no calçadão. À noite, pode estar em casa lendo, comendo uma pizza na Capricciosa ou jantando num dos muitos restaurantes italianos da cidade. Se for segunda, quinta ou sábado, vai estar jogando a pelada com o time do Polytheama, como faz há 20 anos. Mais comum, impossível.
Se não é tímido e nem recluso, por que a imagem? A única explicação talvez seja a ferrenha luta que trava para manter a privacidade. Numa época de explosão de celebridades e revistas com a intimidade de artistas, Chico optou por não fazer nenhuma concessão. É a única personalidade que a "Caras" nunca conseguiu fotografar, a única casa que não se abriu para as lentes da revista. Quanto a isso, é irredutível. No mais, vai a ensaio de escola de samba, à casa de amigos, estréias musicais, vê os principais filmes em cartaz, lê muito (tem uma invejável coleção de dicionários), almoça aos domingos com a família, passeia com netos no shopping...
Do aeroporto direto para pelada matutina em clube do Leblon
O mito da timidez talvez decorra mesmo da pouca exposição pública. Mas Chico é o oposto disso. Irônico, levemente debochado, brincalhão, exímio contador de histórias (daqueles que vão no detalhe mais picante), ele é, em determinadas situações, quase exibido. O documentário sobre seu pai, Sérgio Buarque de Hollanda, recentemente lançado, mostra a forte influência paterna num detalhe curioso da personalidade de ambos: o maior historiador brasileiro adorava uma fofoca. E o maior compositor brasileiro, também. Quer chamar a atenção de Chico? É só contar um detalhe prosaico de uma grande história que ele reage com interesse semelhante ao do pai. Não raro, emenda com mais e mais detalhes, que deixam o interlocutor curioso sobre as suas variadas fontes de informação.
Chico é um consumidor atento dos jornais, que lê logo ao acordar - o que não significa que seja cedo, pois tem dificuldade para dormir e só vai para a cama bem tarde. Na Copa da França, em 1998, quando escrevia uma coluna para O GLOBO, remarcou pessoalmente para de noite todas as viagens diurnas de trem e avião. Certa vez, apareceu de manhã numa pelada dominical no Clube Federal, no Leblon, mas a surpreendente presença matutina tinha uma explicação: Chico acabara de desembarcar de Paris e foi direto do aeroporto jogar bola. Em outra ocasião, para prestigiar um amigo do Polytheama, dirigiu três horas até a cidade de Carmo, na divisa do Rio com Minas, só para jogar uma pelada no campo local. Jogou, comeu rapidamente e dirigiu mais três horas de volta. Detalhe: era dia de seu aniversário.
Como bom leitor de jornal, sabe minúcias das páginas mais escondidas do noticiário. Na TV, conhece de cor o nome de todos os apresentadores da GloboNews na madrugada. Acompanha o noticiário político atentamente. Continua apoiando sinceramente o presidente Lula, mas seus tempos de participação política direta ele já disse que acabaram. Isso não o impediu, por exemplo, de assinar um manifesto em defesa do ministro José Dirceu, quando ele estava no auge do fogo cruzado no começo do ano. Mas não foi ao jantar de desagravo organizado para o ministro. E só mesmo o governador Aécio Neves (MG) para imaginar Chico na sua badalação particular no dia do jogo Brasil x Argentina em Belo Horizonte. Aécio queria que Chico cantasse o Hino Nacional antes do jogo, no meio do Mineirão.
No encontro com Miguel Arraes na campanha, só Marieta falou
Aliás, uma confusão com o Hino Nacional mostra um outro lado da personalidade de Chico: ele é capaz de ficar irritado durante anos quando é alvo de uma notícia errada ou maldosa. Até hoje reclama de um jornal que escreveu, na final da Copa da França, em 1998, que, na hora da execução do Hino Nacional brasileiro, não se levantou para cantar. Chico estava na bancada de imprensa do Stade de France, junto com a equipe do GLOBO, e decididamente esta situação não ocorreu.
Recentemente, achou que deveria ter aceitado o convite do programa "Linha Direta" que tratou do caso Zuzu Angel. Alguns depoimentos do programa não coincidiram com os fatos que presenciou na convivência com a estilista. Ficou preocupado com a imprecisão histórica.
Seu apoio a Lula não é isento da constatação de certas falhas. Tem uma opinião curiosa sobre alguns erros de comunicação cometidos pelo governo: acha que Lula deveria criar um novo ministério. O nome do novo cargo? "Ministério do Vai Dar Merda". Funcionaria assim, segundo Chico:
- A cada decisão importante, esse ministro seria chamado. Se o governo decide recadastrar os idosos, o Lula convoca o ministro e pergunta: "Vai dar merda?" O ministro analisa o caso, vê que os velhinhos vão ser humilhados nas filas, e responde: "Vai dar merda". No caso da briga com o "New York Times", era só chamar esse ministro e perguntar: "Vamos expulsar o jornalista. Vai dar merda?" O cara ia analisar e responder: "Vai dar merda"...
Se, decididamente, não é tímido, seu estilo mesmo assim provoca reações diversas nos intelocutores. Apesar da amizade de muitos anos, o compositor Caetano Veloso fica nervoso toda vez que encontra Chico - e desanda a falar. Chico, em situações semelhantes, ao contrário, é capaz de não fazer esforço algum para abrir a boca. Se encontrar pela frente alguém tão calado quanto, é silêncio na certa. Foi o que aconteceu em 1986 quando foi a Recife dar seu apoio à candidatura de Miguel Arraes ao governo de Pernambuco. Junto com a então mulher, Marieta Severo, Chico e Arraes marcaram um encontro antes do comício. Foi uma conversa histórica: só Marieta falou, já que Arraes e Chico ficaram mudos...
Caetano é, aliás, um dos personagens preferidos das histórias de Chico - sempre tratado com carinho, o que desmente inteiramente versões sobre supostas rivalidades entre os dois. Uma das melhores é a do dia em que uma de suas filhas, numa carona em Salvador, ouviu o seguinte diálogo (de pessoas que naturalmente não sabiam quem ela era): "O Chico Buarque é gay", disse uma dos presentes no carro. "Mas como, ele tem filhos?", reagiu outro. E o primeiro completou: "Ué, mas o Caetano também tem". Certa vez, jovens em São Paulo, Chico convenceu Caetano a subir numa árvore para cantar para uma namorada... do próprio Chico. A namorada: Eleonora Mendes Caldeira. A música? Nada menos do que "Morena dos olhos d'água". E há também a história do dia em que, andando no calçadão na praia, uns garotos apontaram para Chico e falaram: "Olha lá o Chico e Caetano". Era época do programa dos dois na TV Globo e os meninos achavam que eles eram uma só pessoa.
O lado moleque de Chico fica mais evidente ainda quando está em campo defendendo o Polytheama. Há quem diga que, no gramado, entre os amigos, é que ele realmente sente-se à vontade - e é capaz das maiores gozações. A começar pelo apelido que deu para o time adversário, invariavelmente batido pelo invicto Polytheama: Os Miseráveis - tudo porque o principal jogador do time chama-se Vitor Hugo, homônimo do escritor francês. Seus bordões nas peladas já são famosos. Se algum jogador chuta uma bola errada, Chico provoca: "Na terça-feira vai ter treinamento de chutes, às dez da manhã." A fórmula varia: pode ser aula de cabeçada, passe, etc. Se uma bola é lançada em profundidade e não é alcançada pelo jogador, claramente por erro de quem deu o passe, Chico grita: "Corre, pô. Joga sério."
Provocar os adversários que jogam nos Miseráveis é uma das grandes diversões de Chico. Quando o Polytheama está ganhando de goleada, o que não é raro, Chico fala alto para os companheiros, de forma que os rivais possam ouvir: "Vamos fechar a defesa, pois 10 a 0 aqui nesse campo não é nada." No mesmo tom, sempre falando alto para o seu time mas dirigindo-se na verdade aos adversários, ele gosta de brincar: "Olha, gente, o time deles parece ruim mas não é, não". Ou ainda, tentando criar intriga no escrete adversário: "Vamos tomar cuidado, o time deles tem um cara que é inteligente e um outro que sabe chutar".
Quando não está recebendo bola de seus próprios companheiros, Chico tem um ritual: sai de campo, tira a camisa, dá meia-volta, coloca de novo e volta ao gramado. "Olha, estou em campo e minha camisa é da mesma cor que a sua".
Brincadeiras à parte, Chico joga calado, não reclama de ninguém. Mas pode ficar transtornado se houver algum lance violento. Se for um carrinho por trás, então, a imagem comumente associada a ele muda totalmente: o Chico Buarque tímido e calado, decididamente, dá lugar a outro, que reage com veemência à violência. Como acontece em qualquer pelada país afora. Porque, a rigor, Chico é apenas, como diz a sua música, um artista brasileiro, que vai na estrada há muitos anos.
Jornal do Brasil - Junho/2004
Como se deu a construção de um símbolo nacional
Lula Branco Martins
A maior construção que Chico Buarque ergueu em sua carreira talvez não seja sua canção cheia de proparoxítonas. A principal obra pode ter sido a sua imagem, lapidada tijolo por tijolo desde os anos 60. Imagem que reflete de um lado o artista mártir da ditadura, e de outro, o cidadão íntegro e coerente. Zeloso deste capital simbólico, Chico não lhe permite arranhões, revolta-se ao se sentir injustamente acusado, recorre à Lei quando é o caso.
Sua preocupação com o que sai publicado a seu respeito é, por isso mesmo, muito grande. Em 1975, por exemplo, o Pasquim resolveu transformar em livro um conjunto de entrevistas dadas ao jornal, a partir de 1969, por artistas da música popular, como Bethânia, Tom, Roberto, entre outros. Ao saber que sua entrevista, publicada em 1970, também estaria incluída, Chico bronqueou. ''De jeito nenhum. Aquilo está completamente desatualizado''. Explica-se. Chico, provavelmente, não quis que repercutisse mais uma vez o que havia falado na época sobre os então exilados Caetano e Gil. Dizia na entrevista, por exemplo, que depois da polêmica com o Tropicalismo perdera a amizade dos dois e que não gostou da gravação que Caetano fez de Carolina, pois o violão estava mal tocado. Chico só toparia entrar no livro do Pasquim se fosse feita uma nova entrevista. O jornal aceitou as condições e ele interrompeu os ensaios da peça Gota d'água para gravar o depoimento. O jornalista Jaguar, editor do livro O som do Pasquim, falou esta semana ao JB sobre o episódio. Acredita que Chico estava certo em sua atitude: ''O que a gente pensa numa semana pode não ser o que pensa na semana seguinte''. Então que sentido teria um livro retrospectivo? E se os outros 12 artistas também tivessem pedido para ser entrevistados de novo? ''Ainda bem que foi só o Chico'', suspira Jaguar.
Esta preocupação de Chico com os entreveros que na época havia entre ele e os tropicalistas rendeu recentemente outra intervenção do artista. Em 2002, o livro Eu não sou cachorro, não, de Paulo Cesar de Araújo, reproduzia uma suposta entrevista de Chico ao jornal Última Hora-SP, também de 1970 (assinada por Carlos Alberto Gouvea), e na qual ele fazia críticas ainda mais duras a Caetano e Gil. Ao saber do teor do livro, Chico escreveu um desmentido público afirmando que jamais dera aquela entrevista e que, portanto, o livro trazia uma matéria fictícia.
Além da intervenção do próprio Chico, parece existir uma tendência, entre os formadores de opinião, de também preservá-lo. A memória que vem sendo construída lhe é francamente favorável e episódios que poderiam sob certos aspectos manchar a sua imagem são esquecidos. No começo dos anos 70, houve um embate duro, e público, entre Chico e o dramaturgo Nelson Rodrigues. Chico, numa entrevista à Veja, deu a entender que não gostava de vê-lo no rol de seus fãs - afinal, Nelson era considerado reacionário. O escritor revidou em crônica no Globo: ''A revista foi perversa, pois intimou Chico a ser profundo. E ela sabia que a profundeza do entrevistado é dessas que uma formiguinha atravessa a pé, com água pelas canelas''. É interessante notar que, na biografia mais completa de Nelson (O anjo pornográfico, de Ruy Castro), há referências a quase todas as picuinhas envolvendo o dramaturgo - com Niemeyer, Dom Helder e Drummond, por exemplo. Mas aquele bate-boca com Chico não é nem citado. O JB conversou com Castro. Ele sabia do caso. ''Mas não quis pôr no livro'', diz, simplesmente.
Um outro exemplo de esquecimento comum refere-se à fase de Chico como garoto-propaganda. O artista, hoje, costuma dizer, às vezes com orgulho, que não empresta letras para publicidade. Nos anos 60 - certo que ainda jovem demais -, fazia propaganda do Mug, um bonequinho sem pernas e vestido à moda escocesa, que foi uma febre na época. Ao Mug, espécie de amuleto, eram atribuídos poderes de sorte e lá estava Chico nos programas de televisão cantando suas músicas de Mug na mão. Outros cantores, como Simonal, também foram contratados pelo publicitário Horácio Berlinck, e deixavam-se fotografar, no palco, segurando o boneco. Este marketing agressivo ajudou a vender milhares de Mugs. Ele até ganhou de Chico uma citação no texto de capa de seu primeiro LP, em 1966.
No tempo da repressão, o próprio Chico tomou atitudes que certamente ajudaram a moldar uma imagem de artista perseguido pelo regime - e o fez, por exemplo, reforçando suas constantes batalhas com a Censura. Alguns episódios ilustram isto. Em 1971, ele compôs (em parceria com Carlos Lyra) uma música chamada Essa passou, título que não tem nada a ver com a letra, mas era uma forma de denunciar e propagar que ele era uma constante vítima da censura.
Outro caso emblemático envolve a proibição da capa do LP com as músicas da peça Calabar, em 1973. A capa dupla do disco, que trazia o nome do espetáculo pichado num muro, foi proibida, pois os censores enxergaram um significado subversivo. Chico reagiu lançando o mesmo disco com capa totalmente branca e sem título. O seu Álbum branco, digamos assim.
Manteve, entretanto, a ficha técnica da capa anterior, com os nomes dos fotógrafos (eram três), evidenciando, assim, mais uma vez, a ação da Censura. O curioso é que esta capa também acabou sendo recolhida, mas não por ordem da repressão. A decisão foi da própria gravadora. É que o disco simplesmente não vendeu, e o departamento comercial da Philips identificou na capa branca a causa do fracasso comercial. Semanas depois, o LP foi relançado com nova capa, mais simples, mais normal, apenas com uma foto do artista, de perfil, com o título Chico canta.
Ressalte-se que, em todos esses episódios, ao mesmo tempo em que denunciava a ação da Censura, Chico reforçava sua imagem de combatente e de vítima do arbítrio. A rigor, qualquer artista censurado da época (como Gonzaguinha ou Taiguara) poderia ter feito Essa passou ou mesmo ter lançado uma capa branca após a proibição da capa original (caso de Caetano Veloso, que teve a capa do LP Jóia vetada em 1975), mas quem o fazia de forma sistemática era Chico.
Outro traço que aos poucos foi sendo fixado no imaginário coletivo é o do Chico exilado. A expressão mais correta deveria ser ''auto-exílio'', pois a ida dele para a Europa, em 1969, não se deveu, como alguns podem pensar, à impossibilidade de condições de trabalho no Brasil: até aquele momento, Chico não era visado pela Censura. Havia lançado três discos, 36 faixas, e teve apenas uma canção vetada, Tamandaré, brincadeira com o almirante que estampava a nota de 1 cruzeiro. Chico saiu do país porque quis, no início de 1969, para participar de uma feira internacional de música, na França. Havia ainda a idéia de aproveitar o sucesso que A banda fazia na Itália e engatar uma carreira por lá. Ele voltaria um ano e meio depois, também quando quis. Não se tem registro de cadeia em sua trajetória. Pode-se afirmar, neste particular, que durante todo o regime militar Chico foi intimado a comparecer em delegacias, viu-se tirado de casa com freqüência e prestou depoimentos sobre peças e músicas. Sofreu, evidentemente. Não esteve, no entanto, atrás das grades noites a fio, como aconteceu aos colegas Caetano e Gil - forçados a deixar o país, não sem antes terem as cabeças raspadas, e passaram por simulações de fuzilamento na prisão. No entanto, nenhum dos dois ficou tão marcado como vítima do regime quanto Chico Buarque.
Em 1992, foram abertos à consulta pública os documentos do Departamento da Ordem Política e Social, o Dops. A ficha de Chico, sem foto, era a de número 6.601 e só reunia ''amenidades'', como ele próprio observou na época. Dela não constavam prisões nem interrogatórios. O JB foi entrevistar o artista sobre o assunto, em sua casa.
Jornal do Brasil - 16 de Junho de 2004
Tostão
No sábado, Chico Buarque completa 60 anos. Lá vai ele pelo calçadão no Leblon, com as pernas finas, o andar rápido, a cabeça em pé (como os craques) e a habilidade para driblar os curiosos marcadores. Ninguém consegue pará-lo. Ele é imarcável.
Na minha casa, tenho várias reproduções em miniaturas, de pessoas que, durante a minha vida, me emocionaram, me encantaram, embalaram os meus sonhos e iluminaram o meu caminho com as suas obras. São os meus ídolos.
Além do Chico, lá estão os Beatles, Clarice Lispector, Freud, Charles Chaplin, Che Guevara, Fernando Pessoa, o personagem Dom Quixote, o sindicalista Lula. Faltam muitos outros, como o jogador Pelé, Hermann Hesse, Van Gogh, João Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado
Um dos momentos que mais me alegraram e me deixaram orgulhoso foi participar, convidado pelo Chico Buarque, de uma gravação ao seu lado e do Fernando Calazans, para um DVD, no campo onde ele joga futebol. Por falta de condições físicas, não pude trocar tabelas com o Chico. Faríamos uma boa dupla. Coloquei ainda os meus pés no Hall da Fama, criado pelo Chico para homenagear os seus craques. Foi a minha glória.
Antes da Copa de 98, entrevistei o Chico em Paris para um programa da ESPN Brasil. Assim como o Pedro pedreiro, que sonhava com alguma coisa maior do que o mundo, Chico sonha com um time só com atacantes e muitos gols. Eu também, mas como sou um analista, metido a entender de detalhes técnicos e táticos, sou refém da realidade. A ESPN Brasil vai mostrar um especial neste sábado sobre a relação do Chico com o futebol.
Na mesma época, Chico participou do programa Linha de passe, da ESPN Brasil. Vi como é difícil e ansioso para ele dar entrevistas ao vivo, mesmo sobre futebol. Sofro também nessa situação. Por esse e outros motivos, parei de trabalhar na TV.
Quanto mais o Chico deseja o anonimato e a liberdade, fica mais famoso. Ele não quer ser uma celebridade, um mito, nem referência ética, como é. Chico quer ser gente, não se notar, e ter o direito de ficar em silêncio ou dizer e fazer coisas que muitos não gostam. Deixem em paz o seu coração.
16 de Junho de 2004 - Ano X - Número 295
A imagem pública de Chico fascina tanto quanto intriga os que se debruçam sobre a sua carreira.
Maurício Stycer
Se não houver mudanças de última hora, Chico Buarque não estará no Brasil no sábado 19, quando completa 60 anos. O artista não ignora o interesse que uma data redonda como essa desperta na chamada indústria cultural e na mídia. Ao contrário. Muitas das celebrações que já começaram a espocar a pretexto da efeméride contam, de alguma forma, com o seu apoio. Mas Chico não quer participar de auto-homenagens. Seria "cabotino", tem dito aos que o procuram. "Ele não vai assinar embaixo de nenhuma homenagem", assegura Mario Fernando Canivello, seu assessor de imprensa de longa data.
Amigos, parentes e colaboradores ajudam a preservar o artista da curiosidade pública como se cumprissem um pacto secreto. "Chico não se sente bem em participar de uma homenagem a ele", diz Zeca Buarque Ferreira, curador da exposição Chico Buarque, o Tempo e o Artista, a ser aberta em julho na Biblioteca Nacional, no Rio. "Ele disse que não se opunha à exposição, mas que não participaria. Faz questão de se manter à parte."
Zeca é sobrinho de Chico, filho de Cristina Buarque, a caçula dos sete filhos de Sérgio e Maria Amélia Buarque de Hollanda. "Acho absolutamente coerente com a carreira e a obra dele, esse jeito reservado. Ele sempre teve clareza disso", diz o curador da exposição.
Reservado, mas não invisível. Aparentemente acessível, mas na prática hiperprotegido. São esses paradoxos que alimentam a curiosidade da qual, naturalmente, Chico Buarque, o Tempo e o Artista não escapa. A exposição vai tratar da obra, mas também - e bastante - da trajetória pessoal do tio de Zeca. Na parte dedicada à infância de Chico, o visitante poderá saciar seu interesse diante de fotos da família e documentos raros, como a história em quadrinhos que ele fazia aos 12 anos, e também ouvir as músicas que o artista escutava em casa, quando criança.
A exposição também deve exibir imagens inéditas, captadas por Nelson Pereira dos Santos para o filme Raízes do Brasil mas não usadas, que mostram Chico andando pela praia do Leblon - um hábito que cultiva, a despeito do eventual ataque de fotógrafos de plantão no calçadão. A imagem pública de Chico sempre fascinou e intrigou observadores. No mundo Caras em que vivemos, sua compostura, muita vezes confundida com timidez ou inibição, parece incompreensível. Não é à toa que este é um tema recorrente em três livros recém-publicados - dois deles inteiramente dedicados ao artista.
Em Chico Buarque (Publifolha, 184 págs., R$ 19,90), o jornalista Fernando de Barros e Silva traça um generoso perfil do artista, mas sem deixar de arriscar algumas interpretações originais. Na sua opinião, tanto a obra literária construída a partir dos anos 90 (Estorvo, Benjamim, Budapeste), quanto a música mais recente exigem um esforço de fruição muito maior que a obra dos anos 70, por exemplo. Na visão do jornalista, essa maior dificuldade "contém em si mesmo um elemento de recusa" - não apenas da música de mercado, mas de toda a chamada cultura de massas. Escreve ele:
- Visto desse ângulo, o recolhimento progressivo de Chico, a maneira sistemática com que evita os apelos da mídia e se preserva à parte, é menos uma atitude idiossincrática, uma espécie de rabugice qualquer, do que uma maneira de manifestar, pelo silêncio, sua não-conformidade com o espetáculo grotesco do showbiz no qual se refestela a quase totalidade da classe artística.
O filósofo Renato Janine Ribeiro também se interroga sobre o sentido da imagem pública do artista no artigo "A utopia lírica de Chico Buarque de Hollanda." O texto integra a coleção Decantando a República, um catatau de três volumes (Nova Fronteira/Fundação Perseu Abramo, R$ 24 cada), com a transcrição de um seminário sobre música brasileira realizado na PUC-RJ em 2001.
A curiosidade de Janine Ribeiro é despertada para o fato de a imagem de Chico não sofrer nenhum arranhão, apesar do papel que a sua obra dá à transgressão.
- Embora sua transgressão chegue a incluir casos tipificados no Código Penal, o seu eixo não está naquilo que enfrenta ou afronta a moral vigente, denunciada como hipócrita e geradora de infelicidade. E, desses dois aspectos que exibem os costumes dominantes, mentira e sofrimento, o que mais importa para ele é o segundo. Não se trata de denunciar a hipocrisia por ser hipocrisia, mas por engendrar a infelicidade.
O filósofo percebe que a imagem do artista "continuou em larga medida sendo a do bom moço", em oposição à de Caetano Veloso, que seria visto como transgressor, ainda que Chico "confira ao marginal uma exemplaridade tão nítida". Janine Ribeiro avança no seu argumento dizendo:
- A transgressão é justamente o que formula a utopia de Chico Buarque. No seu pensamento, a ordenação justa e boa do mundo, que é a idéia de utopia, passa por aí. Eis o paradoxo, o conflito, a contradição: a idéia de utopia é sempre uma idéia de ordem, de organização. Mas, em Chico Buarque, a instauração da justiça e da vida boa exige intensificar a transgressão.
A presença de Chico na música brasileira pode ser medida por uma leitura, ainda que na diagonal, dos três volumes de Decantando a República, cujo subtítulo dá uma idéia de sua ambição: Inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira. Nenhum músico aparece como Chico nos 26 ensaios.
O artista que Millôr Fernandes definiu, um dia, como a única unanimidade do Brasil, também estimula um tipo de admiração que beira a veneração. É o que ocorre em muitos dos textos de Chico Buarque do Brasil (Garamond/Biblioteca Nacional, 432 págs., R$ 54,50), organizado pelo professor de Teoria da Literatura Rinaldo de Fernandes.
De Antonio Candido, num texto apropriadamente intitulado Louvação ("Como compositor denota essa coisa rara que é a sobranceria em relação às modas, a absoluta indiferença ao êxito, que pode ou não coroá-lo, mas não o fará jamais desviar-se do seu caminho para seguir essa ou aquela voga"), a Chico César ("Nós amamos Chico Buarque porque ele é uma denúncia de nossas imperfeições"), os elogios ao artista transbordam, beirando a hagiografia.
Ainda no livro, Leonardo Boff fala de Chico Buarque e a cultura humanista cristã, Moacyr Scliar escreve sobre A celebração da gente humilde, entre outros exercícios em torno da arte do elogio - textos que devem deixar Chico ruborizado e ajudam a explicar a sua aversão a homenagens. "Ainda bem que a gente envelhece aos pouquinhos", refletiu, recentemente, sobre os seus 60 anos. Ainda bem.
Jornal do Brasil - Junho/2004
Lula Branco Martins
Chico Chico Buarque é um desafio. Diga-se até, é um entrave para o equilíbrio. Compositor de maior prestígio no país, tem histórico de bom cidadão. Lutou contra o regime militar, apoiou as Diretas. Fala pouco, não é espalhafatoso e não se expõe sem necessidade. Chico é um símbolo
Suas letras alimentaram teses, dúzias de livros, pesquisas. Haveria algo ainda a ser revelado em rimas e entrelinhas? A verve literária, faceta mais recente do artista, já foi objeto de estudo, fartamente esmiuçada em resenhas. Sobre o Chico inventor de histórias, resta dizer algo? .
O Jornal do Brasil preparou este Caderno B especial com o desafio de lançar ângulos novos sobre o cantor, compositor e escritor, com a preocupação de afinar o elogio - tão merecido - e a crítica em alto tom. Os textos ressaltam a importância de sua obra, propõem questões, reúnem dúvidas. Além disso, são revelados versos desconhecidos, letras inéditas que repousavam na poeira dos arquivos. .
Chico Buarque faz 60 anos no dia 19. A certidão de nascimento não deixa dúvida. Os olhos - cor de ardósia ou azuis? - mantêm o brilho. As marcas da idade nas feições, contudo, exibem a passagem dos anos. O artista que, até outro dia, tinha a atraente aparência de garoto, como lembra a foto acima (em algum momento entre Pedro pedreiro e A banda), hoje já pode, e deve, ser chamado de senhor'.
Caderno B especial 'Chico Buarque 60'. Coordenação, edição e reportagem: Lula Branco Martins (lbm@jb.com.br). Estagiária: Andréa Thompson. Arte e diagramação: Renato Dalcin. Arquivo JB: Fernando Albina Rosa e Flor Marinho.
Jornal do Brasil - Junho/2004
Andrea Thompson
A cidade aos poucos se move e já começa a programar eventos que pegam carona nos 60 anos de Chico. Na Biblioteca Nacional, ficará em cartaz, a partir do mês que vem, a mostra Chico Buarque: o tempo e o artista, sob curadoria de Zeca Buarque, sobrinho do músico. Dividida por temas, com fotos, música, livros e painéis, a exposição começa em um ambiente que reproduz o escritório de Sérgio Buarque de Hollanda e a infância de Chico em São Paulo e passa pelas influências musicais do artista, que poderão ser ouvidas debaixo de uma espécie de guarda-chuva sonoro, por três pessoas de cada vez. Noutra sala, o espectador terá contato com documentos e letras do período da Censura. Filmes como Benjamim, Estorvo, Ópera do malandro e Os saltimbancos trapalhões serão exibidos às quartas. Shows do Quarteto Maogani e de Teresa Cristina também estão programados.
Outro marco biográfico, o livro Chico Buarque do Brasil, recém-lançado pela Garamond, trata das canções, do teatro e da ficção do artista. Organizada pelo professor Rinaldo de Fernandes, a obra conta com textos de José Saramago, Antonio Candido, Affonso Romano de Sant'Anna e do crítico e colunista do Caderno B Tárik de Souza, entre outros, e já está disponível nas livrarias, a um preço médio de R$ 50. Uma caixa de 12 CDs e dois DVDs, chamada Francisco e reunindo sua obra a partir de 1987, está sendo lançada pela BMG. Tem trabalhos como Paratodos, As cidades e o rebuscado CD lançado em 1989, com músicas como Morro Dois Irmãos e Valsa brasileira.
Amanhã, o DJ Janot dedicará ao compositor um bloco do programa Identidade brasileira, que apresenta às 22h na rádio Globo FM. Na próxima sexta-feira, ele promete levar a festa para a Brazooka, na Casa da Matriz, em Botafogo. É Chico Buarque purinho, para dançar.
Também na sexta 18, a cantora Fafá de Belém dedica seu repertório ao compositor, no show Com açúcar e com afeto, em cartaz no Scala até sábado. Sábado, 19, às 13h, o canal por assinatura ESPN exibirá o especial inédito O bom e velho Chico, que aborda, é claro, o futebol. Entrevistas de arquivo, como Chico papeando com Tostão, cenas do atleta em campo e conversas acerca de canções inspiradas pelo esporte são o enredo do programa.
Jornal do Brasil - Junho/2004
Lula Branco Martins
O samba Vai passar carrega uma história cheia de peculiaridades. Gravado por Chico em seu disco de 1984, tornou-se o carro-chefe do LP, virou clipe (raro acontecimento na carreira de Chico) e é, até hoje, fartamente usado para ilustrar imagens da campanha das Diretas. No papel, a música é de Chico e Francis Hime. Mas o primeiro projeto de concepção era mais ousado. Sua idéia era fazer uma composição com muitos parceiros, como nas escolas de samba tradicionais. Chico tinha apenas uma linha melódica na cabeça e um quase-nada de letra. O mote da melodia partira na verdade de um outro samba, este feito com Edu Lobo, chamado Doutor Getúlio.
Certo dia, ele juntou vários amigos em sua casa. Hoje ninguém sabe precisar quem estava lá. Carlinhos Vergueiro era um que estava. Francis, é claro, também. João Bosco, provavelmente. João Nogueira, talvez sim. Edu, talvez não. As horas iam passando, as bebidas, acabando, alguns já quase caindo pelo chão. E o samba não saía. Ninguém, mesmo naquela nata de compositores, dava uma sugestão totalmente boa. Pior: em certa parte, o samba simplesmente empacava. Ia modulando e, quando voltava ao começo, mudava, e não devia mudar, de tom. Era uma melodia capenga, sem estrutura viável. Uma música pela metade.
Naquele dia, Francis foi o que bebeu menos. Ficou sóbrio o suficiente para chegar a uma solução: este pulo do gato melódico é difícil de descrever, exigiria uma conversa técnica sobre tons e semitons. É mais fácil entender cantando: o achado do pianista conserta a música no verso ''em tenebrosas transações'', e na subseqüente passagem para ''seus filhos erravam cegos pelo continente''. Francis atuou, mais exatamente, em cima da sílaba ''ções''. Cante: é mesmo incrível perceber como a música cresce e se resolve ali. A pedido do JB, Francis escreveu as notas do trecho numa partitura, e rubricou o feito (acima).
Mas Vai passar algum segredo esconde. Depois dela, Chico e Francis jamais fizeram uma música sequer - isso depois de serem parceiros por 12 anos, em cerca de 20 canções. ''Não brigamos, simplesmente a parceria acabou'', disse Francis ao JB, lembrando que Tom e Vinicius também interromperam seu ciclo meio de repente e sem mais nem pra quê. Francis chegou a enviar, 10 anos depois, duas melodias a Chico. ''Não consegui, Francis'', teria dito o letrista, depois de algum tempo com elas nas mãos. Mas pelo menos uma já está pronta: ganhou letra de Paulo Cesar Pinheiro.
Jornal do Brasil - Junho/2004
Hildegard Angel
Editora do Caderno H e colunista do JB
Foram as meninas do Quarteto em Cy que me mandaram o tape com sua gravação de Angélica, de Chico e Miltinho. Escutei e chorei, e chorei de novo, muitas vezes e muitos dias. Achei bonito demais. Zuzu Angel, minha mãe, havia morrido num acidente de carro, em 1976. Angélica é do ano seguinte.
A história do fundo do mar era mesmo verdade. O corpo do meu irmão, Stuart Angel Jones, segundo relatos da época, foi atirado no mar, como era habitual naqueles assassinatos com tortura ocorridos na Base Aérea do Galeão. Lembro-me de Herivelto Martins, que além de um compositor maravilhoso era pai-de-santo e, uma vez, mandou-me o recado: queria falar comigo sobre meu irmão desaparecido. Fui até a casa dele, na Urca. Ele me recebeu de branco, num quarto escuro, velas. Estava em transe espiritual, e me disse que meu irmão estava no fundo do mar. Fiquei muito mexida com aquilo. Pois eu tinha esperança de reencontrar Tuti.
Eu ouvia a música de Chico, lembrava-me das palavras de Herivelto, e chorava, chorava. Depois, muitos anos depois, achei uma poesia feita por meu irmão na adolescência, em que ele parafraseava Caymmi, dizendo que devia ser ''doce morrer no mar''
Chico foi um intérprete do sentimento de todos nós, naquela época. Cantava o sofrimento, a crítica, a esperança da forra. Em sua loja de moda, no Leblon, mamãe tocava Chico o tempo todo. ''Quem foi, quem foi/ que falou do boi voador/ manda prender esse boi/ seja esse boi o que for'', ela adorava essa. Era como se, de alguma forma, aquelas músicas, aquelas palavras, lhe lavassem a alma, lhe dessem um gostinho de vingança. Chico foi perseguido, censurado e maltratado pela ditadura. Não foi festivo, não fez de sua inspiração corajosa marketing pessoal. Dou muito valor a esta homenagem prestada por ele e pelo Miltinho, do MPB-4, outro grande da música e do pensamento brasileiro, ao sofrimento da minha mãe - e, por extensão, de todas as outras mães daquela época, que também lutaram para encontrar seus filhos.
Jornal do Brasil - Junho/2004
Obra abrangente, que nunca afrouxou o laço do apuro estético
Tárik de Souza
Crítico de música do Caderno B
Chico Buarque projetou-se no cenário da transformação da bossa nova em MPB, em meados dos anos 60. Seu repertório inicial, direcionado ao samba, choro, marcha-rancho, modinha e samba-canção, chocava-se com o vanguardismo cool jazz da bossa. Reposicionava influências de certa forma arquivadas pela estética do movimento, como as dos seminais Noel Rosa, Ismael Silva, Pixinguinha, Braguinha e Lamartine. Quarenta anos atrás, ele se movia nos shows de universidades e teatros paulistanos junto com outros novos, como Toquinho e Taiguara e cantoras como Ivette, Maria Odete e Maricenne Costa, que faria a única gravação de seu primeiro sucesso, a fraternal Marcha para um dia de sol. Esta música foi descartada, junto com Teresa tristeza, Roda gigante e outras. Seriam meros rascunhos, perto dos cartões de apresentação Tem mais samba, Pedro pedreiro e Sonho de um carnaval, defendida pelo futuro rival Geraldo Vandré no Festival da Excelsior de 1965
Mas já no ano seguinte, Chico emparelhava sua marcha-dobrado A banda com a moda de viola de Vandré e Theo de Barros Disparada, no topo de outro festival, na mesma Record. Iniciava uma carreira tão fulminante, que o cético filósofo do humor Millôr Fernandes chegou a chamá-lo de ''unanimidade'' e o papa da bossa, Tom Jobim, de volta de um período triunfal nos Estados Unidos, o considerou a ''única novidade'' do país. E de imediato se tornou seu parceiro em temas da relevância de Sabiá (vitorioso no FIC de 1968), Olha, Maria e Pois é, e numa das mais belas composições da MPB, Retrato em branco e preto. Cabeça feita (como todos de sua geração) pelo divisor de águas Chega de saudade, na voz de João Gilberto, Chico beneficiou-se do arejamento harmônico da bossa e do coloquialismo do estilo, que o permitiu tornar-se um cantor mesmo de voz pequena, algo que seu ícone Noel, sem muito êxito, arriscara 30 anos antes.
Na trilha dos festivais, Chico acabou empurrado para o papel de bom-moço fiel às tradições, enquanto Caetano Veloso e Gilberto Gil, via tropicalismo agressivo e vanguardista, a partir de 1967 afrontavam - em forma e conteúdo - as instituições. Não faltaram acusações de conservadorismo, revogadas na anárquica montagem de sua peça Roda viva, do diretor Zé Celso Martinez Correa. Após um breve auto-exílio na Itália com Toquinho, ele bateu-se num corpo a corpo com a ditadura a partir do míssil Apesar de você, de 1970, endereçado ao general de plantão, Médici. A Censura, que já o vetara em 1966 por uma sátira à desvalorização do almirante Tamandaré, demorou a perceber o alvo da pretensa diatribe amorosa. Cabeças rolaram e Chico virou bola da vez dos catões, a ponto de em 1974 lançar o LP Sinal fechado com obras alheias. Exceto Acorda, amor (a do bordão ''chame o ladrão'') da dupla Julinho da Adelaide e Leonel Paiva, só descoberta como pseudônimos após mais degolas na Censura - que passou a exigir documentos de identidade dos autores.
Mesmo na linha de frente desta guerra, Chico não transformou a obra em panfleto. Manteve o sarcasmo, como no samba rock Jorge Maravilha (''você não gosta de mim/ mas sua filha gosta'') dirigido ao general seguinte, Geisel, cuja filha apreciava sua música. Nunca afrouxou o laço do apuro estético em monumentos como Construção (1971) ou no catimbado Chico canta (1973), em que até o título (de sua peça Calabar) e a capa foram vetados. Finda a ditadura, Chico abriu as gavetas (Cálice, com Gil) e propôs com o parceiro Francis Hime (o mesmo com quem levantou o tema Pivete) uma saideira otimista. no samba-enredo Vai passar. Chico, que rompeu a rivalidade com Caetano (protagonista de uma regravação polêmica de seu samba canção Carolina) ainda num show-disco em dupla em 1972, acabou trilhando a estrada estética aberta pelo tropicalismo. Gravou de tango ao Baioque, num diálogo permanente com o cinema, o teatro e outras artes, sem desviar-se de sua postura política (compôs Assentamento e Levantados do chão, com Milton, para o MST). A partir dos 90 passou a alternar discos e livros, espaçando aparições, embora participe freqüentemente de discos alheios. A força de sua obra, permanentemente regravada, no entanto, é a de uma onipresença.
Jornal do Brasil - Junho/2004
Com quem Chico já dividiu sua criação
Lula Branco Martins
O site oficial de Chico Buarque, tocado pelo administrador de empresas e técnico em informática Wagner Homem, é simples. Não tem salas de bate-papo com os internautas, animações mais modernas ou grandes papagaiadas. Por outro lado, é organizado ao extremo. Permite, em dois cliques, que o navegante separe, por parceiros, toda a obra musical de Chico. E assim fica fácil visualizar também o recordista de canções: Edu Lobo, cinco dezenas de parcerias.
Edu está tão à frente dos outros por um motivo só: é o parceiro de Chico nos musicais. E, como cada personagem às vezes ganha uma música só para si... Os dois são autores, por exemplo, de Beatriz e Valsa brasileira. Com Caetano Veloso e Milton Nascimento, dois dos maiores nomes de sua geração, Chico fez mais shows e projetos do que propriamente parcerias. Com o baiano, tem duas canções. Com o carioca-mineiro, quatro. No início de carreira, Chico teve o privilégio de compor com Vinicius de Moraes, diplomata e poeta, o Poetinha, velho amigo de seu pai. São os responsáveis, entre outras, por Gente humilde (com Garoto) e Valsinha. De todos os parceiros, o grande mestre foi o maestro Tom Jobim: trabalharam juntos em 13 músicas, Sábia e Retrato em branco-e-preto, as mais conhecidas. Quando Tom morreu, em 1994, Chico ficou sem uma de suas referências musicais. Era como se compusesse só para Tom ouvir e gostar.
Há parceiros de passagem rápida e de viés pelo cancioneiro buarquiano. Chico já fez músicas com Dominguinhos, Fagner, Djavan e com instrumentistas como seu violonista Luiz Cláudio Ramos e o pianista Cristóvão Bastos - com este, para muitos, bastou a filha única, a canção Todo o sentimento. Mais do que todos os parceiros, um deles (humilde, de duas músicas só) detém a maior proximidade com o letrista: é Carlinhos Vergueiro. Por quê? Porque é o maior parceiro em outro campo: o de futebol.
Jornal do Brasil - Junho/2004
Por que Chico Buarque é considerado tão bonito?
Com a palavra, os especialistas no assunto
Lula Branco Martins E Andrea Thompson
Os olhos. Esta é a magia que pode estar por trás da decantada boniteza de Chico Buarque. O JB ouviu especialistas neste assunto - beleza - e a conclusão mais comum é que tudo começa no olhar. O maestro Tom Jobim o definia assim: ''Chico tem olhos de gatão selvagem, dos grandes gatos do mato, olhos glaucos, iluminados''. O diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa, no programa da peça Roda viva, comparava os olhos do parceiro de montagem a ''dois ovos estrelados, sobre um bife de fígado cru''. Seja lá o que for, isso deve ser uma coisa positiva.
Existe certa confusão no que diz respeito a cor dos olhos do artista. Em algumas fotos, eles parecem verdes. Noutras, azuis. Noutras, muito azuis - em algumas revistas, fica patente o cuidado especial para o tratamento fotográfico e a reforçada na cor. Na ficha que a polícia elaborou quando Chico, na adolescência, puxou um automóvel, está escrito que seus olhos têm cor de ardósia, a pedra tão usada em decoração de ambientes.
O cirurgião plástico Carlos Fernando Gomes de Almeida observa que os olhos claros de Chico são um ''atrativo a mais'' num país latino, como o Brasil. Mas diz que não é possível julgar-se a beleza física, pura e simplesmente: ''Cada pessoa é um pacote''. Para Carlos Fernando, Chico é um homem ''bonito, harmonicamente interessante e muito sensível''. Até mais que isso: seus olhos azuis e sua verve poética e aura romântica lhe garantiriam a adjetivação de ''quase um anjo sexual''. A dermatologista Paula Bellotti é taxativa na sua opinião. Chico Buarque é bonito porque tem ''cara de homem''.
O cirurgião plástico mais renomado do país, Ivo Pitanguy, também falou ao JB sobre a beleza de Chico Buarque. Na entrevista, o médico teve acesso a duas dúzias de fotos, retiradas do arquivo do jornal, retratando várias fases da vida do artista. O menino quase imberbe, cara de bom-moço, que cantava A banda e que na época tornou-se o genro mais desejado do país. O adulto politizado, com vasto bigode e pose de brigão, visual dos anos 70, época de uma bochecha saliente, entregando os quilinhos a mais. O homem maduro, que nos anos 80 e 90 voltou a se apresentar em público e fazer shows com mais freqüência. E o senhor que, agora, ainda esguio, vai chegando próximo da terceira idade.
Remexendo nas fotos, analisando rosto e condição corporal de Chico, Pitanguy conclui sem pestanejar: ''Ele está envelhecendo bem. Parece uma pessoa que está ok consigo mesma, em paz com a sua imagem''. Mas não crava na questão sobre a cor dos olhos. ''Não sei direito qual é. Ela pode variar de acordo com a luz. Mas é uma cor bonita, isso dá para garantir''.
Assim como Pitanguy, Carlos Fernando Gomes de Almeida e Paula Bellotti também puderam observar algumas fotos de Chico. O JB propôs um teste a eles. Teriam que organizá-las em ordem cronológica. Todos acertaram - com exceção de uma foto, que costuma pregar peças mesmo em quem está acostumado a lidar com expressões faciais. É justamente a fotografia que ilustra a capa do disco lançado em 1989, que tem como primeira faixa Morro Dois Irmãos. Ali, todos concordam, Chico parece ter algo em torno de 35 anos, e não 45 - como de fato tinha. A foto, feita num estúdio de gravação, é de autoria de Antônio Augusto Fontes. Semana passada, ele falou ao JB. Lembra ter usado luz natural, sem rebatedor e filme tipo tri-x, preto-e-branco. Fotografava com uma Pentax. ''A foto ficou boa porque Chico estava sossegado, relaxado'', arrisca Antônio Augusto. ''Acho que captei sua alma de criança'', completa, informando ainda que Chico escolheu justo ele para fotografá-lo durante os ensaios no estúdio porque Antônio Augusto é ''silencioso''. Assim, meio que ''desaparecia'' do ambiente, deixando todos mais à vontade. A mansidão do artista é mesmo fato notório. Pitanguy parece encerrar o debate com uma frase lapidar: ''Enquanto Chico não tiver rugas na alma, ele estará bem''.
Jornal do Brasil - Junho/2004
O fotógrafo Marcelo Tabach teve então a idéia de produzir uma série de fotos de Chico sem camisa, de frente e de perfil, como alguém preso e fichado. O artista topou. "Eu fiz as fotografias com uma luz vinda de cima, para reforçar o clima de Dops", recorda Tabach. No dia seguinte, as fotos ilustravam a primeira página do jornal. E, no domingo subseqüente, eram republicadas, pois haviam sido escolhidas como as "fotos da semana". Mesmo inconscientemente, vai-se fortalecendo a imagem de Chico como principal enfrentador do regime militar.
E talvez ele nem tenha sido o mais censurado artista da época. A proibição a Chico alcançou visibilidade e dimensão maiores exatamente por causa desta construção de imagem. Note-se que a época em que Chico mais vendeu discos e teve suas músicas tocadas fartamente no rádio foi exatamente durante a ditadura. Canções como Pedro pedreiro, A banda, Carolina, Construção, Cotidiano, O que será, João e Maria e Vai passar - os maiores sucessos de sua carreira - foram compostas, gravadas e veiculadas no tempo do regime dos generais. Mas a imagem mais forte que vem à cabeça do público é a do Chico proibido, impedido de gravar suas músicas ou de cantá-las nos shows.
Os 60 depoimentos reunidos neste Caderno B especial, em absoluta maioria juntam-se num mesmo mote: Chico, como compositor ou brasileiro, aparece praticamente desprovido de defeitos. A adjetivação positiva, quando o assunto é Chico Buarque, costuma mesmo vir em doses fartas. E isto pode ser constatado também em livros-tributo (como o recém-lançado Chico Buarque do Brasil, organizado por Rinaldo de Fernandes) ou mesmo em publicações de cunho didático, como o tomo dedicado a Chico na coleção Mestres da música, de 2002, de Ângela Braga-Torres, que escorrega em erros de caráter histórico, como datas e nomes de personagens, mas é benevolente com "o cidadão e artista" Chico, "um dos mais respeitados do país".
No livro Para todos, lançado em 1999 pela jornalista Regina Zappa, parte da coleção Perfis do Rio, o nome do artista aparece vinculado a cerca de 50 adjetivos positivos. O livro faz parte de uma coleção laudatória, é verdade. Mas em outras obras do mesmo título (como os perfis de Paulinho da Viola, escrito por João Máximo, e de Janete Clair, por Artur Xexéo) há uma média significativamente menor de elogios por página. No de Regina Zappa, Chico é apresentado, por exemplo, como "genial", "sensível", "independente", "íntegro", "ético", "antimarketing", "coerente", "determinado", "bem comportado", "bem informado", "alegre", "solto", "engraçado", "espirituoso", "despojado", "discreto", "cuidadoso", "reservado", "sereno", "sociável", "caseiro", "homem simples", "motorista tranqüilo, cauteloso e disciplinado". Ela afirma ainda que Chico Buarque "definitivamente, está na sua última encarnação".
Jornal do Brasil - Junho/2004
Antes os filmes bebiam de sua música.
Agora cineastas vão atrás de seus livros
Rodrigo Fonseca
Repórter e crítico de cinema do Caderno B
Menestrel, figurante, muso inspirador. Muito tempo antes de Benjamim traduzir sua literatura com os matizes coloridos do celulóide, Chico Buarque já havia passado por esses e outros tantos papéis na tela grande. Desde Garota de Ipanema, de 1967, dirigido por Leon Hirszman, o artista serviu tanto a manifestos cinemanovistas como a libelos marginais assumidos, passando por trabalhos de novos realizadores.
Chico compôs para filmes de bastidores curiosíssimos, como A noiva da cidade, que o crítico de cinema Alex Viany dirigiu na década de 70 se valendo de um roteiro que tinha participação do pioneiro do cinema nacional Humberto Mauro, realizador de Brasa dormida em 1928. Igualmente peculiar é o caso de Cleo e Daniel, de 1970, com músicas de Chico, único filme dirigido pelo escritor Roberto Freire, a partir de seu romance homônimo.
Suas trilhas às vezes se tornam emblemas dos filmes em que figuram. Não há como imaginar obras-primas como Eu te amo, ''uma love story político-existencial-tropicalista'', de Arnaldo Jabor, produzida em 1981, sem os versos de Chico. Frases como ''ah, se já perdemos a noção da hora/ se juntos já jogamos tudo fora'' embalaram o jogo sensual entre Paulo César Peréio e Sonia Braga, fotografados por um inspirado Murilo Salles. O mesmo vale para o idílico Rio de Janeiro que Hugo Carvana retratou em Vai trabalhar, vagabundo!, nos anos 70. Não haveria autenticidade nele se faltasse a sua malandragem a ginga sambista de Chico
E Carvana foi suficientemente humilde para perceber a importância orgânica dos versos do compositor para o seu longa: descolou para ele uma participação como Julinho da Adelaide na seqüência das aventuras do sabujo Secundino. Chico é ator em Vai trabalhar, vagabundo 2, de 1991, um dos raros filmes nacionais que sobreviveu à degola do governo Collor, responsável pela dissolução da Embrafilme.
Calcado no carisma e na persona que música e mídia ajudaram que criasse para si, Chico não é um ator dos melhores. Caetano Veloso, que reina majestoso como Lamartine Babo em Tabu, de 1982, de Júlio Bressane, está léguas à frente dele. Mas comprometer, Chico não compromete - como comprova sua rápida e engraçada participação em Ed Mort, de 1997, de Alain Fresnot, onde encarna Silva, o homem procurado pelo abilolado detetive criado por Luis Fernando Verissimo. Chico também soube adicionar um charme inesperado a O mandarim, de 1995, de Bressane. Escalado para viver Noel Rosa, corteja Giulia Gam, na cinebiografia do dândi Mário Reis.
Mas diretor algum soube tão bem aproveitar as feições de Chico em cena quanto Cacá Diegues, em Quando o carnaval chegar. Lançada em 1972, esta comédia musical embalada por canção homônima (dele, claro) reuniu Chico a Maria Bethânia, a Nara Leão e a um grande elenco (Elke Maravilha, Scarlett Moon, outras e outros), na história de uma trupe de cantores do rádio que viaja pelo país cantando e dançando. Sete anos depois, seria a vez de Cacá empregar novamente os acordes de Chico, em Bye-bye, Brasil
Sua ficção, recentemente, é que vem sendo o quindim para os cineastas nacionais. No fim dos anos 90, Ruy Guerra, seu parceiro no teatro, que já havia levado a Ópera do malandro para o cinema, em 1985, deu vida a Estorvo, com o cubano Jorge Perugorría como protagonista e Bianca Byington como sua irmã. O filme chegou às telas em 2000. Antes disso, representou o Brasil no Festival de Cannes. Este ano foi a vez de Monique Gardenberg adaptar Benjamim, numa lírica versão da história do modelo fotográfico (Paulo José) que reencontra os diabos de um atormentado passado. Só falta agora Budapeste ganhar corpo no celulóide.
Como escritor, Chico colaborou ainda para transformar a peça Pobre menina rica, de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, no filme Para viver um grande amor, de 1984, de Miguel Faria Júnior, com Djavan e Patrícia Pillar. E viu sua dramaturgia infanto-juvenil Os saltimbancos render (mais) um sucesso a Renato Aragão e sua corte atrapalhada.
Nem o cinema-verdade se esqueceu de Chico. O argentino Maurício Berú, um especialista em música popular, dirigiu entre 1978 e 1980 um documentário hoje raríssimo chamado Certas palavras com Chico Buarque, produzido por Thomaz J. Farkas. E, ainda em 2004, o compositor poderá ser visto falando sobre sua amizade com o fotógrafo mais premiado do JB, Evandro Teixeira, no longa Instantâneos da realidade, rodado por Paulo Fontenelle.
Jornal do Brasil - Junho/2004
Chico tornou-se especialista em recriar, traduzindo outras realidades para o Brasil
Macksen Luiz
Crítico de teatro do Caderno B
Chico Buarque chegou ao teatro pelos acordes da música, a sonoridade da poesia e o estrondo da política. A trilha sonora do ainda Francisco, como assinava no programa de Morte e vida severina, o auto de Natal pernambucano de João Cabral de Melo Neto, que em 1966 um grupo de universitários da PUC de São Paulo encenou sob a direção de Silnei Siqueira, foi tão reveladora quanto a originalidade do espetáculo, de dramaticidade rascante e ascética limpidez formal. A música original, que pontuava a encenação em momentos cruciais, conferia à saga severina de tantos que percorrem a seca, encharcados pelo convívio da morte num rio de leito árido que reflui do sertão para o mar, maior ressonância às qualidades do poema e à contundência de sua denúncia social.
Chico entra no teatro por um palco que fervilha com os acontecimentos pós-1964 e que empresta à sua música palavras de outro, mas que ficaram de tal maneira impregnadas de sua composição que Morte e vida severina não mais se dissocia desta co-autoria. O músico e letrista de inspiração poética e invenções lingüísticas se arriscaria, em 1968, como autor em Roda viva.
A peça de estréia, com alguma ingenuidade dramatúrgica, se transformaria em escândalo por interferir na imagem de bom moço do compositor de A banda, que de repente se vê diante de um acontecimento cênico que transcende ao seu texto. O diretor José Celso Martinez Correa faz da história do ídolo popular Benedito Silva, ou Ben Silver, que é devorado pelos mesmos mecanismos que hoje armam e desarmam celebridades instantâneas, um verdadeiro manifesto do teatro de agressão. A máquina trituradora da indústria cultural, refletida na construção artificial de um cantor que sucumbe à transitoriedade da fama e é substituído por um outro, igualmente irrelevante, numa roda incessante de reposições, mereceu de José Celso tratamento arrasador. O ídolo descartável era servido de bandeja à platéia do Teatro Princesa Isabel, onde Roda viva estreou, como um pedaço de fígado, espalhando sangue e repulsa nos espectadores do lírico vencedor dos festivais de música. O diretor impôs à peça-desabafo do jovem compositor um roteiro quase cênico do emergente teatro de agressão, ao romper com o espaço cênico (os atores se misturavam ao público) e ao apontar sinais para a eclosão da contracultura dos anos 70. Como uma premonição, diante da qual Chico Buarque seria um mago involuntário, Roda viva anunciava uma parcela do teatro que viria a seguir, e respondia, cenicamente, às provocações da época.
O papel relevante que a peça assumiria na crônica da ditadura, por causa da invasão do Teatro Ruth Escobar na temporada paulista do espetáculo - por um grupo que se intitulava Comando de Caça aos Comunistas, responsável pela depredação do cenário e pela violência contra o elenco -, foi a demonstração mais contundente das reações provocadas por um texto em si menos provocativo do que a montagem que o encorpou. Roda viva foi responsável ainda pelo estigma que se pregou a Chico Buarque, persona-non-grata às autoridades da hora, alvo implacável da Censura.
A sua peça seguinte, Calabar, o elogio da traição, de 1973, que escreveu em parceria com Ruy Guerra, também caiu em desgraça, vítima da ação predatória da Censura, que a proibiu, dias antes da estréia, estendendo o veto a qualquer menção ao título do espetáculo. A produção, que envolvia muitos atores, complexidade cenográfica e gastos vultosos, teve que ser desfeita, com enormes prejuízos à liberdade de expressão e aos produtores Fernando Torres e Fernanda Montenegro. A temporada natimorta de Calabar impediu a prova de palco de texto de forte conotação política, volteios narrativos e dialética retórica, para que pudesse ser avaliado mais justamente em seu tempo histórico.
Dois anos depois, outra parceria teatral. Chico se reúne a Paulo Pontes para reescrever Medéia como metáfora de uma tragédia social. Gota d'água transfere para um conjunto habitacional suburbano o conflito da mulher que, alijada da vida do homem que ama, engendra a vingança que o atingirá mortalmente. A transposição impõe a Joana, uma Medéia de periferia, a mesma força detentora de segredos de deuses (pratica o candomblé), cercada de vizinhas (tal como o coro grego) e investindo contra o poder (a defesa dos direitos de morar) que Jasão corteja. Acusada de populista por alguns, Gota d'água supera essas críticas pela consistência de sua construção e pela trilha musical, em que se destacam a canção-título e Bem querer.
Assim como em Gota d'água, Ópera do malandro, a peça seguinte de Chico, escrita sem colaboradores em 1978, procura referências em obra preexistente, mais uma vez pretexto para recriação em contexto nacional. Baseada na Ópera dos três vinténs, de Bertolt Brecht e Kurt Weill, reúne texto e música em um só Chico, transferindo a ação para a Lapa e as mazelas nacionais para o Brasil do Estado Novo. Com estrutura bastante semelhante à utilizada por Brecht, Chico Buarque segue a mesma intenção didática de revelar os mecanismos do jogo social e apontar personagens que são agentes de lógica econômica que os utiliza como peças de reposição de uma realidade perversamente perpetuada.
O autor de teatro desde então se recolheu às trilhas. E, para o balé O grande circo místico, baseado no poema de Jorge de Lima, criou letras de musicalidade poética. Para Suburbano coração, texto de Naum Alves de Souza, teceu um rendilhado de palavras, em que reveste a pieguice das periferias afetivas de versos e músicas que recriam sentimentos frustrados e emoções baratas. Em Cambaio, que traz a sua assinatura nas letras das belas canções, em parceria com Edu Lobo, a volátil proposta dramática desta ''ópera pop'', como a definem seus autores, João Falcão e Adriana Falcão, se concretiza na trilha refinada de um poeta que usa a palavra como expressão indissociável da sua sonoridade musical.
Revista Cult nº 69 - Maio/2003
O escritor Eric Nepomuceno, amigo e interlocutor de Chico Buarque, fala sobre o processo criativo do autor de Estorvo
1. No estúdio plantado nos fundos do pátio interno do casarão do bairro de Pedregal de San Ángel, na Cidade do México, Gabriel García Márquez trabalha de maneira obsessiva quando está escrevendo. Há mais discos do que livros à vista. Isso sempre me pareceu curioso. Pois bem: no estúdio que fica no canto à esquerda da ampla e clara cobertura de Chico, no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, há mais livros à vista do que discos. García Márquez é um escritor que tem a música como um dos eixos de sua vida. Chico Buarque é um compositor que tem a palavra escrita como um dos eixos de sua vida. Tanto assim que é um compositor que escreve romances,ou um romancista que compõe canções. Seja como for, curiosidades como essas - os discos do escritor, os livros do compositor - sempre me interessaram em meus amigos. Perguntei a García Márquez a razão de ter mais discos que livros no estúdio em que escreve. "É que a maioria dos livros fica na casa de campo, em Cuernavaca, ou então no meu quarto", disse ele, que não deu nenhuma importância para minha curiosidade. "É que os discos estão guardados nessas prateleiras com porta, e os livros estão à vista", disse Chico, que também não deu importância nenhuma. Pensando bem, não há mesmo nada de estranho: existe explicação para tudo, ou quase, nesse mundo.
2. São muitos os escritores que têm a música como eixo vital. García Márquez cantou a sério, na juventude. Mas, ao menos que eu saiba, jamais compôs canção alguma. Julio Cortázar disse e redisse que se pudesse escolher teria preferido ser músico de jazz do que escritor. Chico não precisou enfrentar a tensão da escolha: sempre viveu cercado de músicas e leituras, e agora compõe e escreve.
3. O Chico escritor é um obcecado. Os amigos se espantam com sua capacidade de disciplina radical, prussiana. E principalmente com seu nível de exigência. Perderam a conta do tempo em que Chico está mergulhado na escrita de seu novo livro. Desde o segundo semestre de 2001, pelo menos, ele está recolhido. Todo santo dia, ao final da tarde ele se desliga do mundo. E a partir das oito da noite, e até as duas da manhã, escreve de maneira obsessiva. Muitas vezes esquece o tempo, e vara a madrugada. Revisa, refaz, burila, rasga, num trabalho incessante. Escreve, revisa, rasga. Reescreve, revisa, rasga, mas avança um tanto. Uma espécie de Penélope que desfaz hoje o feito ontem, não à espera do improvável Ulisses, mas da palavra exata, da frase que contenha o que ele persegue.
Não fala sobre o que está escrevendo. Às vezes, lança perguntas ao acaso, faz consultas sobre palavras. Lembro de quando estava terminando Estorvo: "Como é que você chama o sujeito que serve café no balcão de um bar?". "Garçom". "Não, garçom não. Garçom serve mesa". E depois, soltou: "Servente". Retruquei que servente até que é correto, afinal o homem serve café. Mas que a palavra estava condenada, pelo uso, ao peão de obra. No livro, está lá: "Servente".
Quando a escrita de Benjamim estava no fim, Chico encontrou um amigo num posto de gasolina. Levava no rosto uma barba de dias, um ar sorumbático, sombrio. Explicou ao amigo que seu personagem tinha acabado de morrer. E contou que sentia-se pavorosamente mal. Quer dizer: nos livros, como nas canções, Chico mergulha fundo, impregna-se na escrita, empapa-se de seu personagem, sua atmosfera. Seu destino.
4. Quando escreve, e não importa o quanto dure essa escrita, mantém poucos hábitos: caminha três vezes por semana, por volta da uma da tarde, em geral na companhia do cineasta Miguel Faria. Joga futebol outras três vezes por semana. E uma vez por semana, janta com amigos. São suas folgas. O resto do tempo, quase que sem intervalos, é dedicado a perseguir palavras. Qualquer interrupção é um risco. Um peso, uma aflição.
5. O apartamento é amplo e luminoso, e o terraço se abre generoso para o mar imbatível que se estende do final do Leblon até as pedras do Arpoador. Tão alto e isolado que ele chama o terraço de tombadilho: o apartamento parece flutuar sobre o mar. Há mais de um ano ele já não usa mais o estúdio para escrever. Desce um andar, para outro apartamento, de dois quartos, onde só existe uma mesa, o computador, duas cadeiras. Sem telefone, sem televisão, sem mais nada. O apartamento de cima é o tombadilho. O de baixo, o franciscano. Como quem se obriga a sair de casa e ir trabalhar, ele desce um andar e se tranca. Perguntei por que não abria a laje e punha uma escada. Achou a idéia estapafúrdia: afinal, a idéia é se isolar. Não existe no apartamento franciscano nada que possa distraí-lo, nenhuma tentação capaz de tirá-lo da palavra escrita ou da palavra perseguida.
Quando senta-se para escrever um livro, Chico sabe que não há prazo à vista: pode levar um ou dois anos, dia a dia. Na reta final o trabalho pesa, mas ele não tem pressa. Agüenta.
6. Durante anos, Chico foi um leitor tão voraz quanto voluntarioso. Lia de tudo, sem muita ordem. Às vezes, as leituras vinham em rajadas: os autores franceses, os russos, os italianos, os norte-americanos. O resultado é uma base ampla e consistente do que de melhor se escreveu. Com o tempo, e depois de tanta leitura, foi ficando menos voraz, mas continuou sendo um leitor constante e incansável. Passa por períodos curiosos: recomenda um livro de determinado autor, mas admite que seria incapaz de descrevê-lo. Sabe apenas que sentiu o impacto, e ponto. Quando escreve, quase não lê. Aliás, como a imensa maioria dos escritores que conheço.
7. Num tempo em que o mundo parecia ser mais fácil, tudo dividia-se em bandos. Por exemplo: fumantes de Hollywood e de Luiz XV, bebedores de Brahma ou de Antarctica; pilotos de Volkswagen ou de DKW. Como se a vida fosse uma espécie de Fla-Flu. Havia uma divisão clara entre os admiradores de Hemingway e os de Fitzgerald. Em geral, admirava-se -e muito-os dois. Mas havia a predileção.
Dia desses, liguei para Chico, só para confirmar: ele era Fitzgerald? Riu muito da minha memória para coisas velhas. E confirmou: gostou do que leu de Hemingway, mas nada era comparável a Fítzgerald. Lembrou da emoção de ler O grande Gatsby. Eu também. Mas continuo na turma de Hemingway. Dia desses leio de novo, só para reforçar argumentos.
8. Quando se mudou para o tombadilho, Chico passou dias arrumando os livros na estante. Levou muito mais tempo do que seria razoável, porque volta e meia parava, abria um livro ao acaso, ficava relendo. Chico, no meio da tarde de uma quarta-feira qualquer, por telefone: "Você quer ficar do lado do Sérgio Sant´Anna?". "Quando?". "Agora mesmo: é que estou arrumando a estante e pensei em pôr você do lado dele". "Acho ótimo. Mas quem vai ficar do outro lado?".
Como não chegamos a um acordo - as companhias que eu pedia já estavam acomodadas, e nenhum dos disponíveis me seduzia - Chico foi gentil: posto num canto da estante, fiquei com Sérgio, um vizinho solitário que, além de escrever contos absolutos, é meu amigo. Coisas de escritor.
Eric Nepomuceno Escritor, autor dos livros de contos A palavra nunca, Coisas do mundo, Quarta-feira e O livro da Guerra Grande, entre outros
Revista Cult nº 69 - Maio/2003
Fernando Marques
As quatro peças escritas por Chico Buarque - Roda viva, Calabar, Gota d´água e Ópera do malandro - aliam as questões sociais às mais altas temperaturas líricas, permitindo rediscutir os rumos do musical brasileiro e do teatro de vocação política
A história dos embates sociais no Brasil tem sido marcada, desde sempre, pela expectativa de mudanças que jamais se realizam, mas, ao contrário, se vêem teimosamente proteladas. As promessas feitas aos pobres, muitas vezes aliados à classe média na grita por divisão da renda e por democratização das decisões políticas, servem para dissipar conflitos, sendo, depois, esquecidas. O carnaval dos pés-de-chinelo, por aqui, invariavelmente deságua na quarta-feira das elites. É monótono e perverso, mas tem sido assim há séculos.
Poeta capaz de ligar as questões sociais às mais altas temperaturas líricas, Chico Buarque escreveu quatro textos de teatro, entre 1967 e 1978, com parceiros ou isoladamente. Nessas peças, o fio da meada tem sido justamente o quanto, na história brasileira, tudo muda para permanecer como está, tudo se altera para que não se altere coisa alguma - ainda que as formas e enfoques com que o autor trabalha esse tema geral sejam os mais diversos. As peças não se reduzem, diga-se logo, a ilustrá-lo e, conforme o caso, Chico mobiliza verso ou prosa, ou ambos; recorre à estrutura épica, fragmentária, como em Calabar, ou à atmosfera cerradamente dramática, embora não estritamente realista, como em Gota d'água; ou, ainda, repassa os esquemas da comédia musical na Ópera do malandro.
Em Roda viva, sua primeira peça, que estréia em janeiro de 1968 no Rio, sob a direção furiosa de José Celso Martinez Corrêa, o mote das ilusões políticas perdidas já se anuncia, mesmo limitado à figura do cantor Benedito Silva e às relações deste com o mercado de shows e discos, potencializado pela jovem e já onipresente televisão - mercado que consagra o artista e, depois, o descarta.
As 50 laudas que constituíam a comédia foram transformadas pelo diretor José Celso num espetáculo obediente à tese do "teatro da crueldade", teoria devida ao francês Antonin Artaud, refeita à moda da casa: "Para um público mais ou menos heterogêneo que não reagirá como classe, mas sim como indivíduo, a única possibilidade é o teatro da crueldade brasileira - do absurdo brasileiro -, teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura da apatia em que vivemos. Cada vez mais essa classe média que devora sabonetes e novelas estará petrificada e no teatro ela tem de degelar, na base da porrada", dizia José Celso em entrevista.
João Antônio Esteves, ator e professor de artes cênicas da Universidade de Brasília, assistiu à montagem paulista de Roda viva em 1968 e recorda: os atores passeavam em meio da platéia, instalavam-se no colo dos espectadores, sujavam de sangue as suas roupas - como na cena em que devoravam pedaços de fígado cru, alusiva à voracidade com que a televisão e sua audiência comem o coração dos ídolos. João Antônio informa que as respostas às provocações eram as mais distintas, mas parece possível identificar duas atitudes básicas, extremas: a de rejeição ou, pelo contrário, a de aceitação cúmplice do espetáculo. "Tinha gente que se incomodava profundamente e saía do teatro, indignada"; e havia "os que ficavam, que era quem compactuava", porção majoritária.
A história composta por Chico Buarque não exigia, como tampouco proibia, o tratamento dado pelo diretor à peça, em trabalho fora dos limites do Oficina, grupo a que Zé Celso estava ligado. Pode-se resumir o enredo conforme os seguintes passos, distribuídos em dois atos: o cantor Benedito Silva, que ainda não conhece o êxito, encontra-se com o Anjo, figura caricata de empresário, que cinicamente o transforma em Ben Silver, decalque dos astros norte-americanos.
Aliado ao Capeta, representante da imprensa de escândalos, o Anjo conduz a carreira de Silver até que o rapaz, em crise de consciência - seu amigo Mane o condena, aos palavrões, por seu comportamento inautêntico -, embriaga-se e é flagrado em pleno porre pelo jornalismo venal. O Anjo opera nova metamorfose, fazendo de Ben Silver o telúrico Benedito Lampião e levando-o a cantar no exterior, onde exibirá nossos mais puros e valentes valores musicais. Novos ataques ao músico, vindos agora de nacionalistas irritados com o fato de ele, "depois de defender a reforma agrária", ter ido "receber dólares dos americanos", obrigam o Anjo a destiná-lo à morte não apenas artística, mas física, substituindo-o por Juju - a viúva do ídolo, fantasiada de hippie, nova protegida do empresário. Com todos esses saltos, característicos de farsa, Chico satirizava os vários tipos - o cantor de iê-iê-iê, o compositor de protesto - em voga nas telas e nos palcos em 1968. A temporada de Roda viva em São Paulo envolveu episódio melancolicamente famoso: o espancamento de atores e técnicos pelos delinqüentes do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, que invadiu o Teatro Ruth Escobar em 17 de julho. O ataque levou Nelson Rodrigues a comentar, consternado, em crônica publicada poucos dias depois do incidente: "Desde a Primeira Missa, nunca se viu, aqui, indignidade tamanha."
Seis anos mais tarde, Chico admitiria que "Calabar é um trabalho bem mais elaborado" que o texto de estréia. Escrito em parceria com Ruy Guerra, em 1973, Calabar, o elogio da traição teve problemas com a censura e só chegaria à cena em 1980. Os autores reeditavam tema histórico, que foram buscar no Brasil do século XVII. As lutas entre portugueses e holandeses pelo controle do açúcar em Pernambuco forneciam o ponto de partida para discutirem, de maneira bem-humorada, as noções de fidelidade e infidelidade política, numa fase, o início dos anos 70, em que a propaganda oficial impunha o dilema: "Brasil, ame-o ou deixe-o."
Calabar, o suposto traidor, teria escolhido o lado menos ruim, o dos flamengos. O príncipe Maurício de Nassau, déspota com tintas renascentistas, chega a estas terras e promove mudanças benéficas à população nativa, mas, afinal, será apeado do poder: a seus financiadores de além-mar pouco interessavam as melhorias realizadas por ele na Colônia.
A peça mistura procedimentos épicos e dramáticos, com predomínio dos primeiros. As letras podem destinar-se a revelar tendências ou a armar cenários, mas podem ainda, como acontece em Tira as mãos de mim, valer como diálogo. Nesse caso, Bárbara, falando a Sebastião do Souto, compara Calabar, já morto, a Souto, afirmando a inferioridade deste: "Ele era mil, tu és nenhum, na guerra és vil, na cama és mocho...". Deve-se notar a fragilidade de Calabar, compensada em parte pela beleza lírica ou bem-humorada das canções. O texto, em certas passagens, assume o tom de discurso indignado, exortando o espectador a agir na modificação do real. É fato que isto se dá sem simplificações excessivas. Trata-se de panfleto de bom nível; a ênfase pode, contudo, fazer baixar e não elevar a tensão dramática - ou épica.
A própria questão da empatia se torna problemática: Bárbara, no primeiro ato, é vista por três vezes, mas em funções de narrador ou de sujeito lírico, antes do momento importante em que interpela três militares de algum prestígio, ligados aos portugueses, o negro Dias, o índio Camarão e o pobre Souto. A moça questiona com energia a atitude pragmática, avessa a escrúpulos, adotada pelos três. Contudo, para que acreditemos em sua possibilidade de fazê-lo, temos de nos identificar com ela - e o texto não nos dá grandes chances nesse sentido. A peça, em seu recorte épico, deixa à personagem - isto é, à atriz que a representa - a tarefa de se impor junto à platéia. Bárbara canta a perda de seu homem, exorta-nos a prestar atenção às próximas cenas e censura o castigo dado a Calabar - rebeldes provenientes da elite nem sempre encontram a morte, diz ela. A intérprete precisará afirmar-se muito eficientemente para, dessas intervenções puramente líricas ou épicas, retirar a força dramática necessária à inquisição posterior, feita a Dias, Camarão e Souto.
A bela Gota d'água, escrita em parceria com Paulo Pontes, aparece no Rio em dezembro de 1975, depois de algum temor quanto à atitude da censura, que acabou por liberá-la. Com base remota na grega Medéia e inspiração imediata no caso especial criado por Vianinha, que adaptou a trama clássica para a televisão, situando-a nos subúrbios cariocas, o texto aborda a capacidade que o capitalismo brasileiro, tomando impulso nos anos 70, tinha de empregar "os mais capazes", enquanto continuava a excluir a maioria. O sambista Jasão, com seu oportunismo, constitui emblema dos poucos indivíduos ou setores da classe média, ou mais raramente das camadas pobres, a serem convidados para a festa dos ricos.
O drama não exclui lances de humor. Um desses momentos surge na forma de canção interpretada em coro. "Flor da idade". O contexto é o de uma cena de bar a que Jasão comparece depois de discutir com mestre Egeu: este exerce autoridade moral no ambiente que Jasão está prestes a abandonar, assim como abandonou a mulher, Joana. Ela coleciona motivos para se queixar da condição feminina e prepara a vingança, convicta de que "não se pode ter tudo impunemente/ A paz do justo, o lote do ladrão/ Mais o sono tranqüilo do inocente". O tom dominante, naturalmente, nada tem de leve ou alegre; o humor atenua passagens dolorosas, mas também pode acirrá-las, por contraste.
O texto comove quando se aproxima do argumento de Medéia, contemplando os embates entre Joana e Jasão, o ódio que ela sente, as disposições de Creonte, convertido aqui em dono do conjunto habitacional onde se passa a história. A emblematização política, para voltarmos ao tema do recrutamento dos mais capazes, relaciona-se ao fato de que, enquanto Jasão ascende por meio do casamento com a filha do poderoso local, à exasperada Joana não sobra sequer a possibilidade de continuar a viver no conjunto, de onde é expulsa. Os excluídos, no entanto, podem ir à forra. A sólida estrutura dramática de Gota d'água valoriza-se com os versos que combinam metáfora, ritmo e linguagem coloquial. A peça aproxima-se da obra-prima, é uma das maiores da dramaturgia brasileira. Em Ópera do malandro, que estréia no Rio em julho de 1978, o tema das mudanças operadas de modo a que nada se altere no essencial liga-se à "modernização autoritária" que se dá em 1945, com a generosa abertura do mercado local aos norte-americanos,novos senhores do mundo. Processo similar, sob certos aspectos. já se verificara na época da Revolução de 30, quando os círculos do poder abriram vagas para a burguesia industrial. seduzindo também os trabalhadores com a fixação de direitos elementares - mantendo-se o comando, no entanto, nas mãos paternais de Getúlio Vargas. As personagens cômicas e as canções, várias de fino labor lírico, traduzem de modo lúdico a passagem da ditadura à democracia. O picareta estabelecido Fernandes de Duran associa-se, a contragosto, ao picareta emergente Max Overseas, pela via do casamento de Max com a filha de Duran, Teresinha, mulher de visão que antecipa as oportunidades oferecidas pelos novos tempos. A invasão legal das praias brasileiras por produtos e capitais estrangeiros beneficiará os mesmos gatos-pingados de que, em Gota d'água, Corina, amiga de Joana, fala ao dizer: "Parte, Jasão, pro banquete da meia dúzia".
A estrutura da ópera do malandro assemelha-se à do musical americano: canções intercaladas ao enredo que, no entanto, segue lépido e somente se detém para nos deliciar com as melodias e letras. O efeito hipnótico que os números cantados produzem, nos filmes de Hollywood, não se repete na ópera, texto empenhado em fazer pensar, capaz de usar a ironia sem parcimônia... Ou não? A distância que separa a peça de Chico ou a Ópera dos três vinténs de Brecht e Weill, de um lado, e os musicais da Broadway, de outro, pode ser apenas convencional, aparente, uma ilusão devida à boa vontade política do observador. A pergunta a ser feita a esta altura alcança as outras peças do poeta dramaturgo: qual é a vigência desses trabalhos, que papel podem exercer se o objetivo declarado, mais do que embalar a platéia, é o de refletir o país?
As peças musicais escritas por Chico Buarque, especialmente o burlesco Calabar, o drama em verso Gota d'água e a Ópera do malandro, comédia pontilhada por canções, são bons modelos a partir dos quais se pode rediscutir os rumos do musical brasileiro, sobretudo o de vocação política. Tarefa a se realizar, ao que parece, sem o auxilio do escritor e compositor: ele declarou recentemente que seus projetos imediatos têm pouco a ver com o teatro. Ligado, como letrista e músico, a tantos espetáculos entre os quais está Cambaio, de 2001-, torna-se difícil acreditar na demissão do mestre. Se a disposição for para valer, será de se lamentar, mas nada grave. Lúdicas ou líricas, leves ou densas, sempre bem escritas, ficam as peças.
Fernando Marques jornalista, doutorando em literatura brasileira na Universidade de Brasília com projeto de tese sobre teatro musical. Publicou Retratos de mulher (poemas, Varanda), é autor das canções do show Samba do amor omisso (2001) e das pecas últimos e Zé
Revista Cult nº 69 - Maio/2003
Entrevista com a ensaísta Adélia Bezerra de Meneses, professora de literatura da USP e da Unicamp e autora de dois livros que dissecam a poética de Chico Buarque
CULT - Como se define a fronteira entre poesia e letra musical na obra de Chico? Em que momentos a obra de Chico ultrapassa os limites da MPB e passa a integrar o repertório de poesia brasileira?
Adélia Bezerra de Meneses - Essa é uma pergunta muito pertinente, porque na canção popular letra e música formam um corpo único, entranhadamente articulado. E a música, sendo por si produtora de significado, "reforça", por assim dizer, a letra. O próprio Chico, quando perguntado em múltiplas entrevistas sobre seu processo de criação, fala que palavra e música vêm junto, uma puxa a outra, apesar de reconhecer uma certa precedência da música. Mas confessa-se um "impuro" no mundo dos compositores musicais, uma vez que penderia mais para a letra do que para a música. Mas, se formos pensar bem, em toda a poesia (refiro-me à poesia escrita) há essa dialética de música e palavra, ou, em termos valéryanos, de som e sentido. É importantíssima a sonoridade na poesia; só que na canção o processo é radicalizado. A canção como que desentranha e deflagra a musicalidade que a palavra - toda palavra humana - embute.
Por outro lado, a palavra cantada apresenta uma dimensão mais sensorial: ela nos atinge, ainda mais do que a poesia, no nível dos sentidos. Mais do que num poema (sobretudo numa leitura silenciosa, de lábios fechados), na canção a palavra é corpo: modulada pela voz humana, portanto carregada de marcas corporais; a palavra cantada é um sopro que se deixa moldar pelos órgãos da fala, trazendo as marcas cálidas de um corpo humano. (Palavra viva,/palavra com temperatura,/palavra", diz Chico em "Uma palavra"). A palavra cantada é isso: ligação de sema e soma, de signo e corpo. E se é verdade que o ritmo é fundamental e necessariamente presente em toda a poesia escrita, é verdade também que ele se alardeia com mais intensidade na música. E o ritmo participa da ordem biológica. Pois o ser humano é submetido a ritmos na vida de seu corpo: a respiração, com o movimento de expansão/retração dos processos de inspirar e expirar; o pulsar do coração, o latejar do sangue nas veias. É por isso que a música nos pega tão visceralmente: o ritmo tem seu paradigma na esfera orgânica, remete a algo de visceral. Aliás, Chico Buarque alude a isso, numa de suas canções, "Choro bandido": "As notas eram surdas Quando um deus sonso e ladrão/ Fez das tripas a primeira lira/ que animou todos os sons" - evidentemente, numa referência ao mito grego da invenção do primeiro instrumento musical, que teria sido criado pelo deus Hermes esticando tripas de um carneiro na cavidade de um casco de tartaruga.
Por sinal, a articulação poesia e música se faz na tradição poética desde os gregos, cuja poesia era cantada. A Ilíada e a Odisséia, por exemplo, eram apresentadas ao público acompanhadas de melodia. E "lírica" era a poesia acompanhada ao som da lira. Aliás, o termo grego aedo significa ao mesmo tempo poeta e cantor, indissociavelmente ligados. Aliás, a gente sabe que nos dias de hoje se lê pouca poesia, mas ela chega até as pessoas através da canção popular. Dessa maneira, a canção é veículo de poesia, sobretudo entre os jovens, que ouvem tanto "som".
Agora, quanto à última parte da sua pergunta (sobre o fato de a obra de Chico passar a integrar o repertório da poesia brasileira), acho que poderei responder com um "argumento de autoridade". Tenho guardado comigo, como uma relíquia, um cartãozinho do Drummond, que, na sua bela letra, agradecendo o envio do livro Desenho mágico - Poesia e política em Chico Buarque, diz, entre outras coisas, o seguinte: "... um viva! cordial pelo... estudo sobre a poesia de Chico Buarque de Hollanda". Assinado: Carlos Drummond de Andrade. Ressalto, talvez desnecessariamente: "sobre a POESIA de Chico Buarque de Hollanda".
CULT - O que são a "variante utópica" e a "vertente crítica" de que fala seu livro Desenho mágico? Como elas se distinguem das canções engajadas, participativas, de protesto? Como definir músicas recentes, como "Levantados do chão”, que você analisou em ensaio que será publicado no livro Decantando a República?
A.B.M. - A "variante utópica" e a "vertente crítica", como também o "lirismo nostálgico", são as três modalidades daquilo que se poderia chamar (com Alfredo Bosi) de "poesia resistência" - modalidades de uma radical recusa à realidade opressora, de mercantilização das relações, de surda exploração que vivemos. Toda literatura, toda poesia, quer queiramos, quer não, é engendrada de um solo cultural: histórico, social, político. No entanto, em tempos adversos como o nosso, nunca a grande poesia duplica valores e ideologia dominantes, mas necessariamente rompe com eles. Num mundo massificado, homogeneizado, de exploração generalizada, com a globalização concentracionária campeando; de consumo e obsolescência programada, sociedade da mídia e da cultura do espetáculo, como poderia a grande poesia ser de adesão? É assim que a obra de Chico Buarque pode ser nucleada em torno dessas três grandes linhas:
1) lirismo nostálgico: recusa do presente opressor voltando-se para um passado em que as relações humanas não eram degradadas pela massificação e pela estandardização ("A banda", "Maninha", "Realejo" etc.);
2) variante utópica: recusa da realidade opressora projetando-se para um tempo-espaço outro, em que não se daria mais o reino da exploração e do simulacro. São canções que cantam o "dia que virá", ou propõem um futuro em que se dará a reconciliação do homem consigo próprio e com o mundo. Delas, a paradigmática é "O que será", visionária e épica, um canto libertário, erótico e político. No entanto, difícil utopia essa dos anos que agora atravessamos, nesse fim de um milênio e início do outro, contra o pano de fundo do capitalismo multinacional e da pasteurização dos projetos revolucionários. Que "princípio esperança" resta para ser afirmado num mundo que verga ao "fim da História", e que o "novo" perdeu sua força mobilizadora? Há uma canção do CD Cidades, de 1998, intitulada "Sonhos sonhos são", antes um pesadelo, que se inicia por "negras nuvens", em que todas as cidades que aparecem são do Terceiro Mundo; e em que "pálidos economistas pedem calma" e "uma legião de famintos se engalfinha". Mas nesse sonho-pesadelo angustiante, ainda subsiste uma força geradora de energia, radicada no mundo dos afetos: "Notando meu olhar ardente/ em longínqua direção/ Julgam todos que avisto alguma salvação/ Mas não, é a ti que vejo na colina." Mais uma vez, aqui, a confusão entre o pessoal e o social, entre o erótico e o político. Mas se é verdade que nas canções da última década para cá o sopro épico não tem mais condições históricas para brotar, e Chico Buarque se ressente duramente da crise das utopias, ele no entanto canta, sim, a "amplidão, nação, sertão sem fim"; canta a possibilidade de "Cana, caqui,/ Inhame, abóbora/ onde só vento se semeava outrora" ("Assentamento");
3) vertente crítica: recusa da realidade, ferindo-a pela crítica social, seja direta ("Construção", "Angélica", "Meu guri", "Brejo da cruz", "Uma menina' etc.), seja através das ricas modulações de que se reveste a ironia ("Mulheres de Atenas", "Bye Bye Brasil", "Bancarrota blues" etc.). Quanto às canções de protesto, da época mais aguda de repressão, portanto historicamente datadas, originam-se no vértice da crítica e da utopia. Assim "Apesar de você", que se tornou uma espécie de "hino oficial" contra a ditadura: recusa de um presente de opressão e espera de um "amanhã" que há de ser um outro dia. A canção "Levantados do chão" (com letra do Chico e música do Milton Nascimento), que num CD encartado acompanhou o livro de fotos de Sebastião Salgado, Terra, e que foi composta para o MST, faz parte da vertente crítica: nela, através de interrogações reiteradas e cumulativas, o poeta faz passar toda uma perplexidade pela situação da falta de terra para quem dela viveria; de sua carência, do oco e do desarrazoado que isso representa: "Como então? Desgarrados da terra?/ como assim? Levantados do chão?/ Como embaixo dos pés uma terra/ Como água escorrendo da mão/.../ Habitar uma lama sem fundo/ como em cama de pó se deitar/ Num balanço de rede sem rede/ Ver o mundo de pernas pro ar". Da mesma maneira que os sem-terra são seres humanos definidos pela negativa, nomeados por aquilo de que carecem fundamentalmente, nessa canção a terra ou o chão, quando comparecem, estão sempre acoplados a algo que os nega: desgarrados da terra, levantados do chão, oco da terra, lama sem fundo. O termo, presente nominalmente, é negado, desvirtuado: o que sobressai é sua falta, a privação. E existe uma metáfora suprema de falta de fundamento sólido: "Num balanço de rede sem rede/ ver o mundo de pernas por ar". Não se trata apenas de falta de apoio e solidez: alude-se à falta de fundamento ético para a situação, configurando um mundo "de pernas pro ar", mundo dolorosamente anômalo, aético, injusto.
CULT - Inicialmente, o caráter inovador de Chico parece residir na superação do "lirismo ingênuo, nostálgico e saudosista "(segundo suas palavras) por uma poética de intervenção política. Até quando essa dicotomia lirismo x engajamento se mantém? Quais são, na sua opinião, as canções-chave dessas duas vertentes da obra do compositor?
A.B.M. - Acho que seria necessário precisar um pouco os termos da sua pergunta, até porque eu não acho absolutamente que "lirismo" e "engajamento" sejam excludentes. E o ingrediente “engajamento" por si não é prato de resistência de nenhuma boa poesia - haja vista o horror que é o "realismo socialista". Você conhece "Cala a boca Bárbara", que canta o amor passional e telúrico de Bárbara por Calabar, uma belíssima canção de amor que, no entanto, pode ser lida também no registro político. O "Cala a boca" que marca a canção estigmatiza a peça e os tempos que a geraram: remete ao mesmo silêncio imposto de "Cálice" (= Cale-se) da época em que a canção foi produzida, a década de chumbo dos inícios dos anos 70, auge da ditadura militar; mas também remete a uma imposição de silêncio, à proibição de pronunciar o nome de Calabar, personagem da história colonial do Brasil, na época do domínio holandês, e que tinha sido julgado pelos portugueses como traidor, executado e esquartejado, e condenado à extinção de sua memória, o que implicaria a proibição de mesmo pronunciar o seu nome (o que é infringido na canção, à força de repetição do refrão: CALA a boca BÁRbara: CALABAR). E esse é um dos mais belos poemas eróticos da língua portuguesa.
Peguemos, por outro lado, uma canção inapelavelmente "ingênua, nostálgica e saudosista", que é "A banda". Ela também transmite algo "político": a recusa do presente opressor através de uma volta ao passado, seja o individual de cada um, que é a própria infância, seja o passado coletivo, da sociedade pré-industrial, em que as relações humanas não eram degradadas pela estandardização e pela massificação:
"Eu tava à toa na vida/ o meu amor me chamou/ pra ver a banda passar/ cantando coisas de amor". Ao desencanto do mundo (de que fala Max Weber) o poeta contrapõe a força de uma lembrança pessoal. E essa poesia pode resistir na saudade de um mundo de afetos preservados, em que se resgata, por exemplo, o tempo da infância, tempo de comunhão e magia: "Agora eu era herói / e o meu cavalo só falava inglês / a noiva do caubói / Era você além das outras três...". A essa linhagem se somará o riquíssimo filão da lírica amorosa de Chico Buarque: "Pelo amor de Deus/ Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem/.../ Ou será que o Deus/ que criou nosso desejo é tão cruel/ Mostra os vales onde jorra o leite e o mel/ e esses vales são de Deus" ("Sobre todas as coisas"). Mas há também o amor cantado em tom camerístico:
Cecília é a amada cujo nome é murmurado, ciciado, induzindo a um gesto corporal: "Pode ser que, entreabertos/ Meus lábios de leve/ Tremessem por ti" (Cecília). Dizer o amor, dizer o afeto nessa realidade alheia e hostil, em que até as emoções são terceirizadas (haja vista as novelas da TV, e os Big Brother reincidentes), é resistir. E não podemos nos esquecer de em que medida Chico Buarque é o poeta do amor e o cantor do feminino.
CULT - Que mutações sofrem as "ïrguras do feminino"(tema do seu segundo livro sobre a canção de Chico Buarque)ao longo da obra de Chico?
A.B.M. - Creio que não se trata tanto de "mutações" quanto de modulações. A obra de Chico progride como que em espiral: vai num crescendo, mas retomando, sempre, aquilo que é fulcral e que, ao longo dos anos, vai sendo expandido. Em relação às canções que tematizam a mulher, eu escrevi em Figuras do feminino que a gente poderia pensar, enfocando a canção "Ela e sua janela" - em que a amada, inicialmente à janela esperando o seu homem, vai alguns, versos depois para a varanda, na segunda estrofe para a rua e, na terceira estrofe, para a vida -, que aí se desenharia uma espécie de percurso do feminino na obra do Chico. Com efeito, se se comparar, por exemplo, "Carolina", ou a protagonista de "Com açúcar, com afeto", ou a "Morena dos olhos d'água", de seus primeiros discos, com as mulheres amadurecidas na luta e na paixão, como Bárbara, a mulher guerrilheira de Calabar, ou a Joana, de "Gota d'água", pode se falar numa grande mudança. Mas essa mulher forte que é a Joana já estava prefigurada na protagonista de "Com açúcar, com afeto", que é a mulher forte, que forja o seu macho e diante da qual o homem é uma criança, "que da noite pro dia não vai crescer". É dessa estirpe, mas funcionando num outro registro, a protagonista de "Dura na queda", de recentíssima produção.
Na temática feminina das canções do Chico apontam-se a "mulher órfica" - que não respeitaria, por exemplo, o princípio da realidade e continuaria sambando após a quarta-feira de,cinza, num Carnaval continuado, como em "Ela desatinou" ou "Madalena" - e a "mulher prometéica" - como as protagonistas competentes de "Com açúcar, com afeto", "Logo eu" (que "despacha pro batente" o companheiro) e "Quotidiano", que encerra seu homem num abraço de ferro de um quotidianismo insuportável, metafórico e literal ("me aperta pra eu quase sufocar"). Assim também descortina-se a ordem da festa e a ordem do trágico, representadas polarmente pela adolescente de "Sentimental", que reivindica com veemência seu quinhão de felicidade, contrapondo-se à tragicidade de "Angélica" e da favelada do morro de "Meu guri", mulheres que representam a maternidade ferida: perderam seus filhos assassinados, um pelas forças da repressão política da ditadura militar, outro pelas forças policialescas da opressão socioeconômica. E também comparecem personagens que rompem como discurso habitual sobre a mulher: da antiheroína de "Sob medida" ("Traiçoieira e vulgar, sou sem nome e sem lar", "Sou perfeita porque/ igualzinho a você/ eu não presto") à desmitificadora do sacrossanto amor materno (em "Uma canção desnaturada"), à prostituta que, invertendo os sinais da alienada relação de poder que está na base da prostituição, vai manipular e descartar o homem ("Folhetim"), à parceira de "Se eu fosse teu patrão", canção que desvenda que a relação entre os sexos não escapou do viés da luta de classes. Aliás, como é sempre no contexto de uma intensa relação afetiva que se desvenda o fundamental da mulher, a abordagem das canções de temática feminina inevitavelmente deslizará para o terreno dos afetos, obrigando-nos a descortinar o poderoso veio da lírica amorosa do autor.
Mas há ainda a mulher de "As vitrines", canção que repercute ecos baudelairianos e benjaminianos, como já registrei em artigo de 1986, "Do Eros politizado à Polis erotizada", no qual, aludindo ao estudo de Willi Bolle (Fisiognomia da metrópole moderna, Edusp), aponto na canção de Chico também a sobreposição das imagens da mulher e da cidade, entroncando-se na linhagem de "A une passante", de Baudelaire ("Eu te vejo sumir por aí. Te avisei que a cidade era um vão/ .../ Passas em exposição/ Passas sem ver teu vigia/ catando a poesia/ que entornas no chão").
CULT - Como se dá a polarização Chico-Caetano? Quando Caetano diz que Chico Buarque "anda pra frente arrastando a tradição", isso se refere a sua produção de cunho político ou à produção lírica?
A.B.M. - Tenho a impressão de que Caetano diz que Chico "anda pra frente arrastando a tradição" como músico. E isso abarca, evidentemente, tanto sua produção de recorte mais político quanto a de cunho mais lírico - apesar de, como já disse, não achar que renda muito essa discriminação entre o "lirico" e o "político". É mesmo um pouco o que penso: Chico Buarque é um artista arraigadamente brasileiro, fruto de um solo cultural e musical do qual ele sabe extrair as melhores linhas de força, do qual ele se torna porta-voz e a partir do qual vai inovar, vai criar. É interessante que na palavra tradição, que vem do verbo latino tradere, já está essa conotação de entregar, passar a outro, "levar para frente". Nesse sentido, é paradigmática a canção "Para todos", do CD de mesmo nome, em que se percebe que há uma consciência do próprio Chico dessa tradição que desemboca nele. Nessa canção, ele faz como que uma introdução a uma espécie de autobiografia sua como compositor, desdobrando sua árvore genealógica musical brasileira. E aí se refere a sua família de sangue: "O meu pai era paulista/ meu avô pernambucano/ o meu bisavô mineiro/ meu tataravô baiano" (o caldeirão não podia ser mais brasileiro) e, sem transição:
"Meu maestro soberano/ foi Antonio Brasileiro" - a sua família artística, da qual o "Maestro" (polivalência expressiva, que se refere a "mestre" e também àquele que "rege" uma orquestra musical inteira) é Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom. E o resto da canção convoca - e é comovente - Dorival Caymmi, Ari Barroso, Vinicius de Moraes, Nelson Cavaquinho, Luiz Gonzaga, Pixinguinha, Cartola, Orestes Barbosa, João Gilberto, Caetano e demais contemporâneos, inclusive instrumentistas e cantoras... reservando um "évoé" aos "jovens à vista". Até terminar com uma afirmação incisiva: "Sou um artista brasileiro".
CULT - Quais são as personagens recorrentes na obra de Chico Buarque?
A.B.M. -Além das mulheres... Já se tornou um lugar-comum dizer-se que a canção de Chico Buarque privilegia o marginal como protagonista, pondo a nu, assim, a negatividade da sociedade. Desde o primeiro disco, com "Pedro Pedreiro", passando por "Meu guri", "Pivete", "Iracema", "Levantados do chão", "Assentamento", os despossuídos têm voz e vez. Malandros, sambistas, pedreiros, pivetes, prostitutas, pequenos funcionários, sem-terra, mulheres abandonadas.
Todo um povo que será reunido, por exemplo, num grande "Carnaval", e que engrossará o enorme "Cordão" -daqueles que "não têm nada pra perder". Ele os torna "protagonistas da História", dá voz àqueles que em geral não têm voz. É assim que em "O que será que será", a grande canção utópica, é com essa gente - os desvalidos e oprimidos - que a grande Utopia acontecerá. E isso é um extraordinário traço de radicalidade que ele teve de quem herdar. Com efeito, a gente pode dizer que Chico é um "radical", filho de um historiador, Sérgio Buarque de Holanda, que é um dos mais significativos representantes daquilo que Antonio Candido chama de "pensamento radical", que se caracteriza por uma oposição fundamental ao pensamento conservador. E consiste, fundamentalmente, nesta sociedade de tão fundas sobrevivências oligárquicas, na atitude de tirar o foco das classes dominantes e abordar o "dominado" - mirar antes a senzala do que a Casa Grande.
Antonio Candido aborda o "radicalismo" de Sérgio Buarque de Holanda mostrando em que medida seu escrito mais importante nesse sentido, que é Raízes do Brasil (onde Sérgio faz uma análise da nossa formação histórica), contraria os pontos de vista dominantes no tempo em que foi publicado. E desentranha daí, como mostra em seu estudo "Radicalismos" - incluído na terceira edição de Vários escritos (Duas Cidades) -, a idéia do "advento das camadas populares à liderança". Assim, pai e filho, em suas obras - de ensaísta e de artista, respectivamente -, vão se contrapor não apenas à supervalorização do papel das elites como também à valorização da herança colonial em sentido senhorial e ufanista (haja vista o tratamento que Chico lhes dá na peça Calabar). A posição de Sérgio, como aponta Antonio Candido, era única entre os intelectuais, num momento em que predominava, mesmo entre os melhores, a concepção de progresso pela iniciativa de elites esclarecidas. Em Raízes do Brasil, sugere-se que o avanço político significa o atendimento às reivindicações populares, por meio de um regime onde o próprio povo tomasse as rédeas.
Filho de um historiador que é considerado, no dizer de Antonio Candido, o primeiro intelectual brasileiro de peso que fez uma franca opção pelo povo no terreno político, deixando claro que ele deveria assumir o seu próprio destino e rompendo (em 1936!) a tradição elitista do nosso pensamento social, Chico, na criação de sua galeria de personagens, teve a quem puxar.
Um dos maiores compositores da MPB, Chico Buarque tem uma obra que ultrapassa os limites da criação musical e deve ser lida em clave literária. Leia, neste dossiê, ensaios sobre seus três romances, a poética de suas letras, suas peças teatrais e seu processo criativo.
Em 1974, o músico Chico Buarque, alvo número um da censura que imperava no país, passou uma curta temporada com a família na Itália. Tinha um projeto: escrever seu primeiro romance. Em dezembro daquele mesmo ano, voltava de viagem e publicava pela Civilização Brasileira, uma editora que abrigava importante produção de esquerda, uma "novela pecuária", como o autor denominou o seu livro Fazenda Modelo. Com a cara de um boi estampada na capa, o romance fazia uma alegoria do Brasil: no lugar de indivíduos, bois e vacas; no lugar do país, uma enorme fazenda. Embrenhar-se pela prosa de ficção era um caminho natural para o músico.
Desde jovem tinha grande interesse pela literatura. Como chegou a contar em entrevista a Augusto Massi, em 1994, foi por indicação de seu pai, o historiador e crítico literário Sérgio Buarque de Holanda, que ele leu, em francês, língua que já dominava, vários clássicos, como Flaubert, Céline, Sartre e Camus. Qualquer admirador da obra musical de Chico percebe em suas letras que a narrativa e os personagens sempre estiveram presentes, desde um Pedro Pedreiro esperando o dia de voltar para o Norte, passando pela fala de uma mãe de um garoto de morro, chegando na mais recente Iracema, que vai tentar a vida na América e namora um mímico (já que não domina o idioma inglês, a comunicação só pode ser gestual).
Depois de Fazenda Modelo, ele ficou mais de quinze anos sem publicar nenhum outro romance. Foi somente em 1991 que o prosador Chico Buarque redespertou com a publicação de Estorvo, publicado pela Companhia das Letras, livro que mereceu o elogio de críticos importantes como Roberto Schwarz, Augusto Massi e Benedito Nunes.
Embalado pela narrativa espiral e um tanto onírica de Estorvo, ele escreveu ainda mais uma novela, Benjamim, publicada em 1995, pela mesma editora. Com esses três livros, Chico se colocava entre os principais prosadores brasileiros de hoje. Essa obra pequena, mas consistente, ensaia de maneira geral um movimento bastante complexo sobre as últimas três décadas da vida nacional.
No caso de Chico Buarque, e impossível comentar seus livros sem vinculá-los ao período em que foram escritos e, principalmente, à realidade a que fazem referência, mesmo que de forma indireta. Em nenhuma de suas novelas a palavra "Brasil" aparece, mas não é difícil enxergar que é este país que está na base de sua criação. É a paisagem transfigurada do Rio de Janeiro que domina. Com isso, não se quer dizer que sua obra não tenha outras dimensões, abrindo-se para outros horizontes. Obviamente tem, mas em um autor como Chico - cuja trajetória artística foi marcada pela preocupação e pela participação política, que sabe, como poucos, tratar de forma objetiva a realidade do país em seus ângulos variados -, a obra romanesca não poderia deixar de lado essas conquistas que vieram, no seu caso, tanto da música popular quanto da dramaturgia.
Na obra musical de Chico Buarque, o poeta sentimental tem menos espaço que o poeta objetivo, aquele que encontra sua poética ao dar a voz para personagens pinçados na vida brasileira. Guardadas as devidas diferenças entre a canção narrativa praticada pelo músico e o romance, o escritor não deixa de certa maneira de explorar, com mais fôlego, um momento crucial e complexo na vida de seus personagens, pensando aqui no protagonista de Estorvo e em Benjamim Zambraia. E é através da destinação desses homens que o escritor vai tecendo com muitos detalhes um retrato complexo do universo em que eles vivem, tudo de for ma bastante programática e calculada. É a objetividade direcionando o caminho da criação ficcional.
Porém, antes de entrar nos romances mais recentes, é preciso comentar Fazenda Modelo, um livro bastante diferente dos outros dois, mas que, como numa corda puxada, é uma das pontas dessa obra romanesca e faz parte de um mesmo projeto de criação. Uma hipótese de leitura do conjunto dos três romances de Chico Buarque é pensá-los da seguinte maneira: neles estão contidos dois períodos da vida brasileira, os anos 70, sob o regime da ditadura militar, e os anos 90, com o país já democratizado, porém mantendo internamente as abismais desigualdades sociais. Não é forçar a barra dizer que estes dois momentos são fundamentais em sua obra. Basta ver que tanto o protagonista de Estorvo como Benjamim Zambraia percorrem, em. suas andanças, esses dois períodos da história brasileira: antes parecem saídos da mesma geração, alguém que deixou um fio desencapado da memória nos anos 70 e que precisa retornar a ele de algum modo nos anos 90, talvez para melhor entender o momento presente.
Fazenda Modelo, ao contrário, é fruto dos anos 70: nasceu em plena ditadura militar, no momento em que o chamado "milagre econômico" chegava ao fim, nasceu na época em que a censura atuava intensamente, proibindo peças, pedindo cortes de versos em letras de música etc. Mesmo lidando com bois e vacas indefesas o universo projetado pelo romance tem paralelos com o período na vida do país.
Chico escreveu um livro narrado por um boi (e não é só narrado como também é dedicado a Latucha, que é uma das vacas criadas na Fazenda Modelo). Há uma boa dose de humor que vai desde a dedicatória, passando pelo prefácio - uma espécie de pastiche de apresentação de livro científico -, até a "bibliografia técnica" apresentada no final, com indicações de obras sobre pecuária e agricultura (obras reais, não fictícias). Tudo isso em função do aspecto alegórico do romance: para falar dos homens, o escritor optou por criar uma comunidade de bois e vacas numa fazenda.
Nessa fazenda, quase que um país encravado no mapa de fazendas, ranchos e chácaras, os animais viviam soltos, misturados, como relata o narrador logo no primeiro capítulo do livro: "Era assim: o que quiser que tenha, tinha. Tinha arrebol? Tinha. Rouxinol? Tinha. Luar do sertão, palmeira imperial, girassol, tinha. Também tinha temporal, barranco, às vezes lamaçal, o diabo. Depois bananeira, até cachoeira, mutuca, boto, urubu, horizonte, pedra, vau, trigo, joio, cactus, raios, estrela cadente, incandescências. Enfim." Descrito o ambiente, a ironia fina do autor passa a descrever o tipo de estado em que se vivia, sem leis, ou melhor, só com leis nascidas da vida mítica e popular: "Não podia apontar estrela, por exemplo, que dava verruga na ponta do dedo. Se brincasse de vesgo, batia uma brisa e ficava vesgo para sempre. Nem podia olhar mulher nua que nascia terçol."
Porém, como o narrador ainda alerta, a fazenda "Podia ser boa e bonita. Mas dava prejuízo. E tem mais: a indisciplina reinava, imperava o mal. Campeavam as libertinagens. Elogiava-se a loucura. As hierarquias eram revertidas, a higiene, o recato. Um quadro nada modelar. Portanto já era tempo de impor a ordem à comunidade vacum:" E assim começa Fazenda Modelo, seguido de um ato que nomeia conselheiro-mor Juvenal, o Bom Boi. Aí, a vida dos bois desta fazenda modifica-se inteiramente: do estado que se poderia chamar de natural passa-se para a sociedade que regula o mundo social e, abusivamente, abole as individualidades, tudo em nome do "progresso".
0 paralelo com um estado autoritário se impõe. Como diz Adélia Bezerra de Meneses, numa apresentação didática do romance no volume dedicado a Chico Buarque da antiga coleção Literatura Comentada (Abril), "a forma de dominação mais radical é usurpar do indivíduo - sempre em nome dos mais santos princípios - qualquer possibilidade de assumir seu próprio destino pessoal". O escritor, porém, não se contenta em usar somente um narrador. Para melhor focalizar a vida na fazenda, outros bois e vacas participam da narração, fazendo com que o leitor adentre nas diversas camadas sociais que formam seu dia-a-dia. Há o boi que rapidamente assume o discurso do poder e passa a reproduzi-lo ingenuamente, os bois "invertidos", que organizam greves e piquetes etc.
O que se vê, num plano geral, é o discurso da modernização, que se espalhou no Brasil do "ame-o ou deixo-o", servindo de base para uma sociedade autoritária e conservadora. A ciência entra como um novo mito, afastando a razão. É de se notar ainda que há nessa boiada uma vontade de resistência, mesmo que abafada. Alguns bois, antes de enlouquecerem, tentam se colocar do lado contrário ao sistema, questionando-o, tentando entendê-lo. É essa pressão, de certa forma, que acaba levando o projeto à falência, porém sem abrir novos horizontes a essa comunidade - no último ato, o "ato final", decreta o fim da experiência pecuária e destina todos os pastos "à plantação de soja". É "mais barato e mais tratável" do que ter de lidar com o povo. A ironia do texto narrado por um boi nada confiável vaza para a realidade e retorna ao leitor, que, atento, vai percebendo a sedimentação de uma ideologia e o horror de qualquer estado autoritário que encobre sua verdadeira motivação por trás de um discurso modernizador.
O que teria este mundo a nos dizer em relação às duas outras novelas de Chico Buarque, publicadas quase quinze anos depois e que já não usam a alegoria como forma de narrar? Sabe-se que a forma do romance é dada pelo momento histórico: a alegoria, no caso de Chico, servia perfeitamente aos propósitos artísticos, aproveitando-se da fabulação sobre bois e vacas para falar de algo mais amplo. Como se o escritor tivesse se apropriado de uma comparação que sempre circulou - a de aproximar povo com boiada - para de dentro dela fazer a crítica do sistema que gerou a metáfora de mau gosto. Já em Estorvo e Benjamim, a ficção se aproveita de elementos do romance policial, do thriller, como dizem os anúncios publicitários das editoras, para compor sua narrativa.
No caso desses dois livros mais recentes, a apropriação da forma é uma sacada do autor, pois ele não se apropria dela para seguir seu veio, e sim para se aprofundar no mundo que a criou e, principalmente, que a copiou, no caso brasileiro, como fórmula certeira para o sucesso editorial. É a forma, nascida e aprimorada em nossa época, do anúncio, da imagem, do cinema, do cartaz. Nesses tipos de romance, é a ação que domina, os personagens são levados de um lado para o outro para desvendar algum mistério.
Tanto em Estorvo quanto em Benjamim, os personagens principais são homens de classe média que muito provavelmente se formaram nos anos 70. Ambos "artistas" e que, impulsionados pela ação, circulam pelas camadas da vida social brasileira. No caso de Benjamim Zambraia, a relação com os anos 70 é evidente e até mesmo motora de todo o enredo. Já em Estorvo, a coisa não é tão evidentemente apresentada, mas pode ser capturada num fragmento de memória ou numa cena de rua, como se questiona, neste último caso, o crítico Roberto Schwarz, no ensaio "Um romance de Chico Buarque", incluído em seu livro Seqüências brasileiras (Companhia das Letras):"Numa grande cena de rua, com corre-corre, camburões e TV, uma baixinha com cara de índia procura impedir a prisão do filho, aos gritos e com bons argumentos. O narrador sente que vai ficar a favor dela, mas logo vê que se enganou, pois a mulher pára de gritar quando percebe que não está sendo filmada. O episódio, que o narrador preferia que não tivesse acontecido, explica muita coisa, talvez marque um horizonte de época. O desejo de tomar partido dos pobres e de vê-los defender na rua os seus direitos sobe de supetão, para se apagar em seguida. É como um reflexo antigo, antediluviano, hoje uma reação no vazio, já que a alegria do povo é aparecer na televisão. O desejo de uma sociedade diferente e melhor parece ter ficado sem ponto de apoio. Estaríamos forçando a nota ao imaginar que a suspensão do juízo moral, a quase-atonia com que o narrador vai circulando entre as situações e as classes, seja a perplexidade de um veterano de 68?". Realmente chama a atenção do leitor neste romance a atonia do personagem, como ele é levado pela ação. É como se ele mesmo não tivesse vontade própria, não tivesse reação racional. O romance começa quando um sujeito toca a campainha do apartamento e o protagonista sai de dentro do sonho para ver, pelo olho mágico, quem é. A identificação, que não chega a acontecer, leva o personagem para a sua própria memória, tentando buscar aquele entre rostos que conheceu. "Só sei que era alguém que há muito tempo esteve comigo, mas que eu não deveria ter visto, que eu não precisava rever, porque foi alguém que um dia abanou a cabeça e saiu do meu campo de visão, há muito tempo", diz o protagonista, que é quem narra a história.
Empreende-se a partir daí e sem motivo palpável uma fuga do protagonista. O livro inteiro gira em torno dessa fuga misteriosa e impossível. Fugir de si mesmo? De um mundo em que o gesto de abanar a cabeça e sumir tem algo de representação cinematográfica e que irá se repetir ainda em outras cenas, como, por exemplo, quando a irmã do protagonista pára na escada de mansão onde mora, "tão de repente como se fosse para me surpreender, como se fosse para saber se a estivesse olhando e como"? Porém, é a partir dessa fuga, que faz com que o protagonista volte sempre aos mesmos lugares - a casa da irmã, em forma de pirâmide cortada no topo e toda envidraçada, e o sítio da família, a uma hora e meia da cidade, que foi tomado por traficantes de maconha -, que o livro vai fixando uma imagem complexa do país. É um giro por camadas de uma sociedade degradada e dividida entre os muito ricos e os que vivem de atividade ilegal ou em torno dela e com proteção da polícia.
O protagonista participará de todos os lados, mas sempre impulsionado pela situação. Ele vai se envolver em situações estranhas, tomar porrada, apanhar de marginais, entrar e sair do mundo da ilegalidade e ainda roubará as jóias da irmã para trocá-las por uma mala de maconha. Mas nada disso por vontade própria. Parece até que estamos diante de um videogame, como aquele que um garoto pobre, vivendo no sítio, tem. O próprio protagonista acaba como os "animaizinhos verdes" do videogame, num jogo de fuga que recomeça "inúmeras vezes". É como se nessa fuga ele ainda tentasse resgatar do passado algum projeto, mas terminasse dentro de um círculo vicioso cujo núcleo é tão forte que ele não consegue mais escapulir.
Obviamente, o romance apresenta muitas outras camadas que não caberiam no espaço de uma só matéria. Mas, voltando ao miolo de nossa argumentação, tanto em Estorvo quanto em Benjamim a sucessão de movimentos -já que os personagens quase nunca estão parados - revela exatamente o contrário, a imobilidade e a impossibilidade de reagir a este mundo. Diga-se de passagem que os dois personagens não superam o próprio passado e parecem viver numa eterna infantilidade -eles não são de forma alguma responsáveis pelos próprios atos, são o tempo todo carregados em direção a um destino que, não diria trágico, é fatal.
Em Benjamim, por exemplo, Chico Buarque parece ter se aproveitado das idéias que moviam Estorvo para apresentar um romance tão complexo quanto este, porém mais didático, mais claro, já que o próprio personagem principal se coloca de saída como uma imagem: ele é um ex-modelo fotográfico, uma espécie de homem-cartaz. Logo no começo do livro, sabemos que esse Benjamim sempre imaginou que tivesse uma câmera fora dele filmando seus movimentos. A naturalidade do sujeito está perdida para a representação de si mesmo e não pode haver mundo mais pobre do que o que se representa e já não é.
O romance abre com o momento final da vida de Benjamim, quando ele vai ser fuzilado por um bando armado. A partir daí, o filme da memória roda para trás e remonta toda a sua vida, a perseguição do passado, a lembrança de Castana Beatriz e a situação que desencadeia a cena inicial. Toda a narração lembra uma câmera que narra, que vai flagrando nacos da vida nacional, como a história de Castana Beatriz, que teria morrido numa emboscada durante um período de repressão, e a história de Alyandro Sgaratti, menino pobre, que roubava pão doce na padaria, que, depois, passa a puxar automóveis e se torna o rei do mercado de peças de carros. Como processo natural, tenta sua estréia na política, deixando a campanha na mão de especialistas em imagem.
Sonho ou representação da realidade, o fato é que os dois romances apontam para um mundo impedido, que não consegue superar o passado, onde não há esboço de resistência do sujeito. Eles dançam conforme a música, como se tivessem petrificado a individualidade.
A imagem mais forte disso é a de Benjamim morando num apartamento cuja janela dá para uma enorme pedra, a Pedra do Elefante. Em certo momento, o narrador diz: "Há o cheiro da Pedra em Benjamim, que à saída do quarto fita Ariela, empedernido; é tão presente a Pedra naquela sala que, se Benjamim viesse a emparedar a janela, parece a Ariela que a Pedra ficaria do lado de dentro." É como se o próprio personagem adquirisse as propriedades da pedra (ele fica "empedernido") - uma imagem forte de imobilidade e morte do indivíduo.
Narrados com uma poesia muito refinada e com detalhes impressionantes (Chico se tornou um mestre na descrição detalhada das coisas, a própria descrição tem cheiro, textura, cor etc.), o escritor parece apontar sempre para o avesso da moeda: como se houvesse atrás dessa poesia uma poesia envenenada que revela um país (ou um mundo) que já não resiste; a busca do passado não traz força para a resistência do presente. Nos anos 70, apesar de tudo, havia o desejo de transformação da sociedade, principalmente para a geração criada nos anos 60 e que apostou no estudo da formação brasileira e das questões do país para buscar uma superação das mazelas; nos anos 90, quando suas duas últimas novelas foram compostas, já não há mais projeto, os personagens parecem encenar este esvaziamento. Ou, como escreveu Benedito Nunes ao falar do protagonista de Estorvo, "seu futuro é a expectativa do pior".
Heitor Ferraz Mello jornalista, mestre em literatura brasileira pela USP e autor dos livros de poesia Resumo do dia (Ateliê Editorial), A mesma noite e Hoje como ontem ao meio-dia (ambos pela 7Letras)
Revista Cult nº 69 - Maio/2003
Heitor Ferraz Mello
Bernardo Ajzenberg (ombudsman)
"Será que ele e os demais signatários não querem assinar um manifesto pró-Fernandinho Beira-Mar também? O nível de criminalidade entre ele e Fidel é parecido."
Esse protesto foi enviado por um leitor a propósito da notícia publicada terça-feira de que o compositor Chico Buarque assinara um texto em defesa de Cuba lido no 1º de Maio em Havana. O manifesto repudia os EUA e se omite quanto à recente onda de repressão a dissidentes cubanos, com prisões e fuzilamentos.
Surge num momento grave, em que celebridades culturais se dividem sobre o caso.
A mensagem revela como a imagem de um artista pode ser abalada por posicionamentos políticos. Mas mostra também outro fenômeno: o leitor confia no jornal, dá como fato o que ele publica. E aqui a coisa ficou encrencada, pois Chico simplesmente não tinha assinado manifesto algum em apoio a Cuba.
O quadro ao lado ilustra como o jornal tratou o episódio.
No primeiro dia (terça), dedicou-lhe uma chamada na capa ("Chico Buarque assina manifesto pró-Cuba") e um título de seis colunas em página interna ("Chico Buarque assina carta em favor de Cuba").
Ante o desmentido de um representante do artista, um pequeno texto saiu na quarta-feira, em pé de página ("Chico Buarque não defendeu Cuba, diz assessor"). Nele, sem lembrar que ela própria divulgara com destaque e títulos certeiros a "informação", a Folha escreve que "as agências internacionais informaram anteontem que Chico assinara a lista".
Finalmente, na sexta, uma carta do mesmo assessor no "Painel do Leitor" e um "Erramos" dão o desfecho, até aqui, para o episódio.
O editor de Mundo, Sérgio Malbergier, explica que a Folha usou informações de agências internacionais e constatou num site pró-Cuba que o nome de Chico estava na lista de apoio. Tentou ouvi-lo durante dois dias. No primeiro, não conseguiu.
"Publicamos então que agências e site informavam que ele teria assinado a lista e que não havíamos conseguido falar com ele", afirma o jornalista.
No segundo dia, relata, o assessor negou que Chico fosse signatário do documento -o que foi publicado-, mas disse que ele não poderia se manifestar porque estaria concentrado na elaboração de um livro. "Fica aqui o convite para Chico se pronunciar sobre o assunto com mais clareza", conclui Malbergier.
Penso que o jornal cometeu no caso ao menos três equívocos.
O primeiro foi editar com tanto destaque, títulos e textos taxativos um dado grave não confirmado. A reportagem cita uma agência, mas apenas ao informar que, segundo ela, Chico teria sido um dos últimos a assinar o manifesto. Também registra que não conseguiu falar com o compositor, mas não explicita se o procurara para confirmar a informação ou para comentá-la. Títulos e textos mais cautelosos atenuariam o estrago.
O segundo equívoco foi quase "se esconder" no dia seguinte (quarta), publicando o desmentido do assessor apenas num pé de página e atribuindo toda a responsabilidade às agências internacionais, como se o jornal não tivesse bancado a notícia.
Claro que publicar uma carta de desmentido e um "Erramos", como ocorreu na sexta, é positivo. Mas é também pouco, reconhecimento insuficiente, desproporcional em relação ao barulho causado pelo destaque anterior -e foi esse o terceiro erro do jornal no episódio. Uma reportagem que procurasse esclarecer o caso ficou faltando, ao menos até o fechamento desta coluna.
Comecei com a mensagem de um leitor e encerro com a de um outro, cuja contundência -após a correção publicada- reflete a gravidade da questão:
"É simplesmente revoltante a agressão que a Folha cometeu contra o cantor Chico Buarque (...) uma acusação seriíssima em tempos de fuzilamento (...) A Folha pisoteou seu "Manual da Redação", maculou fortemente a imagem de Chico e desrespeitou qualquer princípio básico do jornalismo, da ética e do bom senso (...) O que aconteceu é imperdoável, inadmissível, inacreditável. Resumindo, é de enojar, revolta o estômago. Estragou minha manhã, meu humor, meu dia."
Não sei se Chico Buarque ainda vai ou não se manifestar sobre a repressão castrista nem o que ele pensa a respeito dela.
Mas esse e-mail -apesar de algum exagero nos adjetivos- dá o que pensar sobre a responsabilidade que o jornal tem perante seus leitores e perante os protagonistas de suas notícias.
Folha de S. Paulo - 06/05/2003
DIREITOS HUMANOS
Outros brasileiros aderem a abaixo-assinado que denuncia campanha dos EUA; texto omite execuções
Chico Buarque assina carta em favor de Cuba
DA REDAÇÃO
Os brasileiros Chico Buarque (compositor), Oscar Niemeyer (arquiteto), Beth Carvalho (cantora), Emir Sader (sociólogo) e João Pedro Stedile (líder do MST) estão entre os mais de 200 signatários de um abaixo-assinado em defesa de Cuba e contra os EUA lido durante manifestação em Havana no Primeiro de Maio.
O documento, intitulado "À consciência do mundo", denuncia "uma campanha de desestabilização contra Cuba" que poderia "servir de pretexto para uma invasão", mas não faz referência às recentes execuções ocorridas em Cuba ou à atual onda repressiva do regime de Fidel Castro.
"A ordem internacional foi violada como consequência da invasão contra o Iraque.
Uma só potência está infligindo grave dano às normas de entendimento, debate e mediação entre os países. Essa potência invocou uma série de razões não comprovadas para justificar sua invasão. A ação unilateral implicou a perda de vidas civis e a devastação de um dos patrimônios culturais da humanidade", afirma o documento.
"Nós somente possuímos nossa autoridade moral, com a qual apelamos à consciência mundial para evitar uma nova violação dos princípios que guiam a comunidade global das nações. Neste momento, está em marcha uma intensa campanha de desestabilização contra uma nação da América Latina. O acosso contra Cuba pode servir de pretexto para uma invasão. Por isso, exortamos todos os cidadãos e todos os políticos a apoiar os princípios universais de soberania nacional, respeito à integridade territorial e à autodeterminação, essenciais para uma coexistência pacífica e justa entre as nações", diz o texto.
O sociólogo Emir Sader, 59, não vê problema no fato de o abaixo-assinado não criticar as violações aos direitos humanos pelo regime cubano. "O mais importante é a defesa do direito de Cuba de decidir seu destino, é a defesa de Cuba contra a agressão americana. O erro dos fuzilamentos não tem nada a ver com isso", disse.
"Bush também permitiu que dezenas de condenados fossem executados quando era governador do Texas", disse Sader, referindo-se ao atual presidente americano.
Segundo a agência France Presse, Chico Buarque teria sido um dos últimos a assinar o documento, que está circulando nos meios artísticos e intelectuais há alguns dias. De fato, em algumas listas disponíveis na internet aparece o nome de Chico, mas em outras não. Até o fechamento desta edição, a Folha não havia conseguido falar com o compositor.
O documento também foi assinado pelos Prêmios Nobel Rigoberta Menchú, Nadine Gordimer, Adolfo Pérez Esquivel e Gabriel García Márquez. Mario Benedetti, Antonio Gades, Eduardo Galeano e Ariel Dorfman estão na lista.
A polêmica sobre Cuba tomou corpo após o escritor português José Saramago, um dos principais nomes da esquerda mundial, publicar um texto no jornal "El País" no qual anunciava seu rompimento com o regime de Fidel: "Cuba perdeu minha confiança e frustrou minhas esperanças".
No Brasil, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, classificou como "uma intolerância" e "lamentável" a execução de presos em Cuba. O cantor e compositor Caetano Veloso assinou uma carta que condena a repressão em Cuba, ao lado de mais de mais de 50 artistas e intelectuais, entre eles o cineasta Pedro Almodóvar.
No início de abril, um grupo de 75 dissidentes cubanos foi condenado a penas de até 27 anos de prisão. No dia 11, três homens condenados pelo sequestro de uma lancha de passageiros, a bordo da qual pretendiam fugir para os EUA, foram fuzilados após julgamento sumário.
Folha de S.Paulo - 7/05/2003
Chico Buarque não defendeu Cuba, diz assessor
DA REDAÇÃO
O cantor e compositor Chico Buarque não está entre as centenas de signatários de um texto em defesa de Cuba e contrário aos EUA, lido no Dia do Trabalho, em Havana, segundo Mario Canivello, assessor de imprensa do artista.
O documento, intitulado "À Consciência do Mundo", denuncia "uma campanha de desestabilização contra Cuba", mas não faz referência às recentes execuções ocorridas na ilha ou à atual onda de repressão do regime de Fidel Castro.
A Folha não conseguiu ouvir o sociólogo mexicano Pablo González Casanova, responsável pelo abaixo-assinado. As agências internacionais informaram anteontem que Chico assinara a lista. Seu nome ainda constava da lista dos signatários ontem, no site da revista cultural cubana "La Jiribilla".
Folha de S. Paulo - 7/05/2003
Apoio a Cuba
"Tivessem observado as regras básicas do simples, mas ótimo, "Manual da Redação" da Folha, os responsáveis pelas reportagens sobre a suposta presença de Chico Buarque na lista de apoio a Cuba teriam poupado os leitores do jornal, nesta semana, de indesejados exemplos de mau jornalismo. Na terça-feira, embora o corpo da reportagem deixasse claro que não se sabia se de fato o cantor assinara ou não o documento e que a informação não tinha sido confirmada até o fechamento da edição, o que se viu na Primeira Página foi um título que dizia exatamente o oposto. Obrigada a se corrigir no dia seguinte, a Folha colocou a culpa em terceiros (no caso, as agências internacionais) e, pela segunda vez consecutiva, substituiu a apuração jornalística pelo exercício de adivinhação. Consultado pelo repórter do caderno Mundo, apenas confirmei que Chico não havia assinado o manifesto. Anteontem, para minha surpresa, leio o título "Chico Buarque não defendeu Cuba, diz assessor" (pág. A13). O título poderia conter alguma verdade caso o repórter tivesse seguido a orientação do "Manual" e formulado duas perguntas básicas: se a lista chegou às mãos de Chico e ele decidiu não assiná-la e se suas convicções sobre Cuba ainda permanecem as mesmas. O título, portanto, reportou apenas uma interpretação livre do fato, e não o fato em si."
Mario Canivello, assessor de imprensa (Rio de Janeiro, RJ)
Nota da Redação - Leia abaixo a seção "Erramos".
Folha de S. Paulo - 07/05/2003
ERRAMOS
Diferentemente do que informaram a chamada "Chico Buarque assina manifesto pró-Cuba" (Primeira Página, 6/5) e a reportagem "Chico Buarque assina carta em favor de Cuba" (Mundo, pág. A12), baseadas em informações de agências internacionais de notícias, o compositor Chico Buarque não assinou abaixo-assinado em defesa de Cuba
Um triângulo amoroso entre um suposto popstar, a fã, que sonha realizar um conto-de-fadas casando-se com ele, e o cambista, meio contraventor, muito sedutor, que vende os ingressos do espetáculo. Esses dois homens, com histórias de vida opostas, são colocados frente a frente, apaixonados pela mesma mulher, Bela. Eles se movem o tempo todo entre a paixão, o lirismo, a loucura... Que ingredientes poderiam ser mais instigantes para aguçar a inspiração de Chico Buarque e Edu Lobo? O resultado poderá ser conferido na trilha sonora do musical Cambaio, espetáculo feito em parceria com o diretor João Falcão e a autora Adriana Falcão, que estréia dia 20 de abril, em São Paulo.
Cambaio marca a volta da dupla de talentos maiores da música brasileira aos palcos teatrais, que, desde 1988, não brindava o público com suas memoráveis trilhas (O Corsário do Rei, O Grande Circo Místico e Dança da Meia Lua). A volta não poderia ser em momento mais feliz, já que o musical vem envolto por uma atmosfera mágica de sonho, onde as regras deixam de existir e tudo é possível - da história, em que os personagens não distinguem a realidade do universo em que mergulham enquanto dormem, à própria estrutura da peça. "A idéia é que os atores-músicos-cantores se revezem e o espetáculo mude a cada apresentação", explica João Falcão. "Em teatro, não existe uma obra completa como um quadro: a energia da platéia muda, os próprios atores mudam. Pego essa característica e levo às últimas conseqüências. É um trabalho experimental que faço a convite do Chico e do Edu e que está sendo muitíssimo enriquecedor", ele diz.
O trabalho de seleção do elenco envolveu testes com mais de quatro mil e trezentos candidatos vindos de todo o país. Destes, foram escolhidos dezoito atores-músicos-cantores, mais 25 estagiários para acompanhar o desenvolvimento da montagem. O mais interessante dentro do processo de Cambaio é que, em todo o tempo de exaustiva e intensa preparação envolvendo corpo, canto, sapateado, dança, acrobacia, ritmo e condicionamento físico, a trupe trabalhou sem conhecer uma linha sequer do texto ou uma só nota ou rima das canções. "Queríamos 'equalizar' as potencialidades musicais e cênicas criando uma espécie de ego coletivo", conta Falcão.
A pouco menos de um mês da estréia, com oito canções compostas, com arranjos de Lenine - ainda podem ser incluídas mais duas ao repertório -, e a maior parte do texto construído é que o diretor começa a definir a distribuição dos personagens entre o elenco. Isso porque Cambaio é uma criação em processo. O certo é que, até o final do semestre, o mercado pode esperar o lançamento do CD com a trilha musical. Para a total felicidade dos fãs!
Ficha técnica
Texto: Adriana Falcão e João Falcão
Música: Edu Lobo
Texto: Chico Buarque
Direção musical e criação de trilha sonora: Lenine
Direção e cenografia: João Falcão
Diretora assistente: Tânia Nardine
Figurino: Marcelo Sommer
Iluminação: Nei Bonfante
Patrocínio: Petrobrás
Realização: SESC
Teatro SESC Vila Mariana
Estréia: 20 de abril
De quinta a sábado, às 21h. Domingo, às 20h.
Preços: de R$10,00 a R$30,00
Ingressos à venda nas unidades Consolação, Ipiranga, Pompéia, Santo Amaro, Vila Mariana, CINESESC, Belenzinho, Santos e Araraquara.
Fortuna Crítica
Um livro biográfico, uma exposição de quadros, um songbook, um show e a devoção popular consolidam Chico Buarque como paixão nacional
A cantora Maria Bethânia, dada ao cultivo de hábitos extravagantes, só o chama de Buarque. O restante do país optou por um primor de simplificação: Chico, apenas Chico - é esse o nome da paixão nacional. A redução do prenome ocorreu ainda no berço, porque no Brasil parentes e amigos costumam confinar os Franciscos na certidão de nascimento. Como todo José vira Zé, todo Francisco será Chico. Em duas etapas, deu-se depois a amputação do sobrenome que estabelece ligações entre relíquias da música popular, clássicos da sociologia e dicionários promovidos a bíblias do idioma. O sucesso do cantor e compositor tornou dispensável o De Hollanda.
A ascensão ao santuário das unanimidades nacionais arquivou o Buarque no repertório vocabular de Maria Bethânia. Ficou só Chico, sem acompanhantes. Basta pronunciar as duas sílabas para saber que estamos falando desse carioca de 55 anos e olhos cor de ardósia.
Nos países em que o artista se apresenta com mais freqüência, Bethânia não pareceria extravagante. Num restaurante em Paris, ao ouvir o nome do cliente que reservara uma mesa, o maître associou-o a um dos objetos de sua admiração: "Ah! Buarque? Como Chico Buarque?" Essa é uma das muitas histórias reunidas no livro Para Todos, lançado na semana passada. Trata-se de uma biografia autorizada do cantor assinada pela jornalista Regina Zappa. No dia 2, será inaugurada no Rio a exposição A Imagem do Som de Chico Buarque, com trabalhos de 80 artistas inspirados em suas composições.
Também em dezembro virá o songbook com quatro livros e oito CDs. Há o disco gravado ao vivo. Há o show prestes a estrear em São Paulo. Daqui a muitos anos, quem quiser entender o Brasil na virada para o ano 2000 terá de entender o fenômeno Chico Buarque de Hollanda.
"E quem sabe, então/O Rio será/Alguma cidade submersa/Os escafandristas virão/Explorar sua casa/Seu quarto, suas coisas/Sua alma/ Desvãos" ("Futuros Amantes", 1993).
"Chico é o elo perdido entre a música brasileira tradicional e a moderna MPB", afirma o jornalista Tárik de Souza, da estirpe de críticos que conhecem virtualmente todos os discos de gente talentosa e estão prontos para ouvir, pelos próximos anos, todos os CDs. "Ele é o maior compositor saído da classe média após o advento da bossa nova", reconhece outro especialista, José Ramos Tinhorão. Vindo de alguém que julgava Tom JobIm um engodo fabricado pelos americanos, trata-se de um elogio e tanto. Mas faz muito tempo que Chico figura num clube fechadíssimo cujos freqüentadores estão dispensados da leitura de análises sobre a própria obra. Ele conseguiu a carteira de sócio vitalício ao se transformar, pela vontade do povo, no maior compositor popular da História do Brasil.
A simpilcidade conseguiu resistir à fama e, depois, à glória. "Quando alguém bate na porta do meu camarim, já sei que é o Chico. Ele é o único artista que bate e pede licença. Os outros vão entrando", diz o baterista Wilson das Neves, que o acompanha há 15 anos. "É ele mesmo? ", murmura, em tom de espanto, quem o vê passar a pé na rota que leva do novo apartamento no Leblon - onde passou a morar depois de ter se separado de Marieta Severo - até a orla carioca. É ele mesmo, definitivamente avesso a performances estelares. "Não consegui criar uma máscara de intérprete ", diz Chico, incapaz de superar a sensação de desconforto provocada pela necessidade de subir ao palco. Prefere ficar em casa, gravando e regravando canções com a persistência dos perfeccionistas. Faz shows para conseguir o dinheiro que financiará longos períodos criativos. Enquanto excursiona pelo país, anima-o a certeza de que virão quatro ou cinco anos reservados à inventividade. "Quando acabam as temporadas é quando estou realmente trabalhando", resumiu nas confidências a Regina Zappa.
Francisco nasceu no Rio de Janeiro em 19 de junho de 1944, quarto dos sete filhos de Maria Amélia e do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda, autor do clássico Raízes do Brasil. A primogênita, Miúcha, a caçula, Cristina, e uma terceira irmã, Ana Maria, a "Baía", formaram com Chico, desde cedo, o bloco musical da família. Os Buarque de Hollanda demoraram a comprar uma vitrola, mas a falta de aparelhos sonoros foi compensada por noitadas aquecidas pela presença de artistas e intelectuais que gostavam de música. Um dos visitantes mais assíduos era Vinicius de Moraes. A mão do destino empurrava o artista em gestação rumo a futuros parceiros.
"O meu pai era paulista/Meu avô, pernambucano/O meu bisavô, mineiro/Meu tataravô baiano/Meu maestro soberano/Foi Antonio Brasileiro" ("Paratodos". 1993).
Chico ouvia com prazer a cantoria que vinha do radinho de pilha da empregada da família, Babá. Mas não imaginava que viveria de música. Resolveu que seria arquiteto, diplomata e escritor. Arquiteto, quase o foi: O curso na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo começou a patinar na segunda metade da década de 60, quando o autor de "Pedro Pedreiro" descobriu que a vocação para construções musicais superava amplamente a vontade de desenhar casas e prédios. Com o quase arquiteto também se foi o futuro diplomata. O compositor não engoliu o escritor, que mais tarde lançaria três livros (Fazenda Modelo, Estorvo e Benjamim). Mas Chico seria sobretudo o grande músico, autor de uma obra multifacetada e riquíssima. Escreveu ou musicou peças de teatro (Roda Viva, Gota D'Água e Ópera do Malandro), produziu adaptações de musicais infantis (Os Saltimbancos), criou dezenas de melodias comoventes, centenas de versos inesquecíveis. Tornou-se único. Não houve no Brasil um músico popular comparável a Chico. Nem haverá.
Ele também é o autor do maior palíndromo da língua portuguesa", informa o ortopedista Marcelo Paiva, o maior dos fãs de Chico. Palíndromos são frases ou palavras que podem ser lidas de forma idêntica quando .invertidas. Segundo o ortopedista, antes da proeza de Chico, o maior dos palíndromos era: " Socorram-me. Subi no ônibus em Marrocos". (Leia de trás para a frente e confira.) São 32 caracteres, um a menos que os existentes no palíndromo recitado por Paiva: "Até Reagan sibarita tira bisnaga ereta". (Pode inverter que dá certo.) O gênio que também inventa palíndromos emerge do livro de Regina Zappa diferente da figura tímida e misteriosa imaginada por quem não convive com Chico. "Essa imagem exagera no quesito timidez e engana na versão Greta Garbo", escreveu a biógrafa. Ele é um homem extrovertido que gosta de conversar sobre assuntos que interessam a qualquer brasileiro.
Futebol, por exemplo. Torcedor do Fluminense, fundou quando menino um time de futebol de botão chamado Politheama. O nome ressuscitou no Rio quando Chico criou seu time de futebol, com uniforme e campo próprio. "Ele incluiu a construção do campo num contrato com uma gravadora", revela o compositor Carlinhos Vergueiro, parceiro de peladas. Chico sempre se interessou por questões políticas e, depois do golpe 1964, juntou-se à oposição ao regime militar. Mas não esperava, em 1969, ser forçado a partir para a Itália e ali ficar 14 meses longe das ameaças de prisão. A primeira filha, Silvia, nasceu nesse exílio. Ao voltar, ele começou a brigar com a censura.
Acorda amor/Eu tive um pesadelo agora/Sonhei que tinha gente lá fora/Batendo no portão (...)/Chame, chame o ladrão, chame o ladrão ("Acorda Amor" 1974, assinada como Julinho da Adelaide)
A história política brasileira pode ser acompanhada ao som de Chico Buarque. Ele compôs o hino da resistência à ditadura ("Apesar de Você") e o da abertura ("Vai Passar"). Mas até hoje não entende bem por que os militares decidiram enquadrá-lo na categoria de comunista. "Eu nem sabia quem entre meus amigos era ou não ligado ao Partidão", diz. Na adolescência, aproximou-se de um grupo direita, os Ultramontanos. Intrigados com as mudanças no comportamento do filho, repentinamente sisudo e religioso, os pais resolveram remetê-lo, aos 14 anos, para um internato em Cataguases, no interior de Minas Anazildo Vasconcelos da Silva
A voz feminina na poesia de Chico Buarque
1 - Introdução
A "questão feminista", embora fundada na diferença biológica dos gêneros, está vinculada diretamente, em sua elaboração discursiva, à organização social, aos costumes, às crenças e ao comportamento, devendo ser formulada, portando, no âmbito da antropologia cultural. Projetada na matriz cultural, a questão pode ser então explorada no complexo social das práticas discursivas, a partir da etnologia, da lingüística, da sociologia, da semiologia, da história, da geografia humana e de outras ciências, de acordo com os objetivos do estudo. Assim posto, faremos uma abordagem semiológica da "questão feminista", considerando a projeção social da mulher na literatura.
O ser humano tem uma dupla identidade, a biológica, definida pela antropologia física, e a social, definida pela antropologia cultural. O homem se caracteriza, portanto, por um duplo código genético, o natural, que lhe confere a identidade biológica, e o cultural, que lhe assegura a identidade social. O código cultural, semelhante ao código genético que define o ser biológico, determina o ser social, respondendo pela identidade humana, seja de um indivíduo, de um povo, de uma nação ou de uma civilização. A identidade biológica é uma atribuição da Natureza, e portanto, em princípio, imutável, enquanto a identidade social é uma conquista do homem, ligada ao seu processo evolutivo. Embora mutável, dentre os diferentes sistemas de valores humanos codificados, o código cultural é o mais estável, suas mutações se processam tão lentamente que se fazem quase imperceptíveis. As transformações, decorrentes das conquistas no campo das lutas sociais, são de natureza prospectiva e, mesmo quando implantadas de imediato, por força de lei, só se efetivam de fato com o correr do tempo, assimiladas em pequenas porções pelas gerações futuras, até a constituição de uma identidade nova. A elaboração discursiva do universo humano produz, em cada época, a imagem de mundo estruturada, no âmbito da qual o ser humano realiza sua experiência histórica. Da relação existencial do homem com as imagens de mundo, convertida em signos pela mediação semiótica das línguas naturais, resulta a realidade dita objetiva que, como produto dessa relação, comporta, de um lado, uma dimensão objetiva do mundo, representada pelos valores codificados, e de outro, uma dimensão subjetiva do homem, representada pelas motivações pessoais. Assim posto, cada imagem de mundo configura, no inventário de suas transformações político-sociais, a problemática humano-existencial, síntese da atividade humana nos diversos setores do estar no mundo.
A literatura, como toda criação humana, insere em seu percurso a trajetória do próprio homem. Ela nasce no seio de uma cultura que a modela, por isso, embora liberando-se das coordenadas espaciais e temporais, por força da universalidade das formas artísticas, será sempre expressão do projeto cultural originário que a realiza. A experiência lírica, de que trataremos aqui, se dá no seio da imagem de mundo estruturada, a mesma aberta para a experiência histórica do ser, e nisso difere fundamentalmente da experiência ficcional, que se processa no âmbito de uma imagem de mundo imaginária. A semiótica literária, por sua natureza conotativa, projeta a semiótica das línguas naturais no seu plano de expressão, criando um vínculo sígnico entre os enunciados lingüísticos (significante) e a enunciação poética (significado). Assim, a experiência lírica converte, pela mediação da semiótica literária, a imagem de mundo da experiência histórica em significante da expressão lírica. Sem o distanciamento próprio da ficção, a experiência lírica se torna mais contundente, já que a imagem de mundo historicamente estruturada, figurando como uma proposição de realidade pressuposta, diante da qual o eu-lírico reage positiva ou negativamente, passa a integrar diretamente, através da referencialidade sígnica, a expressão subjetiva lírica.
Examinada a partir deste instrumental teórico, a "questão feminista" confunde-se com a trajetória da mulher nas diversas culturas, todas elas assentadas em códigos culturais de exclusividade masculina, impedindo a construção de sua identidade social. O código cultural, como DNA masculino, orientava a elaboração sígnica da relação do homem com o mundo, definindo uma realidade patriarcalista, centrada no homem, que excluía a mulher do processamento sociocultural, condenando-a à condição natural de ser biológico.
Alijada de sua identidade social, estigmatizada pela diferença dos gêneros, impossibilitada de construir sua própria identidade, a mulher obrigava-se a aceitar o lugar subalterno que o discurso cultural lhe destinava, exercendo apenas as atividades compatíveis com sua natureza biológica. É neste contexto, em que o homem é o único sujeito e senhor da criação e da produção de bens, que a mulher enceta sua caminhada milenar de resistência e luta, na construção libertadora de sua identidade social.
A trajetória da mulher, constituída em "questão feminista", pode ser projetada no campo operacional de diversas disciplinas e acompanhada historicamente em seus vários desdobramentos. No campo da literatura, criação humana gerada no seio de uma cultura, conforme salientamos, a questão pode ser acompanhada externamente, indo da exclusão inicial da mulher da atividade intelectual até sua inclusão posterior, com o reconhecimento da autoria feminina, e internamente, através da construção e da atuação da persona feminina nas obras literárias. A presença da mulher na literatura ocorre, primeiramente, através de uma persona literária feminina recortada diretamente do imaginário masculino, portadora de um discurso emprestado, construída na ambivalência do jogo reflexo da alteridade. Daí até a autodeterminação discursiva, com a conquista da individuação e a construção do seu próprio imaginário, a persona feminina assume diferentes falas e formas de expressão, definindo-se, no jogo institucionalizado dos papéis sociais, como uma voz travestida. A persona feminina não constituía, por isso mesmo, uma consciência individualizada, mas tão somente uma figura de retórica do discurso patriarcalista. A voz travestida, expressão de um juízo de valor institucionalizado, atuava sempre de forma exemplar, seja para reduplicar ou contraditar o discurso cultural, legitimando ou condenando a persona feminina, conforme o caso.
Um coro de vozes marginalizadas, que coloca, na cena social, o drama contundente das chamadas "minorias reprimidas", constitui uma face expressiva da poética de Chico Buarque, que denominamos Lírica Travestida. O objetivo de nosso estudo é assinalar a lírica travestida, importante recurso poético de denúncia social, como um veio da lírica buarqueana, destacando apenas um de seus aspectos, a presença da voz feminina.
Integrando, por meio desse recurso poético, o coro de vozes travestidas das minorias marginalizadas, a voz feminina insere a condição sociocultural da mulher no âmbito da problemática humano-existencial. A voz feminina, como as demais vozes da lírica travestida, assume diretamente a instância de enunciação lírica, posicionando-se como sujeito de um discurso reprimido, uma consciência inaugural que se desvela em si mesmo.
O recurso poético da voz travestida não constitui em si nenhuma novidade, nem mesmo quando assume a instância de enunciação lírica, já que conta nesse particular, a par de exemplos isolados, com a tradição cultural das Cantigas de Amigo do Cancioneiro português medieval. A novidade está na retomada lírica do processo em pleno século XX, quando a conquista e o reconhecimento da autoria feminina é uma garantia para a construção de uma persona literária feminina, seja na condição enunciatória de narrador ou de eu-lírico, portadora de um discurso próprio, fundador de sua identidade social. A resposta pode ser dada a partir da concepção literária modernista, da situação peculiar da problemática humana, da condição política da mulher na sociedade, e assim por diante, mas a função poética da voz feminina na lírica buarqueana só será alcançada através da análise do percurso imagístico em que ela é metaforizada, num amplo espectro individual e social: poesia, inspiração, musa, mãe, irmã, mulher, guerreira, liberdade, fortaleza, pátria, etc. Aqui nos ocuparemos da voz feminina travestida metaforizada na personagem Bárbara, da peça "Calabar", procurando surpreender, na análise do conjunto de poemas, o diálogo intertextual que funde terra e mulher no signo poético da brasilidade.
A imagem de mundo do século XX, em que o homem, autonomeado moderno, realiza sua experiência histórica, marcada que é pelos desencontros e interrogações do homem frente a um mundo disforme e sem sentido, construído à imagem e semelhança da máquina, que não o fundamenta nem o integra, projeta a experiência humana no vazio. A poesia de Chico Buarque, experiência lírica inserida nesse contexto, tendo tal imagem de mundo como proposição de realidade pressuposta, a integra através da referencialidade sígnica, projetada no significante poético, refletindo assim sobre a problemática existencial do homem moderno. A lírica buarqueana, ressemiotizando a imagem de mundo da experiência histórica, isto é, reelaborando signicamente, com a mediação da semiótica literária, a relação existencial do homem com o mundo , se propõe a resgatar a experiência humana do vazio, criando um novo sentido para o homem e para o mundo.
A proposição de realidade pressuposta para a elaboração lírica é sempre a imagem de mundo imediata do eu-lírico, que coincide, normalmente, com a do poeta, como em "A banda", por exemplo. Mas nada impede que seja uma imagem de mundo ficcional, como a do romance Dona flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, para o poema "O que será?", ou mesmo um segmento histórico, espacial e temporalmente distanciado do poeta, como é o caso dos poemas da peça Calabar, que têm como proposição de realidade pressuposta a imagem de mundo do Brasil colonial do século XVII. Mas, como a proposição de realidade pressuposta tem que ser a imagem de mundo imediata do eu-lírico, a elaboração poética será atribuída, obrigatoriamente, aos personagens do segmento histórico referenciado, os quais assumem a instância de enunciação lírica. Embora o nosso interesse esteja voltado para voz feminina travestida metaforizada em Bárbara, não podemos deixar de referir outras vozes, femininas ou masculinas, que são importantes para análise da trama intertextualizada do diálogo, como Matias de Albuquerque e, principalmente, Calabar.
2 - A metáfora terra/mulher
Em nosso estudo anterior, A poética e a nova poética de Chico Buarque (Rio de Janeiro: Editora 3 A, 1980), afirmávamos que a poesia de Chico Buarque, consoante a evolução de seu projeto poético, afastava-se gradativamente da criação do poema isolado e tendia cada vez mais para criação do poema integrado. Ao invés do poema único, nascido da disposição anímica do eu-lírico, o poema integrando uma estrutura dramática ou narrativa.
Criando a partir de um tema dado, de uma situação de realidade concretamente elaborada, até mesmo a disposição subjetiva do eu-lírico é neutralizada, ganhando a poesia em objetividade. Grande parte da poesia de Chico Buarque, produzida diretamente para o cinema e o teatro, está inserida numa estrutura dramática ou narrativa. Assim, em obediência ao princípio estruturador de sua poesia, era natural que Chico Buarque chegasse à criação romanesca dos últimos anos, realizando uma etapa de sua obra, já previsível na evolução de seu projeto criador.
Embora fazendo parte de um conjunto, inserido numa estrutura dramática ou narrativa, um poema, por força de sua unidade/totalidade, pode ser considerado uma obra lírica em si mesmo e figurar como um texto autônomo, ganhando vida própria. É o caso de muitas composições de Chico Buarque que, destacadas do conjunto a que pertencem, integram álbuns individuais de diversos artistas, como "Tatuagem" (da peça Calabar), "Folhetim" ( de Ópera do Malandro), "Vai trabalhar vagabundo" (do filme do mesmo nome), "Que será?" (do filme Dona Flor e seus dois maridos), "Gota d'água" (da peça Gota D'Água), "Mulheres de Atenas" (da peça do mesmo nome), e tantas outras. Porém, a análise isolada desses poemas, remetendo para o seu próprio universo sígnico, resultará insatisfatória, já que a coerência estrutural deles reside na intertextualidade, ou seja, numa estrutura maior que eles elaboram e a qual se prendem. Para perceber a complexa estruturação poética desses textos buarqueanos, é necessário acompanhar o diálogo intertextual que os entrelaçam, conforme demonstraremos a seguir, com a análise dos poemas da peça Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974).
CALA A BOCA BÁRBARA
Ele sabe dos caminhos
dessa minha terra
no meu corpo se escondeu
minhas matas percorreu
os meus rios
os meus braços
ele é o meu guerreiro
TERRA
nos colchões de terra
nas bandeiras, bons lençóis
MOVIMENTO
nas trincheiras, quantos ais, ai
cala a boca
olha o fogo
cala a boca
olha a relva
cala a boca, Bárbara
cala a boca, Bárbara
Ele sabe dos segredos
que ninguém ensina
onde guardo o meu prazer
em que pântanos beber
as vazantes
as correntes
nos colchões de ferro
ele é o meu parceiro
nas campanhas, nos currais
O MOVIMENTO
nas entranhas, quantos ais, ai
cala a boca
olha o frio
cala a boca
olha a noite
cala a boca, Bárbara
cala a boca, Bárbara
O poema constrói, a partir da terceira pessoa Agencial, sustentado nos sememas (ele, sabe, se escondeu, percorreu, guerreiro e parceiro), dois referentes internamente constituídos, TERRA, sustentado nos sememas (caminhos, matas, rios, colchões de terra, trincheiras, fogo, relva, pântanos, vazantes, correntes, campanhas, currais, frio e noite), MULHER, sustentado nos sememas (corpo, braços, bandeiras, lençóis, boca, Bárbara, segredos, prazer, colchões de ferro e entranhas). Os referentes, articulados em seus respectivos campos semânticos, podem ser definidos metonimicamente, isto é, na relação direta da linguagem com a realidade expressa, possibilitando duas isotopias de leitura marcadas semicamente. Para facilitar a análise, dividimos o texto em dois movimentos, cada um constituído por uma estrofe e articulado por uma isotopia, como segue:
Isotopia A - TERRA - Espaço Natural - externo/concreto - primeiro movimento
Isotopia B - MULHER - Espaço Humano - interno/abstrato - segundo movimento
Lendo todo o primeiro movimento em relação ao referente Terra, observamos a presença de alguns sememas estranhos à isotopia A, como corpo, braços, bandeiras, lençóis, os quais pertencem à isotopia B. De igual modo, lendo o segundo movimento em relação ao referente Mulher, verificamos a presença de sememas da isotopia A, como pântanos, vazantes, correntes, campanhas, currais. Para uma leitura clara e independente das duas isotopias, seria necessário a transposição dos elementos isotopicamente deslocados, de modo que o primeiro movimento fosse lido integralmente em relação à Terra e o segundo integralmente em relação à Mulher. Mas a coerência estrutural do poema impede qualquer alteração, obrigando-nos à leitura integral da isotopia em cada movimento, levando-nos a considerar a presença dos elementos deslocados um recurso poético intencional, com a função de instaurar a leitura metafórica concomitantemente com a metonímica. Os elementos metonímicos de uma isotopia, inseridos na outra, tornam-se metafóricos, confundindo os referentes pela falta de clareza do nomear. Assim, os sememas não isótopicos do primeiro movimento "corpo, braços, etc.", serão lidos metaforicamente em relação à Terra e, de igual modo, os do segundo movimento "pântanos, vazantes, correntes, etc.", em relação à Mulher.
A concomitância das leituras metafórica e metonímica, confundindo os referentes Terra e Mulher, correlaciona os espaços Natural e Humano, atualizando a Proibição de Nomear que está expressa no título e no refrão: "Cala a boca, Bárbara". Tanto é que podemos inverter as isotopias e ler o primeiro movimento como Mulher e o segundo como Terra, ou mesmo ler o poema inteiro como Terra ou como Mulher. Mas é a concomitância das leituras, resultante do cruzamento dos processos metafórico e metonímico, que, impedindo a referencialidade externa do nomear, instaura a referencialidade interna do nomear poético. Inseridas no enunciado lírico, terra e mulher passam a referenciar os espaços Natural e Humano internamente, projetados no agente lírico, cuja proibição de nomear, em si mesma, nomeia: CALA a boca, BÁRbara, ou seja, CALABAR.
Terra e Mulher, entrelaçadas pela correlação sêmica, nomeiam o Agente lírico em que os espaços estão fundidos, convertendo-se uma em metáfora da outra. A conversão metafórica de Terra e Mulher, referenciando o processo de sujeição dos espaços, submete-as, de igual modo, ao Agente lírico. No Espaço Natural, marcado semicamente como externo/concreto, a Terra é dominada pela exterioridade, tendo suas "matas" e seus "rios" percorridos, e a Mulher, projetada neste espaço como metáfora de Terra, também é dominada pela exterioridade, tendo seu "corpo" e seus "braços" igualmente percorridos.
Vejamos graficamente:
a) Sujeição do Espaço Natural - Terra e Mulher dominadas pela exterioridade
Elas são subjugadas nos colchões "de terra" e "de ferro" (leito, cama), aprisionadas, através das "campanhas" e "currais", e das "bandeiras" e "lençóis", com luta "TRINCHEIRAS", daí "guerreiro", conforme visualizado no gráfico.
No Espaço Humano, marcado semicamente como interno/abstrato, a Mulher é dominada pela interioridade, tendo seus "segredos" e seu "prazer" conhecidos, e a Terra, projetada neste espaço como metáfora de Mulher, também é dominada pela interioridade, tendo seus "pântanos" e suas "vazantes" e "correntes" igualmente conhecidos.
Vejamos graficamente:
Elas são dominadas agora pela interioridade "entranhas", daí a cumplicidade que o torna "Parceiro", conforme visualizado no gráfico.
Para completar a análise do poema, consideremos as estrofes do refrão, onde verifica-se a proibição de nomear "cala a boca", seguida da ameaça "olha...".
c) Ameaça metonímica - desarticulação da Terra
d) Ameaça metafórica - desarticulação da Mulher
Nas duas estrofes do refrão não há a presença de sememas isotópicos deslocados, o que nos impede de fazer as leituras metafórica e metonímica concomitantemente. Em relação à Terra, só podemos fazer a leitura metonímica e, em relação à Mulher, somente a metafórica, seja em parte ou no todo, isto é, não importa se tomamos as estrofes separadamente, conforme faremos, ou juntas. Assim, no primeiro movimento, a proibição "cala a boca" está seguida de uma ameaça dirigida metonimicamente ao Espaço Natural, já que os elementos da ameaça, "o fogo/a relva", prenunciando destruição pelo "fogo" das "matas/rios" e encobrimento pela "relva" dos "pântanos/vazantes", representam perigo para a Terra em sua exterioridade concreta "saber dos caminhos". Enquanto à proibição, "cala a boca", do segundo movimento, segue-se uma ameaça dirigida metaforicamente ao Espaço Humano, já que os elementos da ameaça, "a noite/o frio", prenunciando o medo e a solidão, representam perigo para a Mulher em sua interioridade abstrata "saber dos segredos". A leitura independente dos referentes, sem afetar, todavia, a identidade metafórica, permite distinguir a projeção dos espaços no Agente lírico, através da notação sêmica exterioridade/interioridade que, convertida em unidade articulatória de Terra e Mulher, possibilita o acompanhamento do diálogo deste poema com os demais do conjunto, criando a intertextualidade poética, como em "Tatuagem":
TATUAGEM
Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Primeiro movimento:
Quando a noite vem
faces interna/externa
E também pra me perpetuar em tua escarva
Que você pega, esfrega, nega
Mas não lava
Quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta
Morta de cansaço
Segundo movimento:
mulher/terra
Quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem
Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo
Em carne viva
Corações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Terceiro movimento:
Que te rabiscam o corpo todo
exterioridade/interioridade
Mas não sentes
A leitura intertextual permite reconhecer a presença de Terra e Mulher, unidade articulatória dos espaços Natural e Humano, nos demais poemas, através da categoria sêmica exterioridade/interioridade. Neste poema, as faces externa e interna da tatuagem, definidas como terra e mulher respectivamente, imprimem os espaços no Agente lírico. A mulher, face interna da tatuagem, imprime-se na sensibilidade do Agente lírico, despertando sua força interior, enquanto a terra, face externa da tatuagem, imprime-se no seu corpo, reativando sua força exterior. A intertextualidade está articulada na categoria sêmica, exterioridade/ interioridade, e também na recorrência semêmica, "braço/corpo/noite/frio/ferro/fogo", que cria a referencialidade da nomeação poética. Vamos dividir o texto em três movimentos, o primeiro constituído pela estrofe inicial, o segundo pelas estrofes dois e três, e o quarto pela estrofe quatro. Logo no primeiro movimento, a tatuagem, configurando-se interna e externamente, projeta-se tanto na exterioridade "ficar no teu corpo/tua escrava/você pega, esfrega...", quanto pela interioridade, "te dar coragem/pra seguir viagem...", do Agente lírico, definindo suas duas faces.
No segundo movimento, a Voz lírica, sustentando a identidade metafórica de terra e mulher, permite distingui-las, através da categoria sêmica exterioridade/interioridade, como as duas faces da tatuagem. A face interna referenciada em bailarina, que "alucina, salta e ilumina", e a face externa referenciada em cruz, que pesa "nas costas/retalha em postas/marcada a ferro e fogo", definem, respectivamente, segundo a área de atuação, mulher e terra.
Vejamos graficamente:
No último movimento então, com a supressão dos elementos comparativos "como/feito", os ícones se dispõem alternadamente "corações de mãe/arpões/sereias/serpentes", configurando a projeção simultânea dos referentes terra e mulher que, através da alternância sêmica exterioridade "rabiscam o corpo todo"/interioridade "mas não sentes", se confundem numa imagem única, a tatuagem.
Vejamos graficamente:
Com a tatuagem, o Agente lírico passa a ser, ele próprio, a projeção de Terra e Mulher, que nele, ao mesmo tempo, se confundem e se distinguem. De modo que o desmembramento do Agente lírico implica a desarticulação de Terra e Mulher, e a conseqüente dissociação dos espaços Natural e Humano. É o que ocorre no poema "Cobra de Vidro", através do diálogo da intertextualidade poética, conforme demonstraremos a seguir.
COBRA DE VIDRO
Aos quatro cantos o seu corpo
Partido
Banido
Aos quatro ventos os seus quartos
Seus cacos
De vidro
O seu veneno incomodando
A tua honra
O teu verão
Presta atenção
Aos quatro cantos suas tripas
De graça
De sobra
Aos quatro ventos os seus quartos
Seus cacos
De cobra
Seu veneno arruinando
A tua filha
A plantação
Presta atenção
Aos quatro cantos seus ganidos
Seu grito
Medonho
Aos quatro ventos os seus cacos
De sonho
O seu veneno temperando
A tua veia
O teu feijão
Presta atenção
A intertextualidade poética organiza-se, de igual modo, através da mesma dicotomia sêmica exterioridade/"seu corpo/seus quartos/cacos de vidro/suas tripas...", interioridade/"seus ganidos/seu grito/cacos de sonho...", sustentada na recorrência semêmica. O Agente lírico desfaz-se em suas projeções, fragmentado em Terra e Mulher, integrando-se definitivamente aos espaços Humano e Natural. Agora é o Agente lírico que, fragmentado, passa a referenciar o espaço natural em sua exterioridade "aos quatro cantos o seu corpo/aos quatro ventos seus cacos de vidro", e o espaço humano em sua interioridade "aos quatro cantos seus ganidos/aos quatro ventos seus cacos de sonho", metaforizado em terra e mulher.
O Agente lírico, nomeado poeticamente pela Voz lírica "Ele", é o centro de convergência dos espaços e a unidade articulatória de Terra e Mulher. Mas há também um centro de divergência dos espaços, referenciado por um "Eu" que se auto nomeia, uma vez que, alienando Terra e Mulher, não pode ser nomeado pela Voz lírica. Estes dois núcleos se contrapõem através do diálogo da intertextualidade poética, instaurando a tensão entre a expressão nativa integradora da brasilidade, sustentada por Calabar e Bárbara, e a expressão importada desintegradora, sustentada em Matias de Albuquerque e Ana de Amesterdã, por exemplo. No poema "Fado Tropical", centrado no "Eu", podemos verificar que a correlação dos espaços instaura um processo antitético que, contrapondo-se ao processo metafórico integrador, acaba por alienar Terra e Mulher. A nomeação antitética, presente já no título do poema, fado/tropical, prossegue por todo o texto, avencas/caatinga, alecrins/canaviais, vinho/tropical, se perdeu/se encontrou, contrapondo mulher e terra, musa do meu fado/ minha mãe gentil, alienando os espaços Natural "o rio Amazonas/que corre trás-os-montes/e, numa pororoca, deságua no Tejo" e o Humano "e a linda mulata/com rendas do Alentejo", opondo, por fim, os referentes da realidade expressa "Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal/ainda vai tornar-se um imenso Portugal".
Para fechar a leitura intertextual, vamos tomar apenas mais um poema, "Bárbara", que tem o mesmo título do primeiro analisado, agora sem a marca da proibição.
BÁRBARA
Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor, vem me buscar
O meu destino é caminhar assim
Desesperada e nua
Sabendo que no fim da noite serei tua
Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva
Acumulando de prazeres teu leito de viúva
Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor vem me buscar
Vamos ceder enfim à tentação
De nossas bocas cruas
E mergulhar no poço escuro de nós duas
Vamos viver agonizando uma paixão vadia
Maravilhosa e transbordante, feito uma hemorragia
Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor vem me buscar
Bárbara
Terra e Mulher, identificadas pelo processo metafórico, se distinguiam apenas enquanto projeções externa e interna do Agente lírico. Rompido o elo que as prendia, com a eliminação do Agente lírico, é natural que elas se busquem, "onde estou, onde estás", e acabem fundindo-se numa só, aglutinadas interna "mergulhar no poço escuro de nós duas" e externamente "transbordante/feito uma hemorragia", perdendo a identidade sêmica exterioridade/interioridade, que as diferençava. A intertextualidade poética sustenta-se na recorrência semêmica, que repõe a ameaça expressa no primeiro poema "olha a noite/o frio", realizada agora em sua contrapartida metafórica "proteger do mal, do medo e da chuva/leito de viúva", e na abertura dialógica para outros textos, "nunca é tarde, nunca é demais". Como no poema "Tira as mãos de mim", em que se dá a nomeação poética de um novo Agente lírico, referenciado na 2ª pessoa, "Tu", capaz de se tornar, com a recuperação da identidade sêmica, exterioridade "põe as mãos em mim/e vê se o fogo dele/ guardado em mim/ te incendeia um pouco" e interioridade "põe as mãos em mim/e vê se a febre dele/guardada em mim/te contagia um pouco", o elo reintegrador de Terra e Mulher.
3 - Conclusão
Dissemos, na parte inicial do trabalho, que a experiência lírica se realiza no âmbito de uma imagem de mundo estruturada, daí o vínculo histórico indissolúvel entre o eu-lírico e a proposição de realidade pressuposta. A proposição de realidade pressuposta para a elaboração lírica, é sempre a imagem de mundo imediata do eu-lírico, coincidindo, quase sempre, com a realidade da experiência histórica do poeta. Por isso, quando a imagem de mundo da experiência lírica não coincide com a da experiência histórica do poeta, é necessário, por força da sintonia histórica, que a voz lírica seja atribuída a alguém vinculado à imagem de mundo, no seio da qual a experiência lírica se realiza.
Os poemas analisados, que integram a peça Calabar, têm, como proposição de realidade pressuposta, a imagem de mundo do Brasil colonial no século XVII, exigindo, portanto, que o poeta atribua a voz lírica aos personagens inseridos naquele segmento histórico.
Destacam-se, no conjunto de poemas, duas vozes líricas, uma masculina e outra feminina. A voz masculina, referenciada na 1ª pessoa, integra a fala do colonizador, identificando-se, na estrutura dramática, com a personagem Matias de Albuquerque. A voz feminina, também referenciada na 1ª pessoa, integra a fala do colonizado, identificada, na estrutura dramática, com a personagem Bárbara. Ao contrário de Matias de Albuquerque, que é uma personagem histórica, Bárbara é uma personagem criada pelos autores da peça. Bárbara, identificada pelo processo metafórico com a Terra, é o Brasil antropomorfizado, andando e falando. Por isso, Bárbara representa uma consciência crítica do processo histórico da colonização, a voz inaugural da brasilidade, precursora de outras vozes, igualmente "traidoras", silenciadas no percurso histórico. Porém, por ser uma voz feminina, Bárbara encena no palco nacional da História, com sua fala, o drama sociocultural da mulher brasileira, como no poema "Fortaleza": "minha fortaleza é de um silêncio infame/bastando a si mesma, retendo o derrame".
SILVA, Anazildo Vasconcelos da. A lírica travestida: a voz feminina na poesia de Chico Buarque.
In: RAMALHO, Christina. Org. Literatura e feminismo: propostas teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro, Coleção Embiara, Elo Editora, 1999.
Anazildo Vasconcelos da Silva, crítico literário e ensaísta, é doutor em letras e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Veiga de Almeida.
Gerais. Na ficha de inscrição, a que Chico teve acesso recentemente, a mãe foi implacável ao descrevê-lo. No item "caráter", por exemplo, Amélia fez um diagnóstico inquietante: "De um modo geral: influenciabilidade, desordem, faroleiro. Nas circunstâncias atuais: falta de solidariedade humana, desinteresse pelas ocupações próprias do estado e da idade".
Se Chico era assim, Cataquases melhorou-o muito: sua trajetória é assinalada por gestos que traduzem um homem generoso e solidário. O desapego ao dinheiro se acentuou ao descobrir com o disco Meus Caros Amigos (750 mil cópias vendidas) que poderia ganhar quantias razoáveis com suas composições. O sucesso chegou bem mais cedo que o dinheiro. Quando "A Banda" explodiu em 1966, no Festival da Record, Nelson Rodrigues resumiu numa crônica a reação nacional: "Desde a sua audição, 'A Banda se instalou História. O povo não assobiava mais. Voltou a assobiar por causa do Chico".
Agora eu era o herói/E o meu cavalo só falava inglês/A noiva do cowboy/Era você/Além das outras três ("João e Maria", 1977).
A biografia revela que Chico jamais escreve uma letra antes de compor a música. Parceiros descrevem seu método: ele ouve a melodia, interpreta o que quer dizer e só então começa a criar versos. " É um artesão que encontra a tradução literária para a música", diz Francis Hime. O grande poeta vem se tornando, com o tempo, um compositor cada vez mais refinado. "Chico é um dos maiores harmonizadores da música brasileira", diz o produtor Almir Chediak, que repassou as partituras para o songbook. Se a inspiração demora, repete o desabafo: "Gosto tanto dessa música, mas não sei o que ela está querendo dizer". São momentos sofridos. "Existe esse lado sombrio", confirma a ex-mulher, Marieta Severo. "Aí, ele quer ficar sozinho." Marieta é uma especialista em Chico Buarque. Para as demais brasileiras, esteja em crise ou em estado de êxtase, a figura desse artista de olhos doces sempre exalará um charme tão discreto quanto irresistível. Bonito, com o corpo em ótima forma, dono de uma sensibilidade que o leva a devassar a alma feminina em letras admiráveis, Chico reina soberano no imaginário da mulher brasileira. Há muitos anos as aparições do ídolo são escoltadas por cenas de paixão explícita. Mas neste final de milênio as coisas ficaram ainda mais impressionantes. Hoje, ele é O Homem.
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/ (...) Quando fustigadas não choram/se ajoelham, pedem, imploram ("Mulheres de Atenas", 1976).
Encerrada a temporada de As Cidades, o país já se pergunta quando voltará a vê-lo num palco. Em 1975, depois do estrondoso sucesso do show com Maria Bethania no Canecão, Chico ficou 11 anos sem se apresentar. "Parei de fazer show porque as pessoas aplaudiam muito mais quando eu entrava do que quando eu saía ", diz. " A minha música passou a ser menos importante do que aquilo que esperavam que eu dissesse." Avesso a celebrações, enfrentará um dezembro penoso: muita gente está à espera de chance para homenageá-lo. Aos fãs que o seguem desde os tempos em que driblava a censura com a alcunha de Julinho da Adelaide agora se somam legiões de jovens admiradores. "Boa parte dos e-mails que recebemos é de jovens", conta Wagner Homem, criador do site oficial de Chico.
O site na Internet tem 4 mil páginas, mas Chico não cabe nesse espaço. "Às vezes penso em vários Chicos que foram ficando pelo caminho", diz Marieta Severo, sua companheira por 30 anos. O atual é mais comedido que a versão que consumia tardes inteiras em bares. Limita-se a poucas taças de vinho durante as refeições e quer manter-se vivo para que seus netos guardem a imagem do avô. A fase tranqüila coincide com um incomparável momento artístico, antecipado em 1998 pela Mangueira, que o transformou no tema do desfile e foi campeã do Carnaval. O Brasil aplaude há 30 anos o desfile de deslumbramentos promovido pelo talento do grande músico. Chico nunca vai passar.
Revista Época, 29/11/99
Claudio Henrique
Doze minutos. Este foi o tempo que Chico Buarque permaneceu no lançamento do livro em que a jornalista Regina Zappa traça o seu perfil detalhado e certeiro. Doze minutos: tempo exato de chegar acompanhando a autora, posar para um batalhão de fotógrafos e escapulir escudado num argumento incontestável: "Pode acabar tumultuando". E tempo suficiente para dar orientações precisas à jornalista. Assustada ao se ver cercada de fotógrafos, Regina perguntou a Chico: "E agora, o que eu faço?" "Pegue um livro e faça uma dedicatória", sugeriu ele. Ela fez isso e tornou a perguntar: "E agora?" Chico aproximou-se mais e sussurrou a tranqüilizadora instrução final: "Sorria". Os flashes faiscaram, e ele escapuliu. Missão cumprida.
Foi, certamente, um ano peculiar. O Ano Chico. Peculiar não apenas pelo sucesso contínuo do recital As Cidades. Mas por ter sido o ano em que uma coincidência de eventos acumulados acabou servindo de homenagem a um dos maiores ícones da história da música brasileira. Chico talvez tivesse preferido que cada coisa acontecesse em separado. Porque toda essa exposição - ainda mais em se tratando de alguém tão especialmente reservado como ele - acaba assustando.
Parceria
Chico ainda não sabe o que fará quando a maratona terminar. Escrever, com certeza. O quê, não sabe. Se sabe, não diz. Há poucas semanas, em Paris, Chico pôde flanar à vontade, sem ser alvo de olhares de derramada admiração. Certa noite, ao aproximar-se da casa onde Camille Claudel morou, na Île de Saint Louis, recordou em voz alta a frase demolidora de uma carta que ela enviou a Auguste Rodin há mais de um século: "Il y a toujours quelque chose d'absent qui me tourmente" ("Há sempre uma ausência que me atormenta"). Seus olhos relampejaram, e ele comentou: "Que frase tremenda!"
Aqui no Rio, longe da frase pungente de Camille Claudel, os passos continuam miúdos e apressados. Os impactos serão certamente outros. Mas, de repente, tudo isso se soma - e ele transforma em canções. Basta esperar.
Revista Época, 29/11/99
Eric Nepomuceno
O Estado de São Paulo
Jair Rattner
LISBOA - Depois de Noel Rosa, Vinícius de Morais, Tom Jobim e Caetano Veloso, o próximo songbook produzido por Almir Chediak será uma homenagem dos músicos brasileiros a Chico Buarque. Com lançamento previsto para outubro, além de quatro livros com as partituras, a obra terá oito CDs com 220 músicas. "Todo mundo da música brasileira vai estar lá", conta Chediak. "Mais de cem músicos estão gravando a obra do Chico; é o maior songbook que eu já fiz." No seu projeto de recuperação da história de música brasileira, Chediak já gravou 15 songbooks.
Vai haver músicos de todas as áreas da música brasileira. Caetano gravou duas músicas, O Que Será e Flor da Idade. "Uma eu pedi e outra ele quis gravar, a Miúcha arrasou com a gravação de Joana Francesa, o Djavan tem a responsabilidade de cantar Construção, que eu pedi, e ele quis gravar Tatuagem", afirma Chediak.
A lista de nomes vai dos baianos ao rock, passando pelo samba e pela MPB, e inclui artistas que a maior parte do público nunca imaginou que pudessem cantar músicas de Chico. Gilberto Gil participa do disco com Sonho de Carnaval e Olê Olá. Sandra de Sá canta O Meu Guri e Rita Lee, Partido Alto. Zeca Pagodinho está presente com Rita e Feijoada e Ed Motta mostra Bye Bye Brasil. Ângela Maria interpreta Bastidores e Johnny Alf ficou com Rosa e Ela Desafinou. Lenine responsabilizou-se por Baticum, Cauby Peixoto solta a voz em Viver de Amor e Eugênia Melo e Castro e Wagner Tiso dividem Tanto Mar.
As gravações e as partituras terão praticamente todas as músicas criadas por Chico. "Somente ficam de fora algumas compostas para peças de teatro e nó chegamos à conclusão de que essas 220 seriam o ideal", afirma o produtor.
Segundo Chediak, já foram gravadas cerca de 80 músicas. "Acho que a gravação que mais tocou o Chico até agora foi a da Bibi Ferreira cantando Palavra de Mulher: ao finalizar, o Chico mostrou o braço, dizendo que estava arrepiado."
O cantor só vai participar em uma das faixas. Será na canção João e Maria, ao lado de Branca Lima, filha de Walter Lima. "Fui eu que propus para o Chico que cantasse com a Branca e ele aceitou', diz Chediak.
O produtor está trabalhando no livro de Chico há dois anos. "Na verdade, eu sempre tive vontade de fazer esse songbook, mas como o Chico fez um para a Companhia das Letras, com apenas 50 partituras, nós tivemos de dar um tempo. Agora que completa dez anos depois do publicado pela Companhia das Letras, acho que já dá para lançar este."
Chediak explica que no songbook lançado há dez anos deveriam entrar apenas partituras: "Foi depois do songbook que eu lancei sobre o Caetano. Na época, era para reunir apenas as letras, mas ele se animou com o songbook do Caetano e quis gravar 50 músicas."
Todo o trabalho é feito em conjunto com Chico Buarque. "Ele está sendo superdedicado. Vou na casa dele e a gente passa as músicas e sempre há uma nota ou algo na música para alterar. Já tenho 140 prontas." Apesar deste ser o maior songbook feito por Chediak, está levando relativamente pouco tempo. O produtor calcula demorar sete anos para terminar o de Djavan e cinco para o de Gilberto Gil.
A escolha dos intérpretes é feita por Chediak, mas os nomes são discutidos com Chico Buarque. "Passa muito pela intuição. Eu já trabalho há anos com o Chico. No songbook do Noel Rosa, eu pedi para ele cantar a música 100.000 Réis. Ele disse que essa era a música de que o pai dele mais gostava e que sempre tinha pensado em gravar Noel."
Além das partituras, os quatro livros vão apresentar o conjunto da obra de Chico Buarque. O primeiro terá uma biografia do compositor feita pelo Sérgio Cabral, fotos e uma introdução que o Caetano Veloso está escrevendo. O segundo vai incluir um texto do José Miguel Wisnik sobre a obra de Chico Buarque.
O terceiro volume terá a análise literária das letras das músicas, feita por Adélia Bezerra de Menezes, professora de literatura da USP. "Ela é uma profunda conhecedora da obra dele e foi o próprio Chico que a indicou", explica o produtor. No último volume haverá uma entrevista que Chico vai dar a Chediak, sobre a sua trajetória musical desde a infância.
A distribuição do livro será independente, da mesma forma como todos os outros 15 songbooks que Chediak realizou. "Sou o único distribuidor independente do País, tenho vendedores espalhados por todo o Brasil. Eu faço tudo, produzo: divulgo, faço a assessoria de imprensa e está funcionando legal." Ele diz que não calculou quanto investiu no projeto.
Em CDs, mostra, filme, livro e na TV
Um songbook, um disco ao vivo e uma coletânea, um livro-perfil, um especial na TV, uma exposição de arte e o filme baseado em 'Estorvo' são os projetos que tem o cantor e compositor como centro das atenções.
Os astros conspiraram a favor e uma constelação de nomes da cultura brasileira vem se reunindo em torno de Chico Buarque e de sua obra. O resultado são sete projetos diferentes que têm o compositor e intérprete como tema, que têm lançamentos previstos entre este mês e o começo de 2000.
Um deles é o CD Chico Ao Vivo, gravado durante o show de lançamento de As Cidades no Palace, em São Paulo. Único projeto planejado pelo próprio Chico, tem lançamento previsto para dia 24. Um segundo projeto gira em torno do songbook sobre a obra de Chico, que está sendo produzido por Almir Chediak.
O outro projeto está sendo tocado pela jornalista Regina Zappa, que escreve livro com o perfil do compositor. Em paralelo, o curador Felipe Taborda promove exposição de obras de 80 artistas feitas a partir de músicas de Chico. Enquanto isso, a Conspiração Filmes prepara programa de tevê de 80 minutos sobre ele.
Outro projeto orbitando em torno de Chico é da gravadora Polygram, que lançará uma coletânea com seus discos ainda este ano. E, finalmente, o filme Estorvo, de Ruy Guerra baseado na obra homônima de Chico, está em fase de finalização nos Estados Unidos, para estrear no primeiro semestre do ano que vem.
Primeira linha
Chediak pretende lançar o songbook de Chico em meados de novembro. O trabalho contém 112 faixas de músicas do compositor distribuídas em oito CDs, que serão interpretadas por 105 cantores brasileiros, e quatro livros com 222 músicas e partituras vistas e revistas pelo próprio Chico.
"Este trabalho reúne gente de primeiríssima linha e de todo o Brasil", antecipa Chediak. Nele, Maria Bethânia interpreta Sobre Todas As Coisas, Gal Costa canta Samba, Amor e Eu Te Amo, Edu Lobo põe voz em Pedaço de Mim e Assentamento e Gilberto Gil em Sonho de Carnaval e Olê, Olá.
Também participam Rita Lee, Zeca Pagodinho, Tom Zé, José Miguel Wisnik, Nana Caymmi, Dominguinhos, Bibi Ferreira, Sandra de Sá, Arnaldo Antunes, Ed Motta e Zélia Duncan entre outros."Só não tem Roberto Carlos e João Gilberto", diz Chediak.
Trajetória
No primeiro dos quatro livros que compõem o songbook Sérgio Cabral assina um texto biográfico e Caetano Veloso, o prefácio. O segundo inclui dois ensaios sobre a obra de Chico, de autoria de José Miguel Wisnik e de seu filho, Guilherme.
No terceiro livro está incluído texto da professora de literatura da USP Adélia Bezerra Menezes, analisando as letras do compositor. O último contém texto do próprio Chediak reproduzindo entrevista de Chico sobre sua trajetória musical.
Este é o maior songbook produzido por Chediak, que em seu projeto de recuperação da história da música brasileira já publicou os de Noel Rosa, Vinícius de Morais, Tom Jobim, Caetano Veloso e João Nonato. Agora, ele prepara os de Djavan e Gilberto Gil.
Ainda na esteira literária, no dia 23 de novembro, no planetário da Gávea, no Rio, a editora Relume-Dumará, em co-produção com a RioArte, lançará mais um livro da coleção Perfis do Rio, com texto da jornalista Regina Zappa sobre Chico.
"Não é uma biografia porque Chico não cabe em pouco mais de 150 páginas", diz Regina. Desde julho, ela vem entrevistando o compositor, formalmente, e também em conversas descontraídas em passeios com ele pelo Jardim Botânico e pelo calçadão da praia. "Acho que captei que tipo de pessoa ele é. Chico tem, de fato, a componente da timidez, mas também tem muito senso de humor. É extrovertido e divertido."
Paixão pelo futebol
O perfil do compositor envolve histórias contadas pelo próprio e de pessoas em torno dele. Passa pela sua paixão pelo futebol, sua participação política e sua trajetória musical.
Já para a exposição que promoverá dia 2 de dezembro no Paço Imperial, do Rio, Felipe Taborda convidou 80 artistas plásticos, gráficos e criativos com a missão de executar obras interpretando, cada um, uma música de Chico Buarque - como fez para a exposição de Caetano Veloso, no ano passado.
"A regra foi sortear as músicas entre os artistas", conta. Tunga, por exemplo, faz obra sobre a música Deixa Menina, Leda Catunda trabalha sobre Pelas Tabelas, Arthur Omar cria em cima de Cálice. A exposição será acompanhada por um livro que reproduz as 80 músicas e obras.
Já o especial de tevê que a Conspiração Filmes vem preparando em co-produção com a gravadora BMG-Ariola e o Canal Multishow ficará pronto em março e será exibido pelo Multishow. Também será vendido em home-theater e depois será apresentado em um canal aberto de tevê, a negociar.
Filmado em película, em 16mm e 35mm, o programa segue a linha dos outros em que a produtora documentou a produção da MPB - como os que fez com Gilberto Gil e Marisa Monte, entre outros. Serão 80 minutos com temas que apaixonam Chico, além da música: literatura, arquitetura e encontros com amigos como, Maria Bethânia e Oscar Niemeyer.
Jornal da Tarde - 16/10/99
Cristina R.Durán
La semana proxima llega el musico brasileño para presentar su disco "As cidades". Dueño de una obra clave en la musica popular, sus canciones conjugan inquietudes intelectuales y sociales con igual intensidad.
Se decía, en tiempos de tropicalismo, que Chico Buarque no tenía nada que ver con aquel movimiento; que para Caetano Veloso y Gilberto Gil, el precoz autor de Roda-Viva permanecía ajeno a la cultura pop, y por lo tanto ajeno a lo realmente novedoso en el Brasil de los sesenta. Chico parecía haber saltado de la Facultad de Arquitectura a los estudios de grabación sin arriesgarse por la corriente de la experimentación y la ruptura con el mundo de los mayores. Es cierto que Chico ya había musicalizado poemas de Mello Neto y estaba en contacto con el cineasta Ruy Guerra. Pero sus canciones -ese era el tema- no rompían con ninguna tradición, no deseaban marcar a fuego la cronología brasileña. Por el contrario, aquella música, de impecable factura, parecía ser una fluida continuación de la de los maestros de la bossa nova. Y el tropicalismo era (y pretendía ser) otra cosa.
A comienzos de los 70, las suspicacias se esfumaron. Buarque y Veloso compartieron escenarios y discos, y ya nadie pudo hablar de enemistad o antipatía entre los principales exponentes de la música popular brasileña (MPB, de ahora en más). En su reciente Prenda minha, Caetano interpreta "Carolina", una hermosa balada de Chico. Por otra parte, nadie que escuche con atención As cidades, el CD que la semana próxima Chico Buarque presentará en Buenos Aires, puede considerar a su autor ajeno al mundo sonoro y poético del Brasil posterior al tropicalismo.
Sin embargo, aunque reduccionista y tal vez impulsada por la mala fe, aquella vieja fábula sobre la rivalidad entre Chico Buarque y su grupo de pares artísticos tiene un fondo de verdad. En principio, el talento de Chico es el de un autor y compositor que puede prescindir - y de hecho lo prefiere - de todo escenario, de toda ejecución y realización musicales. El siempre quiso ser un compositor "puro", un escritor de letra y música confiado en que otros canten más y mejor que él sus propias creaciones. Un lindo juego es buscar, en el sector "Brasil" de nuestra discoteca, temas de Chico en otras voces, otros ámbitos. Satisfacción garantizada.
Tal vez por eso Chico nunca fue un animal escénico. Inmóvil entre sus músicos, petrificado ante el micrófono, buscando con la mirada algún punto lejano en el horizonte para no tener que afrontar el rostro de su fervoroso público, sus actuaciones poco agregan a lo que ya conocemos de él, si bien siempre resulta atractivo escuchar a un compositor haciéndose cargo de su propio material. Con su voz pequeña y tersa, alejada de toda estridencia, de toda incomodidad sonora, Chico sale a escena para decirnos a todos que esas son sus canciones, esas mismas que seguramente hemos oído en tantas versiones.
Mientras Caetano o Gil saben vivir a pleno la experiencia del recital (sus discos en vivo tienen una magia especial, superior a la que logran en estudio), Chico es el Noel Rosa de nuestra época: lo conocemos y admiramos, antes que nada, por ese corpus de canciones populares y refinadas, masivas e intimistas... pletóricas de contrastes dramáticos. Cuando ya creíamos tener una imagen cristalizada de la cultura brasileña, Chico suma un punto de vista diferente. Y lo hace con los medios más nobles. Nadie como Chico para resolver satisfactoriamente el antiguo dilema entre un arte para artistas y una canción para todos. El ha logrado las dos cosas en una sola: sus mejores composiciones, románticas a la vez que atentas a las fisuras sociales (él se resiste a ser catalogado como autor político o "de protesta", aunque parte de su obra ha sido apreciada desde esas categorías), se tararean con felicidad por la calle; luego se sueña con sus imágenes más sutiles, con lo que subyace, conflictivamente, bajo esa superficie juglaresca. Y siempre la gentil amalgama, muy brasileña, de tristeza y alegría.
En su nuevo compacto, temas como "Iracema voou", "A ostra e o vento" y "Cecília" conllevan esa síntesis sentimental: Chico Buarque ciento por ciento. Después de cinco años sin grabar (dejemos de lado las antologías, a la manera de O melhor de... ), Chico ha vuelto al disco con su habitual sentido de continuidad y fidelidad. Si hasta están los mismos músicos que lo han acompañado en estos últimos años. Las instrumentaciones no presentan grandes novedades. Voz y guitarras en primer plano, algún refuerzo con instrumentación "de cámara" para la primera repetición, paladar acústico, sabores de un Brasil íntimo, nada turístico. A veces, como en la metafísica "Xote de navegao", irrumpe otro instrumento (el acordeón, en este caso), porque Chico tiene un formidable oído para el color sonoro. Por ejemplo, cuando apela a un clarinete o a una flauta - cosa que hace con bastante frecuencia -, sabe muy bien que esas presencias provocarán un delicioso efecto anacrónico: muchos años de choros y sambas. La de Chico es una música de saberes acumulados: avanza recapitulando, reconstruyendo sin prisa ni furia el pasado hecho presente de la música brasileña.
En términos generales, podría decirse que las líneas melódicas de As cidades tienen los giros de siempre, modulan con elegancia y relativa sencillez y arriban al silencio después de ese efecto de vals sincopado que, a más de tres décadas de su debut, bien puede considerarse la marca en el orillo de un compositor de talento. Para el último corte de As cidades, como en otras oportunidades, el músico opta por la algarabía de una scola (Chao de esmeralda), que se puede cantar a cielo abierto, como lo haría Dorival Caymmi. Pero no es la algarabía del carnaval televisado. Se trata, en cambio, de esas pequeñas fiestas que, de vez en cuando, se concede la gente humilde, los que habitan las ciudades del disco. Quienes frecuentan la obra de Chico conocen bien a esa gente: las diferencias urbanas no los han cambiado mucho. Y también conocen al sujeto que cuenta y narra tantas vidas. En Chico, la voz que enuncia está bien definida, la conocemos desde hace mucho. Es aquella voz que, en los ochenta, se presentaba así: "Eu quería ser/ Um tipo de compositor/ Capaz de cantar nosso amor/ Modesto..." (Amor barato).
Francisco Buarque de Hollanda nació el 19 de junio de 1944, en Río de Janeiro, de padre historiador y madre pianista. Cuando Chico, el menor de siete hermanos, tenía 2 años, la familia se trasladó a San Pablo y luego residió un tiempo en Italia, para volver a Brasil. Chico aprendió a tocar la guitarra de oído y, si bien tomó algunas clases de teoría musical y piano, su gran aprendizaje fue, amén de literario, "visual": miraba extasiado a los guitarristas que admiraba. Ellos "hacían" los acordes de otra manera. Los alteraban, los agrandaban, los desviaban con lógica secreta hacia otras tonalidades. Chico se dio cuenta de que el romance entre Brasil y la guitarra era una cosa seria.
Al igual que tantos músicos de su generación, el joven corrió a comprar Chega de saudade en la voz de João Gilberto, un cantante adherido a su guitarra. Pero él reparó más en los autores, Jobim y Vinicius. Desde entonces, su héroe musical fue Antonio Carlos Jobim. Con los años, se irían manifestando algunas coincidencias. No es casualidad que para Tom - musicalmente más capacitado que su discípulo - siempre haya sido más seductora la soledad del compositor que la vida gregaria del intérprete. Finalmente, la vida premiaría a Buarque de Hollanda con un par de temas escritos a cuatro manos con su maestro. Uno de esos temas, "Retrato en blanco y negro", bien puede considerarse una de las mejores canciones del siglo XX brasileño.
Sin dejar de cantar y tocar la guitarra, Chico quiso ser arquitecto. Estudió hasta tercer año en la Universidad de San Pablo (al menos logró el título de topógrafo), y si bien la canción finalmente lo alejó del tablero, no sería mera metáfora afirmar que, de alguna u otra manera, la arquitectura está presente en gran parte de su obra. Cuando en 1966 el joven estudiante universitario de ojos claros y facciones delicadas - imagen perfecta para los cánones de la televisión - ganó el II Festival de Música Popular con el hit "La banda", para Chico empezó una nueva vida. Prolífico e incansable - él sí ya era un animal compositivo -, supo reunir en sus canciones - y alrededor de ellas - todas sus inquietudes intelectuales: la poesía concreta, el teatro, el Cinema Novo, la nueva arquitectura de Oscar Niemeyer, la bossa nova, el viejo samba. ¿Acaso podía haber mejor futuro que el de la canción popular para un joven culto e informado, poeta musical que se daba maña con la guitarra y vivía rodeado de libros? Pero pronto Chico descubrió el precio de una vocación atractiva. El Brasil de la aurora sesentista fue derrotado y suplantado por una dictadura militar. Muchos conocidos de Chico no tuvieron más remedio que exiliarse: pensemos en los años londinenses de Caetano, por ejemplo. Después del presidente Joao Goulart, la vida intelectual se había vuelto problemática. No faltó mucho para que varios temas de Chico fuesen censurados, con un largo silencio de radio. En el 69 el autor y su mujer se radicaron en Roma, pero retornaron a Brasil 15 meses más tarde, prefiriendo el exilio interior. El hijo del célebre historiador compuso algunas canciones bajo el seudónimo de Julinho de Adelaide - hasta llegó a cambiar opiniones con su personaje - y en 1971, bajo su verdadero nombre, estrenó "Construo", su primera gran canción.
"Construo" lo situaría, definitivamente, entre los mejores. La canción cuenta la historia del último día de un trabajador de la construcción que "tropezó en el cielo como si oyese música", después de haber levantado, desde su humilde andamio, "cuatro paredes mágicas". La indiferencia de los otros, los transeúntes, resultaba terrible, inmoral: "Morreu na contramão atrapalhando o sábado". Sosteniendo el relato, ahí estaba la música, nunca un factor secundario. Una demorada tensión de frases reiteradas, obsesivas, y una notable plasticidad musical en cada palabra, en cada nota, hacían de Chico una suerte de dramaturgo musical, alguien capaz de contar una historia y "representarla" dentro de los parámetros inefables de la música.
La canción popular tal vez no fuera el sueño intelectual de su padre, pero el tipo de música que Chico había elegido no estaba divorciado de las inquietudes del erudito Sergio Buarque de Hollanda. De Calabar -aquel brasileño primigenio que "traicionó" a su patria colonial entregándose a la causa holandesa- a Getulio Vargas, tildado de fascista latinoamericano, muchas canciones de Chico hincaron el diente sobre la historia del Brasil. Desde esa perspectiva, el proyecto más ambicioso fue la Opera do Malandro, adaptación afrolusitana de la más célebre pieza de Bertold Brecht y Kurt Weill, quienes a su vez habían tomado la idea de la pieza de John Gay, de 1728. En este juego interminable de citas y traducciones, las prostitutas y los rufianes alemanes eran apenas reemplazados por sus pares cariocas, mientras la célebre canción "Moritat" (Louis Armstrong la canonizó dentro del jazz) pasaba a ser, sencillamente, "O Malandro".(Es un tema tan conocido, que cualquier lector puede animarse, ahora mismo, a repetirlo en portugués: "O malandro/ Na dureza/ Senta _ mesa/ Do café/ Bebe um gole/ De cachaça/ Acha graça/ E dá no pé"... .
Con la Opera..., grabada en 1979 con los arreglos de su amigo y colaborador Francis Hime y una larga lista de participantes, Chico indagó en el controvertido Estado Novo de Vargas, a través de una crítica a la dictadura y al "malandraje", pero también con cierta identificación con la carta-testamento del presidente brasileño. Como en toda ópera que se precie de tal, el trabajo más ambicioso de Chico incluyó, amén de fragmentos adaptados de Rigoletto y Tannhauser, "arias" destinadas a trascender, en fama y relieve popular, el conjunto de la obra. En ese sentido, Gal Costa entonando "Pedaço de mim", la legendaria Nara Leao cantando "Folhetim" o Marieta Severo y Elba Ramalho deslizándose por una de las mejores melodías de Chico, "O meu amor", hoy pueden disfrutarse sin necesidad de conocer en detalle las amargas peripecias de ese malandro de traje blanco y corbata roja que ilustraba la tapa del disco original. En 1981, la Opera do malandro se vio en Buenos Aires, bajo dirección de Alfredo Zemma: un hecho inusual, considerando que el nombre de Chico Buarque estaba en la mira de los censores, de aquí y de allá. Luego vendría la película, pero para entonces ya soplaban otros aires.
Hacia 1982 la censura aflojó y las canciones más urticantes de Chico -"Cálice", "Tanto mar", "Apesar de você"- se convirtieron, definitivamente, en el diario personal de todo un país. Fue por entonces que Chico, cuya trayectoria no se había tocado mucho con la del tropicalismo, halló un especial reconocimiento entre las figuras emergentes de la MPB: Djavan, Simone, el notable Milton Nascimento. En cierto modo, si bien aún no había cumplido 40 años, Chico era el gran referente de los artistas populares de Brasil, y sus canciones irradiaban su influjo sobre toda Latinoamérica. Lejos -aunque culturalmente no tan lejos- el ministro de Cultura de Francia, Jack Lang, le entregó en 1983 la preciada Orden de Artes y Letras. Con su conocida (y en cierto modo engañosa) modestia de "cantor de amor barato", Chico se había convertido en el Gran Brasileño.
Más tarde, el ex estudiante de arquitectura, topógrafo y símbolo cultural de todo un país se animó a incursionar en la novelística (Estorbo, del 93, y más recientemente Benjamín), el teatro -su viejo y siempre cultivado amor- y en otra de sus grandes pasiones: la música para cine. En este terreno ya había conocido, hacia 1976, el éxito arrasador de Doña Flor y sus dos maridos, el filme de Bruno Barreto sobre libro de Jorge Amado para el cual Chico compusiera la famosísima "O que será". Como todos recordarán, la deliciosa interpretación de Simone había hecho el resto. En los años siguientes, ese vínculo con el cine se profundizó, al lado de realizadores como Walter Silva. Si bien centrado en la música, el universo de Chico Buarque fue y sigue siendo muy generoso.
Difíciles de hallar, las grabaciones de Chico son hoy señales tenaces pero aisladas en el mapa inmenso de la música brasileña. El se sitúa al margen del imperativo productivo de la época. Puede entusiasmarse y componer a borbotones y con calidad pareja (increíblemente pareja), o dejar pasar varios años entre disco y disco, sin preocuparse en tramar largas giras. No trabaja (nunca lo hizo) para alimentar el voraz apetito de las empresas discográficas, y se pone de malhumor si alguien se atreve a molestarlo cuando juega al fútbol con sus caros amigos del equipo Politheama, en el Centro Recreativo Vinicius de Moraes de Río de Janeiro. Pero sus canciones están en todas partes, en el aire de las ciudades. Más concretamente, se las puede detectar en algunos compactos imprescindibles: Almanaque, Francisco y ahora As cidades, entre otros.
El Clarin, 03/10/1999,
Sergio A. Pujol
Chico Buarque is an expert constructor. Yes, with the utmost subtlety he penetrates the dense forest of words, which he harvests one by one with the wisdom of an old oriental goldsmith. Then he constructs phrases and verses. Facts and legends. Chico Buarque is an inventor.
For the past four decades, between agile and wise pauses, he has provided more than enough material to heal wounds, broken hearts, mad behaviour or dodgy dealings - whether political or not - for those unknown people who listen to his music and read his books.
Many were the rites of passage from his first composition written in 1964, the timid and discrete poetry of Marcha para um dia de Sol (March for a Sunny Day), the vigorous and disturbing account in his book Benjamin to the unparalleled sophistication of the verses to be found in all of the themes of his latest CD As Cidades (Cities) 1998.
The First Phase
Chico Buarque's first three records, originally released between 1966 and 1969, are considered by followers of his work as his 'first phase'. In her paper Modern Brasilian Popular Music, professor Walnice Nogueira Galvão divided this phase of Chico's work into two fundamental sections: one is the metasong about song, essentially lyrical, but also containing narrative aspects (Tem Mais Samba, Olê, Olá, Realejo, Sonhos de um Carnaval, Roda Viva) - the other is song created for personality, full of anecdotal details (Rita, Tereza Tristeza, Quem Te Viu Quem Te Vê, Lua Cheia, Logo Eu). Walnice compares this section to the work of composers like Noel Rosa, Ataulfo Alves and Sinhô.
Highly critical of his own work, as evidenced in 1996 when the record Uma Palavra was released, Chico Buarque analysed his 'first phase'as follows: "I am fully aware that my work has matured with time. I can easily detect immaturity in my first compositions. I think that I improved, that I developed my musical know-how over the years. This has nothing to do with success. Because maybe there might even have been a certain spontaneity, a naiveté that made these songs more accessible than the ones that followed. Many times this happens…"
Breaking Barriers
The lyricism present on his two first records was soon to place Chico in the position of "green-eyed prodigal son, a follower of the traditional musical family", as defined by the poet and essayst Augusto de Campos in his essay Viva a Bahia-ia-ia, published in 1968 and reproduced in one of the best critical works of the period, the book Balanço da Bossa.
In 1969, at the height of the dictatorship in Brazil, when the country was upside down musically - courtesy of Caetano Veloso, Gilberto Gil, the conductor Rogério Duprat and other tropicalistas - Chico Buarque, who was already showing signs of dissatisfaction with the "good two shoes"image imposed on him by the media and the right-wing, breaks through all barriers and releases a dense, tense, and intense record. Criticism of society is explicit. His dissatisfaction with the system as well.
With arrangements by the conductor Gaia and once again with contributions from Magro of the group MPB4, Chico Buarque shatters the mirror reflecting his good citizen's face. On each one of the fragments shattered on the floor, what is apparent today, 30 years later, is the image of a mature, daring, audacious, and refined artist. The record dedicated to the poet João Cabral de Mello Neto, has extracts from his poem Morte e Vida Severina, set to music by Chico Buarque and rechristened Funeral de um Lavrador. There is also the masterpiece Roda Viva, a symbolic song that opposed the character many had created for him. On Carolina, another gem on the record, the didillusioned character confronts the happy girl at the window who watches the parade go by. With this work the composer finally produces his solitary and influential musical revolution.
The Spokesman for a Generation
From the 'good lad' image of A Banda - the song that made him a national celebrity - to destroying all previous references with the anthological Roda Viva (his début as a playwright), Chico experienced the maddening and hurtfull unfolding of events. These occurrences provoked his almost spontaneous exile to Italy, culminating in his return to Brazil where, almost involuntarily, but more as a consequence of the needs of all the Brazilians who were politically engaged, Chico became the spokesman for a generation.
Chico Buarque played with the wounds opened by a rotten governamental system which paid no heed to ruling, aborting phrases and ideas, silencing the outspoken and the discontent. Not only did the composer conduct and strengthen the hearts of the chorus of the dissidents, but he also reported the sufferings of an unhappy and politically restricted people to the whole country with his habitual timidity and regal astuteness. Thus the poet spoke and sang about what was going on in the streets and alleyways, in the minds of the politically aware, the destitute, and the discredited.
And when the censors determined to silence him, banning his verses, he would create new characters, disguise himself as an imaginary underworld poet and rework his verses to give them a less explicit meaning. However, reading between the lines everything could be understood. That is how Chico managed to carry on.
He made cinema and theatre the essential means of conveying his music. He became an actor - although an awkward one - and composed veritable classics of Brazilian cinema. His were the soundtracks for the films 'Quando o Carnaval Chegar' (Waiting for the Carnival, 1972), 'Joana Francesa' (French Joana, 1973) and 'Bye, Bye, Brasil' (1979), all directed by Cacá Diegues. He also composed tracks for 'Dona Flor e seus Dois Maridos' (Dona Flor and her Two Husbands, 1976), 'Vai Trabalhar Vagabundo' (Find Yourself a Job you Bum, 1976), 'A Noiva da Cidade' (Bride of the City, 1976), 'República dos Assassinos' (The Republic of Assassins, 1979), among others.
He was acclaimed as a playwright (Roda Viva, Calabar, Gota D'Agua, A Opera do Malandro) and, together with composer Edu Lobo, he created tunes for countless pairs of dancing feet (O Grande Circo Místico and Dança da Meia Lua).
As if all this was not enough, through the written word he established himself as one of the serious - in the broadest sense of the word - authors in contemporary literature: from his debut work 'Fazenda Modelo' (Model Farm, 1974) to the celebrated 'Benjamin' (1995), not forgetting 'Estorvo' (Turbulence, 1992), which is currently being adapted for the cinema.
The Feminine Universe Through the Lens of Chico Buarque
Chico Buarque has moved successive generations through his unique way of plunging into a feminine universe, and returning with themes charged with unspeakable truthfulness and ancestrality, which act as a balm for all who believe in love. His words, spoken by Bárbaras, Anas, Genis, Lilis and Joanas, and so many other afflicted or non-afflicted souls, have created a catalogue of songs that most certainly will not disappear with the speed of the times we live in.
Describing his sensitivity in reporting on, informing about, and tackling scenes and situations only plausible within a feminine universe, the singer and composer Tom Zé, having been moved by listening to Chico's latest record Cidades', wrote:
"As I listened to Chico's new CD 'As Cidades', I gradually became feminine. Rendered progressively light-headed as a consequence of those odd melodies, the more I heard, the more light-headed I became. The more the beauty increased, the more difficult the possibility of distinguishing that music's gender. The melody was showing itself to me, as coming from a masculine being. As it unfolded, with the daring of an unorthodox composition, it became detached from gender. And that made me confused and attracted, betrayed. But, while the singer's voice was that of a male, I enjoyed myself as a female. Had it been a commonplace melody, masculine, I as a total female would conduct my attraction with all my soul but as a male would ride that voice to love women, as a story. But, deprived of any trivial melody, I was confronted by beauty. And brought from my guts the feminine soul of my love. As in Félix Krull, it might be that this fact makes men ashamed when they listen to Chico's new record, 'As Cidades'. 'As Cidades' is the landscape from where those who seek Chico return to find themselves exposed. It is a record of scribbles, football dribbles, the threat of shadows, of seemingly disconnected musical phrases, and amazing surprises. And I am bound, I, a woman, to this man without body or melody, who promises me songs, but only gives me diamonds through his voice."(Folha de São Paulo, 6.11.98)
In the Beautiful Cadence of the Samba
The intrinsic relationship between Chico's compositions and the elements he assimilated from the traditional 'carioca' samba (from Rio de Janeiro) is reflected in most of his work. Some examples are: O Meu Guri (My Boy), Feijoada Completa , Samba do Grande Amor (Samba of the Great Love), Noite dos Mascaradors (Night of the Mascarade), Homenagem ao Malandro (Homage to the Rascal), Vai Passar (It Will Finish), Pelas Tabelas (To the Limit), among others.
A card-carrying member of the Mangueira School of Samba years before he was featured as a parade-personality by the green and rose samba school, Chico Buarque had already dedicated two beautiful songs to his school: 'Derradeira Estação' (Last Stop) and 'Piano na Mangueira' (Piano at Mangueira), a classic co-written with Tom Jobim. When, in 1997, he released the beautiful Chão de Esmeraldas (An Emerald-Studded Path), co-written with Hermínio Belo de Carvalho, in return for the samba school having paid homage to him, Chico confirmed once again his skill as a great popular composer.
Musically speaking, there are great composers who preceded and succeeded Chico in the history of Popular Music who mesmerised and continue to do so with their hastily-written melodies. Nonetheless, Chico Buarque is capable of impressing, seducing, and moving, when composing a timeless blues, fusing baião and rock, creating a foxtrot, marches and infinite, unforgettable sambas, to rival the pupils of Dorival Caymmi, Noel Rosa, Ari Barroso, Cartola, Geraldo Pereira, Pixinguinha, Tom Jobim, among others. But the fact is that Chico Buarque became the pupil who immersed himself with the most intensity in the lessons of these great masters. Hail Chico!
Chico Buarque's Views Throught the Years
"When I entered the School of Architecture, I saw São Paulo with fresh eyes. The Universities, Maria Antônia Street, the political dreams, the frustrations, the profession. The brick, the bricklayer, the engineer - São Paulo seen from within. The long Paulista nights, which is when the guitar came in. That was where I found the source of my urban samba, sniffing smog and asphalt. That is why I am not reluctant to confess that 'Pedro Pedreiro' (Peter the Builder) waits for the train on the periphery of São Paulo, 'Juca' is an absent-minded citizen from the borough of Brás, 'Carolina'is the young lady whose window opened out on to the Bela Vista neighbourhood and , believe me, 'A Banda' went by at the Chá flyover as it made its way into the heart of São Paulo." (Jornal da Tarde - 29.12.67)
"Noel Rosa is one of the composers I used to listen to frequently and I admired him a lot. The first songs I wrote were very influenced by Noel. I listened to his work quite a lot, I can't deny it. But I learned to play the guitar with the Bossa Nova". (Jornal O Pasquim - 1970)
"I am not subversive at all… If anybody made me subversive, it was the censors themselves. It's because I want to say things clearly. I don't want to be negative. Sometimes it upsets me to have to look for an image, a metaphor to say something. I like to say things clearly, openly". (Jornal O Bondinho - 1971)
"I am not able to be objective about the importance of my work. But sometimes I wonder whether music, even music in its most revolutionary form, would be able to alter somehow the political process. But the censors prohibited so much that I have to believe that a song, a theatre play, a film is really important within a general context. This is my objective impression as a result of all the prohibitions. Subjectively, I tend to despise a little what I do because I am an individual full of doubts, of self-criticism." (Revista Veja - 28.10.76)
"First of all: I am not a poet; I write lyrics for songs not poems."(Folha de São Paulo - 11.9.77)
"I believe in human beings above any concept of class". (Senhor /Vogue - 3.79)
"My generation drank a lot from American music. In my songs there are aspects of blues, of jazz. But the mix is made in Brazil - genuine and modern." (Jornal O Globo - 4.2.85)
"During a certain period, a good proportion of Latin-American countries were united on a tragic path. Dictactorships, opressive systems, whose methods were very similar and repetitive. I am talking about the 1970s, a time when the so-called 'culture of resistance' - and we must use the term carefully, as it is used too often - started to spread more intensively. In the world of music, there were protest songs in Chile, Argentina, Brazil, everywhere. To simplify things: the governments using the same methods seemed more united than ever, and the artists as well - some oppressing, others resisting. There was then, an atmosphere of Latin-American unity that started to dissipate, mainly with reference to Brazil. Today we live as before. There has never been a real cultural exchange that included us. In Latin-America, and especially in Brazil, the elite always looked abroad. That includes the intellectual elite." (Nossa America - 1989)
"I don't want to resort to social criticism in books. I want the public to understand that the citizen has got nothing to do with the composer, nor with the writer. The book 'Benjamin' mentions violence, but the policeman that is disabled by a bullet is not shown being shot. I don't fell obliged to ally muself with any cause because of my personal history of political involvement." (Jornal do Brasil - 2.12.95)
"In reality I enjoy reading more than listening to music. I listen to my music when it is being recorded, but I am afraid that I am happier in the process of creating music than in the process of writing. There are moments of pleasure in writing, but you start re-writing and the pleasure is only complete when you read and are entirely happy with the result. It is different with music. There is pleasure in each moment as it takes shape. For me, making music is more intuitive than literature. Pleasure is there in the magic of things that come to mind without you even knowing exactly how." (Revista Marie Claire - 7.99)
Chico Buarque through the Lenses of Others
"Chico Buarque is a phenomenon who attains exactly what we in the bossa nova movement tried to attain for a long time: the true unity between culture and the people." (Vinicius de Moraes, poet/composer)
"The 'carioquice'(Rio de Janeiro ways) of his samba - whose reputation he restores after so many experiences and brilliant changes of topics of conversation - made the great Mário Reis rejoice."(Carlos Lacerda, journalist and music critic)
"He is not just an extraordinary popular artist. He is the most significant cultural representative who sprang from the generation which, around 1964, was 20 years old and starting to make its contribution." (Zuenir Ventura, journalist/writer, 1976)
"Throughout the years, I accumulated a debt with life: the serene assurance of having had the good fortune to live and share an existence under the same sky and at the same time with certain people who did nothing more than broaden my mind and enrich my days. Certain people who, despite being far away, diminished my silence and enlightened my solitude. Few, valuable, tender people. Francisco, for example." (Eric Nepomuceno, 1989)
"It is a very good thing for Brazil to have someone like Chico Buarque. He is a genius of the Brazilian race, a depository of popular Brazilian culture. A great poet, a great musician, a great lyricist, a great everything." (Tom Jobin, composer - Folha de São Paulo, 18.6.94)
"Chico Buarque does not exist, he is fictional, a know-all. Invented because he is necessary, vital, without whom Brazil would be poorer, emptier, without a week, without a brick, without construction." (Ruy Guerra, film-maker and writer - 1998)
"I love to sing Chico's music. It is always wonderful. I identify with his songs." (Gal Costa, singer - September 1998)
"Chico's poetry touches the soul of women. The feminine soul." (Marília Pêra, actress - September 1998)
"What a man, what a poet… he is not just one, he is a thousand!" (Maria Bethânia, singer - O Globo 8.1.99)
"Chico is the prince of Brazilian Popular Music and it is more than a privilege, it is an honour to be able to work with him." (Cacá Diegues, film-maker - September 1998)
"He is the greatest musician among the composers of popular music. A genius from whom I would like to steal a perfect title like 'Paratodos' (For All), for example." (Egberto Gismonti, musician and composer - O Globo 8.1.99)
"It is good to talk about Chico Buarque. Of his extraordinary talent. Of the unwavering courage and dignity that he has towards life and his fellow men." (Oscar Niemeyer, architect and urbanist - October 1998)
News from Brazil, 1999, by Pedrinho Alves Madeira
Correio Braziliense, 02/09/99, Sylvia Cyntrão
Embora seja consenso a visão de um Chico Buarque poeta, ele mesmo sempre foi avesso a que olhassem suas letras desacompanhadas da melodia. O compositor não se considerava um músico típico, dizia que Milton Nascimento era melhor. Considere-se ou não um poeta, o fato é: Chico produziu obra rica em imagens e símbolos, formalmente cuidada, provida de tensão verbal, conteúdo denso e alcance universal só observados em poetas como Drummond.
O efeito e a força do lirismo de Chico são conseqüência de um eu poético sensível e sintonizado com a realidade; mais ainda, eu poético em simbiose com o homem, a mulher, a criança e a vivência, a um tempo particular e universal, dos semelhantes.
Foi justamente em período particularmente difícil para esses "semelhantes", que Chico, sem nenhum favor, passou a figurar como um de nossos melhores poetas, pela relevância estética e política de suas letras. Foi de Drummond seu primeiro aval poético. "(...) viva o sopro de amor que a música A Banda vem trazendo, Chico Buarque de Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados palácios em ruínas ...)". (Correio da Manhã, 1966).
Lirismo, humor, drama e tragédia formaram o amálgama textual em que o explicitado pelo poeta foi sempre o humano, quer dilacerado pela paixão, quer porta-voz de solidariedade existencial coletiva.
O engajamento, a militância política, foi circunstancial, embora qualquer expressão literária contenha nos signos utilizados a marca do tempo em que foi produzida. Se havia "papel" a ser cumprido nesse sentido, Chico o realizou com maestria. É preciso lembrar, no entanto, que o verdadeiro poeta nunca é mero "reprodutor de fórmulas de sucesso". Ele tem tempo próprio interior, suas angústias pessoais e uma elaboração mental da realidade muito mais aprofundada.
O Chico de As Cidades é outro, sim, (são outros os tempos!) mas sendo o mesmo, como comprovam as imagens da letra de Carioca (1999): "O poente na espinha das tuas montanhas quase arromba a retina de quem vê..."
Sylvia Cyntrão é doutouranda em literatura brasileira na UnB.
Se um tem o Dom do Amor, da Paz e da Vida, o outro tem o Dom da poesia, da música, da alegria.
Se um defendeu o direito à vida e à liberdade, levando aos quatro cantos do mundo a denúncia em favor dos fracos e oprimidos, o outro denunciou, levando a sua música.
Cada um dos dois, a seu modo, vem lutando para que o nosso país possa se tornar um lugar melhor, onde todos possam se sentir incluídos e partes integrantes da mesma nação, com direitos e deveres iguais para todos.
E foi assim que, no dia 16 de julho, dia da padroeira do Recife, Nossa Senhora do Carmo, em um final de tarde claro, com restos de sol, a música, as letras, a poesia, os dons, enfim, se reencontraram, para celebrarem a alegria de estar juntos.
O Dom mais velho, mais experiente, e por isso mesmo mais cansado, aguardava em sua cadeira de balanço, a chegado do outro dom, mais jovem, menos experiente até, mas trazendo consigo também a sua bagagem de luta pela libertação de seu povo, de seu país.
Os velhos e alegres olhos castanhos do profeta/poeta/escritor/pastor, encontraram os olhos azuis saltitantes do poeta/músico/cantor e por que não dizer também pastor, quando conduz com sua música, ao deleite e também à reflexão.
Dom Helder Camara, simplesmente o DOM. Chico Buarque de Hollanda, simplesmente o Chico.
Um, genial em seu pastoreio, outro, genial em suas criações. Articulado pelo Grupo Igreja Nova e por Frei Betto, o encontro dos dons foi um momento de ternura, ou de "fraternura" (como costuma dizer, carinhosamente, nosso irmão Leonardo Boff), visível nos rostos presentes.
De repente, o artista se levanta e cantarola trechos de "A Banda" para o profeta, que erguendo os braços alegremente, acompanha o ritmo da música, como se regesse uma orquestra: " Estava à toa na vida o meu amor me chamou, pra ver a Banda passar, cantando coisas de amor. A minha gente sofrida, despediu-se da dor, pra ver a Banda passar, cantando coisas de amor".
Com certeza, a luta do profeta e do compositor tem sido para que realmente a sua gente sofrida se despeça da dor. Não apenas para ver a Banda passar. Mas para viver num país onde a dignidade e a solidariedade sejam um princípio e não apenas uma referência. Mas um profeta não se cala. Suas palavras, suas denúncias atravessam o tempo.
A um cantor também, não se consegue calar. Como a denúncia do profeta, sua música ficará milênios, milênios no ar. Talvez os sábios em vão tentem decifrar o eco de antigas palavras, fragmentos de cartas, poemas, vestígios de estranhas civilizações.
Mas, com certeza, os amores serão sempre amáveis, e futuros lutadores quiçá. erguerão suas bandeiras de luta em defesa da vida, embalados pelos poemas e pelas canções que um dia, o profeta e compositor, deixaram para eles.
Por isso, como diz o artista, "Não se afobe não, que nada é pra já". E como diz o profeta: - "Não devemos temer a utopia. Gosto de repetir muitas vezes que, ao sonharmos sozinhos, limitamo-nos ao sonho. Quando sonhamos em grupo, alcançamos imediatamente a realidade. A utopia, compartilhada com milhares, é o esteio da História".
Juntemos pois os nossos sonhos, pois só assim poderemos entender porque "O segredo de ser sempre jovem - mesmo quando os anos passam, deixando marcas no corpo - é ter uma causa a que dedicar a vida." ( Dom Helder)
A passagem do Chico Buarque por Porto Alegre só fez aprofundar um mistério. O Teatro do Sesi, que tem mais de 1,7 mil lugares, lotou quatro vezes para ver o seu show. O quarto show, o de ontem, não estava nos planos, foi improvisado para quem não conseguiu entrar nos outros três. Acrescente-se a isto os que não conseguiram entrada nem para o show extra, ou não foram porque acharam caro, ou tinham outra razão para perder o imperdível, e temos aí mais quatro Sesis cheios, no mínimo. A platéia na noite em que fui era formada em boa parte por gente da idade dele ou da minha, que há mais de 30 anos vive com suas músicas e com a lembrança de suas músicas, mas também tinha muita gente nascida depois, até, do Figueiredo, se é possível conceber tal coisa. Por qualquer cálculo, um público e tanto.
Por qualquer lógica, um artista assim - ou como a Maria Bethânia, que está lotando o Canecão do Rio todas as noites - deveria estar sendo tocado nas rádios e nas TVs do país todos os dias, pois só uma falta de interesse do público justificaria sua ausência. E um público que lota quatro Sesis completos e mais quatro hipotéticos, com todo este frio, só é ignorado pelos programadores das rádios e produtores de TV por desatenção ou burrice, ou uma lógica misteriosa.
Pode-se argumentar que estes artistas são de exceção e mantêm seu público e seu prestígio justamente porque não são banalizados pela exposição permanente e se preservam para grandes e raros recitais. Mas Chico Buarque é apenas o exemplo mais notório da boa música popular brasileira virtualmente banida dos ares do Brasil, e vá perguntar aos outros banidos se eles não prefeririam os cachês e direitos autorais da exposição em vez do seu prestígio preservado no exílio. Nada contra os reginaldos rossis, os xatozinhos e xiriris e os pagodeiros, que também fazem música brasileira, às vezes até boa, e os roqueiros e seu grande público. Mas de vez em quando - mesmo como o lamento longínquo de alguém querendo voltar para casa - a boa música popular brasileira poderia ser ouvida no rádio e na TV. Público, está provado, não falta.
No sábado, Marcelo, saxofonista, e Chico Batera, legendário baterista, ambos da banda do Chico, deram uma canja no Café Concerto da Mario Quintana. E lá pelas tantas o próprio Chico levantou-se da sua mesa e foi cantar. Disseram que é a primeira vez que ele faz isso na vida. O velho Majestic foi cena de mais um acontecimento histórico na vida da cidade.
Zero Hora - Luis Fernando Veríssimo
Teve uma vez no Antonio's, do Rio. Nós estávamos com o Glauco Rodrigues e a Norma, que ele conhecia de Roma. Ele sentou à nossa mesa, disse que estava aproveitando um rápido habeas corpus concedido pela Marieta, não podia demorar. Isso há uns 200 anos. Depois a dona Eva proporcionou um encontro no Theatro São Pedro, quando ele esteve aqui da última vez. Trocamos alguns silêncios, ele também não podia demorar. Nos cruzamos no Salão do Livro de Paris, no ano passado, mas nos perdemos na multidão. Trocamos abanos durante a Copa do Mundo, de longe. Este ano a Lúcia falou com ele pelo telefone, para transmitir um pedido. Depois ele fez uma gentileza com a nossa filha, a Fernanda, que estava dirigindo o Centro de Estudos Brasileiros, em Moçambique. Telefonou para explicar por que não podia atender ao pedido.
Disse "Aqui é o Chico Buarque" e a Fernanda disse "Aqui é o Papa". Há dias nos falamos pelo telefone, ele perguntou se eu tinha topado mesmo fazer o encontro de amanhã, eu disse que sim, combinamos que sempre haveria a possibilidade de o mundo acabar antes e nos salvar. Tudo isso para dizer que só agora, finalmente, espero, vou poder dizer "Muito prazer", com algum vagar, ao Chico Buarque. Um "muito prazer" não-protocolar, abrangente e retroativo, significando que foi um imenso prazer não apenas conhecê-lo mas ser seu contemporâneo, eu e todo o Brasil. Vou agradecer por todos estes anos, pelas músicas e a poesia, pelas peças e os livros, e pelo exemplo.
Zero Hora - Luis Fernando Veríssimo
he New York Times
RIO DE JANEIRO -- To say that Francisco Buarque de Hollanda is Brazilian music's best-kept secret would hardly be fair.
After all, a recent news magazine poll here named him the country's musician of the century, ahead of Antonio Carlos Jobim, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil, the composer Heitor Villa Lobos and even Carmen Miranda.
But while the others have enjoyed international renown, the career of Chico Buarque, as he is known, has largely been confined to Brazil. In addition, he is most celebrated as a lyricist, with a command of language so agile and clever that he has developed parallel careers as a playwright and a novelist working in Portuguese, which for all its liquid grace has little projection abroad.
After keeping a low profile while other performers of his generation pursued success abroad, Buarque (pronounced boo-AHR-key), 54, has re-emerged with a burst of activity. He recently released his first CD of new songs in five years, undertook a rare concert tour, created a Web site offering the lyrics of more than 200 of his songs, and began work on a song book intended to be the definitive distillation of his 35-year career.
An adoring nation welcomed his return, assuring critical and commercial success for his live performances and the CD, a soulful collection of sambas and ballads called "As Cidades" ("The Cities"). In a review of the album, Tom Ze, the eccentric Brazilian composer who is an avant-garde favorite in the United States, said, "So much beauty is illegal, it's subversive, it's Fidel Castro and Jesus Christ."
Explaining his return to the stage, Buarque said: "When you have a new record, the songs themselves are asking to be sung. The shows exist as a function of those songs, but there's also an audience out there that has known me for 30-plus years, knows the lyrics to all the old songs by heart and likes to sing along. My task is to find a way to please them so that I can have the pleasure of singing the new songs for myself."
Buarque came to prominence in the early years of the military dictatorship that ruled Brazil from 1964 to 1985, and initially was regarded as a protest singer with bossa nova roots. Several of his most popular compositions were banned by military censors, and in 1969 he went into exile in Italy.
After his return home, many of the songs he wrote, full of untranslatable puns and double meanings, continued to address social issues, and he remained a critic of the Brazilian government and a man of the left. But as he matured he moved away from lyrics that, as he put it, relied on "artifices that seem incomprehensible today." He turned into a writer of undulating sambas and love songs brimming with romance.
"Even the handful of my songs most often cited as examples of political resistance are sambas with a happy sound," he said. "People may be protesting, but they are dancing while they do it."
Largely a self-taught musician, Buarque prefers to emphasize his compositional skills and his sense of harmony. But Veloso, the singer, describes him as "a virtuoso of rhymes and verbal rhythms," and others, like the film director Ruy Guerra, who is making a movie based on one of Buarque's novels, are most struck by his talent for wielding language.
"He writes songs, he writes novels, he writes plays," Guerra said. "From his very first songs, you can see he was fascinated by language, and for a long time people saw him only as a great lyricist. But today everyone has to admit he is one of the biggest musical talents and poets that Brazil has ever had, and that has enabled him to become one of the country's strongest cultural references."
For years Buarque was the songwriting partner of Jobim, the father of the bossa nova movement, who once described him as a "troubadour, poet and singer who annoys tyrants and brings joy to so many others."
Buarque has a drawer full of tapes given to him by Jobim, who died in 1994, and by the Argentine composer Astor Piazzolla and others who wanted him to put words to their melodies.
"I'm afraid those tapes are going to stay where they are because those partnerships were born of friendship and conviviality, from the pleasure of delivering the song to a partner who had challenged me by giving me a piece of music and saying, 'Let's see what you can do with it,"' Buarque said during an interview in his study, which has a breathtaking view of the Rio skyline and a shelf of dictionaries and encyclopedias. "There was very little professionalism in those songs we wrote and a lot of camaraderie."
If Buarque is less prominent outside Brazil, that is largely by choice. His aversion to touring is well known. With the substantial royalties he earns from the hundreds of versions of his songs that have been recorded by other Brazilian artists, he has little financial need to work abroad.
"It's not that I haven't had invitations to perform in the United States," he said. "But for you really to have a following there, you need to truly dedicate yourself to the effort. You need to go there frequently." He added, "I don't have the time or the ambition for that."
Even in Brazil, Buarque avoids the stage. From 1975 to 1988 he did not perform in concert, and the current tour based on his latest album is only his second this decade. The shows are drawing a predominantly middle-aged audience that continues to see Buarque as Brazil's answer to Bob Dylan.
"Chico is one of the biggest artists of all time, a classic unto himself, but he doesn't like to play live, which makes him the exact opposite of me," said Gil, the pop star whose most recent American release, "Quanta Live," won a Grammy Award this year. "He doesn't make an effort to cultivate a magical, electrifying presence onstage. Every five years or so, he does a tour, and that's basically it. He'd rather write a book than play to an audience."
Buargue has written two novels, "Estorvo" and "Benjamim," hermetic portraits of social misfits that became best sellers here. "People bought it as if it were a record," Buarque said of the first book, which was published in the United States as "Turbulence" (Pantheon, 1993).
"When I am writing a book, my guitar is always at hand, but I don't have the slightest interest in music," he said. "The same idea, the first embryo, can serve just as well for a 200-page novel as for a song with 15 couplets, but I think of my literature as another universe. If I'm working on a record, then any idea I have goes right into a song, even if it would be a good idea for a novel or story."
Buarque has written four acclaimed plays, including "Gota d'Agua," a retelling of the Medea legend in a suburban Rio setting, and "Opera do Malandro," an adaptation of Bertolt Brecht's "Threepenny Opera" with a very Brazilian libretto and score. But most of his admirers hope that he will be less promiscuous with his talent and devote time to his initial calling, which these days he ruefully describes as "a youngster's trade."
"Chico is today the most complete artist in Brazilian popular music, a genius of a lyricist, a marvelous melodist and a singer with a very personal voice and timbre," said Almir Chediak, editor of the "Chico Buarque Song Book," which is to be published here this year. "He is modern in the very best sense of the word, but his music is eternal. So long as there is a Brazil, people are going to be singing the songs of Chico Buarque."
Jornal da Tarde
Antes que o cordial cidadão brasileiro Francisco Buarque de Holanda se despeça do público paulistano no Palace em mais um de seus esporádicos, mas também magníficos shows, este imodesto e certamente intrometido escriba pede vênia para tecer considerações esparsas sobre uma página que Mauro Dias produziu no Caderno 2 do Estado sobre a letra de Construção.
A página tinha duas importantes motivações. A primeira era o chamado gancho jornalístico. Durante muito tempo, Construção só pôde ser ouvida no arranjo original (assinado por Rogério Duprat), mercê dos óbvios predicados deste. Mas no show em fim de temporada nesta desvairada Paulicéia, onde o autor foi criado e estudou arquitetura, este ousou apresentá-la em roupagem nova, também de gala, sob os cuidados de linha e tesoura de Luís Carlos Ramos. Valeu. E basta.
Havia outro motivo, talvez mais relevante: Construção é uma definitiva obra prima da música brasileira. Figura ao lado de Ô Abre Alas, O Teu Cabelo não Nega, Feitiço da Vila, Aquarela do Brasil, Carinhoso, Desafinado e Águas de Março como produto antológico, graças, sobretudo, à letra precisa e instigante.
Os convidados de Mauro, todos letristas competentes, deram notáveis contribuições ao entendimento dessa preciosidade retomada pelo autor. Mereceram destaque, se não me trai a memória, pois cito ao sabor dela, sua inédita e inusitada estrutura de quebra-cabeças e a ousadia, à Maiakóvsky, de dar um tratamento formal revolucionário a um conteúdo temático rebelde em si mesmo, qual seja a morte de um peão de obras caído do andaime.
Sem ser um especialista, gostaria de chamar a atenção para essa ousadia formal. Chico, o letrista, opera com as dificuldades próprias da língua para entregar ao ouvinte as óbvias facilidades permitidas por seu gênio inventivo. O inglês é a língua da poesia (e sobretudo dos poemas orais e das letras, as lyrics, de canções), por ser predominantemente um idioma constituído por palavras de poucas sílabas, muitas monossilábicas, o que facilita a distribuição das tônicas, que dão aos versos o ritmo que lhes cabe. Ao traduzir poemas de W. B. Yeats e do padre Gerard Manley Hopkins, pude vislumbrar as dificuldades de encontrar ritmos semelhantes em nosso universo vocabular, com presença maior de polissílabos e, por isso mesmo, maior freqüência de sílabas átonas.
Poetas da superfície chorarão sobre a sofisticação rítmica necessária para escandir os vocábulos que Camões burilou. Não Chico, poeta afeito ao ar rarefeito dos píncaros. Ele vai além e explora a riqueza semântica da composição de versos com polissílabos, radicalizando a dificuldade rítmica com o uso de vocábulos proparoxítonos. A letra de Construção chama atenção exatamente pela proliferação das rimas internas (talvez fosse o caso de defini-las como íntimas) nas últimas palavras dos versos.
Uma contradição em termos? E também um achado primoroso. Afinal, ela não cumpriria sua intenção de narrar - e denunciar, sem discursar, mas apenas relatando - o acidente de trabalho como um quebra-cabeças, se seu autor não tivesse tanta habilidade para explorar as nuances rítmicas que só os proparoxítonos peculiares às flores do Lácio permitem.
E assim, mexida a colher, este poeta da planície saúda a ave-vate (vôte), ora alçando vôo para outras paragens, mas sempre em busca de pouso em ninhos verbais que só seu talento alado sabe tecer.
José Nêumanne, jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, poeta e escritor, tem seu ninho de poeta tecido no Planalto da Borborema.
Época
Uma declaração de amor pelo show As Cidades
O show do Chico foi uma das coisas mais maravilhosas que vi nos últimos tempos. Uma das emoções mais inteiras e impressionantes que já tive. Os anos passando, e Chico, como artista maravilhoso, foi sedimentando seu talento. Esse show é uma prova disso. O público chegava no Canecão, sentava, e aí vinha o Chico, desfiando aquelas canções belíssimas, com um roteiro extraordinariamente bem-feito. O show é lindíssimo. É uma catarata de palavras e melodias bem encontradas. Que fluem com uma naturalidade, que tocam em pontos de muita profundidade e beleza. O público fica louco. Chorei quando vi o novo show de Chico.
Eu adoro a música "Carioca". Embora ninguém fale disso, Chico de fato é muito paulista. Ele nasceu no Rio, mas por mim ele é paulista. Eu o conheci em São Paulo, ele cresceu em São Paulo, se educou em São Paulo, o pai dele era paulista, a casa dele era em São Paulo. Ele se mudou para o Rio depois que já era um homem. As canções que fizeram de Chico Buarque o que ele é foram todas compostas em São Paulo. São canções paulistas. Mas ele não toca muito no assunto, ele ficou como carioca e ponto final. E os paulistas, por sua vez, não reivindicam isso. Eu acho isso uma coisa misteriosa! Isso revela muito sobre São Paulo.
Não quero encher o saco do Chico com essa história. Já encho muito o saco dele, normalmente, porque sou muito falastrão e ele é muito calado. Eu falo muito as coisas que penso, e o Chico acha isso um pouco chato. Mas ele gosta de mim. Quando começaram a sair notícias no jornal sobre o disco dele, que não por acaso chama-se As Cidades, li que uma das músicas chamava-se "Carioca". O disco é todo espetacular, mas essa música resume tudo o que penso sobre o trabalho e o show. Quando ouvi "Carioca", percebi que a canção tinha uma levada algo baiana, algo axé. Aquela mistura de marcha-rancho com samba leva para a Bahia.
Vamos voltar no tempo. Quando a Mangueira fez um desfile em homenagem aos baianos (eu, Bethânia, Gal e Gil), a crítica caiu em cima, os jornais meteram o pau na escola, e a Mangueira quase caiu do Grupo Especial. Anos depois a Mangueira homenageou o Chico, e todo mundo achou maravilhoso. Mas os autores do samba eram paulistas, e eu pensei: "Que coisa reveladora!"
Isso tudo tem um significado sutil e profundo para mim. Quando fui ver o show, Chico canta um samba da Mangueira de décadas atrás que diz mais ou menos o mesmo que a música que fiz para agradecer o desfile em nossa homenagem. É uma letra que começa a enaltecer as coisas da Mangueira e termina sempre assim: Até parece que eu estou na Bahia. O Chico incluiu a música no show e... eu chorei. Fechava toda essa história que penso sobre Chico, São Paulo, Rio, enfim... Eu fui até ele e disse: "Chico, eu vi o show pensando o tempo todo que ele tivesse sido feito para mim. Especialmente para mim".
Além de um talento imbatível e quase absurdo para o piano, Arthur Moreira Lima tem outro: criar e armazenar frases definitivas. Certo dia de irada melancolia, ele queixou-se num longo telefonema:
— Tem coisas que só acontecem com o Fluminense e comigo!
Bem que poderia ter esclarecido: "Com o Fluminense, comigo e com o Rio de Janeiro."
O aniversário de Chico Buarque em pleno mês de novembro, e que fechou o trânsito no final do Leblon, é uma dessas histórias da cidade.
Sem que ninguém saiba ao certo como é que tudo começou, o dramaturgo Mário Prata estava numa mesa do Final do Leblon tomando uma cerveja preguiçosa com Chico Buarque. E queixava-se:
— Sou o sujeito mais desafinado da história da humanidade.
Discreto, Chico tentou um consolo:
— Não seja exagerado.
Pratinha insistiu:
— Você fala assim, com esse ar superior, porque não sabe o que eu sofro. Desafino sempre, em qualquer ocasião: no chuveiro, no trânsito, cantando para dentro quando quero lembrar alguma velha canção... Não adianta, desafino o tempo todo. Na escola, era um horror: festa do Dia da Pátria, do Dia do Mestre, do Dia da Proclamação, uma desgraça. Eu abria a boca e sentia que todo mundo começava a rir em volta.
Todos os sons
Estamos publicando a biografia dos 20 músicos do século. Esse é o segundo fascículo do projeto O Brasileiro do Século, que começou com a eleição do esportista mais destacado. Convém lembrar que a indicação dos vencedores obedece a um rigoroso processo. Primeiro, um júri de 30 personalidades indica 30 destaques. A partir dessa lista, o leitor é convocado a escolher os premiados, indicando sua preferência numa cédula encartada em ISTOÉ.
Se a escolha do esportista do século foi polêmica porque ficou polarizada entre Ayrton Senna e Pelé (com a vitória de Senna), o prêmio da Música, certamente, causará muita discussão por razão oposta: o excessivo número de candidatos. Como explicar o fato de Chiquinha Gonzaga e Carmen Miranda ocuparem as duas últimas posições desse seleto grupo, se não pela juventude do eleitorado? No mesmo caso se enquadram Cartola (representando a nobreza do samba dos morros cariocas) e Lupicínio Rodrigues (o mestre da canção da dor-de-cotovelo). É de se louvar o reconhecimento a Villa Lobos, um erudito que ganhou um lugar merecido na memória popular.
Entre os contemporâneos, a briga foi acirrada. Na apuração dos votos que chegavam à redação de ISTOÉ, o primeiro lugar foi ocupado sucessivamente por Chico Buarque, Tom Jobim e Roberto Carlos, entre outros, indicando que o resultado final seria apertadíssimo. O leitor, ao final, escolheu Chico, com 76,48% dos votos. Se a soma dos percentuais de todos os indicados é superior a 100, a explicação é simples: cada cédula tinha dez nomes assinalados, e não apenas um. Chico Buarque recebeu o voto de 76,48% dos leitores e muitos (a maioria) deles também votou em Tom Jobim, por exemplo, que abocanhou 73.78% das indicações.
"Vovó, você já está muito velha e quando eu voltar eu não vou ver você mais, mas eu vou ser cantor de rádio e você poderá ligar o rádio do Céu, se sentir saudades."
(Bilhete de Chico Buarque a avó Heloisa, quando tinha oito anos e estava de partida com a família para a Itália)
Contar a história dos gênios da música popular é tentar separar mito e realidade. Com Francisco Buarque de Hollanda, carioca criado em São Paulo, 54 anos, não é diferente. Os amigos contam que Chico tem o hábito de criar situações absurdas para exercer um humor surrealista, do qual o bilhetinho para a avó, em 1952, é um aperitivo. A história que, distraído, o poetinha Vinícius de Moraes, amigo família, sentou no sofá em cima do bebê Chico, quase encerrando prematuramente a brilhante carreira do futuro compadre e parceiro, bem, essa história é lenda. Ou quase, porque o episódio, de fato, ocorreu, mas Vinícius sentou em cima de Cristina uma das quatro irmãs do compositor. Chico Buarque é tímido? Vamos aos fatos. Era envergonhado, é verdade, a ponto de o diretor de tevê Fernando Faro pedir aos câmeras que o focalizassem de baixo para cima, única forma de captar a imagem do rosto do cantor. Mas, aos 18 anos, para comemorar a aprovação no vestibular, subiu na mesa de um bar e fez um discurso jogando ovos para cima.
Caretas do Golias
Já cantor de sucesso, em show coletivo num estádio em Patos de Minas (MG), pregou outra peça. O comediante Ronald Golias costuma trazer para a vida real os tiques nervosos de seus personagens, como franzir a testa ou piscar um olho insistentemente. Chico inventou que Golias estava fazendo caretas porque havia perdido as lentes de contato. Logo havia dezenas de pessoas à procura das lentes de Golias no gramado. A veia dramática do compositor existe muito antes de ele se consagrar com peças como Calabar e Ópera do malandro. Ao receber o primeiro cachê - 50 mil cruzeiros, ou US$ 30 - em 1964, enfiou o dinheiro no bolso e foi visitar uma namorada no interior paulista. Convenceu o amigo e colega de faculdade, o arquiteto Carlos Jaguaribe Ekman, o Barão, hoje com 56 anos, a acompanhá-lo. "A viagem era longa, a gente ia de pé no ônibus e bebia cachaça para agüentar", conta Barão. Chico inventou que era sul-africano ao registrar seu nome no hotel. A mulher olhou por cima do óculos e comentou: "Pensei que os africanos fossem todos pretos." Barão, cúmplice, retrucou: "Olha o cabelo dele, todo enrolado." Chico, que até então estava calado, começou a falar num idioma que ele criou naquele exato instante.
Você Sabia?
Quando era aluno da faculdade, comprou gaze e mercurocromo na farmácia e fez curativos para comover uma moça do pensionato que não lhe deva bola. Desceu do AeroWillys emprestado da mãe e tocou a campainha, com o braço "quebrado" e a cabeça enfeixada. Ela morreu de dó
Reconstituição do crime
Há cinco anos, no restaurante Fiorentina, no Rio, discutiu com um jornalista que desancara o pau em sua obra. Dias depois, chamou alguns amigos para a "reconstituição do crime". O barman fez o papel de seu oponente. Os funcionários da cozinha ocuparam as mesas como se fossem clientes. Chico chamou o garçom e pediu um uísque, exatamente como fizera no desagradável entrevero. Saiu espalhando que fizera a "reconstituição" e todos os que dela participaram concluíram que ele tinha toda a razão em espinafrar o rival. No Fiorentina, outra vez, aproveitou a ida de um companheiro de copo ao banheiro para chamar o maitre: "Sabe aquela reportagem falando mal de vocês? Foi ele que escreveu", inventou. Ao voltar, o amigo foi cercado de mimos. Empanturrado de cerveja, não podia nem pensar em comer, mas os garçons não paravam de encher a mesa. Quando, enfim, conseguiu levantar, ainda ouviu do maitre: "Aceita uma sobremesa?"
O talento de manipular situações é coisa de bruxo, mas Chico é apenas o filho de dona Amélia, carioca, torcedora fanática do Fluminense. Ela ninava Chico com uma estranha canção, a escalação de um do times do tricolor: "Castilho, Píndaro e Pinheiros..." O nenê fechava os olhos embevecido (hoje é o centroavante do Politheama, time que ele próprio fundou). Aos 14 anos, teve um surto religioso. Um professor de História do colégio aliciou 16 dos 25 alunos da classe para os Ultramontanos, embrião da TFP (Tradição, Família e Propriedade), de extrema direita. Previam que o juízo final estava perto e só iam sobreviver os eleitos de Deus. Para entrar nesse time, Chico aceitou até o sacrifício de largar o futebol e aderir à peteca, que os fanáticos achavam mais comportada. Foi demais. O pai mandou Chico para um internato no interior de Minas, até passar a febre de beato.
Em 1963, aluno da FAU Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, Chico, líder nato, trazia os colegas para estudar em casa. Mas os rapazes se dedicavam a campeonatos intermináveis de jogo de botão. Eram intermináveis porque, segundo testemunhas idôneas, ao pressentir que ia ser desclassificado, Chico virava a mesa e mudava a regras, quando não encerrava prematuramente o torneio. Isso se a tática de da sumiço no cronômetro não funcionasse. Passava da 11 e meia da noite, quando batia a fome e os moços corriam até o Riviera, na esquina da Consolação com Paulista. No dia seguinte ainda curando a ressaca, o jeito era tentar adiar a entrega do trabalho.
Você Sabia?
Aos 17 anos, foi preso depois de "puxar" (eufemismo usado na época para a prática de roubar um carro, dar uma voltinha e devolvê-lo intacto ao dono, que era moda entre os rapazes de classe média) um Peugeot. Tentou fazer o automóvel pegar no tranco, quando chegou a polícia. Passou a noite na cadeia junto com um garoto que havia roubado um cavalo. No dia seguinte, a foto de Chico estava estampada no jornal.
Verniz das almas
Os calouros eram disputados à tapa pela Juventude Universitária Católica (mais tarde Ação Popular) e o Partidão (Partido Comunista Brasileiro). Para envernizar a alma dos calouros, eram promovidas audições de música clássica entremeadas com discussões políticas no porão da escola, onde ficava o diretório acadêmico. "Era um negócio horroroso. A gente era obrigado a escutar concertos malgravados em aparelhos de som que eram uma porcaria", lembra o ex-colega Barão. Foi, portanto, quase como um protesto que Chico passou a levar o violão para o porão. Havia improvisos de sátira ao presidente Castello Branco (Todo povo tem um osso/o nosso é um presidente sem pescoço) e à jovem guarda de Roberto Carlos, que os jovens intelectuais achavam lixo cultural. Depois de alguns copos de caninha Pitu, Chico e o cantor Toquinho eram a dupla Os Jipes, gozação com Os Vips, que fazia sucesso na época.
Chico trocou, enfim, a prancheta pelo violão. A chance apareceu no programa Primeira audição, da TV Record, em 1964. O primeiro disco saiu em 1965, Pedro Pedreiro (que esperava o trem ao longo de 60 versos, o que fez com que um produtor do Chacrinha, preocupado com o exíguo tempo da televisão, lhe pedisse: "Não dá para esse trem chegar mais cedo?"). No ano seguinte, estourou com A Banda, motivo de crônica entusiasmada de Carlos Drummond de Andrade. "A felicidade geral com que foi recebida a passagem dessa banda tão simples, tão brasileira e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de pouco mais de 20 anos botou na rua, alvoroçando novos e velhos, dá bem a idéia de como andávamos precisando de amor," O que aconteceu depois todo mundo sabe. Chico Buarque foi eleito pelos leitores de ISTOÉ o Brasileiro do Século na Música. O resto é silêncio.
Você Sabia?
Carolina ele compôs num avião ou num aeroporto, não lembra, sabe que foi "nas coxas". Inscreveu num festival da Globo para evitar pagar uma multa por ter abandonado por excesso de timidez o programa Shell em show. Para surpresa de Chico, a canção tirou terceiro lugar, embora ele não a apreciasse. Para piorar, Carolina foi gravada por Agnaldo Rayol num disco com as 12 preferidas do general Costa e Silva
JURADOS
Nelson Motta - jornalista e compositor
Danilo Caymmi - cantor e compositor
José Mauricio Machline - empresário
Júlio Medaglia - maestro e arranjador
Jaques Morelenbaum - maestro e arrandador
Domingos Pellegrini - escritor
Gilberto Tinetti - pianista
Renato Borghetti - músico regionalista
Fernando Brant - compositor
Cristina Buarque - cantora e pesquisadora
Roberto Menescal - compositor
Ezequiel Neves - produtor
Antonio Bivar - escritor
Zuza Homem De Mello - musicólogo
Falcão - cantor
Tom Zé - cantor e compositor
Ricardo Chaves - cantor
Almir Satter - cantor e violeiro
João Nogueira - sambista
José Miguel -Wisnik compositor
Elba Ramalho - cantora
José Carlos Capinam - poeta e compositor
Diogo Pacheco - maestro
Leci Brandão - sambista
Zé Ramalho - cantor
Arthur Dapieve - crítico
Tárik De Souza - crítico
Eduardo "Peninha" Bueno - escritor
Sérgio Cabral - historiador
José Ramos Tinhorão - historiador
RANKING
Chico Buarque - 76,48%
Autor de "A banda" e "Apesar de você" um dos poetas mais exuberantes da MPB.
Tom Jobim - 73,78%
Compositor popular brasileiro mais conhecido internacionalmente.
Vinícius De Moraes - 59,76%
Poeta que deu qualidade à música popular.
Milton Nascimento - 57,79%
Voz consagrada em todo o mundo
Caetano Veloso - 56,66%
Ideólogo da tropicália e letrista incomparável
Villa-Lobos - 52,51%
Compositor erudito mais importante do Brasil
Luiz Gonzaga - 52,51%
o Rei do Baião
Elis Regina - 50,42%
Cantora de técnica impecável
Noel Rosa - 48,61%
Um dos maiores sambistas cariocas
Gilberto Gil - 43,92%
Cantor e instrumentista de primeira linha.
Pixinguinha - 43,58%
Senhor absoluto das rodas de choro
Roberto Carlos - 40,30%
Cantor de maior popularidade
Ari Barroso - 35,97%
Pioneiro e inovador criou o samba-exaltação
Dorival Caymmi - 29,03%
Retratou a vida dos pescadores da Bahia
João Gilberto - 27,85%
Inventou um novo modo de cantar e tocar violão
Paulinho Da Viola - 25,23%
Nobre representante do samba carioca
Cartola - 22,34%
Um dos principais nomes da história do samba
Lupicinio Rodrigues - 20,47%
O mestre da dor-de-cotovelo
Chiquinha Gonzaga - 20,31%
Combinou o erudito e o popular
Carmem Miranda - 16,42%
Artista brasileira de maior sucesso no Exterior.
Chico insistiu:
— Ora, todo mundo desafina, tirando, é claro, o João Gilberto e a Gal...
Para Mário Prata, a indiferença do amigo tornou-se insuportável. Fez então a confissão derradeira:
— Chico, eu desafino até em festa de aniversário. A criançada ri, maldosa, minha filha chora de vergonha, meu filho me fulmina com os olhos assim que começo o "Parabéns...".
Chico achou que aquilo havia passado dos limites, quis verificar. Pediu:
— Isso, eu quero ver. Canta, mas seja honesto: se desafinar de propósito, eu percebo.
Mário Prata se concentrou: mãos crispadas, olhos fechados, lançou à meia-voz:
— Parabéns pra você... nessa data querida...
Tomou fôlego numa breve pausa e, sem abrir os olhos, foi adiante:
— Muitas felicidades... muitos anos de vida...
Extasiado, Chico sorriu e admitiu: incrível, ele havia desafinado mesmo!
Mas nem teve tempo para o comentário: num instante explodiram nas mesas vizinhas os gritos de "Viva, viva!", e mais os aplausos, e imediatamente, sem que pudesse explicar nada, ele foi coberto de abraços, cumprimentos calorosos e um coro repetindo o que Mário Prata destroçara com sua inacreditável desafinação. O dono do bar bradou uma inédita rodada por conta da casa. Quem passava pela calçada somou-se à festa e, no meio da confusão, Mário Prata apoderou-se do telefone e começou a convocar os amigos para o aniversário de Chico Buarque no Final do Leblon. Aproveitou para convocar alguns jornalistas e também as moças que voltavam da praia e espiavam, curiosas.
Alguém ligou para a casa do aniversariante para confirmar o local da festa e acabou convencendo uma atônita Marieta a ir rapidamente até o Final do Leblon levando as crianças e, claro, o indispensável bolo com as velinhas.
Uma hora depois, a festa havia tomado conta da rua Dias Ferreira. Um guarda desviava o trânsito, fotógrafos tratavam de descobrir celebridades, e moçoilas querendo se fazer passar por repórteres tentavam descobrir quantos anos Chico estava fazendo. Houve quem levasse presentes, e um repórter francês gravou declarações exclusivas que transmitiu dali mesmo, pelo telefone do bar, para o seu jornal em Paris.
Pouco depois das nove e meia o aniversariante foi embora ao lado da mulher, das filhas e, claro, de Mário Prata. A festa continuou noite adentro.
Ninguém parecia dar a menor importância para o fato de Chico Buarque ter nascido num dia 19 de junho e aquilo tudo estar acontecendo em pleno mês de novembro. Porque no Rio de Janeiro, é assim: não importa o dia em que você nasceu; qualquer dia é dia, qualquer hora é hora para comemorar alguma coisa - até mesmo um aniversário que não aconteceu. (1994)
livro Quarta-feira, Editora Record - 1998
Eric Nepomuceno
Éramos três do Estadão lá em Paris, sem contar o meu querido Reali Jr.: o Chico Buarque, o Mateus Shirts e eu. Os três, cronicando. Para evitar que a gente escrevesse a mesma coisa, driblasse o mesmo tema, trocávamos fax (o compositor é contra e-mail).
No primeiro sábado, antes de sair a primeira dominical do Chico, chega o fax: "Com os meus botões." Um poema, como me diria depois o flamenguista Aluizio Maranhão nosso redator-chefe. Realmente um poema. Em Paris, entre os colegas jornalistas, não se falava noutra coisa.
Leio orgulhoso. Afinal, fui eu quem convenceu o poeta a escrever crônicas na Copa. Tinha certeza de que ia dar samba. A crônica falava dos times de botão do Chico e dos que todos nós tínhamos nos anos 50 e 60, pedaços de plásticos concentrados dentro de uma caixa de catupiri, com direito a talco e flanelinha. E todos os botões tinham nome, é claro. Mas tinha um pedaço na crônica:
"Certa vez fui apresentado a um antigo centromédio do Santos, o Formiga. Depois de um breve diálogo, o assunto esgotado, sem saber por que continuei a encará-lo. O silêncio se prolongava, incômodo, e ainda encasquetei de colocar a mão no ombro do Formiga. Com o polegar, comecei a pressionar de leve a sua clavícula, e me lembro que ele ficou um pouco vermelho. Então me dei conta de que, pela primeira vez na vida, conversava pessoalmente com um botão."
Muito bonito. Só que eu gritei:
— Passarinho! Isso é passarinho do Chico!
— O que que é passarinho?, me perguntou o Mateus abrindo uma garrafa de uísque com os dentes.
— O dedão na clavícula é passarinho!!!
Deixa eu explicar o que é um passarinho. Em 54, o Nelson Rodrigues escreveu uma crônica (acho que na última Hora) dizendo que a imprensa estava muito chata por falta de passarinhos. E explicava que antigamente era diferente. Que hoje (54) não se mentia mais. Uma vez houve um incêndio na Lapa, mandaram um repórter para lá e reservaram a primeira página. O repórter voltou desanimado: apagaram o incêndio com um regador de jardim. Mas não aconteceu nada que dê notícias? Bem, disse o repórter, tinha um passarinho dentro de uma gaiola muito nervoso. Foi o bastante: "Fogo ameaça fauna na Lapa."
Era isso: o Nelson estava dizendo que os jornalistas brasileiros não mais aumentavam a notícia, não criavam nenhum passarinho. E nas nossas conversas intercronistas a palavra passarinho é muito corriqueira. Eu, por exemplo, me considero um passarinheiro de marca maior.
Então, pra mim, o dedão na clavícula do Formiga era passarinho. Estava na cara que era. Basta conhecer um pouquinho o Chico. Aliás, um bom, um excelente passarinho. Mas, passarinho.
Passo um fax para a casa do Chico lá em Marais. Não deram dois minutos, toca o telefone. Era ele indignado. Não fala oi, nem nada. Raivoso, atacando e se defendendo ao mesmo tempo, parecia a seleção da Nigéria em seus desengonçados momentos de glória. Ele estava mesmo bravo comigo:
— O dedão na clavícula é passarinho? O dedão na clavícula do Formiga é passarinho?
Nunca tinha visto o cara assim. Dei até um passo atrás lá no meu quarto. Fiquei sem jeito. Achei que eu tinha pegado pesado com ele. Afinal, a primeira crônica dele e eu dizendo que o dedão na clavícula era passarinho? Mas fiquei na minha:
— Desculpa lá, mas é. Você vai me desculpar muito, tá tudo muito bom, muito bonito mesmo, um poema e não sei mais o quê. Até você ficar sem palavras olhando para a cara do Formiga, tudo bem. Colocar a mão no ombro, tudo bem. Mas jogar botão com a clavícula do Formiga, pra mim é passarinho. Um excelente passarinho, diga-se de passagem.
— Você acha mesmo que o dedão na clavícula do Formiga é passarinho?
Eu achava mesmo:
— Acho!
Ele abre uma risada contagiante e mal consegue dizer, triunfal:
— Cara, eu nunca vi o Formiga na minha vida!!!
Istoé - 05/08/98 Mário Prata
Estado de São Paulo
Os dois conversaram sobre música, futebol e caipirinha num restaurante carioca
A esta altura, o Brasil instalou-se de vez na lista de países que aprenderam a reconhecer no chileno Antonio Skármeta um autor de êxito. Sua rápida passagem de três dias pelo Rio de Janeiro acabou de eliminar qualquer dúvida que o próprio Skármeta eventualmente pudesse ter a esse respeito. O lançamento de seu novo livro - os contos de Não Foi Nada - atraiu dezenas de leitores nas duas sessões de autógrafos realizadas na Bienal do Livro, sábado e domingo. E o romance O Carteiro e o Poeta já ultrapassou há muito, e com folga, a marca de vendas que dá direito a um autor ser considerado um best seller no Brasil.
Nesta sua segunda passagem pelo Rio no último ano e meio, Skármeta veio com Nora, sua mulher alemã de cabelos louríssimos e olhos azuis. Os dois puderam realizar uma antiga aspiração: conhecer Chico Buarque. Uns poucos telefonemas envolvendo um amigo dos dois cruzaram a cordilheira nas vésperas da viagem de Skármeta, e na noite de sábado, o encontro enfim aconteceu. Chico havia abandonado seu refúgio de Petrópolis, onde trata de compor as músicas para seu novo disco, e às 20h30 em ponto chegou ao restaurante Arlecchino, em Ipanema. Skármeta e a mulher chegaram dez minutos depois. Foi como um encontro de velhos conhecidos. E todo o êxito de O Carteiro e o Poeta não impediu que o escritor chileno se confessasse, de saída, um admirador ardoroso.
"Eu estava no exílio, na Alemanha, e um dos pontos que me aproximou de Nora foi o fato de ela ter quase todos os seus discos", contou rindo a Chico Buarque. "Aliás, acho que agora já posso confessar que, além de meu interesse por ela, havia outro muito forte: sua coleção de seus discos..."
Ao contrário do que poderia esperar num encontro desse tipo, quase não falamos de literatura: a conversa girou ao redor da estranha mania que os brasileiros têm, de tomar caipirinha feita com vodca ("Não entendo isso", protestou Nora, e Skármeta ameaçou um discurso de defesa radical da cachaça). Depois, falou-se de futebol e literatura: Skármeta queria saber se existe uma literatura forte no Brasil, tendo o futebol como tema. Espantou-se com as nossas respostas: não conseguimos recordar nada além de peças soltas, algumas de altíssima qualidade. Foram mencionados poemas de João Cabral de Melo Neto e Vinícius de Morais, e contos de Sérgio Sant'Anna, Rubem Fonseca, João Antônio e Fernando Sabino. Assim como quem pisa terreno perigoso, Skármeta arriscou:
— Eu sei, Chico, que você gosta de futebol. E qual o time do qual você mais gosta?
A resposta veio envolta num sorriso de indisfarçável orgulho:
— Eu tenho um time de futebol, o Politheama. Mas também torço pelo Fluminense.
A curiosidade do chileno concentrou-se em alguns aspectos da relação entre escritores e futebol. Por que será que ao contrário do que ocorre entre os músicos há tão poucos escritores que jogam futebol? O primeiro exemplo saltou em uníssono: Albert Camus. Chico vetou, enfático:
— Ele não era jogador de futebol: era goleiro. E goleiro não é jogador de futebol. Aqui no Brasil, quando a garotada joga, sobra para o gol quem é perna-de-pau. Aliás, até as meninas jogam no gol.
— Chico, você joga em que posição?
— Todas. Menos a de goleiro.
Skármeta bem que tentou defender os goleiros. Foi fulminado por uma pergunta marota:
— E você, joga em que posição?
A resposta veio cabisbaixa:
— Goleiro.
Chico arrematou, cheio de orgulho, com um silêncio piedoso.
A polêmica parou por aí. Até o fim da noitada, Skármeta não tornou a mencionar o tema. Teve tempo, em todo caso, de conversar sobre como era a censura no Brasil, sobre o método de escrita e de perguntar muito pelo processo político brasileiro. Falou-se de vinhos, de viagens, de comidas prediletas. A convite de Chico Buarque, fomos todos ao show de uma eletrizante Elba Ramalho, no Canecão. Na saída, Skármeta quis saber: "Ninguém desliga essa moça da tomada?"
Já na madrugada, no terraço lá de casa, vendo o contorno grave do Corcovado e a luz iluminando o Cristo Redentor, a conversa continuou, como entre velhos conhecidos. E aí foi a vez de Chico Buarque confessar, um tanto encabulado:
— Nos últimos 53 anos, não estive no Chile nenhuma vez.
Skármeta, é claro, entendeu. O convite veio de bate pronto. Só falta marcar a data.
do livro Cotidiano e mistério
Frei Betto
Poesia em forma de pessoa, Chico Buarque encarna os requisitos da obra poética: emoção, economia de palavras e agudo senso estético. Dentro dele faz muito barulho. Mas quem o conhece sabe que ele é quase silêncio, disfarçado de tímido, como quem observa o mundo espantado com o milagre da vida. Entre amigos, o vozeirão grave atropela sílabas, como se temesse a gagueira inexistente, e Chico fala de tudo e de todos, sem poupar irreverência. Entre estranhos, os olhos verdes brilham enigmáticos, luzeiros inefáveis, a boca tapa a fervura d'alma, o sorriso, entre maroto e contido, exibe as teclas de piano entre o sim e o não.
Diante do olhar canibal dos fãs, quase que Chico olha para trás, convencido de que não é com ele. Dane-se a cabeça idolatrada, mas ele se sabe de barro e sopro, exilado dessa imagem que a admiração alheia, avara, projeta na imaginação fantasiosa de quem, um dia, numa frase musical, viu-se arrebatado e identificado, no amor, ou na dor, no sentimento indelével que o poeta captou, fraseou e cantou.
Francisco Buarque de Holanda teve o privilégio de fazer 20 anos nos anos 60. Seresteiro precoce, cercado de livros e cordas na rua Buri, em São Paulo, trocou a régua e o compasso, da faculdade de Arquitetura, pela toada intimista da Bossa Nova, trazida ao lar pelo cunhado João Gilberto. Todavia, neste carioca branco de alma negra, o morro impregnou-se mais forte que a praia. Desconfio de que, no fundo, Chico lamenta não ter nascido na Estação Primeira de Mangueira, com todo o talento que Deus pôs nos pés e na magia dos brasileiros que fazem do futebol a arte de dançar em torno de uma bola.
Em 1964, a ditadura ameaçou os padres dominicanos de expulsão do Brasil. Prejudicados pela conjuntura política, apelamos aos amigos. No teatro Paramount, em São Paulo, promovemos o espetáculo beneficente Avanço, no qual Chico Buarque, cantor de platéias estudantis, fez sua estréia para o grande público. Havia também uns baianos muito novos, o irmão de Bethânia do Carcará, um ex-bancário chamado Caetano, todo timidez, e um amigo dele, ex-funcionário da Gessy-Lever, um tal de Gilberto Gil ...
Nasciam ali os trovadores que iriam desencantar a ditadura, embora forçados ao exílio e submetidos à censura. Deram-se as mãos na Passeata dos 100 Mil, em torno da igreja da Candelária, no Rio e, mais tarde, Roda Viva, de Chico, comprovou que teatro é espelho. Mirem-se nas mulheres de Atenas. Rostos macabros não gostaram de se ver refletidos. Quebraram o espelho, assim como os algozes de Antonio Maria acreditavam que jornalistas escrevem com as mãos...
Chico foi par a Europa, no aut-exílio inevitável. Fez espetáculos em favor dos exilados e deu às suas letras um tom mais profético que romântico. Aqui é o seu lugar e, de retorno ao Brasil, ousou quebrar o cálice e fazer ouvir a sua voz, convencido de que amanhã será outro dia. Foi para São Bernardo do Campo apoiar, com Vinícius, os metalúrgicos que, liderados por Lula, teimavam em sonhar um Brasil diferente.
Filho de famílias que há 100 anos conspiram em favor da democracia, Chico não é um militante, desses que exibem carteirinha de partido e atestado de tendência ideológica. Nem "militonto", que pula e palco em palco, acreditando que, com o seu violão, vai salvar a pátria e acabar com a fome no Brasil. Mas é um cidadão da utopia, impregnado da virtude da indignação. Esteta, tem a medida das coisas. Nessa arenga nacional, conhece exatamente o seu canto e, quando faz a noite, sua voz suave, de timbre acentuado e arroubos. Porque canta o que sentimos sem encontrarmos palavras, expressão agônica de nossos espíritos atordoados ou enamorados. E tece em letras os estorvos que impedem a vida de ser a arte de sonhar acordado.
Chico é ele e suas mulheres - Marieta, Silvia, Helena e Luiza. Quartenura. Ele é feito de detalhes - o que, aliás, importa em nossas vidas. Sua casa é um espaço democrático, onde candidatos, desde que progrssistas, expõem suas idéias e acolhem cíticas e sugestões dos artistas. Na Gávea, vi seu pai fazer 76 anos e cantar Sassaricando em latim. Aos 50 anos, para ele o tempo não passou na janela. Ele se fez geração. Na arte e no palco, transmuta-se em Carolina, numa dessas mulheres que só dizem sim, seresteiro, poeta e cantador, olhos olhos, ele se chama Mané e dobra a Carioca, sobe a Frei Caneca e se manda pra Tijuca na contramão. Aliás, sempre andou na contramão. Nunca esteve à toa na vida e, cantando coisas de amor, alia-se à esperança dessa gente sofrida que quer despedir-se da dor. Larápio rastaqüera, pai paulista, avô pernambucano, bisavô mineiro, tataravô baiano, ele gostaria de ser o mais exímio jogador de sinuca. Falso cantor, Chico é apenas um artista brasileiro.
Saibam que poetas, como os cegos, podem ver na escuridão. Nessas tortuosas trilhas, sofre o pânico cênico, admira Fidel Castro e, viciado em futebol, jamais se "miamizou". Quando no Rio, cidade submersa, os escafandristas e sábios decifrarem o eco de suas cantigas, amores serão sempre amáveis e cantores, duráveis. Porque a alma brasileira vai reter Chico para sempre.
Se do barro o Criador fez alguém com tanto amor, foi Chico.
No livro Sessão Passatempo
A casa, na Rua Buri, ficava perto do estádio do Pacaembu. Lembro de um vitrô, de um espelho enorme, todo bisotado, de um aparato antigo feito de cobre ou zinco (o que seria?), de uma escada que levava ao segundo andar e de muitos livros. E, claro, no meio deles, o mestre Sérgio Buarque de Holanda. Dona Maria Amélia serviu cafezinho ou uísque? Não recordo. E nem tampouco me lembro em que circunstâncias fomos, Maurício Tapajós e eu, dar com os costados por lá.
Perdemos a conta, Mauricinho e eu, das vezes que fomos a São Paulo assistir ao "Morte e Vida Severina" doJoão Cabral de Melo Neto, musicada pelo Chico. 1965, 1966? Não me lembro. Perto do teatro, e era o Tuca, havia um barzinho. Ali nos encontrávamos, antes e depois do espetáculo. Maurício, menos introvertido que eu, aprochegou-se logo de Chico - os dois com a mesma faixa etária, aí pelos 21 anos. Mas, engraçado, não vejo meu parceiro na foto do time que me acolheu como seu mais desastrado e ridículo goleiro, na única partida de futebol, aliás, de que participei na vida. Chico, Toquinho, João Evangelista - por onde andava Maurício? Deve ter ficado no Rio, integrando os movimentos políticos contrários à ditadura recém-instalada.
Falo da casa do professor Sérgio e me lembro do apartamento de Chico e Marieta na Lagoa, onde, claro, devo ter sido levado por Mauricinho - a essa altura dos acontecimentos, já amigo fraterno de Chico. Parceiro morto, nem assim hão de duvidar das palavras que dele ouvi: a invulnerabilidade do caráter de Chico, sua postura de artista, sua coerência, sua absoluta fidelidade aos verdadeiros amigos. Virgínia, ex-mulher de Maurício e mãe de Márcio e Lúcio, conta que, durante cinco meses seguidos, ela doente, teve seus filhos sob a guarda carinhosa de Chico e Marieta, que diariamente os levava para casa. Quando Chico ganhou o "Golfinho de Ouro", na surdina repassou o cheque do prêmio para seu ídolo, o compositor Ismael Silva, que vivia em estado de absoluta pobreza. Sem alarde. Como é de seu feitio. Me pergunto se não estarei invadindo a privacidade de Chico, contando essas coisas. Apenas tento dimensionar o grande homem que coabita o imenso artista.
Olho para nossa foto, os dois paramentados em verde-e-rosa, integrantes da Comissão de Frente da Mangueira em 1987, no enredo que homenageava Drummond. O primeiro ensaio foi lá em casa, Chico apareceu meio cansado, quando fui ver estava estirado num sofá da sala, dormindo. Me emputeço. Deveria estar é no meu quarto, na mesma cama que já embalou o sono de Mãe Quelé e da Divina Elizeth, onde Pixinguinha cochilou após alguns uísques. Tímido, ele jamais invadiria, sem pedir licença, o aposento de alguém.
Por Hermínio Bello de Carvalho
No livro Sessão Passatempo
Editora Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1995
O historiador escreve sobre seu filho Chico Buarque
A imagem que o público fixou de meu filho não é correta. Para o público, Chico é tímido (antes de tudo, tímido), bonzinho, retraído. Nada disso. Pelo menos em família e com os amigos, é completamente diferente, um rapaz brincalhão, extrovertido, bem para fora. Quando ele aparece em público, torna-se diferente. Talvez seja o medo de parecer ridículo. Mas podem crer, ele não é tímido, nem bonzinho. É, sem dúvida, uma boa pessoa. Mas não bonzinho, no sentido em que esta palavra é interpretada. Quando criança, jamais foi um rebelde. Posso assegurar que se tratava de uma criança normal.
Procurava sempre ser independente. E essa independência ele afirmava, procurando fazer tudo o que faziam os irmãos mais velhos. Nem um "amor de criança", nem um "enfant terrible". Normal. Não era nem ligado ao pai nem à mãe. Dava-se bem com todos. Com as irmãs, tias e avós. Quando viajamos para a Itália (nesse tempo tinha 8 anos), deixou para avó um bilhete: "Avó, vou para Itália. Quando eu voltar, provavelmente a senhora estará morta. Mas não se preocupe. Eu vou me tornar um cantor de rádio. É só a senhora ligar o rádio do céu que vai me escutar".
Desde menino, sempre se interessou por música e futebol. Jogo, não perdia uma irradiação. Seus ídolos eram Telê, do Fluminense, e Pagão, do Santos. Na Itália, torcia pelo Genoa. Da música popular, seus ídolos eram Ismael Silva, Caymmi e Ataulfo Alves. Mas tarde, João Gilberto, de quem procurava imitar o estilo. Não acredito que Noel exerça influência sobre Chico. A maior semelhança entre os dois é a temática: urbana. Caymmi, Ataulfo e Ismael marcaram mais que Noel. Chico também não é um compositor de classe média, como afirmam por aí. Não há dúvida, Noel e Chico também se assemelham um pouco, porque ambos enfocam temas urbanos. Nada mais. Aliás, há no Brasil uma mania de Noel! Qualquer compositor que surge é imediatamente comparado com o grande criador carioca. Creio que há um pouco de exagero em tudo isso.
Quando surgiu a bossa-nova, Chico se encontrou com ela. Apreciava muito João Gilberto e ouvia-o seguidas vezes. Vinícius, muito amigo da família, aparecia sempre em festas e Chico ficava a ouvi-lo, com grande admiração.
Desde cedo, Chico já tinha namorada. Sempre foi muito vivo e alegre. Jogava futebol nas ruas, como todos os garotos de sua idade. Quanto aos estudos, dedicava-se a eles principalmente às vésperas de exame. Estudava duas ou três horas seguidas, depois cansava e ia se divertir. Em 1962, quando terminou o curso científico, foi orador da turma, provocando muitas risadas com seu discurso cheio de humor.
O sucesso não o mudou essencialmente, chateia-o um pouco, apenas. Hoje, não pode sair às ruas sem que lhe venham pedir autógrafos. Para ir à praia, há dificuldades, só em São Conrado. Bem longe. Continua fiel aos amigos, embora não tenha muito tempo para se dedicar a eles. Assim que chega a são Paulo, telefona para todos, organiza noitada com eles. Chico sempre viveu em bando, com muitos amigos, uma verdadeira turma. Sua formação é, sem dúvida, paulista. Nasceu no Rio, mas quando completou 2 anos, mudamos para São Paulo. Aqui, passou toda sua infância. Preferiu fazer o científico porque achava que o curso clássico era coisa de mulher. Dado momento, escolheu um ramo bem aproximado do artístico: arquitetura. Ficava em casa criando cidades imaginárias. Todas tinham uma fonte no meio da praça: lembrança das fontes de Roma, onde moramos algum tempo. Chico, em vez de começar a falar, cantou. Desde que tentou se expressar foi através da música. Mas tarde, ficava com as irmãs aí pela sala, inventando música. Dizia que já que não conhecia de cor música de outros compositores, era obrigado a inventar as próprias. O sucesso veio de repente, sem que ninguém esperasse. Recebi a notícia de que Chico tinha ganho o Festival de Música Popular Brasileira com "A Banda", quando estava em Nova York. Um jornal norte-americano publicou a notícia. Claro que me senti muito orgulhoso. Cheguei à conclusão - o que uma revista publicou na época - de que, antes, ele era meu filho. E depois do festival eu passei a ser o pai dele. Não há posição melhor. Têm surgido boatos por aí, de que eu componho as músicas para ele. Mas, meu Deus, quem sou eu para ter tanto talento? Se eu soubesse escrever músicas como ele, há muito tempo não seria eu mesmo, mas Chico Buarque de Holanda. São boatos sem fundamentos, como muitos que vão por aí. Como essas notícias que circulam, afirmando coisas que jamais afirmamos. Um jornal carioca publicou que, após ver a peça "Roda Viva", eu tinha dito: "eu sabia que havia tudo isso aí dentro do meu filho". A frase talvez pudesse ter sido dita por mim, mas que não disse, não disse. Das suas músicas todas, gosto mais de "A Banda", "Pedro Pedreiro", "Roda Viva" e "Carolina". Nunca me esquecerei do dia em ouvi "A Banda" pela primeira vez, em Nova York, na casa de um amigo. Foi uma grande emoção. Não obstante todo o sucesso, o qual não lhe provoca muito prazer, é bem capaz de Chico largar tudo isso e partir para uma outra coisa qualquer, bem diferente. Ele é bem capaz disso. Muito inquieto. Muito inteligente. Sempre gostou muito de ler. Guimarães Rosa é um de seus autores preferidos. Quando fez "Pedro Pedreiro", inventou uma palavra: penseiro.
Talvez inspirado em Guimarães Rosa, que também era dado a inventar palavras.
Tolstoi e Dostoiévski também eram seus favoritos. Assim como Kafka. Em geral, ele ia lendo tudo o que caía em suas mãos. A música é responsável por ele ter abandonado o curso de arquitetura, decisão que tomou sozinho. O sucesso abriu uma impossibilidade de estudar. Excesso de compromissos, solicitações. Creio que, na música, ele se realiza mais, se torna muito mais feliz. É preferível um compositor realizado, que um arquiteto frustrado, como todo mundo sabe. Quando vai compor, geralmente fica isolado, no quarto, sozinho. A música e a letra sempre nascem juntas, uma ligada à outra, indissoluvelmente. Encontrou grande dificuldade em musicar "Morte e Vida Severina", porque a letra não era sua. Desde que aprendeu a tocar violão, com sua irmã Heloisa, hoje casada com João Gilberto e morando em Nova York, nunca mais deixou de compor. Sua adolescência foi normal, sem nenhum conflito especial. Posso considerá-lo um rapaz feliz. Suas primeiras composições falavam de amor. Mais tarde, quando ingressou na faculdade, passou a fazer música de participação, sendo que a primeira foi "Pedro Pedreiro". A família ficou um pouco tonta com o sucesso tão fulminante, tão rápido. Mas já nos acostumamos. Chico é que não se habituou a ele. Ficou muito contente de ter ido a Paris, porque ninguém o conhecia por lá. Talvez o sucesso tenha provocado uma espécie de defesa, tornando-o um pouco retraído. De fato, meu filho não é tímido. É bem diferente a imagem que temos dele. Trata-se de uma pessoa normal, alegre, sem problemas graves de personalidade. Eu sei o que eu estou falando. Sou seu pai há 23 anos.
Sérgio Buarque de Hollanda
Mário Prata
Eu me lembro até da cara do Samuel Wainer quando eu disse que estava pensando em entrevistar o Julinho da Adelaide para o jornal dele. Ia ser um furo. Julinho da Adelaide, até então, não havia dado nenhuma entrevista. Poucas pessoas tinham acesso a ele. Nenhuma foto. Pouco se sabia de Adelaide. Setembro de 74. A coisa tava preta.
- Ele topa?
- Quem, o Julinho?
- Não, o Chico.
O Chico já havia topado e marcado para aquela noite na casa dos pais dele, na rua Buri. Demorou muitos uísques e alguns tapas para começar. Quando eu achava que estava tudo pronto o Chico disse que ia dar uma deitadinha. Subiu. Voltou uma hora depois.
Lá em cima, na cama de solteiro que tinha sido dele, criou o que restava do personagem.
Quando desceu, não era mais o Chico. Era o Julinho. A mãe dele não era mais a dona Maria Amélia que balançava o gelo no copo de uísque. Adelaide era mais de balançar os quadris.
Julinho, ao contrário do Chico, não era tímido. Mas, como o criador, a criatura também bebia e fumava. Falava pelos cotovelos. Era metido a entender de tudo. Falou até de meningite nessa sua única entrevista a um jornalista brasileiro. Sim, diz a lenda que Julinho, depois, já no ostracismo, teria dado um depoimento ao brasilianista de Berkely, Matthew Shirts. Mas nunca ninguém teve acesso a esse material. Há também boatos que a Rádio Club de Uchôa, interior de São Paulo, teria uma gravação inédita. Adelaide, pouco antes de morrer, ainda criando palavras cruzadas para o Jornal do Brasil, afirmava que o único depoimento gravado do filho havia sido este, em setembro de 1974, na rua Buri, para o jornal Última Hora.
Como sempre, a casa estava cheia. De livros, de idéias, de amigos. Além do professor Sérgio Buarque de Hollanda e dona Maria Amélia, me lembro da Cristina (irmã do Julinho, digo, Chico) e do Homerinho, da Miucha e do capitão Melchiades, então no Jornal da Tarde. Tinha mais irmãos (do Chico). Tenho quase certeza que o Álvaro e o Sergito (meu companheiro de faculdade de Economia) também estavam.
Quem já ouviu a fita percebeu que o nível etílico foi subindo pergunta a resposta. O pai Sérgio, compenetrado e cordial, andava em volta da mesa folheando uma enorme enciclopédia. De repente, ele a coloca na minha frente, aberta. Era em alemão e tinha a foto de uma negra. Para não interromper a gravação, foi lacônico, apontando com o dedo:
- Adelaide.
Essa foto, de uma desconhecida africana, depois de alguns dias, estaria estampada na Última Hora com a legenda: arquivo SBH. Julinho não se deixaria fotografar. Tinha uma enorme e deselegante cicatriz muito mal explicada no rosto.
Naquelas duas horas e pouco que durou a entrevista e o porre, Chico inventava, a cada pergunta, na hora, facetas, passado e presente do Julinho. As informações jorravam. Foi ali que surgiu o irmão dele, o Leonel (nome do meu irmão), foi ali que descobrimos que a Adelaide tinha dado até para o Niemeyer, foi ali que descobrimos que o Julinho estava puto com o Chico:
- O Chico Buarque quer aparecer às minhas custas.
Para mim, o que ficou, depois de quase 25 anos, foi o privilégio de ver o Chico em um total e super empolgado momento de criação. Até então, o Julinho era apenas um pseudônimo pra driblar a censura. Ali, naquela sala, criou vida. Baixou o santo mesmo. Não tínhamos nem trinta anos, a idade confessa, na época, do Julinho.
Hoje, se vivo fosse, Julinho teria 55 anos. Infelizmente morreu. Vítima da ditadura que o criou.
Há quem diga porém que, como James Dean e Marilyn Monroe, Julinho estaria vivo, morando em Batatais, e teria sido ele o autor do último sucesso do Chico, A foto da capa. Sei não, o estilo é mesmo o do Julinho. O conteúdo então, nem se fala.
Porque, no fundo, se o subalterno era ontem uma coisa, hoje não mais o é: tornou-se uma pessoa histórica, um protagonista; se ontem era irresponsável, já que era "paciente" de uma vontade estranha, hoje sente-se responsável, já que não é mais paciente, mas sim agente e necessariamente ativo e empreendedor. Mas, mesmo ontem, será que ele era apenas simples "paciente", simples "coisa", simples "irresponsabilidade"? Não, por certo; deve-se aliás sublinhar que o fatalismo nao é senão a maneira pela qual os fracos se revestem de uma vontade ativa e real
A. Gramsci
O material que apresentamos a seguir sobre o compositor e poeta brasileiro Chico Buarque de Hollanda, foi publicado pela revista "Crisis" de Buenos Aires.
por Eric Nepomuceno
Quando em 1965 subiu pela primeira vez a um palco como profissional, ganhou 50 cruzeiros e cantou "Pedro Pedreiro". Todavia hoje não sabe se naquela ocasião o aplaudiram pouco ou muito, pois se sentia tão nervoso e apavorado que a única coisa que desejava era que o pano baixasse e escapasse do público.
Meses mais tarde, sua experiência era maior. Havia escrito os temas musicais da peça "Morte e Vida Severina" do poeta João Cabral de Mello Neto, e havia atuado em alguns programas de televisão, sempre apresentado como um jovem estudante de Arquitetura que compunha bons sambas.
Em outubro de 1966 ganhou o Festival da Música Popular Brasileira. Obteve o primeiro prêmio com a canção "A Banda". No dia seguinte era algo parecido com um ídolo nacional. No decorrer de uma semana foram vendidas setenta mil cópias do disco que narrava a história, simultaneamente alegre e amarga, esperançada e triste, dos seres que aguardavam a passagem da banda.
Em um programa de televisão, lhe conferiram, juntamente com Nara Leão, o primeiro prêmio. Foi o primeiro dos " hit-parades" musicais, cidadão honorário em várias localidades, ilustre tricolor e até o humorista Millor Fernandes o distinguiu com um título: "Única unanimidade nacional."
Viu seu rosto estampado nos cadernos das colegiais, nas capas das revistas, nas páginas dos jornais, os suspiros das adolecentes fizeram dele um príncipe encantado.
Os suspiros das mães evidenciaram que ele era mais que o filho ideal. Quem podia pedir mais?
Contudo, aos 22 anos, Chico Buarque de Hollanda não desejava mais que tocar violão com seus amigos, jogar futebol nas manhãs de sábado, e escrever e cantar sambas, sem falar nos seus movimentados jogos de futebol de botões. Por isso contemplava, com uma mistura de assombro e curiosidade, a efervescência que crescia ao seu redor.
Não passaram seis meses desde então, e uma imagem sua já estava formada: era um rapaz tímido e retraído, filho de uma família burguesa, poeta de imenso talento e sensibilidade, um estudante de Arquitetura, autor de grandes poemas e formosos sambas ingênuos. Este era o Chico Nacional.
"Eu via o que estava ocorrendo, mas não reagia. Divertia-me com o que se estava dizendo pelos quatro cantos que eu era um tímido e um bom menino. O que ocorria é que eu era preguiçoso. Queria trabalhar tranqüilo e nada mais. Não tinha ganas de enfrentar as revistas, as rádios, as reportagens. A luz vermelha das câmeras de televisão que indicava que o programa estava no ar me aterrorizava. Sentia que estavam me vendendo, que me transformavam em sabão, em matéria de consumo fácil e inconseqüente"
A televisão se encarregava de fazer chegar a milhares de pessoas, em todos os pontos do país, a imagem do bom menino.
Assim foram as coisas até fins de 1967. Este material de consumo que ele apresentava não encontrou problemas até que deu o primeiro grito.
Esse grito foi sua peça "Roda Viva", cujo protagonista era um cantor devorado pela engrenagem de uma rede de televisão exclusivamente interessada na comercialização do indivíduo e na promoção de paliativos contra todas as formas de inteligência (já então, a televisão no Brasil iniciava sua atividade solidária com o governo, tentando demonstrar ao povo que pensar e ter idéias próprias nem sempre é interessante).
No final da peça o protagonista morre e seu fígado é distribuído entre os assistentes de um auditório sedento de novidades.
Mais que um gesto de violência, mais que uma denúncia, "Roda Viva" foi a expressão de uma rebeldia insuspeita.
A essa altura de sua carreira - fins de 1967, princípios de 1968 -, Chico Buarque já havia deixado de ser estudante de Arquitetura adepto das noitadas em companhia de seus amigos.
Em sua obra, o ex-menino bom dizia palavras ríspidas. O choque com a televisão, a luta contra a imagem do jovem dócil, a rebelião contra as circunstâncias eram elementos de sua personalidade que começava a se desenvolver de modo imprevisto.
O modelo de belos olhos verdes começava a desiludir a todos.
Lançou-se à rua, uniu-se aos manifestantes que protestavam contra a censura imposta no teatro, mostrou que sabia gritar.
Porém ainda sua imagem era confusa. Apesar das demonstrações iniciais de rebeldia, continuava escrevendo versos líricos, hábil como sempre na manipulação das imagens poéticas.
"Na escola fui um bom aluno de português. Tenho uma longa convivência com as palavras. Sinto carinho por cada uma delas. Talvez isso se deva a que, sendo ainda um menino, troquei Batman e Superman por Drumond, Bandeira e Vinicius de Moraes."
Quando embarcou para a Europa a fim de permanecer ali por tempo indeterminado, muito pouco restava do primeiro Chico Buarque.
A calma e o desejo de viver em paz haviam sido substituídos por certo temor. O fato de ter visto desaparecer do mapa sua peça teatral por obra e graça da censura, a visão dos atores agredidos, a vigilância exercida sobre sua casa, a obrigaçao de ter que se apresentar várias vezes por semana perante a polícia federal e os tribunais militares, foram fatores que, somados, o envolveram em um clima de angustiante inquietação.
Partiu para a Europa sem saber quando encontraria no Brasil condições favoráveis para voltar.
Muito poucas notícias dele chegaram vindas da Itália. Ocasionalmente, na correspondência com seus amigos, brincava contando seus triunfos futebolísticos ou o desejo que tinha de fumar um bom Luiz XV.
Entretanto, no Brasil, seus êxitos europeus eram amplamente comentados.
Ao regressar, Chico procurou esclarecer as coisas o mais rápido possível.
"Foi um ano de muito trabalho. Atuei em boates, gravei discos, me apresentei na televisão, realizei excursões. Os resultados foram bons. Porém não quero que ninguém fale de um sucesso estrondoso por que não houve nada parecido. Quero deixar bem claro que permaneci todo este tempo fora do Brasil, não porque estivesse ganhando dinheiro e colhendo triunfos, mas porque as condições vigentes em meu país me impediram de regressar. No Brasil, as pressõss contra meu trabalho eram muito grandes. Tudo o que eu fazia encontrava sérios obstáculos."
Voltou da Itália no início de 1970 com uma filha (Silvia) nascida em Roma, uma barba mal feita e oito quilos a mais. Tudo o que representou 1967 havia ficado definitivamente para trás.
O Chico Buarque que a Itália devolveu ao Brasil era um jovem estourado e nervoso, que media cada uma das palavras que utilizava, palavras que, pouco a pouco, foram deixando definitivamente de lado as imagens de mulata e da viola até fazer do músico o último reduto da canção de protesto do Brasil.
Chico Buarque jamais teve o propósito de efetuar uma pesquisa de vanguarda no âmbito da música brasileira, tal como ocorreu no caso de Gilberto Gil, Caetano Veloso ou Egberto Gismonti. Nem tampouco foi o autor comprometido do modo de Geraldo Vandré ou Sérgio Ricardo. E se hoje Chico Buarque é, no Brasil, o autor mais importante de músicas de protesto, isto se deve, em grande parte, à radicalização acelerada de sua posição ideológica motivada pelas pressões que sobre ele exerceram os organismos repressivos brasileiros, principalmente através do departamento de censura da Polícia Federal.
"Atualmente no Brasil, ninguém pode dizer que está por fora do que está ocorrendo. Ou se está contra o que se passa ou se está a favor do que se passa. Ninguém pode pretender estar à margem da situação. Quem cala, consente, opta pelo silêncio e se torna cúmplice. Sinto a profunda necessidade de que toda manifestação artística, de quem for e no campo que for, opere como uma denúncia. Inclusive os poemas de amor devem obrigar ao ouvinte ou ao leitor a refIetir. Há em todos nós uma forte tendência a não pensar. Justamente eu creio que se deve estimular na gente, por todos os meios, a capacidade de julgar e pensar".
Os conflitos com a censura passaram a ser habituais. Em parte, Chico consegue amortizar os perigos a que se expõe com sua fama, muito grande em todo o Brasil. Ser tão conhecido é algo que indubitavelmente o ajuda.
Quando uma de suas letras é censurada, os jornais se esforçam em publicar a notícia respectiva acompanhada pelo texto proibido. Caso sejam interrompidas ou impedidas suas atuações públicas, a reação popular é muito diferente da que ocorre quando o artista atingido é um principiante.
Aos 28 anos, com duas filhas e mais de sete anos consecutivos de êxito profissional, Chico Buarque é considerado como um dos maiores poetas de toda a história da Música Popular Brasileira. É o símbolo, acima de tudo, não do bom menino e sentimental, mas do espírito de denúncia que cada vez mais se estende no Brasil.
Chico o sabe e o expressa com fervor e virulência:
"Eu semeio o vento/ na minha cidade/ vou pra rua e bebo/ a tempestade."
Sentiu na garganta o gosto amargo da bebida. Ficou na dele, caminhou até o microfone no centro do palco do elegante "flag" carioca, e desandou a falar indiferente aos olhares de reprovação.
Suas palavras brotaram rápidas e aos tropeções. Disse que não agüentava mais, que o que estavam fazendo com ele era insuportável, que queria que o deixassem em paz, que terminassem com as violentas e constantes perseguições. Queria que o esquecessem. Terminou confessando que sentia um "medo tremendo".
Isso foi no início de 1972. 0s jornais, nada disseram. Porém alguém - e sem dúvida alguém import:ante - tomou conhecimento do sucedido.
Então, pela primeira vez em muitos meses, os funcionários encarregados da censura e a polícia política deixaram de intimidá-lo para "solicitar-lhe esclarecimento" sobre o que escrevia e dizia, expressões que as autoridades qualificavam invariavelmente como "provocação".
Quando Chico Buarque explodiu naquela madrugada, seu "long-play" "Construçao" era um êxito total no Brasil e, ao mesmo tempo, terminava com ele um longo ano de mutilações inflingidas a sua obra e à sua liberdade de expressão.
Naquela época, era pouco mais que uma imensa irritação o que ele sentia. Uma raiva surda e uma dolorosa impotência diante dos fatos que pareciam fazer que a corda das restrições se fosse fechando cada vez mais sobre sua garganta.
De cada três canções que enviava à Censura federal para poder gravá- las e depois apresentá-las ao público, duas eram invariavelmente interditadas. Quanto à terceira, estava, quando a devolviam, totalmente mutilada pelas "sugestões" feitas com relação a frases inteiras ou palavras isoladas.
Oficialmente, é muito pouco o que se alega contra seu trabalho. Somente três de suas canções foram definitivamente proibidas: "Tamandaré", escrita em 1966, nos tempos em que era um assíduo participante das noitadas de samba, que foi a primeira. A letra desta cancão é um diálogo entre o autor e o glorioso almirante Tamandaré, cujo rosto aparecia estampado nas cédulas de um cruzeiro velho; os motivos da proibição? Bem, ninguém pode sair diaIogando assim sem nenhum protocoIo, com as grandes figuras da pátria...
Porém Chico era, naquele momento, um compositor no início da sua carreira e ninguém se inquietou muito pela proibição que recaiu sobre sua canção.
Naquele tempo, Chico não parecia ser outra coisa que um estudante, autor de um sambinha censurado, e nada mais.
Depois foi a vez de "Roda Viva". Probiram a apresentação da obra em todo o território nacional. Foi a primeira peça teatral de Chico Buarque. Após manter-se vários meses em cartaz seu cancelamento provocou acirradas polêmicas. O fato ocorreu em um ano -1968- de grande tensão política para o Brasil. O "ato Institucional n° 5" havia desencadeado uma série de violentas pressões contra o meio artístico. Não foi necessário que passasse muito tempo para que os ataques da censura encontrassem em Chico Buarque, um de seus alvos preferidos
Mesmo antes de sua proibição formal, a peça de Chico conheceu as amarguras de um processo tumultuoso. Após ter provocado acaloradas discussões no Rio de Janeiro, foi estreada em São Paulo.
Uma noite, em agosto de 1968, o C.C.C. (Comando de Caça aos Comunistas), que agia com a anuência das autoridades, invadiu o teatro Ruth Escobar, onde se apresentava a peça. O local foi praticamente destruído. Os atores atacados a socos. Chico uniu sua voz de protesto às dos artistas atingidos.
A mobilização se expandiu até alcançar toda a classe teatral, plenamente solidária com os companheiros agredidos. Solicitou-se a realização de uma investigação para determinar responsabilidades. A conclusão das averiguações efetuadas não tardou em ser conhecida: a peça de Chico Buarque foi proibida.
Em dezembro os compositores de vanguarda, Gilberto Gil e Caetano Velloso, foram presos sem que se apresentasse mandado judicial de qualquer tipo.
Ambos se viram submetidos a um doloroso e humilhante período de cativeiro. Geraldo Vandré, autor de músicas de protesto, foi perseguido até a fronteira paraguaia e obrigado a abandonar o país. Os demais artistas eram reiteradamente "convidados" a manter longas entrevistas com a Polícia Política e as comissões militares a fim de "esclarecer conceitos". Chico foi sempre o predileto nesta lista de convidados.
Às vêzes as entrevistas se prolongavam por seis, sete e oito horas. Havia semanas nas quais Chico era intimado diariamente, e já não podia pensar em trabalhar nem em gravar discos e nem em se apresentar ao público. Ofereceram-lhe um contrato para atuar na França, Portugal e Itália. (Oficialmente não houve exílio. No Brasil ninguém exila os poetas).
Ocorreu uma coincidência interessante. Nessa mesma época, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram a Londres; Edu Lobo se instalou em Los Angeles, Geraldo Vandré no Chile. A saída de todos eles do Brasil serviu para atenuar, em parte, a tensão existente entre as autoridades e os compositores populares.
Quanto aos frutos da permanência de Chico na Itália foram mínimos: terminou algumas músicas iniciadas no Brasil, traduziu para o português a composição "Gesubambino" e pouca coisa mais.
Aguardou algum sinal favorável que lhe assegurasse que podia regressar. Mas as notícias que chegavam do Brasil eram cada vez mais desestimulantes. As pressões continuavam, o governo se consolidava.
No final de 1969, pouco antes que se completasse seu primeiro ano de permanência na Itália, Vinicius de Moraes e o violonista Toquinho se uniram a ele.- primeiro em Paris, depois em Roma. Conversaram muito e, finalmente, Chico se convenceu de que poderia pensar em voltar.
De Paris, Vinicius decidiu voltar ao Brasil, no aeroporto de Orly, onde o acompanharam Chico e Toquinho; nasceu o "Samba do exílio ".
Para poder gravar o samba, teve que lhe modificar o nome. O "Samba do Exílio" passou a ser o "Samba de Orly" e precisou-se, também, alterar um verso, onde Chico dizia: "Peço perdão/por essa omissão/ um tanto forçada". Passou a dizer: "Peço perdão/pela duração/ desta temporada". A mensagem primordial, contudo, burlou o machado da censura: "Mas não diga nada/ que me viu chorando/e se puder me manda/ uma notícia boa".
Chico chegou ao Brasil nos primeiros meses de 1971. Ao término de seis semanas de "andadas" pelo Rio de Janeiro, decidiu ficar. Uma rápida viagem a Itália para cancelar um contrato e devolver o apartamento onde havia morado precederam seu retorno definitivo. Instalou-se na Guanabara com enormes desejos de trabalhar.
Seu primeiro disco, a partir desse retorno, conseguiu sucesso imediato Intitulou-se "Apesar de Você" e foi lançado em outubro de 1970. Até abril de 1971 esteve entre os discos mais vendidos. Então foi proibido ( Na verdade, o Dep. de Censura Federal se limitou a "sugerir" que não se tocasse publicamente essa música nem a divulgasse por qualquer meio em todo o país.)
A mordaça voltou a ser exibida. No início de 1971, Chico disse em uma entrevista concedida ao " Jornal da Tarde", de São Paulo: "Eu não sou mais que um compositor, sendo incapaz de lutar. Por isso o que quero é trabalhar sem estardalhaço. Alcançar um êxito sóbrio Não quero fazer nada que possa identificar-me com essa época que estamos vivendo no Brasil". As pressões passaram a ser então mais fortes do que nunca. Durante o resto do ano de 1971, suas canções foram invariavelmente interditadas pela Censura Federal, que somente as liberava muitos meses depois, e isso sempre "sugerindo modificações".
O choque, nesta segunda etapa, após a trégua que lhe impôs a temporada européia, ocorreu com violência redobrada. " Minha história" versão em português de "Gesùbambino", permaneceu na mão dos censores durante 4 meses. Entretanto o original italiano circulava livremente por todo o país. A música que Chico compôs para o long-play do velho intérprete Mário Reis, chamada "Bolsa de Amores", foi terminantemente proibida, e todas as letras que preparou para seu long-play de 1971 sofreram algum tipo de restrição. Em conjunto, todas elas tiveram que aguardar durante meses a permissão de gravação. Por isso, o disco que deveria ser lançado em junho de 1971,chegou às mãos do público somente em dezembro.
Com esse long-play começou a se divulgar a nova imagem de Chico Buarque. Em suas músicas perdurava o lirismo dos anos passados, mas aliado agora a uma violência e à tomada de partido facilmente perceptível em letras como "Deus lhe pague", "Samba de Orly" ( Samba do Exílio" ou "Construção". Em seu novo disco Chico se revelava ainda mais hábil no manejo das palavras e com idéias muito mais hilariantes para os sensíveis ouvidos da Censura Federal.
1972 foi um ano proveitoso. Escreveu canções para o filme "Quando o Carnaval Chegar" das quais uma foi inicialmente proibida e depois autorizada com a indicação de um único corte. Trata-se de "Partido Alto" onde a palavra " brasileiro" não pode ser utilizada como sinônimo de homem marginalizado, como o que protagonziava a letra da música. Chico decidiu substituí-la por "batuqueiro".
Também Chico Buarque escreveu a letra do tema central do filme "Joana Francesa" e, juntamente com Rui Guerra, traduziu a trilha sonora de "O Homem de La Mancha". Essa colaboração entre os dois artistas se estendeu a uma peça teatral. Escreveram juntos "Calabar" ( Personagem da história brasileira considerado como o maior traidor de sua Pátria). Integram a obra treze canções cujas letras estão ainda hoje sob a consideração da Censura Federal que, embora inicialmente tenha autorizado a circulação de duas delas -"Bárbara" e "Anna de Amsterdam" - decidiu voltar atrás e "reexaminar" as treze composições.
1972 foi, acima de tudo, um ano de numerosas apresentações - mais de cem - para um público exclusivamente universitário. Em cada uma delas Chico tentava dialogar com os jovens, mas tais tentativas eram rapidamente reprimidas pelos "senhores de terno" que, exibindo a credencial da Polícia Federal assistem até hoje suas atuações.
A última letra que Chico compôs se chama " Cálice" e foi escrita nesse ano (73) para um tema musical de Gilberto Gil, um dos compositores mais destacados da música moderna no Brasil. Os amigos de Chico consideram que esse é um dos seus mais belos poemas. Porém somente seus amigos, por que o público não pode se pronunciar ainda e tudo indica que tardará a fazê-lo. "Cálice" foi proibida.
Declaração final:
"Eu sou um compositor, não um político. Faço música e não política. Mas, a partir do exato momento em que a poIítica ou a situação do país me impedem de trabalhar, me vejo obrigado a transformar-me em político e a manifestar-me e defender-me.
A mim não vão amordaçar. A única coisa que me assusta é chegar a um ponto em que a autocensura me impeça de trabalhar. Atualmente, quando escrevo uma letra, já não sei se vão aprová-la ou não. Divido minhas músicas entre as que, na minha opinião, vão ser qualificadas com um "não" e as que podem receber um "talvez."
Porém, da mesma forma, me equivoco constantemente. Letras que pra mim estavam entre as que tinham possibilidades de serem autorizadas, terminaram recebendo um "não" por parte da censura.
Tento jogar respeitando as regras, procuro escrever de tal forma que possa burlar a censura. Mas ocorre que ela, lentamente vai aguçando seu olfato. Às vezes se chega a ter a impressão que age com aIguma inteligência, e isso, claro, vai me obrigar, da mesma forma que a todos os meus colegas, a afinar ainda mais meu repertório de truques.
Em meu caso, o problema da censura é algo habitual. Porém eu me pergunto o que vai ser dos novos compositores, de todos os que ainda não são conhecidos, quando se virem obrigados a enfrentar a máquina da opressão e da repressão.
Tenho medo de que morram antes de terem nascido, e é um temor fundado. Minha geração - nascida em 66 - foi a última conhecida dentro da Música Popular Brasileira. Depois de Milton Nascimento, Edu Lobo, Caetano Veloso, Gil, e Egberto Gismonti e alguns outros, não surgiu mais ninguém e isso não ocorre somente na música. Ocorre nos campos onde a criação e a expressão são um ponto de partida.
Não vou faIar da situação política de meu país. Nao sou um teórico. Porém, posso falar com conhecimento, da Censura. É o único instrumento de que dispõe o regime para calar os que desejam dizer algo que possa incitar a pensar. Algo que, principalmente, pode encontrar eco entre os universitários, entre a juventude.
Houve momentos em que tive vontade de renunciar a tudo. Agora não. Agora quero lutar. Quero devolver uma por uma as bofetadas que me dão. Sei que minha resposta não poderá representar nada contra a força do sistema, mas não pretendo ficar calado.
Hoje me interessa, mais do que nunca, ser conhecido. Ser conhecido, em meu caso, á algo que opera como um mecanismo defensivo: não vão poder me eliminar quando queiram. Se desapareço, haverá muita gente que vai tentar averiguar o que aconteceu comigo.
Ninguém mais pode ficar em um canto observando o que ocorre. É necessário assumir uma posição definida. Eu escolhi a minha. Optei pela denúncia. Não sei o que vai suceder mas continuarei lutando.
Eric Nepomuceno
Jornal do Brasil
Essa grafia. Xico Buark, foi inventada por Millôr Fernandes, numa noite no Antonio's. Gostei como quando eu brincava com palavras em criança. Quanto ao Chico, apenas sorriu um sorriso duplo : um por achar engraçado, outro mecânico e tristonho de quem foi aniquilado pela fama. Se Xico Buark não combina com a figura pura e um pouco melancólica de Chico, combina com a qualidade que ele tem de deixar os outros o chamarem e ele vir, com a capacidade que tem de sorrir conservando muitas vezes os olhos verdes abertos e sem riso. Não é um garoto, mas se existisse no reino animal um bicho pensativo e belo e eternamente jovem que se chamasse garoto, Francisco Buarque de Holanda seria dessa raça montanhosa.
Gostei tanto de Chico que o convidei para a minha casa. Com simplicidade ele aceitou.
Apareceu perto das quatro da tarde : naquele tempo, às cinco horas tinha uma lição de música com Vilma Graça, e havia um ano que estava estudando Teoria Musical, para depois estudar piano.
Quantos momentos decisivos na sua vida, é muito moço para saber se eram de fato decisivos esses momentos, se no final das contas contaram ou não. Nasceu com a estrela na testa : tudo lhe correu fácil e natural como um riacho de roça. Para ele, criar não é muito laborioso. Às vezes está procurando criar alguma coisa e dorme pensando nisso, acorda pensando nisso ---- e nada. Em geral cansa e desiste. No outro dia a coisa estoura e qual-quer pessoa pensaria que era gratuita, nascida naquele momento. Mas essa explosão vem do trabalho anterior inconsciente e aparentemente negativo.
O problema lhe interessa : fez-me várias perguntas sobre meu modo de trabalhar. Eu lhe disse : " Você, apesar de rapaz que veio de cidade grande e de uma família erudita, dá impressão de que se deslumbrou ao mesmo tempo em que deslumbra os outros com sua fala particular : já se habituou ao sucesso ? Dá impressão de que você se deslumbrou com as próprias capacidades, entrou numa roda-viva e ainda não pôs os pés no chão ".
Chico acha que tem cara de bobo porque suas reações são muito lentas, mas que no fundo é um vivo. Só que pôr os pés no chão no sentido prático o atrapalha um pouco. Acha que o sucesso faz parte dessas coisas exteriores que não contribuem em nada para ele:
A pessoa tem sua vaidade, alegra-se, mas isso não é importante. Importante é aquele sofrimento de quem procura buscar e achar. Hoje, disse-me, acordei com um sofrimento de vazio danado porque ontem terminei um trabalho.
Falamos do processo de criar de Vila-Lobos e ele contou uma frase dele dita a Tom Jobim : Vila-Lobos estava um dia trabalhando em sua casa e havia uma balbúrdia danada em volta. O Tom perguntou : " Como é, maestro, isso não atrapalha ? " Ele respondeu : "O ouvido de fora não tem nada a ver com o ouvido de dentro." E isso Chico invejava. Também gostaria de não ter prazo para entrega das músicas, e de não fazer sucesso : ele é interrompido nas ruas e nas ruas mesmo é obrigado a dar autógrafos.
Chico tem um ar de bom rapaz , esses que todas as mães com filhas casadoiras gostariam de ter como genro. Esses ar de bom rapaz vem da bondade misturada com bom humor, melancolia e honestidade. Tem o ar crédulo, mas diz que não é, é apenas muito preguiçoso.
Claro que gostou quando o maestro Isaac Karabtchevsky dirigiu a banda no Teatro Municipal, mas o que lhe interessa mesmo é criar. Desde pequeno faz versinhos. Pedi-lhe que fizesse assim de improviso um versinho e que, para pô-lo à vontade, eu esperaria na copa. Daí minutos Chico chamou, rindo : Como Clarice pedisse/ Um versinho que eu não disse/ me dei mal/ Ficou lá dentro esperando /mas deixou deu olho olhando / Com cara de Juízo Final.
Perguntei-lhe se já experimentara sentir-se em solidão ou se sua vida tinha sempre esse brilho justificável. Eu aconselhei que de vez em quando ficasse sozinho, senão seria submergido, pois até o amor excessivo dos outros podia submergir uma pessoa. Ele concordou e disse que sempre que podia dava suas retiradas.
Logo que entrou para Arquitetura, quando começou a trocar a régua pelo violão, a coisa parecia vagabundagem mas depois a família se conformou.
Estava em fase de procura e no dia anterior acabara um trabalho que era só de música, que exigia prazo. Mas para uma canção nova estava sempre disponível. A coisa mais importante para Chico é trabalho e amor, e, como indivíduo, quer exatamente Ter a liberdade para trabalhar e amar. De brincadeira perguntei-lhe o que era amor. "Não sei definir", disse-me, "e você ?" " Nem eu", respondi.
O jeito, no momento, é ver a banda passar, cantando coisas de amor. Pois de amor andamos todos precisados, em dose tal que nos alegre, nos reumanize, nos corrija, nos dê paciência e esperança, força, capacidade de entender, perdoar, ir para a frente. Amor que seja navio, casa, coisa cintilante, que nos vacine contra o feio, o errado, o triste, o mau, o absurdo e o mais que estamos vivendo ou presenciando.
A ordem, meus manos e desconhecidos meus, é abrir a janela, abrir não, escancará-la, é subir ao terraço como fez o velho que era fraco mas subiu assim mesmo, é correr à rua no rastro da meninada, e ver e ouvir a banda que passa. Viva a música, viva o sopro de amor que a música e banda vem trazendo, Chico Buarque de Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados palácios em ruínas, jardins pisoteados, cisternas secas, compensando-nos da confiança perdida nos homens e suas promessas, da perda dos sonhos que o desamor puiu e fixou, e que são agora como o paletó roído de traça, a pele escarificada de onde fugiu a beleza, o pó no ar, na falta de ar.
A felicidade geral com que foi recebida essa banda tão simples, tão brasileira e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de pouco mais de vinte anos botou na rua, alvoroçando novos e velhos, dá bem a idéia de como andávamos precisando de amor. Pois a banda não vem entoando marchas militares, dobrados de guerra. Não convida a matar o inimigo, ela não tem inimigos, nem a festejar com uma pirâmide de camélias e discursos as conquistas da violência. Esta banda é de amor, prefere rasgar corações, na receita do sábio maestro Anacleto Medeiros, fazendo penetrar neles o fogo que arde sem se ver, o contentamento descontente, a dor que desatina sem doer, abrindo a ferida que dói e não se sente, como explicou um velho e imortal especialista português nessas matérias cordiais.
Meu partido está tomado. Não da ARENA nem do MDB, sou desse partido congregacional e superior às classificações de emergência, que encontra na banda o remédio, a angra, o roteiro, a solução. Ele não obedece a cálculos da conveniência momentânea, não admite cassações nem acomodações para evitá-las, e principalmente não é um partido, mas o desejo, a vontade de compreender pelo amor, e de amar pela compreensão.
Se uma banda sozinha faz a cidade toda se enfeitar e provoca até o aparecimento da lua cheia no céu confuso e soturno, crivado de signos ameaçadores, é porque há uma beleza generosa e solidária na banda, há uma indicação clara para todos os que têm responsabilidade de mandar e os que são mandados, os que estão contando dinheiro e os que não o têm para contar e muito menos para gastar, os espertos e os zangados, os vingadores e os ressentidos, os ambiciosos e todos, mas todos os etcéteras que eu poderia alinhar aqui se dispusesse da página inteira. Coisas de amor são finezas que se oferecem a qualquer um que saiba cultivá-las, distribuí-las, começando por querer que elas floresçam. E não se limitam ao jardinzinho particular de afetos que cobre a área de nossa vida particular: abrange terreno infinito, nas relações humanas, no país como entidade social carente de amor, no universo-mundo onde a voz do Papa soa como uma trompa longínqua, chamando o velho fraco, a mocinha feia, o homem sério, o faroleiro... todos que viram a banda passar, e por uns minutos se sentiram melhores. E se o que era doce acabou, depois que a banda passou, que venha outra banda, Chico, e que nunca uma banda como essa deixe de musicalizar a alma da gente.
Carlos Drummond de Andrade
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