Papo cabeça pra pensar
O REDATOR DO MEU PRIMEIRO ALMANAQUE
Para celebrar a centésima edição do ALMANAQUE, decidimos convidar queridos amigos que, de um jeito ou de outro, estiveram presentes ao longo dessas 100 edições. E eis que na lista pintou o Chico. Afinal, foi com ele que fiz o meu primeiro almanaque, em forma de capa e encartes de seu disco de 1981. Era, de certo modo, o embrião desta revista que o leitor tem em mãos. Mas o que fazer se o sujeito é tão avesso a entrevistas? Vamos então de papo-rápido, por e-mail, em que ele se lembra de histórias, dá palpites sobre a composição ministerial e, como sempre, dá um jeitinho de se gabar de seu dito “futebol vistoso”.
Entre as principais influências artísticas de muita gente da música brasileira está Vinicius de Moraes. Ele, amigo de seu pai, foi também importante na sua formação, na escolha de sua carreira?
Vinicius foi um grande amigo meu, mas no fundo nunca deixei de vê-lo como uma extensão do meu pai. Era uma espécie de meu pai mais doido que me acompanhava por aí, um papai de noitadas, bebedeiras e confissões exau
stas. Era às vezes o meu pai em versão criança. E acabou sendo um meu pai mais íntimo. Mas muita coisa que vi no Vinicius já tinha aprendido com meu pai. Como achar graça de quem se dá importância, de quem se leva muito a sério.
Qual a sua primeira imagem de Vinicius?
Minha primeira lembrança do Vinicius vem de Roma, em 1953 ou 1954. Era o Vinicius lá em casa, cantando e tocando o violão da Miúcha, um violão chamado Vinicius. Eu me lembro dele cantando Quando Tu Passas por Mim e Cem por Cento. Depois que ele ia embora, o assunto Vinicius ficava mais uns dias rodando lá em casa. Minha mãe dizia que Cem por Cento tinha sido feita para a Tati, primeira mulher dele. E eu achava que o Vinicius tinha de casar de novo com a Tati.
O que te levou à música, em detrimento de tantas escolhas que se apresentavam?
Um compacto simples chamado Chega de Saudade, de João Gilberto, lançado em 1958.
Ao longo de seus mais de 40 anos de carreira, dezenas de discos, você se arrepende de alguma música que escreveu? Dizem que há um certo desgosto com as canções do Volume 4, de 1970...
Não passo muito tempo relembrando minhas canções antigas. Mas algumas me dão certa aflição, porque claramente feitas às pressas, desperdiçadas. Outras me parecem obscuras, não sei bem o que eu queria dizer com elas.
E, por outro lado, há alguma música da qual você mais se orgulha? Ou um álbum inteiro?
Não tenho muito isso, não. Na verdade, tenho gosto pelas músicas e pelos álbuns durante o processo de criação, em fase de ensaios, nas gravações.
Lembrança minha: nós em um carro, indo talvez para uma partida de futebol, e você deu um jeito de parar o carro, arranjar um telefone e ligar para o seu pai, perguntando quem, afinal, tinha chegado a uma ilha e queimado os navios para não mais poder sair dali. A história acabou entrando em Eu Te Amo, sua e do Tom, de 1980 (Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios / Rompi com o mundo, queimei meus navios / Me diz pra onde é que inda posso ir). Mas o fato é que aquela idéia era tão avassaladora, tão urgente... É sempre assim seu processo de criação?
Não me lembro desse telefonema, mas é bastante crível. Só que a história de queimar os navios, que eu saiba, se passou com Pizarro na chegada ao Peru, para evitar que seus soldados pensassem na possibilidade de uma retirada. Se estou com uma idéia que me parece boa, fico assim mesmo, meio irrequieto. O Drummond dizia que, quando começava a escrever um poema, sentia um pouco de febre.
Uma confissão de inveja: há alguma música de alguém que você gostaria de ter feito?
Isso sim. Gostaria de ter feito milhares de músicas que outros fizeram. Quando estou distraído, só canto e assobio as músicas dos outros. Outro dia, num avião de volta ao Brasil, fiquei mole só de ouvir o Caymmi: Quem vai pra beira do mar, ai/ nunca mais quer voltar, ai.
Qual o seu próximo trabalho, um livro ou um disco?
Gostaria de escrever um novo romance, mas ainda não encontrei o caminho.
Como você interpreta as duas fases mais visíveis da sua produção, como músico e como escritor? Elas formam um conjunto ou são, realmente, duas facetas distintas?
São distantes, nem se falam.
O seu LP Almanaque, de 1981, foi o primeiro almanaque que fiz. É, de certo modo, um embrião deste almanaque que completa 100 edições...
Acho que o projeto gráfico ficou todo por sua conta. Que eu me lembre, colaborei com os textos, mas alguns textos como os de As Vitrines, espelhados, já sugeriam a solução gráfica que você encontrou.
Na sua infância você costumava ler almanaques?
Não me lembro muito de ler almanaques. Do que eu gostava mesmo era de álbum de figurinhas.
Mas tem algum gosto tipo almanaque?
Talvez criar palíndromos seja um gosto de almanaque.
Há muitos boatos relacionados a você, como o de que teria feito a música Jorge Maravilha, de 1974 (Você não gosta de mim / Mas sua filha gosta), para a filha do então presidente Ernesto Geisel. De todas essas lendas, qual você considera a mais divertida?
Nunca fiz música pensando na filha do Geisel, mas essas histórias colam, há invencionices que nem adianta mais negar. Durante a ditadura, de um lado ou de outro, as pessoas gostavam de atribuir aos artistas intenções que nunca lhe passaram pela cabeça. Achavam que a maioria dos artistas só fazia música pensando em derrubar o governo. Depois da ditadura, falam que o artista só faz música para pegar mulher. Mas aí geralmente acontece o contrário, o artista inventa uma mulher para pegar a música.
É verdade que, na Itália, você serviu de motorista para o Garrincha?
Eu morava em Roma, quando o Garrincha chegou com a Elza Soares, que foi fazer uma temporada de shows. Eles foram esticando por lá, fizemos amizade. Fiquei mais próximo do Garrincha, mesmo porque, ao contrário da Elza, ele não tinha muito o que fazer. Ele já não podia atuar profissionalmente, mas era muito popular e ganhava algum dinheiro para jogar bola nos arredores de Roma. Eram pequenos estádios, cujas arquibancadas lotavam para ver o Garrincha. Eu tinha muito orgulho de levá-lo para cima e para baixo no meu pequeno Fiat. E passávamos horas no meu apartamento, bebendo grappa e falando de música, mais que de futebol. O Garrincha era fã de João Gilberto.
Outra que não sei se é verdade é que muitas vezes, no exterior, você teria se dito jogador aposentado da seleção brasileira... Que história é essa?
Aposentado, não, simplesmente jogador da seleção, quando me perguntam se sou brasileiro. É para impor respeito.
Lembro que, numa manhã, há muito tempo, enquanto nos preparávamos para uma daquelas peladas, falei do meu filho Bento, que, apesar de levar todo o jeito para o esporte, tinha desistido por conta do preconceito que sofria. Você disse que havia passado pela mesma situação. Como foi isso?
Talvez não fosse exatamente preconceito. Mas ouvi, sim, rudes ameaças de alguns zagueiros adversários, aborrecidos com meu futebol vistoso.
Agora, política. Você foi o idealizador do Ministério do Vai dar Merda, desgraçadamente não implantado pelo governo federal. Ainda é tempo? Como seria a atuação dele?
Um pessimista mais radical poderia sugerir que esse ministério tivesse poderes retroativos, até 500 e tantos anos atrás. Com o argumento do “vai dar merda”, D. Manuel seria convencido a não financiar a expedição de Cabral.
E já que a palavra de ordem é criar novos ministérios, alguma outra idéia para tratar das questões do País? Ou quem sabe uma nova instituição?
Sim, proponho que se acabe com esse negócio de “este país é uma merda”. Além de ciclotímico, brasileiro é muito auto-referente. Uma vez um italiano me perguntou por que é que aqui há tanta música falando em Brasil, Brasil, Brasil. Drummond já dizia que o Brasil precisa descansar de nossas terríveis carícias.
Qual o seu partido? Ainda está para ser criado?
Nunca tive partido, nem pretendo ter. A entrevista da edição passada foi com Hermínio Bello de Carvalho, que disparou a idéia de uma seção de epitáfios. O dele: “Não vim ao mundo para fazer gracinhas!” Lembrou também o de Eneida de Moraes: “Essa mulher nunca topou chantagem”. E o seu, qual é?
Não quero epitáfio, não. Mas, para a sua sessão, sugiro aquele do Aretino: Qui giace l’Aretin, poeta tosco / Che disse mal d’ogni un, fuorché di Cristo / Scusandosi col dir: non lo conosco [em português: Aqui jaz Aretino, poeta toscano / Que falou mal de todos, menos de Cristo / Desculpou- se dizendo: não o conheço].
Auster "entrevista" Chico Buarque em NY
Escritor brasileiro fala sobre censura, do "jeito" com as mulheres e de seu processo criativo em evento na cidade
Pedro Dias Leite
De Nova York
A programação prometia uma "Conversação: Chico Buarque e Paul Auster", mas, na verdade, o que se assistiu na biblioteca pública de Nova York na ensolarada e fria tarde de sábado foi a uma entrevista, e das boas, conduzida pelo norte-americano com o autor do romance "Budapeste". Apesar da fama mais do que reiterada de tímido, Chico estava muito à vontade. Falou das músicas sob censura ("Eu mesmo, quando ouço as músicas que escrevi, não entendo o que eu quis dizer"), do jeito com as mulheres ("Não tenho nada a ver com essa reputação") e da vocação do rap ("O tipo de música que uma vez foi feita, por mim e por outros, com uma temática social, eles fazem isso melhor").
E ainda brincou com o fato de suas entrevistas no Brasil sempre acabarem na sua faceta de compositor em algum momento: "Fui à Noruega e a repórter perguntou: é verdade que você é também um compositor?". Nos EUA, achava que seria diferente ("Aqui sou mais conhecido como o tio da Bebel"), mas Auster teve de intervir quando um fã pediu que Chico cantasse uma música. "É um festival literário pessoal", disse, bem-humorado, o autor de "Leviatã".
Os dois fizeram a palestra de abertura do PEN World Voices, um festival internacional de literatura que segue até o dia 22 em Nova York. A idéia é que não seja um "festival tradicional", mas, sim, uma "reabertura do diálogo entre a América e o resto do mundo", como explicou na abertura da palestra o presidente do PEN, o britânico Salman Rushdie.
A tarde começou em clima ameno, com Auster perguntando à platéia de cerca de 150 pessoas que lotava o auditório quem ali conhecia a música de Chico Buarque. Não mais que a metade levantou a mão. Quando a questão foi sobre quem já leu seus livros, o número não passou de 40.
Na uma hora e meia que se seguiu, os ouvintes conheceram mais da literatura de Chico, de sua relação com a música, de seu processo criativo. E ainda souberam que o novo livro de Auster está quase pronto ("Brooklyn Folies") e que Chico voltou a compor, com planos de um disco novo e shows.
Na maior parte das vezes, foi um monólogo de Chico sobre música, fama, ditadura e mulheres. Leia a seguir as declarações que o escritor brasileiro fez no festival literário:
Mulheres
"Eu não tenho nada a ver com essa reputação [de entender as mulheres]. Escrevi músicas para mulheres cantarem, porque temos mais compositores homens que mulheres."
"Não seria capaz [de escrever um livro como mulher]. Música é algo curto, você escreve por um momento, não acho que me sentiria confortável escrevendo como uma mulher por dois anos."
Rap
"Gosto muito de rap. O tipo de música que uma vez foi feita, por mim e por outros, com uma temática social, eles fazem isso melhor, porque vêm de lá. Eles falam para sua gente, vêm das favelas e são ouvidos por todos os tipos de pessoas. Eles têm algo a dizer, muito sério."
Censura
"Escrevi meu primeiro livro naquela época, porque tinha muitas músicas que eram censuradas. Mas não foi um bom livro ["Fazenda Modelo", de 1974], porque foi escrito por um outro tipo de necessidade, porque eu não podia escrever música, foi escrito com raiva."
"Muitas vezes, havia tantas metáforas e tantos meios de escapar da censura na década de 70, que, eu mesmo, quando ouço músicas que escrevi, não entendo o que eu quis dizer."
Literatura e música
"Acho que escrevo livros como faço música. Tenho música na cabeça o tempo todo. Eu nunca ouço música, porque atrapalha meu escrever."
"Quando eu escrevo acho que tem música no fundo da minha cabeça. E tem uma necessidade inconsciente de escrever de um modo musical. Se uma frase faz sentido, eu leio, releio, mas algo está errado, esse algo errado tem a ver com o sentido musical, o ritmo da frase, não sei como dizer, mas fico realmente satisfeito quando leio de modo musical."
"Escritores dizem, ah, escrevo ouvindo suas canções, ou música clássica. Eu olho para eles e digo: você não gosta de música. Você gosta, mas não é uma pessoa musical. Não toma sua atenção. Se você gosta, qualquer música, no elevador, chama a sua atenção."
O TEMPO E O ARTISTA
Filmes dirigidos por Roberto de Oliveira mesclam imagens de arquivo com depoimentos e serão lançados em DVD no final de 2005
Dez programas refazem carreira de Chico
DO ENVIADO ESPECIAL A ROMA E A PARIS
Chico Buarque gosta de contar uma história que ouviu de uma de suas filhas, a atriz Sílvia Buarque. Ela estava em uma loja de CDs no Rio quando reparou que uma moça a seu lado pegou nas mãos o CD "As Cidades" (1998), recém-lançado. Olhou de um lado, virou do outro, e fez o comentário: "Mas só tem música nova!".
A frase da moça divertiu e ficou famosa na família Buarque. O compositor costuma repeti-la quando quer exemplificar a nostalgia que percebe num público ávido pelo "Chico dos anos 70".
Pois a moça não terá mais do que reclamar. A partir de janeiro, Chico reaparecerá numa série de programas para a TV sobre sua obra, todos eles mesclando imagens de arquivo, muitas delas raras, com depoimentos do autor gravados hoje.
A estréia acontece dentro de um mês, no dia 26, quando a DirecTV exibe o primeiro programa, de um total de dez previstos para pingar em princípio mensalmente, embora só três já tenham sido gravados e estejam certos.
O responsável pelo projeto é o diretor Roberto de Oliveira, ex-vice-presidente da Rede Bandeirantes, que conheceu Chico em 1973, quando inventou e pôs em prática o Circuito Universitário -uma espécie de show itinerante de artistas por cidades do interior do país numa época em que a ditadura fechava as portas da grande mídia para muitos deles.
Desde então, Oliveira produziu vários documentários musicais com Chico, exibidos ao longo dos anos 70 e 80, sobretudo na Bandeirantes. É parte desse acervo, que soma cerca de 30 horas de filmes, mais o acervo pessoal de Chico, com algumas gravações amadoras feitas nos anos 60, que está sendo recuperado.
O diretor define os programas como "um grande testemunho, no qual Chico fala da obra dele, da vida dele, do processo de criação, e se vale da recuperação de imagens e canções do passado para ilustrar as coisas que ele diz hoje".
A intenção de Roberto de Oliveira é lançar no final de 2005 cinco DVDs com os programas exibidos, acrescidos do making of, e repetir a dose, com os outros cinco, até o final de 2006.
O roteiro dos programas segue uma divisão temática. O primeiro, intitulado "Meu Caro Amigo", foi feito em torno das parcerias de Chico. A entrevista e as imagens de hoje que dão o fio condutor foram gravadas no Rio. Chico falou na Biblioteca Nacional, onde se realizou uma exposição sobre sua obra como parte das comemorações dos 60 anos, completados em 19 de junho. A exposição chega a São Paulo em 13 de janeiro.
Tom Jobim, a quem será dedicado um programa inteiro, aparece já neste de abertura, cantando ao piano "Falando de Amor", ao lado de Chico. Francis Hime e Edu Lobo, os dois parceiros mais assíduos, também comparecem, em versões de "Meu Caro Amigo", canção clássica da resistência à ditadura gravada em meados dos 70, e "Choro Bandido", já dos anos 90. Chico canta ainda com Djavan, com a irmã Miúcha e com Dorival Caymmi, entre outros.
No depoimento que dá sobre o velho compositor baiano, Chico o define como "um caso à parte na música brasileira, de tal forma despojado que é difícil até imitá-lo, fazer uma música à la Caymmi". "Não sei de onde vem Caymmi nem sei para onde vai", diz, rendendo homenagens a um grande mestre que, segundo ele, não deixou discípulos na MPB.
O momento mais marcante do programa de estréia talvez seja a aparição histórica ao lado de Elis Regina, num show de 1974, quando interpretaram juntos "Pois É", canção feita em parceria com Tom. Os dois mal se olham no palco. É sabido que Chico e Elis não tinham afinidades e acumularam pinimbas ao longo da vida.
O segundo programa, previsto para fevereiro, foi gravado há dez dias em Paris e vai se chamar "À Flor da Pele", nome de uma das duas versões de "O Que Será", gravada no disco "Geraes" (1976), de Milton Nascimento. O motivo do programa é o conhecido e repisado universo feminino nas canções de Chico, assunto que ele não gosta de abordar.
"Roberto, você vai perguntar e eu vou embatucar, não sei falar sobre isso", avisou Chico antes da gravação, feita num bistrô em frente à ilha de Saint Louis, no centro de Paris. Provocado pelo diretor, acabou comentando várias de suas canções. Disse até que foi em Paris, quando era um menino de 9 ou 10 anos, que viu pela primeira vez mulheres com os seios nus nas capas de revistas.
Houve também momentos de simpático embaraço. Num deles, o diretor deu voltas, tergiversou e lançou uma pergunta a respeito da inspiração de "Morena dos Olhos d'Água", feita em 1966 para a hoje socialite Eleonora Mendes Caldeira. Chico olhou sorrindo para o diretor: "Ô Roberto, a Eleonora Mendes Caldeira é uma senhora. Você não vai querer que eu fale sobre isso nessa altura do campeonato. Nem fica bem". A equipe caiu na gargalhada.
O terceiro programa foi gravado em Roma, uma semana antes. Será exibido em março com o título "Vai Passar", canção de Chico que se tornou um hino da campanha pelas Diretas-Já, em 1984.
O eixo do programa é a política, sobretudo a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Chico morou em Roma durante 13 meses, entre 1969 e 70, numa espécie de exílio voluntário. Já havia morado na cidade quando criança, entre os oito e dez anos, quando seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda lecionou na Universidade de Roma.
"A ditadura me encheu muito o saco, mas também enchi bastante o saco dela", disse Chico na entrevista gravada num hotel. Nela, o compositor passou o período do exílio a limpo, comentou o prazer de caminhar pelas ruas de Roma e disse que o disco "Construção", lançado em 1971, representa um marco em sua obra, uma espécie de perda da inocência presente nas canções do período anterior.
Neste terceiro programa, há algumas imagens históricas. Numa delas, pouco conhecida, Chico caminha pelo palco do Anhembi, em São Paulo, de microfone em microfone, procurando um que não tivesse sido desligado. Era 1973 e ele cantava "Cálice" quando lhe cortaram o som do teatro.
No final de janeiro, Chico deverá gravar a entrevista para o quarto programa da série, sobre literatura. Em princípio, em Portugal, mas o compositor gostaria de estender a viagem a países da África que falam o português, o que está sendo negociado.
Guardian unlimited
The lionised king of Rio
Jemima Hunt
Sunday July 18, 2004
The Observer
Chico Buarque's songs and novels have made him a hero in Brazil - even though exile is his main theme
Last month saw the 60th birthday of Chico Buarque. In Brazil, where he lives, the event was national news. TV channels replayed interviews and clips from past concerts and public appearances. Two of the country's leading broadsheets ran lengthy articles on the man who has helped define Brazilian culture for the past four decades. Not wanting to be left out and in acknowledgement of Buarque's support of his election campaigns, the Brazilian President Lula de Silva wrote a letter offering birthday greetings.
'I'm an amateur,' says singer-songwriter turned bestselling novelist Buarque, as he pours coffee in his apartment high above Rio de Janeiro's Ipanema beach. 'It's the same with songs. I'm not a professional. Yet somehow I manage to get away with it.' Modesty is a well-known Buarque trait. He is notoriously press-shy. That the protagonist of his latest novel, Budapest (Bloomsbury £13.99, pp192) is a ghostwriter is no coincidence. The character's job is to observe and write without exposing himself, which is what Buarque has always sought for himself. Yet, here in Brazil, he is nothing short of a national treasure. His lyrics are studied as part of the Portuguese BA curriculum. His songs are hummed across the country. Women fawn over his startling blue eyes and chiselled good looks. And as the author of Turbulence, the recently filmed Benjamin and now Budapest, Buarque has sold nearly half a million copies.
He wrote his first short story at 18. 'My father agreed to send the story to the literary editor of [broadsheet] Folha de Sao Paulo only after reading it first.' Buarque neatly explains the father-son relationship. His father, Sergio Buarque de Hollanda was then one of Brazil's leading literary critics and historians. His father approved. The story was published and with it Buarque's career as a man of words was born. Not only did he have his father to compete with but also his cousin, Aurelio Buarque de Hollanda, the man responsible for writing the popular Brazilian-Portuguese dictionary, affectionately referred to as the Aurelio.
Perhaps to escape comparisons, Buarque originally made his name as a musician - albeit one with a strong sense of history. 'Music kind of kidnapped me for a while,' he says. Starting out composing songs in the Sixties, he went on to write hundreds of them. His gift as a social commentator was to inhabit the lives of Brazil's disenfranchised. He sang about street kids, a prostitute given the chance to save the world. 'Construcao', a surrealist fantasy about a construction worker falling to his death became a popular classic, enamouring him to a public struggling with political repression under military rule. He learnt the importance of words at a time when words were banned. 'It was a challenge," he says. 'I had to write 20 songs in order to get two past the censors.'
Novels escaped the censors. Their audience was deemed an insignificant threat. Buarque's first novel, written in 1974, has been erased from his CV. 'I'm not proud of it as literature. It was a book written out of anger,' he says, insisting that protest does not inspire great art. In 1968, Buarque's first play, Roda Viva, an anarchic satire, landed him in trouble with the law. Like his fellow musicians - Caetano Veloso and Gilberto Gil (Brazil's Minister of Culture) who, inspired by bossa nova, created the anti-establishment Tropicália movement, Buarque was forced to flee the country. He went to live in Italy for 18 months. Veloso and Gil fled to London.
Exile is a recurrent theme in Buarque's life and work. Budapest is the story of José Costa, a writer who finds himself stranded in the Hungarian capital when a bomb scare grounds his plane. Written in Buarque's deceptively spare prose, the book is extraordinary for its observations on language, foreignness and love. 'It should be against the law to mock someone who tries his luck in a foreign language,' begins Costa's journey in a strange land. He embarks upon an affair with a woman who mocks him for his poor sentence construction in a language famously described as the devil's tongue. With thoughts of Rio never far from Costa's mind, the story meanders like the unfolding of consciousness.
Plot, admits Buarque, comes second to words. 'When I derived the idea for the book, I thought of setting it in an invented place with an invented language.' That this imaginary place ended up as Hungary was inspired in part by a Hungarian girlfriend, as well as memories of the 1954 World Cup. 'I remember being struck by the players' names,' he says. What emerges is a humorous and philosophical take on the experience of being abroad. The freedom of seeing the world through new eyes, like a child, is matched by the frustration of being faced with an impenetrable wall of sound. Can anyone escape their mother tongue any more than they can shake their past? The theme came back to haunt Buarque as he worked alongside the translator responsible for the English version of Budapest . He discovered that some things had to be rewritten. 'They did not translate,' he says.
He writes every day. His country of birth and city of residence still surprise him. 'Every time I drive into Rio from the airport, I see the city for the first time and think how strange it is,' he says. But it is here in the glamour capital of Brazil where the favelas [shanty towns] cling to the mountain sides and Christ the Redeemer stands with open arms to offer protection to the city, that Buarque finds his inspiration. He worries about Brazil's escalating violence. He believes in the democracy of the beach and the passion of football. He supports Rio's home team Fluminense. On his study wall is a framed photograph of himself as a young man with Bob Marley. Both are dressed in football strip. 'Good times,' he says.
A helicopter's shadow passes suddenly overhead. Somewhere a dog begins to bark. It is time for his stroll along the pavement of what is arguably the most famous beach in the world. In Rio even Chico Buarque can walk freely on the beach.
O eterno mistério
De compositor engajado a muso de garotas dos 30 aos 60 anos, Chico Buarque vem se renovando e ao mesmo tempo mantendo as características que fazem dele o sucesso que é: a timidez, a discrição e a capacidade de entender a alma feminina sem nunca ter levado a psicanálise a sério.
Duas décadas atrás, as aparições de Chico Buarque em manifestações políticas, somadas às sua canções mais contundentes, renderam a ele a imagem-clichê de compositor engajado. Algo diferente tem acontecido nos últimos anos; suspirando frente aos olhos verdes do autor de "Carolina", "Beatriz", e "Cecília", garotas de 20 a 60 anos têm lotado seus shows, elegendo-o como o mais sensível porta-voz da alma feminina.
Ver e ouvir Chico Buarque ao vivo, aliás, tomou-se um prazer bissexto, na última década. Desde o show "Paratodos", em 1994, ele andava ausente dos palcos, por estar se dedicando mais à literatura. Para alegria do imenso fã-clube, Chico vem reservando todo este ano à turnê do show "As Cidades", pelo Brasil e Europa. Essa maratona inclui uma nova temporada em São Paulo, em novembro e dezembro que marcará o lançamento do CD "As Cidades ao Vivo".
"Não me considero um homem especialmente bonito", diz Chico, refutando a freqüente imagem de "deus de olhos verdes" que lhe é atribuída pelas fãs mais delirantes. "O que pode encantar as moças está nas minhas músicas e não na minha presença física."
Marie Claire - Há cinco anos, você se mostrou surpreso com a garotada que freqüentava seu show "Paratodos". Isso acontece na temporada de "As Cidades"?
Chico Buarque - Sim. Gente que ainda não tinha idade para assistir ao "Paratodos" está me vendo pela primeira vez.
MC - E esses jovens vão ao seu camarim? Fazem perguntas?
Chico - Vão. Geralmente, falam comigo atraídos pelo disco, o que é engraçado. É gente com muita curiosidade musical. Também procuram muito o maestro Luis Cláudio Ramos, que fez o arranjos. Notamos isso também na minha home-page, que recebe uma quantidade grande de gente muito moça, procurando informações sobre o disco, sobre arranjos, sobre o fazer musical mesmo. Pra eles, sou um artista que estão conhecendo agora. Pra mim, de certa forma, esse tipo de abordagem é uma novidade, por ser mais musical do que política ou poética, como acontecia antes.
MC - Reencontrar o público, cinco anos após seu último show, é mais fácil hoje?
Chico - É sempre custoso. Montar um espetáculo depois de tanto tempo afastado do palco significa ensaiar muito mais, reaprender uma série de coisas. Os shows exigem bastante também pelo lado musical. Hoje eu me sinto mais músico que cinco anos atrás e muito mais do que no início da carreira, mas ainda não tiro de letra, nem uma noite. Fazer o show é prazeroso no final das contas, mas eu . ainda fico tenso. Tanto é que, desde a temporada no Rio, eu passei meus jogos de futebol para a noite, após o espetáculo. Assim o show não fica prejudicado.
MC - Por que? Prejudica a concentração?
Chico - Porque cansa mesmo, fisicamente. E a voz também se ressente um pouco.
MC - Num depoimento à revista "Época", logo depois de ter assistido ao seu show, Caetano Veloso disse que acha você "muito paulista", por você ter crescido e se educado em São Paulo, além de ter feito nessa cidade suas canções mais populares. Você sente que sua porção paulista é maior do que a carioca?
Chico - Acho que esse comentário dele deve ter a ver com a época em que a gente se conheceu, quando eu morava em São Paulo. Na verdade, eu me sinto bastante dividido. Não me sinto paulista, mas também não me sinto carioca. Já aconteceu até um caso engraçado. Uns dez anos atrás, eu assinei um manifesto político em apoio ao ex-deputado Fernando Morais. Um jornalista da "Folha de S. Paulo", tentando me atingir, escreveu três coisas. Primeiro, botou minha idade no jornal, aumentando uns quatro anos (risos). Depois botou "comunista histórico". Até aí ele já tinha me ofendido um pouquinho, mas quando me chamou de "carioca" é que eu fiquei ofendido mesmo. Com isso ele sugeria que eu não teria direito de opinar numa eleição paulista. Nesse dia, eu, que tinha o apelido de Carioca em São Paulo, percebi o quanto valorizo minha cidadania paulista.
MC - Seu pai (o historiador Sérgio Buarque de Hollanda) foi uma espécie de orientador de seus primeiros passos na literatura, sugerindo leituras e fazendo críticas a seus primeiros textos. E quanto à música?
Chico - Ele gostava muito de cantar, especialmente quando bebia um pouquinho e ficava alegre. Ele cantava em italiano, em alemão e também muitos sambas antigos. Apesar de ser muito amigo do Vinícius (de Moraes), ele não era chegado em bossa nova.
MC - Você aprendeu sambas com ele?
Chico - Muitos. Lembro dele e de minha mãe, em casa, cantando Noel Rosa. Conheci o samba "Último Desejo" (de Noel) e essas coisas todas através dos meus pais. Numa lembrança mais remota, mais do que rádio ou vitrola, é esse cantarolar constante dos dois que vem à minha memória. Eles também gostavam muito de Ismael Silva, de sambas dos anos 30, da época em que namoraram.
MC - Algum dos dois estimulou você a seguir a carreira musical?
Chico - Ao contrário, jamais houve algum empurrão. Minha mãe, que tinha uma visão da vida mais prática do que meu pai, ficou muito satisfeita quando entrei para a faculdade de Arquitetura. Eu era meio indisciplinado, quase um vagabundo. Eu já bebia bastante, e ela tinha um pouco de medo. Quando comecei a abandonar a Arquitetura para fazer música, ela até foi à faculdade trancar a matrícula por mim. Eu já sabia que não ia voltar nunca, mas ela guardou por um bom tempo a esperança de que eu voltasse ao bom caminho. Até porque, a música não era uma opção profissional pra mim, no início. Era uma farra, uma brincadeira.
MC - E por que você escolheu Arquitetura para estudar?
Chico - Por exclusão. Eu precisava entrar numa faculdade e gostava muito de Arquitetura. Aliás, ainda gosto. Tinha o hábito de ficar imaginando e desenhando cidades, e lembro de minha avó dizendo: "Chico, você vai ser urbanista, quando crescer". Tinha também aquela coisa de Brasília e de Oscar Niemeyer, que era uma figura mítica par mim, apesar de eu tê-lo conhecido, por ele ser amigo de meu pai. Na minha geração havia um interesse grande por Arquitetura. Na verdade, quando entrei para a faculdade, eu me esforcei para acreditar que eu seria arquiteto um dia, mas não tinha muita convicção. Precisava de uma profissão e tentei. Naquela época, não se podia levar a sério uma faculdade de Letras, muito menos pensar na música como profissão.
MC - Hoje você dedica a maior parte de seu tempo a dois ofícios essencialmente solitários: a composição musical e a literatura. Você era uma criança solitária?
Chico - Não, eu fui um moleque de rua normal, de jogar bola e ter muitos amigos, além de muitos irmãos (seis). Nunca fui uma criança fechada, nem mesmo introvertida. Pelo contrário, eu era até extrovertido em demasia, mas eu tinha todo um mundo particular e imaginário, que preenchia meu tempo livre. Eu gostava de narrar jogos de futebol de botão. Inventava e desenhava cidades que tinham tudo: os cinemas, os nomes das ruas, os bairros, tudo inventado por mim. Eu também desenhava filmes, numa tira de papel, que exibia numa caixa de sapato, com dois lápis. Acreditava que era cinema e persuadia minhas irmãs menores de que era mesmo cinema. Fiz várias películas, com nomes de atores americanos imaginários, como Robert River. Eu passava horas sozinho ocupado com essas brincadeiras que têm a ver com o que eu faço até hoje (risos).
MC - E a literatura? Também era um prazer solitário, ou você chegava a compartilhá-la com os amigos?
Chico - Antes de entrar na FAU, comecei a cismar de ler livros em francês. Tinha dois amigos com quem eu conversava sobre literatura, em francês. Um era filho de franceses, o outro de alemães. Nós três freqüentávamos muito o bar Riviera (na esquina da rua da Consolação com a avenida Paulista, em São Paulo), antes que ele ficasse conhecido como reduto da esquerda. Nós éramos adolescentes, tínhamos 16 ou 17 anos, e ficávamos horas ali, trocando idéias sobre os poetas e romancistas franceses. Nessa época, também comecei a ler os russos, em francês, nas edições da Gallimard, tiradas da biblioteca de meu pai. Com 18 anos, eu ostentava um pouco isso, e costumava levar esses livros para a faculdade. Um dia, um colega mais velho veio caçoar de mim: "Você não lê nem um livro brasileiro?" (risos). A partir daí comecei a ler literatura brasileira, que eu conhecia pouco.
MC - Nessa época, você lia tanto quanto jogava futebol?
Chico - Eu lia mais. Joguei muita bola, no tempo do ginásio e do Científico, mas quando entrei na faculdade, parei de jogar bola por um bom tempo.
MC - Parece que uma das suas primeiras músicas, feita ainda na adolescência, chamava-se "Canção dos Olhos". É verdade que ela tinha uma insinuação a respeito de seus próprios olhos?
Chico - (risos) Nessa canção eu falava dos olhos de um a moça mas as amigas da minha irmã, a Miúcha, diziam que eu cantava essa música, piscando os olhos (risos). Devia ser uma vaidade inconsciente. Eu não seria tão cabotino assim. Logo depois resolvi virar intelectual e já não estava mais preocupado com isso. Esse negócio de ter olhos claros, no Brasil, chama atenção mesmo. Lembro de, ainda bem pequeno, ser parado na nua por senhoras, que pediam: "Deixe eu ver seus olhos, menino".
MC - Desde cedo já tinha consciência de seu poder de sedução?
Chico - Eu era bastante namorador e tal, mas depois que entrei para a faculdade estava sinceramente interessado em literatura e, mais tarde, em música. Eu não fazia disso, de forma nenhuma, um instrumento de sedução. A música pode ser um ofício sedutor e alguns amigos meus até exercitavam isso, como o Toquinho, que eu conheci ainda quando éramos garotos. Ele via a música como um fator de sedução, de aproximação das meninas, mas eu não. Quando veio aquela paixão pela bossa nova, eu só pensava nisso o dia inteiro. Foi uma coisa de louco. Fiquei sinceramente interessado pela música.
MC - Quando você sentiu que poderia seguir carreira na música?
Chico - Foi acontecendo aos poucos. Eu era novo quando comecei a ganhar dinheiro com música, de uma forma até um pouco irresponsável. Tomei consciência de que era um profissional de música, de uma forma até dolorosa, na época em que fui morar na Itália. De repente, eu estava em um país estrangeiro e vi que não havia outra saída mesmo. Aos 24 anos, desempregado e passando dificuldades, quando nasceu a minha filha, percebi que eu era um músico profissional. Ao voltar ao Brasil, a música já tinha deixado de ser aquela farra, aquele dinheiro fácil que se ganhava, que se gastava, que se bebia. Minha relação com a profissão mudou a partir desse momento.
MC - Você ficava muito indignado, quando suas músicas eram cortadas ou mesmo proibidas, na década de 70? A idéia de usar o pseudônimo de Julinho da Adelaide, para driblar a censura, sugere que, pelo menos naquele momento, você enfrentou o problema com humor...
Chico - Na época mais difícil, eu ficava ofendido e indignado, mas não era tanto pela censura e sim por tudo que a cercava. Teve um período em que eu era intimado a depor no DOPS quase semanalmente. Eu fazia aquele circuito universitário de shows e sempre acontecia alguma coisa. Às vezes eu cantava alguma música proibida, em outras vezes nem tinha cantado, mas por causa disso eu era periodicamente chamado ao DOPS. Um dia, virei para o inspetor, que sempre me tratava mal, e gritei: "Eu não agüento mais essa situação". Manifestei minha indignação de uma forma que até deixou o sujeito meio balançado (risos).
MC - Você explodiu...
Chico - Sim, porque aquela coisa era constante. Além das músicas censuradas, havia os shows proibidos, os shows com censores na platéia e no camarim. Não era brincadeira. Esse período foi da minha volta da Itália (1970) até por volta de 1974. Quando eu inventei o Julinho da Adelaide, o clima já estava um pouquinho mais brando. Há que se distinguir um pouco a época do Médici da época do Geisel. Era ditadura sim, a tortura continuava, mataram o Vladimir Herzog, mas a gente já se sentia um pouquinho menos sufocado do que no tempo do Médici. Para que eu criasse o Julinho da Adelaide, para brincar com isso, certamente já havia um clima menos sufocante do que antes. No começo dos anos 70, não havia graça nenhuma.
MC - Em entrevistas, você parece ficar incomodado quando perguntam sobre sua "alma feminina", sua capacidade de falar no feminino. O que incomoda? A repetição freqüente desse lugar-comum ou o fato de que essa é uma habilidade de importância menor na sua obra?
Chico - As duas coisas. Isso tem uma importância menor, inclusive porque está na tradição da música popular brasileira. Antes de fazer minhas canções, eu já conhecia músicas de Assis Valente, ou de Ary Barroso, cantadas no feminino. Isso não é nenhuma novidade.
MC - Mas por que então as mulheres indicam você como o grande porta-voz da "alma feminina"? Por que elas não escolheram, por exemplo, Tom Jobim? Será que o fato de elas verem você como um "deus de olhos verdes", como dizem algumas, não influencia essa escolha?
Chico - (risos) Olha, em primeiro lugar, o Tom Jobim era um homem muito mais bonito do que eu. Ele era um homem belíssimo...
MC - Sim, até o início dos anos 70, antes de engordar...
Chico - A minha vantagem é que eu ainda jogo bole e mantenho uma certa forma. Não me considero um homem especialmente bonito, apesar de ter estes olhos verdes que já chamavam atenção quando eu era criança. Mas eu quero acreditar, ao contrário do que dizem as colunas cariocas que brincam muito com isso, que as pessoas vão ao show para ouvir as músicas. Há até um marketing involuntário, em cima dessa coisa, mas as pessoas que vão ao show para ver um "deus de olhos verdes" devem sair decepcionadas.
MC - E os gritinhos das tietes na platéia? Te incomodam?
Chico - Não. Tem gente que grita aquelas coisas, mas isso também acontece no show de outros artistas. Eu não me sinto desrespeitado por isso, porque eu não sou besta, mas acredito que o que interessa e o que pode encantar as moças é o que está nas minhas músicas e não na minha presença física. Acho que eu tenho canções que falam de amor, com propriedade, não só porque falam no feminino. Às vezes são canções feitas para as mulheres, cantadas no masculino. Forçar a barra nesse sentido, pra mim, equivale à tendência oposta de forçar demais a barra do cantor de protesto, do cantor político. Eu passei a vida inteira tentando nuançar esses clichês. Meus discos e shows têm canções de amor e de temática social. Para um determinado tipo de público e de imprensa, até bem pouco tempo atrás, eu era um cantor engajado, mas eu dizia: "Espera aí, não sou tão político assim. Escrevo músicas falando de amor, sou um cantor lírico". Talvez eu tenha exagerado e feito o barco pender demais para outro lado. Acho que está na hora de todo mundo sentar do outro lado do barco (risos).
MC - Você já disse que, na condição de escritor, o melhor da literatura está no prazer de ler o que se escreveu. Você vê a música dessa maneira? Você também compõe para si mesmo?
Chico - Eu nunca tinha pensado nisso. É claro que a música é refeita, reescrita, mas o meu prazer não é o de ouvir. Na verdade, eu gosto mais de ler do que de ouvir música. Ouço minha música durante o período em que está sendo gravada, mas desconfio que tenho mais prazer no ato de criar a música, do que no ato de escrever. Há momentos de prazer ao escrever, mas você vai refazendo e o prazer só é completo quando você lê e está satisfeito. Na música não, o prazer acontece a cada momento em que ela vai aparecendo. O fazer musical, pra mim, é mais intuitivo do que a literatura. O prazer está ali, na mágica das coisas que aparecem sem que você saiba exatamente como.
MC - Ao terminar uma canção muito especial, você já chegou a sentir a sensação de que jamais poderia fazer outra melhor?
Chico - O Tom Jobim brincava com isso. Quando alguém dizia a ele "depois dessa canção você não precisa fazer mais nada", ele tomava isso como uma provocação. "Não preciso fazer mais nada? Vocês querem que eu morra?" (risos). No momento mesmo em que você está terminando uma música, às vezes atinge um grau de prazer e satisfação, que você chega a dizer: "Ainda bem que eu não morri ontem, porque eu ainda tinha que fazer essa música". Mas isso já me aconteceu várias vezes, não com uma música em especial.
MC - O sucesso de alguma canção sua já chegou a surpreendê-lo?
Chico - Na verdade, a minha relação com o sucesso popular mudou muito. Hoje, se eu fosse ficar preocupado com isso, estaria frustrado. Quando comecei, minhas músicas tocavam muito mais no rádio do que hoje, havia os festivais. Dentro de um mesmo disco, três ou quatro músicas podiam estourar. Às vezes eu ficava surpreso com o sucesso de algumas delas, como "Carolina", que era uma música despretensiosa. Eu estava na Bahia, quando a Cynara e a Cybele cantaram "Carolina", no Festival Internacional da Canção. Lembro de ter sido procurado pelo Ruy, do MPB-4, que era casado com a Cynara. Ele me pediu uma canção para a dupla. Aí eu disse a ele: "Olha, eu tenho uma música aqui, mas não é muito boa" (risos). Eu estava em Salvador, e não estava nem ligado no festival. Mas tinha uma rádio de ondas curtas e pegou uma emissora do Rio, que estava transmitindo o festival. Eu ouvi as duas cantando, surpreso. Quando terminou foi uma ovação enorme, no mesmo Maracanãzinho que, um ano mais tarde, vaiou "Sabiá".
MC - Você já sofreu a chamada angústia da influência? Precisou superar a influência de alguém que marcou sua música?
Chico - Não. Eu comecei a fazer música sob a influência da bossa nova e fazia imitações escrachadas da bossa nova. Como eu não tinha nenhuma veleidade de compositor, naquele época, eu queria ser um sub-João Gilberto, fazendo música como um sub-Tom Jobim. Eu me assumia como um imitador de João Gilberto e não queria ser melhor do que isso. Na minha ingenuidade de amador, eu achava que conseguia fazer uma música parecida com a bossa nova e achava que isso já estava bom. Quando comecei a escrever, também tentei ser várias coisas: fui Céline, quis ser Zola por um tempo e, mais tarde, queria ser Guimarães Rosa. Na ingenuidade dos 18 ou 19 anos, eu achava que já estava escrevendo quase tão bem quanto o Guimarães Rosa (risos). Mas não era nada, apenas cacoetes e neologismos. Tem até um resquício disso, que aparece na canção "Pedro Pedreiro" o verso "Pedro pedreiro penseiro" ainda era aquela coisa de achar que eu podia ser Guimarães Rosa. Foi preciso um tempo, alguns anos para a música, e décadas para a literatura, para que eu pudesse me reconhecer como um autor com uma linguagem pessoal. Hoje, tenho consciência de que o que escrevo é meu. E a música que faço também é minha. Devo a outros autores, com certeza, mas tenho a minha marca pessoal. Nunca passei por esse tipo de angústia.
MC - E verdade que você costuma se aborrecer nas férias? Você se considera um "workaholic"?
Chico - Sim, mas o engraçado é que eu tenho fama de vagabundo. Tem o cara do Bar Jóia, lá perto de casa, onde eu vou tomar água de coco, que me provoca: "Continua vagabundo, hein?". O que eu digo é o seguinte: eu preciso de algum tempo de vagabundagem, para fazer o que eu faço. Mas se eu estiver de férias, sem nada em mente, nenhum trabalho, eu não me divirto. Lá pelo terceiro ou quarto dia, já fico meio inquieto. Isso acontece bastante. Quando eu termino um trabalho muito longo, digo: "Agora eu mereço férias". Faço planos maravilhosos de viagem, mas eles sempre são melhores do que as viagens. Como os projetos de vida, que sempre são muito melhores do que a vida. Eu me divirto pensando em como vão ser minhas férias, mas quando elas chegam não têm tanta graça.
MC - Você já fez psicanálise?
Chico - Tentei três vezes, mas não posso dizer que tenha feito mesmo. Quando começava, era porque estava sem conseguir escrever música. Daí, um mês ou dois depois, quando eu voltava a trabalhar, começava a faltar nas sessões e acabava desistindo. Então eu nunca desenvolvi um tratamento psicanalítico. Essa angústia que me levava à psicanálise estava quase sempre ligada ao vazio criativo. Toda a vez que isso acontece, a gente sabe que vai passar, mas pode ser bastante angustiante.
MC - Uma sensação de que você não tem mais nada de novo a dizer?
Chico - É, exatamente isso. Eu achava que nunca mais iria compor nada. Passavam-se quatro ou cinco meses e não saía nada, como se eu estivesse de férias. Só que essas férias acabavam no divã (risos). Já de uns dez anos pra cá, eu tenho isso mais ou menos resolvido na minha cabeça. A partir do momento em que, depois de um largo tempo sem compor, eu comecei a escrever um livro, eu tive a impressão de que posso preencher o vazio da música com outra atividade. Não sei se isso é mesmo verdade, mas de uns dez anos pra cá eu não procurei mais a psicanálise.
MC - É verdade que, apesar de sua home-page existir há meses, você nem tem conexão com a Internet em casa? Isso é desinteresse ou aversão por esse tipo de tecnologia?
Chico - Não é aversão, não. Tenho a impressão de que, se instalara Internet em casa, vou ficar sentado ali horas a fio.
MC - Então é medo de ficar viciado?
Chico - É, medo de viciar e de perder muito tempo com isso. Já perco muito tempo com coisas inúteis, até jogando paciência no computador. Para começar a escrever alguma coisa, tenho que jogar um pouco de paciência. Isso já virou uma lei na minha cabeça. Depois de uma hora jogando, eu me pergunto: "O que é mesmo que eu ia fazer?". Aí jogo mais um pouco e, quando percebo, já perdi quase uma tarde inteira.
MC - Hoje, não bastasse o impacto da TV, a atenção das crianças também se divide bastante entre a Internet e jogos eletrônicos. Você se preocupa com isso, já na condição de avô?
Chico - Avô não tem que ter obrigação, nem preocupação nenhuma. Eu fico preocupado apenas por tabela. Penso que a minha filha deve ficar atenta a isso. Vejo isso na casa de amigos, que têm filhos menores.
MC - Você se vê no papel de incentivar seus netos a ler?
Chico - Convencer o Chiquinho a ler? Como se diz por aí, é ruim, hein? (risos). Não acredito muito nesse tipo de indução, mesmo que sutil. Tenho a impressão de que talvez algum neto meu venha a se interessar por livros, ao ver que alguém da família tem prazer nisso. Ver o amor que o meu pai tinha pelos livros, o fato de a casa dele ser aquela biblioteca, me marcou bastante. Mas acho que se o meu pai ficasse me empurrando livros para ler, eu talvez rejeitasse. Aliás, para mim, essa coisa de leitura obrigatória era um aborrecimento muito grande. Eu só fui ler Eça de Queirós e coisas assim mais tarde. O que eu lia na escola era tudo de mentira. Quando tinha de escrever algo a respeito, eu lia apenas a orelha dos livros. Desconfio um pouco desses programas de incentivo à leitura.
MC - Você foi um pai menos ocupado do que o seu?
Chico - Há uma diferença grande entre a minha geração e a de meus pais, no trato com crianças. A preocupação pedagógica com a criação dos filhos praticamente não existia na geração deles. Diziam que crianças eram feitas para serem vistas e não ouvidas. E isso não acontecia apenas na minha casa. Mais tarde, nos anos 60, começou essa história de os pais ficarem preocupados com os filhos. Eu procurei ser mais atento. Ao mesmo tempo, na época em que minhas filhas nasceram, eu era mais ausente do que gostaria, porque viajava muito fazendo shows.
MC - Você se vê fazendo música e literatura até o fim da vida?
Chico - Já está de bom tamanho. Não tenho outras ambições.
A paixão eterna de Chico Buarque
Maior compositor da MPB, cantor, escritor, ator de cinema, autor de teatro, enredo (vitorioso) de escola de samba - de tudo Chico Buarque já fez um pouco. Agora, enquanto grava um novo disco, ele prepara uma surpresa para seus fãs: vai ser cronista esportivo. Durante a Copa da França, Chico será colunista do GLOBO e, em seus textos, poderá mostrar toda a paixão que tem pelo futebol. Nesta entrevista exclusiva, ele fala da infância de peladeiro, da admiração pelo futebol ofensivo, de seus ídolos, da tentativa de ser jogador profissional e da frustração de não ter feito um gol no Maracanã. O prazer que tem de jogar é tão grande que os contratos de show no exterior têm que incluir uma pelada. "Já joguei em Paris, Portugal, Angola e até em Cuba."
RF - Você está indo para a Copa dentro de poucos dias. Qual a sua opinião sobre o time do Brasil: é um timaço ou está com cara de ser um novo 1966?
Chico - Eu não lembro o time de 1966. Engraçado, foi uma Copa que eu não acompanhei muito, estava meio desligado de futebol. Eu acompanhei até 1962 e depois pulei 1966. Agora, comparando com a última Copa - e o futebol mudou tanto - acho que a gente tem mais time, tem mais jogadores, tem mais opções.
RF - A espinha dorsal do time, com Aldair, Dunga e Romário, está mais velha. Isso pode influenciar?
Chico - Eu não entendo de futebol... Eu vou a essa Copa, que é a primeira que eu pretendo assistir do começo até o fim, mas a minha idéia de escrever é um pouco de escrever sobre futebol também para quem não entende de futebol que nem eu. Porque eu acho que a Copa é um acontecimento que interessa até a pessoas que não se interessam por futebol, que não gostam de futebol ou que não acompanham futebol. Eu gosto de futebol, o que não quer dizer que eu entenda de futebol. Geralmente a gente gosta das coisas que não entende exatamente. Eu não entendo nada de música e gosto de música e trabalho com isso.
RF - Eu ouvi bem? Você está dizendo que não entende nada de música nem de futebol?
Chico - A gente gosta das coisas que não entende; as coisas que entende a gente não gosta. Eu entendo de quê? De gramática, de trigonometria! Mas eu não gosto dessas coisas... Futebol eu sou um apreciador, mas eu nem acompanho muito bem uma partida. Estou prevenindo sobre isso porque eu vou escrever sobre futebol e quero que as pessoas saibam que vão ler textos de quem não observa talvez muito objetivamente um jogo de futebol. Eu gosto tanto de futebol que, muitas vezes, assistindo a uma partida, eu me desligo inteiramente do que está acontecendo. Uma jogada bonita, por exemplo, que é interrompida, eu fico imaginando o que é que poderia acontecer e fico ainda um tempo parado naquilo. E aí a bola já está no outro lado do campo, e se me perguntarem o que aconteceu eu não sei reproduzir, porque estava pensando em outras possibilidades. Então é isso: eu não quero que esperem de mim uma análise muito objetiva. Mas, sobre a seleção, vamos lá: a gente tem um time um pouco envelhecido e até entre os jogadores que não vão acho que a gente tem um time de jogadores aptos a jogar pela seleção mais do que há quatro anos. Acho mesmo. Sem falar do Ronaldinho, que já deveria ter jogado nos EUA - até para nos dar o gosto de ver um Ronaldinho jogar uma Copa com 17 anos.
RF - Nesta discussão sobre maior ou menor número de atacantes, como você fica?
Chico - Eu só gosto de futebol ofensivo, só gosto de ataque. Aliás eu não entendo nada de jogador de defesa. E gostaria que tivesse mais jogadores na frente. O Denílson, por exemplo, só é convocado pelo que ele joga no São Paulo, não como marcador. Mas aí o Roberto Carlos, como ala, joga na função que é do Denílson. Eu não vejo por que não possa jogar na função de número 1 o Muller, por exemplo, que faz isso no Santos também. O que eu estou vendo é que as pessoas reclamam que os atacantes estão muito isolados e ao mesmo tempo atrás também falta jogador. Quer dizer: eu não sei onde estão esses jogadores... Estão todos embolados no meio de campo e estão marcando no meio de campo, e todos não atacando no meio de campo e deixando os atacantes isolados e a defesa muitas vezes também desguarnecida, em situação de desvantagem.
RF - Rivaldo e Giovanni, que não vinham jogando, poderiam ser mais bem trabalhados?
Chico - O Rivaldo, pelo que a gente vê pela TV no Barcelona, está jogando muita bola. Na seleção ainda não vi ele jogar o que está jogando no Barcelona. Então, deve ser um problema tático.
RF - Qual a sua opinião sobre o Zagallo?
Chico - Tenho dificuldade de entender o que ele pensa. Eu não me lembro muito do Zagallo se definindo em relação ao futebol. Eu lembro muito do Telê falando, ele tinha uma opção clara pelo futebol bonito, é um sujeito preocupado com a violência no futebol. O Zagallo eu vejo opinar muito pouco. Ele fala muito de vitória, "nós ganhamos, nós perdemos, nós jogamos muito mal", sempre essas coisas. Inclusive aquela coisa meio desagradável de que quando ganha ele fica um pouco enfurecido. Mas ele não é nada bobo: joga muito com essa coisa do resultado e com a superstição, repetindo que é um homem de sorte. E de certa forma as pessoas acreditam muito nisso. As pessoas acreditam que futebol é sorte - e um pouco é mesmo. O Brasil ganhou a última Copa por causa de um pênalti, aquilo foi sorte. Mas realmente não sei o que o Zagallo pensa sobre futebol.
RF - Qual a primeira Copa que você se lembra?
Chico - A de 1950. Na Copa de 50 eu até assisti a uma partida entre Brasil e Suíça. Eu morava em São Paulo na época. Depois, em 54, eu morava na Itália e vi pela televisão, passava direto da Suíça. Me lembro de Brasil e Hungria. E 58 e 62 eu ouvi pelo rádio.
RF - E você se desligou do futebol depois disso por quê?
Chico - Em 1966 eu estava começando com música, estava estudando arquitetura. Engraçado isso, porque eu jogava muito futebol na escola e depois que eu fui para a faculdade parei de jogar e de acompanhar um pouco. Eu gosto mais de jogar bola do que de assistir. Em 1970 eu tinha voltado para o Brasil e em 1974 eu estava aqui também.
RF - Em 1970, depois em 1994, houve muita acusação de uso político das vitórias do Brasil pelos governos. Você acha possível isso acontecer agora?
Chico - Eu acho difícil o Fernando Henrique convencer alguém de que ele gosta de futebol... Em 1970 a gente percebia claramente que havia um uso da seleção. Aí era violento e a gente não pode nunca comparar com 1994 e nem com uma possível exploração política em 1998. Em 1970 era evidente, toda a propaganda era voltada para isso. Inclusive o próprio Médici era supostamente uma pessoa que entendia de futebol e ia ao campo com aquele radinho de pilha. Uma vez eu estava no Maracanã e quase fui atropelado por aqueles batedores chegando com o Médici. Foi a única vez que eu vi o Médici, de longe. Mas quem gosta de futebol, como eu gosto, era incapaz de reagir politicamente ao uso político da Copa a ponto de torcer contra o Brasil. Talvez por causa desse uso político feito durante a ditadura militar, eu fiquei um pouco avesso a essas patriotadas, que são recorrentes. Não é nem por imposição de governo hoje em dia. É uma coisa que ficou impregnada no tipo de uma opção de transmissão, essa propaganda toda que se faz em volta: "Brasileiro gosta de futebol, brasileiro gosta de mulher." Como se os outros povos não gostassem... Fica muito Brasil, Brasil, Brasil, que é uma coisa meio desagradável e lembra um pouco esse período aí. Mas eu torcia pelo time brasileiro sem torcer pelo Governo.
RF - Tem que ter muita frieza para conseguir não torcer pela seleção.
Chico - Principalmente porque o time era bom, o futebol era bonito. Eu não sou patriota a ponto de torcer pelo Brasil quando ele joga mal. Pelo contrário: se estiver jogando mal, se estiver jogando contra um time que está jogando muito bonito, eu sou capaz de torcer para o Brasil tomar um gol. Se tiver uma jogada de ataque de Camarões contra o Brasil e a jogada for maravilhosa, eu vou torcer para aquela bola entrar. Eu gosto de futebol bonito. Essa Copa de 1994... Não me interessa esse tipo de vitória.
RF - A seleção de 1982 marcou muito mais do que a de 1994.
Chico - Mas muito mais! Para mim e para todo mundo. Quando as pessoas conversam comigo de futebol no exterior, na Europa, elas vêm falar toda hora no time de 82. Ninguém fala do de 94... E falam do Falcão, do Zico, do Sócrates. O tempo todo. Ninguém esquece. Então eu me pergunto: para que ser campeão do mundo? Ser campeão e fazer o que com essa taça? Guardar para ser roubada? Não interessa o troféu.
RF - Você jogava muita pelada quando era garoto?
Chico - Eu jogava muito na rua, em São Paulo, onde passei toda minha a infância. Quando eu vinha ao Rio jogava um pouco na praia, mas nunca me dei bem com futebol na areia, não estava acostumado. Mas jogava futebol na rua mesmo, de parar quando vinha carro. É claro que vinha carro muito de vez em quando. Hoje isso seria impossível, a rua que eu jogava é movimentadíssima, cheia de restaurantes, a Rua Haddock Lobo. E era assim: quando vinha um carro lá em cima o pessoal gritava: "Olha a morte!" Parava o jogo, passava a morte, e continuava depois. O futebol que eu jogava era praticamente só esse. Fui jogar em campo só na escola. E joguei algumas vezes em campo de várzea lá em São Paulo.
RF - E como é que você, criado em São Paulo, virou torcedor do Fluminense?
Chico - Porque eu morava em São Paulo mas era carioca, vinha sempre ao Rio, minha família era daqui. Quem me levava para futebol era minha mãe, meu pai não dava bola para futebol. E minha mãe era torcedora do Fluminense, sabia o time tricampeão de 1917/18/19. Até hoje ela sabe de cor esse time. Eu lembro de um Palmeiras e Fluminense até hoje. Lembro bem que o Castilho defendeu um pênalti e o juiz mandou cobrar de novo... Eu fiquei revoltadíssimo. Era aquele time de Castilho, Píndaro e Pinheiro.
RF - Tirando aquela breve interrupção, você nunca mais parou de jogar peladas.
Chico - Depois dessa interrupção, voltei a jogar. Quando eu morei na Itália, em 1969, jogava futebol lá. Cheguei a jogar num time semi-amador, uma vez chegaram a me dar ajuda de custo num treino. Na volta joguei muito futebol de salão, aqui perto, no Clube Carioca, e depois comecei a jogar lá no Recreio dos Bandeirantes.
RF - E hoje você joga em qualquer lugar do mundo...
Chico - Em qualquer lugar. Faz parte do meu contrato, quando tem shows, temporada lá fora, faz parte do contrato uma pelada. E tenho jogado por aí: Paris, jogo bastante em Portugal, em Angola, em toda parte. Até em Cuba consegui jogar futebol... Não jogam nada!
RF - É verdade que você saiu de uma reunião de escritores em Paris para jogar uma pelada nessa última viagem?
Chico - Lá em Paris tem um campinho que eu jogo sempre, aqueles campinhos da Prefeitura na periferia, com grama sintética. Sempre tem uma pelada, com latino-americanos e africanos - o francês de uma forma geral não gosta muito de pelada. Eu não cheguei a largar nenhuma reunião para jogar futebol, mas deixei de ir a algumas...
RF - Você não é um torcedor desses que fica nervoso, nem quando o Fluminense perde?
Chico - Eu não posso ficar nervoso quando o Fluminense perde, senão eu viveria nervoso... Tinha um tempo que eu ia mais ao Maracanã, quando o Fluminense era um time mais de competição, e aí eu torcia. Eu já não esquento com isso. Nem posso... O Fluminense não me anima mais.
RF - Reza a lenda que o seu time, o Politheama, nunca perdeu uma partida...
Chico - Partida oficial o Politheama nunca perdeu. Impressionante esse número. Vinte anos!
RF - Como começou o Politheama?
Chico - O Politheama era o meu time de botão que foi promovido a gente... O time surgiu quando a gente começou a jogar nesse campo do Recreio. Tinha um pessoal de música, um pessoal que jogava salão no Clube Carioca, tinha a turma de cinema também. O difícil é conseguir adversário na mesma faixa etária: não dá para manter essa invencibilidade jogando contra garotos. Agora quem está indo muito ao campo são os filhos dos artistas. Então vão os filhos do Djavan, do Novelli. Lá fora, quando a gente chega, quer adversários de mais de 40 anos. E é difícil conseguir onze jogadores com mais de 40 anos...
O que é mais emocionante: ganhar uma Copa do Mundo ou um desfile de escola de samba?
Chico - Eu nunca ganhei uma Copa do Mundo, nunca fui convocado... Mas imagino que seja uma coisa parecida. É claro que ganhar uma pelada, ganhar uma partida pelo Politheama, não é a mesma coisa que desfilar pela Mangueira. É claro que não! E a platéia é maior...
RF - Embora você tenha dito que não entende nada de futebol, várias músicas suas falam de futebol.
Chico - Tem menos do que eu gostaria. Tem uma música chamada "O futebol", e fora isso o futebol é citado aqui e ali em meia dúzia de músicas.
RF - A primeira foi aquela que você fez para o Ciro Monteiro.
Chico - Essa do Ciro é a transformação da camisa do Flamengo que ele mandou para a Silvinha, quando eu morava em Roma, numa camisa do Fluminense.
RF - Você tem uma música que fala até num jogo Flamengo e River Plate. Onde você foi arranjar esse jogo?
Chico - Acho que foi só por causa da rima. River Plate era para rimar com leite... "O futebol" é a homenagem aos meus cinco atacantes preferidos: Garrincha, Didi, Pagão, Pelé e Canhoteiro. É a dedicatória que vira uma linha de passe.
RF - Nessa música você compara o trabalho do compositor ao dos craques.
Chico - O do compositor, do pintor... Eu coloco o futebol acima dessas artes todas. Não que eu considere o futebol uma arte superior a estas. Mas há certos momentos de genialidade do futebol, daquela capacidade de improviso, alguns relances que acontecem no futebol, que artista nenhum consegue produzir.
RF - Tirando Pelé e Garrincha, esses são os melhores jogadores que você viu em atuação?
Chico - Isso tem muito a ver com o futebol que eu assistia nessa época, na década de 50. Normalmente é nessa idade que você gosta de futebol, entre 10 e 20 anos. Depois você começa a se interessar por outras coisas, começa a namorar, vai trabalhar. Eu era como essa garotada de hoje que adora futebol. Quando eu morava perto do Pacaembu, em São Paulo, eu assitia a tudo o que acontecia lá. Na verdade, o que eu queria era ser jogador de futebol. Isso era por volta de 58. O Pelé, o Garrincha e o Didi todo mundo viu jogar, mas o Pagão e o Canhoteiro pouca gente viu. Só quem morava em São Paulo ou esporadicamente em jogo de seleção. Essa linha nunca jogou junta. Esse ataque dos meus sonhos nunca chegou a se juntar. Pagão era um cracaço, mas não jogou muito tempo. Ele foi um dos grandes parceiros do Pelé. Eu vi a dupla Pelé-Pagão acontecer ali no Pacaembu: era uma dupla infernal. E quando via ele jogar eu queria ser o Pagão. Aliás eu sou o Pagão: na súmula do Politheama assino Pagão, e a minha camisa é a 9 em homenagem a ele.
RF - Você joga mais tabelando e servindo...
Chico - ...para o Vinícius (França, produtor de Chico) fazer os gols... Ele é produtor, mas no futebol eu é que trabalho para ele. Mas eu gosto. Eu tenho prazer em servir o centroavante. Estava conversando com o Tostão outro dia e ele falou daquele time famoso do Cruzeiro, que tinha o Natal, o próprio Tostão e o Evaldo, que era um centroavante que não gostava de fazer gol. Eu gosto de fazer gol, mas essa coisa que chamam de assistência é formidável. Entregar uma bola de bandeja e fingir que não foi você que fez o gol. Foi você que fez o gol, claro.
RF - E o Canhoteiro, seu outro ídolo? Esse quase ninguém sabe quem é hoje em dia.
Chico - Canhoteiro era um gênio. As pessoas o comparam ao Garrincha. Ele jogava na ponta esquerda, era um driblador, só que tinha um drible na corrida, mais veloz, não parava como o Garrincha. Ele tinha essa coisa lúdica igual ao Garrincha: você ria vendo o Canhoteiro jogar. O ataque do São Paulo era Maurinho, Dino Sani, Gino, Zizinho e Canhoteiro. Naquele ataque dos meus sonhos falta o Zizinho, que só não está porque não sobrou espaço. Ele é o técnico desse meu ataque. O Pelé me disse uma vez que o ídolo dele era o Zizinho.
RF - O sonho de todo peladeiro, que é jogar no Maracanã, você já realizou. Mas o segundo sonho de todo peladeiro, que é fazer um gol no Maracanã, você não conseguiu. Como foi isso?
Chico - Eu joguei algumas vezes no Maracanã. Na chance mais evidente que eu tive, estava na frente do gol, o gol livre, pela esquerda vinha Vinícius, o goleiro fechou o gol - quer dizer, cabia ao Vinícius simplesmente tocar para a direita que eu estava ali para marcar - e o Vinícius tocou em cima do goleiro. No futebol, é dando que não se recebe.
RF - A sua vontade de ter sido jogador de futebol às vezes lhe faz até se apresentar como se fosse. É verdade isso?
Chico - É verdade. A última vez eu estava no Marrocos. O que o pessoal lá gosta de futebol é impressionante. Essa coisa de que brasileiro gosta de futebol, brasileiro gosta de mulher, brasileiro gosta de carro... No Marrocos, pelo menos de futebol eles gostam mais do que brasileiro. Só falam de futebol. A última vez que eu falei que era jogador de futebol no Brasil foi no táxi. Aí o motorista olhou para minha cara e disse: "Ex-jogador, né?" Mas eu menti bastante. Falei até que tinha ido para a Copa de 82. Só que o cara sabia todos os jogadores. Aí eu falei: "Não, eu fiquei no banco, estava machucado. Eu era reserva do Sócrates." Se bobeasse, ele ia saber quem era reserva do Sócrates, pois sabia o time inteiro. Impressionante o Marrocos: você vai naquelas lojas comprar tapete e só tem figurinha nos balcões, dos times do mundo inteiro. Fiquei procurando a minha...
RF - Do jeito que você fala, parece que você é um jogador frustrado que compõe, e não um compositor que joga bola.
Chico - Mas eu queria mesmo ser jogador. Cheguei a tentar fazer um teste no Juventus lá em São Paulo. Fui à Rua Javari, levei chuteira, fiquei na arquibancada horas e horas e não me chamaram. Acho que o "physique du rôle" não convenceu o técnico. Passou o tempo todo e ele mandou eu voltar outro dia. Eu não voltei. Não cheguei a colocar à prova o meu talento...
RF - Uma passagem que quase ninguém sabe na sua vida é quando você serviu de motorista para o Garrincha na Itália.
Chico - Quando o Garrincha chegou a Roma, foi um pouco como marido da Elza, que tinha ido lá fazer uns shows. Na época, em 1969, ele jogava umas peladas remuneradas, e gostava muito daquilo. Geralmente eram jogos em campinhos perto de Roma. Mas era impressionante a popularidade do Garrincha. Ele foi lá em casa umas três vezes, e eu só sei que ganhei um prestígio imenso com o sujeito do bar que ficava no térreo do meu prédio quando ele soube que eu conhecia o Garrincha. Ganhei um prestígio imenso lá. A gente saía de carro e eu levava ele para essas peladas. Era impressionante como, sete anos depois da Copa de 62, todo mundo ficava atrás: "Garrincha, Garrincha." E eu era o chofer dele.
RF - Nessa época ele bebia muito?
Chico - O Garrincha bebia, e eu não posso falar nada porque eu bebia com ele, na época. Mas ele estava muito bem de espírito, nunca vi ele bêbado. Bebia bastante mas estava sempre alegre, não tinha aquela coisa depressiva do alcoolismo. Eu via nele um sujeito muito sensível, a gente falava muito de música. Fiquei muito impressionado que ele pudesse gostar de João Gilberto. E ele adorava João Gilberto. Nós falávamos de tudo, não era só de futebol. E falávamos tomando cerveja, tomando grapa.
RF - Antes de ir para Paris você ainda termina de gravar o seu novo disco?
Chico - Estou terminando. Ainda falta escrever mais uma ou duas músicas, o resto já está bem adiantado, gravado. Estou dividindo meu tempo entre isso e a idéia de escrever para o jornal sobre a Copa do Mundo. Esse disco, mesmo que fique pronto antes da Copa, não sai antes de agosto. Durante a Copa não se lança nada no Brasil, pára tudo.
RF - E esse disco representa o que no conjunto da sua obra?
Chico - Eu não sei bem ainda. É sempre assim: quando o repertório estiver completo é que eu vou saber a cara do disco, o nome do disco, a capa. O disco não tem cara ainda. Tem oito músicas já gravadas com arranjo pronto e ainda não sei o que é esse disco. É um disco gravado com bastante tempo, tem canções que foram escritas ano passado, como a música do filme "A ostra e o vento". São canções que foram sendo acumuladas esse tempo todo. No último disco que eu lancei com músicas novas, o "Paratodos", as músicas vieram todas de enxurrada. Nesse agora não, elas estão vindo a conta-gotas. Isso dá uma outra cara ao disco, que eu não sei ainda qual é, mas é uma cara diferente das outras.
A busca solitária e silenciosa de quem conta e reconta a vida em textos e canções
Desde que em 1965 iniciou sua carreira como compositor profissional e principal intérprete de suas próprias canções, Chico Buarque de Hollanda tornou-se uma espécie de fenômeno único no Brasil. Nascido no Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1944, filho de Sérgio Buarque de Hollanda - um dos mais prestigiosos intelectuais do século no país, autor de alguns dos estudos fundamentais da História do Brasil - , sua carreira extrapolou rapidamente os limites das de seus contemporâneos. Se é verdade que ele pertence à geração mais marcante da música brasileira contemporânea - a de Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Milton Nascimento, entre outros - também é verdade que sua obra estendeu-se ao teatro, ao cinema e à literatura.
Algumas de suas mais de trezentas canções fazem parte definitiva da memória coletiva do país nos últimos vinte anos. Observador agudo e sensível de seu tempo e sua gente, soube registrar nelas esperanças e angústias, sonhos e pesadelos, e antecipar alegrias.
Como escritor, publicou em 1974 Fazenda modelo, que ele chama de "novela pecuária, e recentemente (1991) teve lançado seu primeiro romance, Estorvo, um dos maiores êxitos literários de público no Brasil e com a melhor acolhida possível da crítica, elogiado por professores universitários de grande calibre, como Alfredo Bosi e Roberto Schwarz. O livro será lançado, este ano, em inglês, francês, espanhol e italiano.
Como dramaturgo, escreveu as peças Roda-viva (1968), Calabar (1973), Gota d'água (1975) e Ópera do malandro (1979).
Compôs, também, temas para filmes - Dona Flor e seus dois maridos, Joana Francesa, Bye bye Brasil, Quando o carnaval chegar, Ópera do malandro, entre outros.
Dividindo seu tempo entre o trabalho criativo e esforçadas partidas de futebol no Politheama, time que ele mesmo fundou há mais de dez anos, Chico Buarque é um caminhante incansável - um "andarilho extremamente apressado", como diz Fernando Morais -, que aprendeu todos os truques para preservar sua privacidade e garantir seu direito de ir e vir - direito esse, aliás, especialmente tolhido nos anos em que o Brasil viveu sob regime militar. Naquela época, ele tornou-se uma espécie de vítima favorita da censura oficial, foi obrigado a exilar-se durante quase dois anos e, depois, a assinar algumas músicas com pseudônimo, já que a simples aparição de seu nome como autor implicava a proibição sumária de uma canção, por mais ingênua e aparentemente inocente que fosse.
Hoje em dia, diz apenas que o importante é não parar. Isso vale para o trabalho e para suas caminhadas. "Se você fica parado sempre aparece alguém perguntando se você é você mesmo. É como se as pessoas ficassem com pena de ver o artista ali, solitário, abandonado. Então, a saída é não parar."
Para conversar com nossaAmérica, porém, Chico parou. A entrevista foi feita pelo jornalista Humberto Werneck, que escreveu o texto de apresentação do song-book do compositor, lançado em 1989, e pelos escritores Fernando Morais e Eric Nepomuceno, autor do texto final.
nA - Durante uma época houve intenso intercâmbio entre diversos países latino-americanos na área cultural - uma espécie de projeto coletivo de trabalho na música, na literatura. Agora isso parece ter declinado. A América Latina saiu de moda?
Chico - A impressão que tenho é a seguinte: durante determinada época, boa parte dos países latino-americanos estava unida pela via da tragédia. Ditaduras, sistemas repressivos, cujos métodos eram muito parecidos e se repetiam. O drama de determinado país era a repetição do que acontecera pouco antes em outro, e um aviso do que aconteceria em um terceiro logo depois. Estou falando dos anos 70, época em que começou a circular com maior intensidade aquilo que a gente poderia chamar - com certo cuidado, porque a expressão está muito desgastada - de cultura de resistência. Na música, havia canções de protesto no Chile, na Argentina, no Brasil, em toda parte. Para simplificar: os governos agiam com os mesmos métodos, pareciam mais unidos que nunca, e os artistas também, uns oprimindo, outros resistindo. Havia, então, uma atmosfera de unidade latino-americana, que depois foi se dissipando, principalmente no que se refere ao Brasil. Hoje, vivemos como antes. Nunca houve um intercâmbio cultural real, que nos incluísse. Na América Latina, e no Brasil sobretudo, as elites sempre viveram voltadas para fora. A elite intelectual também.
nA - Muito antes do período generalizado de regimes militares no Cone Sul a produção cultural e artística foi um meio de comunicação coletiva na América Latina. Havia a música, o cinema mexicano e o Brasil também participava, até mesmo com edições da revista O Cruzeiro, que circulava de Cuba até a Patagônia. Os ecos desse trânsito chegavam até você? Fazem parte da sua memória?
Chico - Em primeiro lugar, é preciso lembrar que na minha infância e adolescência a informação circulava de maneira muito mais lenta do que circula hoje. A televisão, por exemplo, não era tão desenvolvida e poderosa. Mas a informação chegava, é claro, e era bastante. Lembro que a música latino-americana era ouvida, e o bolero faz parte da minha memória: Agustin Lara, o trio Los Panchos, Lucho Gatica, que todo mundo achava que era mexicano e é chileno, e ainda Pérez Prado, a música cubana... Havia também a música latino-americana de Hollywood, Xavier Cugat - que é espanhol da Catalunha - , essas coisas. A música mexicana e a cubana fazem parte da minha formação, mas é bom lembrar que a gente ouvia também música francesa, música italiana, uma variedade muito maior do que a que se ouve hoje no Brasil. Do cinema mexicano, não lembro. Os ecos hispânicos vinham na música, mas a América Latina era para mim uma coisa um tanto remota. Eu não lia, por exemplo, autores do Continente: minha adolescência foi dedicada à leitura de autores brasileiros, europeus e norte-americanos. Antes do chamado boom eu praticamente desconhecia o trabalho dos escritores da América hispânica.
nA - Você foi, porém, um dos primeiros a falar de um autor que no Brasil era praticamente desconhecido: Gabriel Garcia Márquez. Como ocorreu essa descoberta?
Chico - É que em 1969 eu morava em Roma, e o livro Cem anos de solidão fazia muito sucesso. Lembro das pilhas nas livrarias, as capas azuis do livro, que li em italiano. Não consigo lembrar exatamente em que ordem, mas naquela mesma época li Jorge Luís Borges e Julio Cortázar. Só que, para mim, eram autores isolados. Eu não via no trabalho deles uma literatura do Continente: havia Borges e Cortázar e García Márquez. Com o boom acho que o mundo inteiro percebeu que eles eram parte de uma literatura feita em um continente chamado América Latina...
nA - A partir do final dos anos 70 você virou um dos mais ativos promotores do intercâmbio cutural entre o Brasil e os países do Continente. Como se deu essa aproximação sua com a América Latina?
Chico - A partir de janeiro de 1978, quando fiz minha primeira viagem a Cuba. Antes, da América Latina, eu só conhecia a Argentina, mas tinham sido visitas rápidas, viagens profissionais, quatro ou cinco dias, com apresentações, shows, entrevistas, enfim, tudo muito rápido, muito superficial.
nA - E nessas viagens você teve oportunidade de conhecer artistas e intelectuais argentinos?
Chico - Tive, e também de outros lugares. Durante um certo tempo, lá por volta de 1973, Buenos Aires foi uma espécie de amostra daquilo que eu encontraria anos depois em Cuba: pessoas de um outro universo chamado América hispânica. Foi a época em que conheci grupos de teatro, intelectuais de esquerda, e como havia muitos exilados uruguaios - os chilenos chegaram logo depois - , conheci alguns: o músico uruguaio Daniel Viglietti, por exemplo, com quem depois fiz vários trabalhos, ou o escritor Eduardo Galeano. Mas, enfim, eram sempre viagens de poucos dias. Já com Cuba a história foi outra. Na minha primeira viagem, em janeiro de 1978, passei um mês, como integrante do júri de teatro do prêmio Casa de las Américas. Não havia preocupação de show, ensaio, nada disso. Aliás, eu já não fazia shows no Brasil e não queria saber de vida de cantor. Eles logo descobriram que eu era el cantante que no canta... Até hoje brincam comigo por causa disso.
nA - Como aconteceu essa aproximação sua com Cuba?
Chico - Em 1976, Fernando Morais, que tinha ido a Cuba, fez lá em casa uma projeção de slides. Naquele tempo esse negócio de vídeo não era tão difundido. Lembro até hoje da parede de casa com as imagens de Cuba. O Fernando falava da ilha, e um grupo ouvia e fazia perguntas. Para nós, tudo era novidade. Naquele tempo, só se ia a Cuba exilado ou clandestino. Fernando foi o primeiro jornalista a fazer uma viagem às claras. Depois daquela noite, veio o convite da Casa de las Américas. O grupo era formado por Ignácio de Loyola Brandão, Antonio Callado, Fernando Morais e eu. Era a primeira vez desde 1964 que brasileiros do Brasil participavam do júri: antes, só brasileiros que estavam fora, exilados. Então, as imagens projetadas na parede da minha casa foram o começo.
nA - E antes da viagem, das imagens na parede, o que Cuba significava pra você?
Chico - Para falar a verdade, uma coisa remota. A Revolução, a Crise do Mísseis, a própria morte do Che Guevara eram fatos muito distantes. Acho que a morte do Che na Bolívia, em 1968, talvez tenha sido o último impacto que recebi de Cuba. A partir daí, e com tudo de retrógrado que aconteceu no Brasil, com o fechamento de todas as portas, Cuba ficou distante. Claro que antes havia uma imagem que posso chamar de romântica. Lembro até que, em 1964, no dia do golpe de Estado no Brasil, havia na Faculdade de Arquitetura de São Paulo, onde eu estudava, uma exposição de cartazes de cinema e teatro feitos em Cuba. Assim que a gente soube do golpe, um grupo de alunos invadiu a exposição e literalmente saqueou tudo. Eu levei para casa um cartaz da peça de Gorki, La Madre. Nós todos sentimos que, com o golpe, se rompia para sempre um elo com Cuba, e queríamos preservar alguma coisa. Isso faz parte da pré-história da minha ligação com Cuba. Mas essa imagem romântica não se estendia à América Latina. Cuba era um caso separado, à parte.
nA - E como a ilha se transformou em ponte entre você e o Continente?
Chico - Em Cuba eu comecei a encontrar gente, conhecer pessoas de vários países latino-americanos: músicos, artistas, intelectuais. Antes, havia antecedentes isolados, como as viagens à Argentina e um pouco da música dos exilados chilenos. Minha primeira ida a Cuba coincidiu com um momento muito forte daquela espécie de movimento de resistência que era muito ativo nos anos 70: cinema, música, teatro, literatura. O tempo da latino-americanização, um movimento coletivo espontâneo. Cuba deixava de ser apenas refúgio de perseguidos políticos, dos banidos pelo sistema, dos grupos que seqüestravam aviões e iam parar lá. Vendo as imagens dos slides percebi, na hora, que alguma coisa mudava na minha cabeça. Deu vontade de ir lá ver. Quando recebi o convite, aceitei de imediato. Eu quase tinha me esquecido de Cuba... Além do mais, devo confessar que aceitar o convite significava a atração do desafio, da transgressão, de ir ao lugar proibido. Viajar clandestino era meio difícil, no meu caso. Fui, então, às claras: no começo de 1978 viajei para Lisboa, fiz um programa de televisão e em seguida embarquei para Havana.
nA - Antes mesmo da viagem você fez, com Francis Hime,uma música para Cuba, chamada Maravilha.
Chico - Essa música é de antes? Não me lembro. Acho que foi depois. O que lembro é que quando fiz a música para o filme Dona Flor e seus dois maridos, do Bruno Barreto, o que eu tinha na cabeça eram as imagens dos slides de Cuba na parede da minha casa. A música se chama 0 que será. A influência está no ritmo, no que eu achava que era a mistura de Cuba com a Bahia, e batizei de "Cubaião", um baião cubano.
nA - E na letra?
Chico - A letra dessa canção é libertária, até um pouco anárquica, mas não tem nada a ver com Cuba. Acho que eu mesmo não sei o que existe por trás dessa letra e, se soubesse, não teria cabimento explicar. A letra, afinal, é uma pergunta, não uma resposta. Mas não é, com certeza, da Revolução que ela fala. Em, outras canções, a influência de Cuba e da América latina aparece nas letras. É o caso de Tanto amar, que fala do circuito comum aos latino-americanos que eu encontrava em Cuba. Fala da Bodeguita, de Havana, de Manágua e de Porto Rico, mas é uma canção de amor.
nA - Durante muito tempo, vários intelectuais latino-americanos disseram que através de Cuba descobriram o Continente. Com você aconteceu a mesma coisa?
Chico - Eu não diria que compreendi a América Latina a partir de Cuba. Minha explicação é, talvez, mais prosaica: é que em Cuba conheci pessoas de diferentes países latino-americanos e, através dessas pessoas, de seu trabalho, que no Brasil a gente não conhecia, descobri a América. Na primeira vez que fui a Cuba, conheci o poeta argentino Juan Gelman, o escritor nicaragüense Sérgio Ramírez, o mexicano Efraín Huerta, o venezuelano Miguel Otero Silva, o poeta e padre nicaragüense Ernesto Cardenal, enfim, pessoas que não faziam parte do meu circuito, realidades que para mim não eram próximas. Era gente de lugares que não faziam parte da minha geografia, da minha cultura. No começo, os nossos contatos eram meio difíceis. Lembro que nosso grupo, naquele júri, ficava espantado com a familiaridade que havia entre o pessoal dos outros países.
nA - Foi uma espécie de retomada de raízes perdidas?
Chico - Não. O brasileiro, na verdade, nunca teve essa raiz latino-ameriana, nenhuma ligação com o resto do continente. No máximo, havia aquela rivalidade furiosa no futebol - ódio de argentino, de uruguaio - e um certo desprezo, uma certa carga negativa, pelos bolivianos, paraguaios... O que me impactou em Cuba, ao ver aquelas pessoas todas, é que entre elas havia uma certa identidade, um trânsito livre, e que um brasileiro sentia-se isolado. Anos mais tarde, quando fui convidado para integrar o Comitê de Intelectuais pela Soberania dos Povos Latino-americanos, continuei sentindo isso. O Comitê tinha grandes nomes, a companhia era a melhor possível, mas volta e meia eu me pegava no ar. Uma vez, falavam muito em um tal Carlos: "A gente pede isso para o Carlos", e "O Carlos foi falar com ele", e eu pensando em quem seria aquele Carlos tão familiar a todos. A certa altura, não agüentei mais e perguntei: "Mas que Carlos é esse?" Aí todos me olharam espantados: era Carlos Fuentes, escritor mexicano. Para eles, naquelas circunstâncias, Carlos só podia ser Carlos Fuentes. O diálogo entre Garcia Márquez, Cortázar, o pintor chileno Roberto Matta, corria fluido, natural. Para mim, nem tanto: outra cultura, outra geografia... Eu era o caçula do grupo e, apesar da camaradagem, às vezes me sentia meio excluído.
nA - E com os músicos? Naquela sua primeira viagem, em 1978, você acabou cantando...
Chico - É verdade: os cubanos armaram uma festa em um teatro enorme, e na platéia havia muitos exilados brasileiros. Foi muito emocionante. Na volta ao Brasil, quando fui preso, no interrogatório queriam saber quem eu havia visto em Cuba, com que exilados havia mantido contato. Estavam mal-informados, porque, àquela altura, em Cuba só havia exilados mais velhos, viúvas de guerrilheiros, de operários, crianças... Exilados da ativa, a gente encontrava em Paris ou Lisboa, não em Cuba. Aquela festa marcou o início do meu contato mais estreito com músicos e compositores cubanos. Foram muitos os motivos da minha aproximação com Cuba, e a música foi um dos mais fortes. Afinal, a ligação entre a música cubana e a brasileira é muito profunda.
nA - O trabalho dos brasileiros era conhecido lá?
Chico - Era, e de um modo estranhíssimo. Eles confundiam as coisas, havia equívocos tremendos. Os cubanos recebiam música brasileira através de cassetes gravados em casa de amigos e mandados para lá. Então, não sabiam direito quem era quem. Além disso, chegavam alguns discos feitos na França, essas coletâneas que algumas gravadoras fazem com seu elenco, e isso confundia ainda mais. Havia um que era incrível: na capa, a Nara Leão aparecia como sendo a Gal Costa, e vice-versa. Durante muito tempo, alguns músicos cubanos achavam que Nara Leão cantava Baby e a Gal Costa era a cantora de Carcará. Nesse mesmo disco, aparecia na capa um francês louro, como se fosse o Edu Lobo. A gravação era mesmo do Edu, mas durante um tempão os cubanos achavam que o cantor era aquele louro da capa... Confundiam ainda o Gilberto Gil com o Jackson do Pandeiro... Enfim, uma complicação danada. Seja como for, desde 1967 ou 68, quando começou o movimento da Nueva Trova, a influência da música brasileira era importante no trabalho de jovens cubanos, como Silvio Rodriguez e Pablo Milanés.
nA - Mas quando os músicos brasileiros começaram a viajar para lá essa confusão não desapareceu?
Chico - Desapareceu, mas ainda assim houve coisas engraçadas. A primeira vez que um grupo foi para lá, participar de um festival de música do Caribe, aconteceu uma. Gabriel Garcia Márquez havia descoberto que o Brasil é caribenho, e mandou convidar um grupo. Passei os nomes por telefone e, quando cheguei lá, levei um susto: havia cartazes anunciando a noite brasileira, com os nomes escritos de maneira mais ou menos correta - as ligações telefônicas com Cuba eram terríveis - e, no final, aparecia uma Jazz Band. Nenhuma banda de jazz havia viajado com a gente; fiquei curioso e, aí, descobri: era o Djavan...
nA - Como essa aproximação com músicos e intelectuais de Cuba e do resto do Continente influiu em seu processo de criação?
Chico - Fazer essa identificação é difícil para mim. Influenciou, com certeza, e não apenas minhas músicas. Uma série de outras coisas em mim sofreram essa influência.
nA - Como você vive o processo de criação?
Chico - É muito difícil explicar esse processo. É muito misterioso.
nA - É diferente o processo na hora de escrever uma canção, uma obra de teatro ou um livro?
Chico - É sempre muito misterioso. Os rumos são absolutamente inesperados. Gosto de trabalhar sob encomenda, mas muitas vezes pedem uma coisa e sai outra completamente diferente. É o caso do filme Dona Flor e seus dois maridos: vi a cópia várias vezes para fazer a música, mas, na hora de trabalhar, o que vinha eram as imagens dos slides de Cuba... O trabalho sob encomenda acaba dando espaço para que eu faça uma terceira coisa.
nA - Seria então o que aciona os gatilhos interiores?
Chico - Talvez. E só tem graça aceitar uma encomenda quando você pode ser infiel ao que foi encomendado, quando você pode tomar certas liberdades. Quando eu estava fazendo as letras para as músicas de Edu Lobo, no balé O grande circo místico, havia um tema para a equilibrista que eu não conseguia solucionar. No poema de Jorge de Lima, a equilibrista se chamava Agnes, que aliás é um belo nome, mas a letra não saía. Então troquei Agnes por Beatriz, transformei a equilibrista em atriz e coloquei-a no sétimo céu, em homenagem à Beatrice Portinari, de Dante. Beatriz carregando minhas obsessões...
nA - Você escreve a letra antes da música?
Chico - Não. Nunca escrevi uma letra sem ter antes a melodia. Ou a melodia de meus parceiros, ou as que faço sozinho: é sempre a música que conduz a letra. E quando uma avança mais rápido, é sempre a música: a letra vem depois.
nA - E o processo interior é penoso?
Chico - Bem, acontece de tudo. Muitas vezes, insônias tremendas. Viro noites com uma imagem na cabeça, uma idéia, amanheço exausto, sem conseguir me livrar. Isso acontece durante a escritura, ou até depois. As vezes vou deitar com papel e lápis na cabeceira, mas não durmo, tento escrever, rabisco alguma coisa, e de repente amanhece, desço, vejo minha filha tomando o café da manhã e indo para a escola, e eu torno a insistir, sem conseguir me libertar da imagem que me obsessiona. É um processo misterioso, sempre.
nA - Qual a música que foi escrita assim nesse clima de obsessão?
Chico - Nos últimos muitos anos, isso vem acontecendo cada vez mais. As primeiras músicas, na verdade, não me deixaram a lembrança de tanto penar. Acho que naquele tempo - estou falando de vinte anos atrás, ou mais - era como se eu tivesse um enorme espaço pela frente e fizesse músicas de maneira mais espontânea, com mais facilidade. Agora, esse espaço é mais estreito. Sinto a coisa mais rarefeita.
nA - Por que mais rarefeita?
Chico - Porque já fiz muita coisa, e isso não ajuda, dificulta. Sei que sei fazer, e isso acaba virando um obstáculo terrível. Volta e meia alguém me diz na rua: "Por que você não faz mais aquelas músicas?"
nA - Quais?
Chico - As que tocavam no rádio dez, doze, vinte anos atrás. Mas eu não quero fazer as músicas que já fiz. Eu só quero fazer a música que estou fazendo.
nA - Você acha que suas músicas mais recentes são melhores?
Chico - São mais enxutas, por um lado, e mais ricas harmonicamente. Fui aprendendo, conheço melhor meu instrumento.
nA - E por que você acha que suas músicas faziam mais sucesso há dez ou doze anos?
Chico - Esse é outro problema, não tem nada a ver com a qualidade delas. Em geral, quem chega e pede que eu torne a fazer aquelas músicas é gente da minha geração. Ou seja, gente que se refere a músicas que remetem a um tempo passado, no qual essas pessoas provavelmente eram mais felizes do que são hoje. Ou, pelo menos, acham que eram. Então, é uma coisa um tanto saudosista. E também porque as pessoas com quarenta e tantos anos já não mantêm com a música a mesma ligação que mantinham na juventude.
nA - E a questão do sucesso, hoje?
Chico - Olha, para falar a verdade, eu tenho certeza de que as pessoas gostam dos artistas por equívoco, ou por motivos que são mais delas do que do artista. Você nunca sabe o que faz determinada pessoa gostar da sua música, ou por que ela gosta de tal música sua. Outro dia, parei em uma barraquinha de coco, na praia, e o vendedor olhou para mim e disse: ''Chico Buarque, o bispo dos olhos vermelhos!'' Na hora, não entendi nada; levei um susto. Só depois do susto é que me lembrei que na letra da música Geni, que é de 1979, falo de um bispo de olhos vermelhos. Como é que um vendedor de coco guardou essa imagem durante tantos anos?
nA - Mas serão sempre tão misteriosos os mecanismos do sucesso?
Chico - Para mim, são. Embora às vezes o mistério se desfaça, pelo menos em parte... Outro dia, encontrei em um restaurante o diretor de uma gravadora onde fiz vários discos. Conversamos um pouco sobre os problemas do mercado hoje em dia, a questão da programação das rádios, o jabá cada vez dominando mais...
nA - Jabá?
Chico - É o que as gravadoras pagam aos programadores de rádio para tocar determinadas músicas, para que os cantores apareçam em programas populares. Aí, eu comentava com ele que minha atual gravadora, que trabalha basicamente com o sistema do jabá, estava tendo dificuldades comigo, porque escapo do esquema do artista que faz muita televisão, ou que canta em shows patrocinados por esta ou aquela rádio. Aí, meu antigo patrão me explicou que a questão do jabá sempre existiu. Eu disse que sabia, é claro, mas que a coisa hoje é muito mais violenta. E, então, veio a revelação: "Você lembra do sucesso de Construção, uma música difícil, pesada, muito longa para a época, e que tocava no rádio o dia inteiro? Pois paguei muito jabá por ela."
nA - Mas isso não explica a existência do seu público.
Chico - Os grandes consumidores de disco, tanto nos tempos de Construção - 1971 - como hoje, são o público jovem, entre 15 e 25 anos. Isso quem me disse foi aquele mesmo diretor de gravadora. E as gravadoras investem mais em artistas que se situam aproximadamente na mesma faixa etária. Isso é natural. Como é natural que esse público, daqui a vinte anos, ouça menos música e tenha nostalgia do que ouviu na juventude. No meu caso, estabeleci um público mais ou menos estável, mas que não vai chegar nunca a um milhão de compradores.
nA - O fato ter abandonado os shows, a vida de cantor, não contribuiu para essa diminuição do sucesso?
Chico - Nem tanto, porque sempre fui mais conhecido como compositor do que como cantor. Mas é lógico que, se não apareço no palco, na televisão, nas revistas, o público pode guardar meu nome, mas a minha imagem vai ficando meio vaga. Outro dia, parei em um bar da Rio - Petrópolis, e uma moça me perguntou se eu era mesmo o Chico Buarque. Confirmei, mas ela ficou desconfiada. Daí a pouco voltou e perguntou: "Mas é o pai ou o filho?"
nA - E o que você respondeu?
Chico - Que eu era o filho, é claro.
nA - E os recursos tecnológicos que existem hoje para as gravações, essa parafernália toda, o que você acha?
Chico - Se eu quiser entrar de cabeça no universo da música pop, terei irremediavelmente de usar esses recursos. Já não será suficiente compor canções no violão, trancado em casa. Terei de entrar no estúdio com o engenheiro de som e me atualizar a cada disco, talvez gravar em Nova York ou Los Angeles, acompanhar a mixagem, essas coisas.
nA - E você é solicitado para promover essa mudança, entrar no mundo da tecnologia?
Chico - Há poucos dias, conversando com Gilberto Gil, falávamos sobre esse aspecto instigante do universo pop, que ele conhece bem. Falamos do Caetano que, no último disco, também deu um grande passo no sentido de dominar esses teclados de ultíssima geração que eu não lembro como se chama. E o Gil quase me convenceu a fazer uma espécie de estágio em um estúdio superequipado, antes mesmo de compor, para ver o que acontece. Claro que, se eu fizer isso, mudo meu processo de criação.
nA - Essa idéia atrai você?
Chico - Não sei. Não me recuso a ela. Pode ser o mesmo processo por que passa um escritor, quando troca a máquina pelo computador. Pode ser estimulante. A máquina não me assusta. Só precisaria me acostumar à idéia de fazer música ao lado do engenheiro de som.
nA - Você já teve alguma experiência de criacão utilizando a tecnologia, ou limitou-se apenas ao violão?
Chico - Hoje em dia, dá para se ter um estúdio completo em casa. Eu, é claro, não tenho. Trabalhei, algumas vezes, com um gravador de quatro canais que permite fazer gravações superpostas. Há dez anos, esse gravador era uma novidade. Eu comprei há cinco, de segunda mão. Hoje, é peça de museu...
nA - Como você trabalha com ele?
Chico - Consegui bons resultados, mas é difícil explicar sem mostrar a música. Por exemplo: eu estava fazendo uma música, A volta do malandro, e na minha cabeça havia duas batidas de violão completamente diferentes, um contraponto rítmico que me interessava. Eu tocava uma e ouvia outra ao mesmo tempo - ouvia na minha cabeça. Usando aquele gravador, ficou mais fácil: gravei a primeira batida, que era seca, constante, quase de rock, e em seguida a outra, sincopada. Depois, ouvi as duas juntas, e pronto: em cima delas arrematei a melodia. Na hora, eu não tinha muito clara a idéia do que ia sair, mas acabou ficando melhor do que eu imaginava.
nA - Então, esse recurso tecnológico - embora, como você mesmo diz, já um tanto antiquado -, acabou influindo em seu processo de criação.
Chico - É, e às vezes tenho vontade de estudar música a fundo, de me tornar um músico mais completo, para dominar toda a linha de criação, do primeiro lampejo ao resultado final. A canção é enriquecida pelo trabalho dos músicos, do arranjador, do produtor, pelos recursos do estúdio, e isso me dá um pouco de ciúme. Muitas vezes, tenho idéias que não aparecem em uma gravação, porque não sei verbalizar o que quero.
nA - Você já compôs em estúdio, na hora da gravação?
Chico - Nenhuma música minha nasceu no estúdio, mas muitas foram retocadas durante a gravação. O próprio clima de feitura de um disco favorece a criação de novas canções, o contato com os músicos... Ultimamente, quando começo a gravar, não tenho idéia do que será o disco. Entro no estúdio com quatro, cinco músicas, e o resto vai no embalo.
nA - Quando você termina uma canção, ela corresponde ao seu estado de espírito? Já aconteceu de você estar alegre ao terminar uma canção triste?
Chico - Não existe necessariamente uma ligação. Eu me lembro muito bem de uma tarde em que fiquei conversando horas com o dramaturgo Paulo Pontes, meu parceiro em Gota d'água. Ele tinha voltado de uma viagem ao Nordeste e estava doente. Eu sabia que a doença era terminal. Mas ele não sabia, ou fingia que não, e passou a tarde falando do que tinha visto no Nordeste. Era 1976, e Paulo Pontes cheio de dúvidas em relação ao Brasil, a questão social, enfim, uma conversa densa, e eu muito impressionado com aquilo tudo, na verdade mais impressionado com a doença do que com o Nordeste. Voltei para casa agoniado e louco para tocar violão. Naquela noite, eu escrevi Olhos nos olhos, uma canção de amor que não tinha nada a ver com nada, vai ver que por isso mesmo...
nA - Quando você termina uma música ela está realmente pronta. Mas quando termina uma peça de teatro existe um caminho longo entre o final da escritura e a montagem. Qual a diferença entre o processo de criação da música e de uma obra de teatro?
Chico - As minhas experiências como autor de teatro sempre foram compartilhadas, ou porque escritas em parceria, ou porque discutidas com o diretor ou o grupo que ia montá-las. Além disso, os dois processos se confundem, porque minhas peças sempre foram musicais.
nA - E seu livro Estorvo?
Chico - O processo de criação? Não é muito diferente da música. Foi como escrever uma canção ao longo de treze meses. O mais difícil, o mais penoso, é entrar no clima, encontrar o veio.
nA - Você demorou muito para entrar no livro encontrar o caminho?
Chico - Muito. Eu sabia mais ou menos o que queria, qual era a idéia, aos poucos fui entrando na atmosfera, mas demorei um bom tempo até sentir que tinha o livro na mão.
nA - E quando você sabe que está com o livro - ou a canção - na mão?
Chico - Ah, isso eu não sei dizer. É uma coisa mágica, que acontece e ponto. Vem assim, e de repente, pá! pega você. E aí é como se tudo se abrisse à sua frente.
nA - E como você se sente nessa hora?
Chico - Um mergulho, uma viagem. É como se alguém estivesse soprando em seu ouvido, uma coisa que viesse de fora, de longe. Quando acaba, ou seja, quando você termina de escrever, está absolutamente exaurido.
nA - Você pode fazer alguma comparação entre a sensação de terminar uma peça de teatro, uma canção ou um livro? O que é mais pleno?
Chico - A sensação é muito semelhante. Você terminou um trabalho feito no maior recolhimento, cheio de pudor, e no instante seguinte vira um exibicionista, precisa mostrar aquilo urgentemente. Com a música é mais fácil, você canta para a mulher, para os amigos, canta em público, grava em disco e tem um retorno imediato. Você acaba de compor e já pode ver a reação na cara dos outros. No teatro, você acompanha os ensaios, assiste à estréia, vê quando o público ri ou não ri, aplaude ou não. Com o livro, você não sabe o que acontece, não sabe se as pessoas estão lendo mesmo, se vão ler devagar ou depressa, se vão levar pro banheiro, se vão pular uma página, se vão rabiscar, dobrar de qualquer jeito, esquecer no avião...
nA - O trabalho sob encomenda no seu caso pode servir de estimulo. Estorvo foi encomenda?
Chico - Foi, na verdade, uma série de encomendas... Minha mulher, Marieta, me deu de presente o computador, no qual o livro foi escrito; o escritor Rubem Fonseca, meu amigo, vivia me dizendo que eu tinha de escrever um livro; o editor, Luiz Schwarcz, chegou a me propor um adiantamento, para que fosse escrever; e, finalimente, eu mesmo me encomendei... Estava há tempos sem escrever nenhuma música, anotava coisas, idéias, aí fiquei dando voltas e resolvi escrever um romance.
nA - Voltando aos estímulos que você recebe para criar: hoje, o cotidiano dá os mesmos de dez ou quinze anos atrás?
Chico - Não.
nA - E não viria daí a sua dificuldade para compor?
Chico - Não, porque o meu trabalho depende mais da imaginação do que desses estímulos cotidianos. Mas se é para falar da realidade política, é evidente que havia antes a expectativa das pessoas, que queriam ouvir coisas, uma espécie de encomenda ampla, anônima. Em 1984, por exemplo, estávamos todos envolvidos na campanha pelas eleições diretas que iriam mudar o país. Aquele clima efervescente era, em si, uma espécie de encomenda, como já fora o clima político entre 1964 e 1968 e, muito antes, e por outros motivos, a agitação cultural dos anos de Juscelino até o golpe militar. Em 1984, eu sentia necessidade de dizer o que as pessoas queriam ouvir. Era, sim, um estímulo que vinha do cotidiano. Uma encomenda.
nA - E hoje?
Chico - Hoje, esse tipo de encomenda é zero. Já não sei o que as pessoas esperam que um artista diga. Por outro lado, fazer somente o que as pessoas esperam, ou o que eu acho que elas esperam, é muito perigoso, pode virar um processo vicioso. Hoje pode ser mais difícil compor ou escrever, mesmo pensar é mais complicado, mas não se pode culpar a perplexidade como se ela fosse uma censura. É necessário lidar com essa perplexidade, e acho que Estorvo é um pouco isso.
nA - Você não estaria vivendo um processo de mudança de meio de expressão? Em Estorvo, nota-se um cuidado mais apurado, como se o autor se aproximasse da literatura com certa solenidade, como quem chega a outro patamar.
Chico - Eu recuso e sempre recusei essa visão. Quando comecei a fazer música, meu caminho natural talvez fosse a literatura. Minha geração foi seqüestrada pela música, que teve um impacto enorme em nós, mas nunca concordei com essa distinção hierárquica, que relega a música popular a um patamar inferior. Por outro lado, tenho consciência de que estou trabalhando com outra linguagem, que um romance não é uma letra de música. A letra acompanha a música, que vai muito pelo instinto. Um romance exige mais rigor em termos puramente literários.
nA - Escrever ficcão é mais ou menos solitário que escrever canções?
Chico - Muito mais. Se eu soubesse que iria levar treze meses escrevendo um livro, talvez não tivesse coragem de começar. Mas acho que no fundo eu estava desejando esse tempo de isolamento, de não-exposição.
nA - E a possibilidade de estar mudando de meio de expressão?
Chico - Não sei. A música pode me abandonar. É uma possibilidade.
Nunca vi o Chico tão falante. Nem li uma entrevista sua onde ele estivesse tão aberto. Quem já o entrevistou sabe disso, a gente faz uma pergunta e pensa que o Chico vai deslanchar na resposta. Mas de repente ele pára no meio e é preciso ficar puxando o assunto para conseguir uma lauda de texto no jornal. Quando faz letra de música, vai longe. Mas pra falar, não é fácil.
Nesta entrevista a Tarso de Castro ele foi, para dizer o mínimo, diferente. Vocês vão ver por quê. Chico vai contar, por exemplo, que quando era pequeno comungava todos os dias e, mais tarde, chegou a pertencer a um grupo chamado "ultra montanos", ligado à igreja conservadora.
Sua carolice era tanta que o próprio Sérgio Buarque de Hollanda, pai, mandou-o de castigo para um colégio interno em Minas. Não vou desmerecer os outros entrevistadores de Chico, mas o Tarso e ele só não são parceiros em sambas porque - acredito - o amigo felizmente não entende dessas coisas.
Aqui, encontramos um Chico à vontade. Contando que, quando era rapazinho, sonhava ser cantor de rádio e imitava a voz de João Gilberto: só que a voz, pasmem, saía como a de Juca Chaves.
Mais adiante, muito sério, ele fala de seus problemas com a Censura, dos direitos autorais que não recebeu e de política. Inclusive dos candidatos do MDB que apoiou. Enfim, a entrevista está aí.
Dirceu Soares
Tarso - Eu conheço demais você, então é uma loucura te entrevistar. Mas, vamos começar por besteira mesmo. Por exemplo, essa sua timidez. Ontem a gente estava no "Antonio´s", e quando você saiu de lá todo o mundo dizia assim: "Eu sempre soube que o Chico era muito tímido, e, ele ficou de porre cantando coisa aí".
Chico - De porre cantando o quê?
Tarso - (Cantando) - "O prédio tem tédio, não sei mais o quê? Então é o seguinte: eu queria saber de onde é que surgiu essa história de timidez ou foi você mesmo quem criou um pouco dessa história de timidez?
Chico - Não, não criei nada de timidez, eu sou realmente um pouco tímido.
Tarso - Isso é mentira. (risos)
Chico - É verdade (risos). Não no primeiro contato com gente que eu não conheço e tal eu não fico muito à vontade. Isso é verdade. Mas o negócio de timidez que apareceu era um negócio de palco mesmo, porque aí existe, né? E também não é timidez, é falta de graça mesmo, de estar lá no palco, entende? É claro que um pouco por causa da Bossa Nova, negócio de banquinho e violão, João Gilberto e tal, que esse negócio passou até a ser aceito. O sujeito não era obrigado a dançar, usar roupas extravagantes, a se exibir.
Tarso - Mas você atualmente está dançando...
Chico - Eu? (risos). Mas eu danço muito mal. Não sou dançarino, não tenho muita cintura pra esse negócio. Agora, isso se cristalizou um pouco, numa determinada faixa de músicos. Houve uma época em que as pessoas encaravam com estranheza gente assim com os baianos, né? Como o Caetano e Gil que, de repente, começaram a usar fantasias, a cantar e rebolar coisa que sempre fez parte da tradição de auditório, brasileiro na antiga Rádio Nacional, Blecaute, Marlene, Cauby Peixoto e tudo o mais. Já com a Bossa, parece que ficou de bom tom o sujeito ser tímido e simplesmente pegar o seu violão e cantar, em geral num tom intimista e tal. Eu entrei um pouquinho nesse barco. Pra mim era muito favorável, porque até hoje se quisesse dançar eu não saberia. Também não saberia botar uma roupa daquelas. As roupas que eu ponho são as roupas que eu uso normalmente. Tanto que quando encontro o Tom eu canto: "Meu consolo é você" porque ele usa bermuda com sandália e meia... Eu realmente sou um pouco displicente com esse negócio e tal e não saberia dançar bem. Assim, eu aproveitei, sem querer, um pouquinho, essa porta ai do modelo do sujeito tímido, que chega com seu violão, canta e pronto. Agora, é claro que eu não inventei isso. Isso foi o modelo que se adequava a meu temperamento. Não pense que eu gostaria muito de estar dançando, vestindo roupas coloridas e, na hora eu estivesse travestido de homem tímido, vestido normalmente e tal. Isso não é verdade.
Tarso - Mas, vem cá, você gostaria um pouco de dançar como Fred Astaire, né?
Chico - Bom, eu tentei... (risos). Quando fiz o filme eu pensei que fosse receber alguma indicação pro Oscar ou coisa parecida, como bailarino, mas surpreendentemente isso não aconteceu (risos).
Tarso - O que é que você achou de você como autor em "Quando o Carnaval Chegar"?
Chico - Péssimo. É sou péssimo ator, também.
Tarso - Aquela voltinha que você dá no Hotel, já lá em Petrópolis aquela voltinha foi triste (risos).
Chico - Tem uma cena ali que eu gosto, realmente, e nela parece que eu sou um bom ator. Quando eu vi fiquei surpreso. É uma cena que eu acho que o Cacá pegou do lixo. Eu acho que nessa cena eu estava distraído pensando outra coisa. Parece que eu estou triste, assim, olhando pro infinito, na praia uma cena lá no fim, que realmente estava bacana. Só que minha intenção não era essa, não fiz a cena com a idéia de estar olhando pro infinito não. Eu estava olhando pro céu e pensando que estava na hora de ir embora. Fiquei com a cara natural. É a única cena que eu acho que está natural dentro do filme inteiro.
Tarso - Mas me diga uma coisa, sem sacanagem agora. Acho que isso acontece com todo mundo: eu por exemplo, quando estou sozinho, começo a cantar pra mim e me acho com uma voz perfeita (risos) me acho um grande cantor. Agora, quem sabe você não se acha um grande ator, mal aproveitado?
Chico - Sim. Isso acontece. Inclusive, quando eu estava filmando , cheguei a ter essa ilusão. Agora, quando está cantando e acha que está cantando bem, você devia usar o gravador. No dia seguinte, sóbrio, você ouve. Foi isso o que aconteceu com o filme. Um mês depois eu fui ver a realidade.
Tarso - Você no começo de sua carreira imitou um pouco o João Gilberto. Quer dizer, imitou não, você teve uma influência muito forte do João Gilberto, não foi?
Chico - Não, eu imitei mesmo. Só imitava. Só fazia músicas, querendo imitar João Gilberto. E mal. Eu queria era fazer Bossa Nova. Eu me lembro que numa das primeiras vezes que eu fui cantar em público, eu fui parar num auditório da Rádio América, que ficava ali, onde é hoje o Conjunto Zarvos, eu acho que era por ali, num programa, que era programa de rádio ao vivo. Aí eu cheguei, entrei e os primeiros acordes que eu dei, a primeira vez que eu emiti a voz assim em público, um gaiato lá do fundo da platéia gritou: "Juca Chaves". Eu fiquei aborrecido porque eu queria imitar o João Gilberto e não o Juca Chaves. Eu não imitava direito. Quando eu comecei a pegar violão, tentar tocar violão, eu e um amigo meu a gente aprendeu de ouvido mesmo, de disco. Não foi nem de olho, era tentando imitar João Gilberto, imitar as letras de Vinícius.
Tarso - Você não estudou música em criança, estudou?
Chico - Não
Tarso - Você esteve na Faculdade de Arquitetura, onde você não conseguia fazer uma reta, segundo o teu pai mesmo disse. Mas como é que surgiu o negócio da música? Hoje, você lê música, por exemplo?
Chico - Não. Eu aprendi um pouquinho de música e leio muito mal. E lá por volta de 1967/68 foi uma época que eu me interessei muito por música. Aprendi alguma coisa. Agora, leitura, confesso que leio mal, não é o essencial pra mim. O mais importante é conhecer o meu instrumento, não é? Assim, o violão que eu tocava... até 67/68, isto é, bem no começo mesmo no tempo de "Pedro Pedreiro", "A Banda", e tal era bem pior.
Tarso - Qual foi mesmo a tua primeira música, a primeira mesmo?
Chico - Eram essas músicas que eu te falei, Tarso, que nem lembro mais. Felizmente. Essas músicas eu fazia tentando imitar a Bossa Nova. Mas eu, desde garoto, mesmo sem violão, aquela coisa, fazia paródia de música de Carnaval, aquelas coisas e tal. Eu sempre fui muito ligado à música. Eu gostava e tinha idéia de ser cantor de rádio, cantava atrás da porta. Não a música "Atrás da Porta", eu ficava atrás da porta e, não por timidez, mas pra parecer rádio, né, porque não tinha televisão. Parecia que estava saindo a voz do rádio do outro lado.
Tarso - Mas você já cantava música sua?
Chico - Eu inventava música, assim como escrevia, fazia versinho, jornal de colégio, e tal, fazia umas coisas assim. Mas, pra valer mesmo, achando que estava fazendo, só aconteceu quando peguei o violão. É muito difícil ser compositor na caixinha de fósforo, porque sempre é uma coisa que limita e limita bastante. Eu comecei a pegar o violão, foi com o negócio de Bossa Nova e aí eu fiz as primeiras músicas. Muito por incapacidade, também de não saber fazer e querer fazer. Queria fazer igual à "Insensatez" (risos). Um troço insensato à beça. Eram músicas que apareciam, assim. Eu já esqueci e tal. Aí, quando falam, a primeira música, mesmo pra valer e que foi gravada, foi o "Sonho de Carnaval". Passou pelo Festival, o Vandré cantou. "Sonho de um Carnaval" e "Pedro Pedreiro".
Tarso - Vocês se reuniam num bar perto da Faculdade, não é? Era o Toquinho, você, qual o primeiro grupo de músicos que estava com vocês?
Chico - O bar, pra falar a verdade, era dentro da Faculdade. Era no porão, onde era o grêmio. A gente levava garrafa de cachaça. Depois se estendeu lá pra Quitanda. A Quitanda era uma Quitanda que fazia batidinha de frutas e depois virou um bar. E o grupo lá na Faculdade não era assim de músicos, não. Era pessoal que se reunia pra beber mesmo e cantas músicas que todo o mundo cantasse juntos. Eram músicas de carnaval, ou aquelas músicas, como os primeiros sambas de Baden e Vinícius. Mais que Bossa. Já tinha passado um pouquinho o meu embalo pessoal pela Bossa Nova, entendeu? Era um negócio de todo o mundo cantar e tal, todo mundo tinha que cantar, coisa pra fora, não podia ser um negócio naquela base assim muito intimista.
Tarso - O João Gilberto já era teu cunhado?
Chico - Não
Tarso - O Vinícius freqüentava a tua casa?
Chico - Bom, o Vinícius eu já conhecia de muito tempo. O Vinícius é de 52, 53. Eu era garoto, 8 anos, quando o Vinícius já parecia de noite em casa. Me mandavam prapra cama e tal, eu ficava escondido na escada ouvindo. Eu tinha fascinação pelo Vinícius, aquelas músicas, as primeiras músicas do Vinícius. Isso é muito anterior. Anterior à Bossa Nova, inclusive.
Tarso - Nessa época você estava em dúvida se seria craque de futebol ou músico, não é? Porque você tem mania, joga mal pra burro e acha que é craque de futebol (risos).
Chico - Não, eu não acho que seja craque de futebol. Já fui um futuro craque de futebol, mas fui desviado da carreira.
Tarso - Vamos voltar para aquele barzinho. Quem é que aparecia quem é que sobrou daquele bar?
Chico - Não, o bar era um negócio de pessoal da Faculdade mesmo não era um negócio profissional, como falam.
Tarso - Mas quem foi o primeiro a trabalhar com você, foi o Toquinho mesmo.
Chico - Não. Ele veio depois. Quando começou o negócio de fazer música e tal, apareceu a possibilidade de fazer a primeira parte de um show Bossa Nova, que havia na Faculdade. Aí era Toquinho, era Taiguara, era a Ivete, era uma moça chamada Maria Lúcia, pessoal assim. Mas isso não tem nada a ver muito com a faculdade não.
Tarso - Ah, por falar em faculdade tem uma lenda aí, que eu sei que é mentira mas em todo o caso é bom falar e sei que você até se irrita: aquele negócio assim: "velho companheiro de Mackenzie"? De onde é que surgiu isso de que você era um homem do Mackenzie?
Chico - Não, eu nuca estudei lá. A única coisa que eu fazia no Mackenzie é que era caminho da Quitanda.
Tarso - Você não foi do Mackenzie?
Chico - Não, eu era da FAU. Eu tenho, aliás, o orgulho de ter sido o único sujeito na minha turma que foi aprovado na FAU e reprovado no Mackenzie. Na época, a gente fazia o vestibular nas duas Faculdades, mas, é claro, querendo passar na FAU porque além de ser considerada a melhor, era gratuita. Mesmo assim, o sujeito fazia o Mackenzie por via das dúvidas. Pelo Mackenzie eu só passava no caminho da Quitanda, justamente, porque tinha no banheiro, um jogo de crepe. Jogava-se muito crepe - seven eleven, não é? - então o Mackenzie era isso. E o Mackenzie ficou sendo depois um lugar onde havia shows de Bossa Nova e onde eu cantei algumas vezes na primeira parte. Mas não tem nada a ver com estudo. É dado e samba.
Tarso - Agora tem outra coisa que é bom esclarecer. Tem ainda muita gente que pensa um negócio, que eu também sei que não é verdade. Dizem "O Chico foi ligado - como é que chama essa organização de direita aí? - a TFP. Ou então "o Chico, quando era jovem era TFP". Eu sei que foi um professor de vocês, mas é bom esclarecer essas coisas.
Chico - Eu já esclareci isso em entrevistas e tal. Eu era muito católico. Tenho formação católica e, inclusive confesso que devo muito a um certo tipo de formação cristã progressista que marcou um pouco minha juventude. Agora, isso não tem nada a ver com cristão progressista. Isso, foi um episódio, quando eu tinha meus 14 ou 15 anos. Havia um grupo chamado "ultra montanos" de igreja conservadora mesmo. Ele podia se identificar hoje com esse bispo Lefevre e tal. E havia um professor que, junto com alguns alunos, fazia esse movimento. Inclusive esse professor saiu desse negócio.
Tarso - Como ele se chama?
Chico - Não, não vou dar o nome dele. Ele não tem nada mais a ver com isso. Esses leigos católicos, ultracatólicos, ultramontanos, mais tarde fundaram esse negócio de TFP. Agora tenho que te dizer o seguinte: na época não havia nem política nisso. Menor de 14 anos, nem está ligado nisso, né? O negócio era religioso. Então a gente, o que é que fazia? Comungava todos os dias. Então, os pais começaram a estranhar...
Tarso - Você comungava todos os dias?
Chico - Comungava todos os dias. Parei de jogar futebol, foi aí que trunquei a minha carreira de futebolista. Com 14 anos o sujeito estaria se encaminhando pra ser juvenil do Fluminense. Na época, eu morava em São Paulo, seria juvenil do São Paulo, quem sabe, ou uma coisa assim. Aí o garoto pára de jogar futebol, começa a ficar lendo uma porção de coisa e comungando todos os dias e tal. Isso aconteceu até que os pais foram achando estranho, porque gostam que o filho seja bom aluno, seja comportado, mas não tanto, não é? Aí desconfiam e tal. Isso durou alguns meses, até fui mandado pra Cataguases, em Minas, de castigo.
Tarso - É, porque o Sérgio parece que mandava todo o mundo pra Europa, não é? (risos), quando se irritava.
Chico - Aí, foi isso. Fui pro colégio interno e tal e passou. Agora, isso de dizer que foi TFP é um pouquinho puxado. E se tivesse sido, também, não teria preocupado de negar, entende? Agora, voltando ao negócio, estudei em escola de padre e tudo. Também não tenho vergonha de dizer isso, porque, inclusive, encontrei lá nessa escola um padre que me marcou muito em termos de conhecer miséria mesmo, entende? Era um negócio que hoje a gente olha de outro ponto-de-vista e tal e até acha muito ingênuo. Mas pra formação de um cara, assim, de um garoto, achei até que foi um negócio muito importante. Então, tinha um negócio chamado OAF - não sei se existe ainda - Organização de Auxílio Fraterno. A gente ia de noite, assim um grupo pequeno, com umas Kombis, à Estação da Luz, levar cobertor. A gente olha hoje, e pode achar até uma bobagem. Mas pra um cara como eu que morava ali no que seria Zona Sul de São Paulo, aliás, por coincidência também zona sul, e que estudou em colégio de menino rico, de repente ter essa missão, duas vezes por semana, era muito importante. Então a gente ia, chegava com aqueles cobertores e o pessoal, os mendigos, fugiam apavorados.
Tarso - Como é que é? Fugiam apavorados?
Chico - É claro. Você chegava com cobertor, eles desconfiavam. Tem um ditado que diz: "Esmola" - não sei como é, tem um negócio assim que não lembro, mas realmente fugiam mesmo. A gente, então, tinha que ir lá convencer e tal. Hoje não sou mais nada: não sou católico, não sou cristão, nem nada. Mas acho que devo um bocado a essa experiência, entende? Ela, pelo menos, me abriu os olhos para esse negócio, porque, normalmente, eu não estaria vendo nada disso. A gente está protegido, não é? Aqui, no Rio ou em São Paulo, o sujeito mora no bairro tal ou estuda no colégio tal. Seus amigos são filhos de família e a tendência é ir pra escola, pra faculdade, se formar e tal e não ter esse contato direto. E esse contato direto que eu tive naquela época, eu procuro ter sempre. Inclusive, eu comecei a gostar de mantê-los, entende? De conhecer, de ver essa gente, de conversar. Quando eles não fogem. Em geral eles fogem.
Tarso - A minha posição sempre foi um pouco anti-católica, embora eu seja de família católica, porque no tempo de estudante a gente tinha posições claras, de exigir uma série de coisas, e no Rio Grande, que é onde se concentra o maior racionarismo à Igreja católica, eles eram inimigos nossos. Tanto que a gente se aliou com um grupo parecido com o do Mackenzie, que é a mesma cadeia, não é? O Mackenzie, IPA. IE, quer dizer, uma cadeia americana de colégios. Mas hoje eu tenho uma visão boa da Igreja Católica, principalmente com Dom Paulo, em São Paulo. Qual é a sua visão da Igreja Católica hoje, mesmo estando desligado religiosamente.
Chico - Não, eu não sou mais ligado. Eu passei até por uma fase de anti-clericalismo brutal porque, quando saí daquele e fui pra Faculdade, parei de ver padre na minha frente e comecei a ter algumas outras experiências. Depois, com o tempo, a gente vai fazendo a média. Por exemplo se eu tivesse estudado num colégio de padres samaritanos...:
Tarso - Maristas.
Chico - Não, não eram. Os jesuítas eram do Colégio São Luís e tal. Era inclusive muito ligado a esse pessoal que eu te falei agora, os "ultramontanos". Eu devo dizer também que esse caso que aconteceu nessa escola, quando eles souberam do que se tratava, eles frearam na hora, inclusive houve demissões e tal, quer dizer, padres progressistas, entende?, que a gente pode identificar hoje com a linha do pensamento progressista como de Dom Paulo, Dom Helder. E padres por quem eu tenho a maior admiração. Ou leigos mesmos, como Alceu Amoroso Lima.
Tarso - Voltando a falar de música, tem muito jovem que é promessa há 10 anos, essas coisas, sem conseguir um caminho pra trabalhar, não é? Como é que você conseguiu começar a gravar começar a trabalhar?
Chico - Bom, demorou menos de 10 anos, mas também não foi assim da noite pro dia não. Agora, vou te dizer, se tivesse gravado antes teria gravado muita coisa ruim. No começo apareceram promessas frustadas de gravações. Havia um disco que a gente ia gravar na "Elenco", do Aluísio que era o máximo na época, era justamente o Toquinho...
Tarso - Capa branca.
Chico - É, o Capa Branca. Coisa assim que furava na última hora. Outro disco com o Scatena, que na época em São Paulo tinha negócio de disco e tal, também furou. Bom, aí o primeiro disco surgiu por causa da televisão. Na época, a TV Record, lá em São Paulo.
Tarso - Foi a partir do Festival?
Chico - Não, antes mesmo do festival. Programas, tipo Fino da Bossa e antes, um programa que eu não lembro, acho que chamava Primeira Audição. Tinha um pessoal lá que fazia isso: João Leão, Horácio Berlinck e tal, que era uma espécie de vestibular pra o Fino da Bossa, que a gente podia aparecer. Havia uma efervescência muito grande nesse meio, entende? Meio universitário, em todos os campos, não só na música. E a televisão, na época a TV Record, teve a sensibilidade de pegar esse pessoal, aproveitar e botar no programa. Não havia, claro, a máquina que existe hoje na televisão, que tem um centro de irradiação, que manda o que quer pelo Brasil inteiro.
Tarso - Você está falando da Globo?
Chico - Estou falando da Globo, é claro. Naquela época, o que estava acontecendo em São Paulo podia estar acontecendo diretamente em Curitiba, na Bahia, em Fortaleza, vamos dizer, e as televisões locais tinham um pouco mais de autonomia pra pegar e botar no ar o que estava acontecendo em termos de movimento cultural. Então, no caso da música, eles faziam os programas com a gente. Acho que hoje seria impossível, entendeu? Pode, neste momento, estar aparecendo lá em Fortaleza, por exemplo, um grupo novo, como era o nosso naquela época. Só que a televisão local, no lugar deles vai botar Kojak, entende? Não vai dar chance desse pessoal aparecer. O que vai acontecer? Esses caras, depois de 1 ou 2 anos, vão desistir. É evidente, como eu desistiria, por exemplo. Os que não desistem, vão tocar em boates, vão levar a vida de músico, uma vida muito amarga, E não vão se afirmar, vai ser muito difícil. Ou então vão levar 10 anos para aparecer como revelação. Como o que esta acontecendo agora. Volta e meia aparece. O Belchior, o sucesso de Belchior! Só que ele está há 10 anos batendo nesse negócio, não é, um garoto que apareceu agora. Ele podia ter aparecido há mais tempo. Então, a televisão tinha esse espaço. Tinha essa janela, para pôr o negócio que estava acontecendo na época. E estava acontecendo muita coisa. Borbulhava, o negócio dentro do ambiente universitário, então isso é evidente, não é? Na música, no teatro, no cinema. E havia oportunidade desse pessoal aparecer, então a gente começou a aparecer aí, quer dizer então, depois que eu comecei a cantar nesses shows e fazer alguns bicos já no Fino da Bossa, graças ao Manoel Carlos, e tal é que uma gravadora de São Paulo, a RGE, se interessou em gravar o meu disco. Ao mesmo tempo, apareceu o festival da TV Excelsior, que eu coloquei essa música "Sonho de um Carnaval" que o Vandré cantou e tal, ela se classificou.
Tarso - O Vandré cantou, é?
Chico - O Geraldo Vandré cantou.
Tarso - Mas você, nessa época, não se achava cantor?
Chico - Não. Nuca me achei cantor, nem estava pensando nisso, sabe? Outro dia eu estava lembrando com a Nara, como foi quando eu mostrei pra ela as minhas músicas. Eu estava muito contente que a Nara ia gravar três músicas no LP dela. Ao mesmo tempo, apareceu essa oportunidade de gravar esse compacto na RGE, fui lá e gravei, claro.
Tarso - Aliás, a Elis numa entrevista disse que você, um dia, foi a casa dela e mostrou-lhe todas as músicas. Ela não entendeu e daí a Nara aproveitou e pegou.
Chico - Não. Eu não me lembro de ter mostrado para Elis. Mas mostrei pra muita gente, é capaz de ter mostrado sim. Eu lembro uma vez de ter mostrado na casa do Pedrinho Mattar. Eu ia lá, é claro que eu não ia sozinho, porque como você sabe eu sou um tímido (risos).
Tarso - É mentira. Registre-se (risos)
Chico - Eu ia com o meu pessoal, o pessoal da FAU e tal. A gente ia, saia da Quitanda já meio menos tímido e ia pra casa de alguém, como a do Pedrino Mattar que eu estava cantando mostrar as músicas . Acontecia. Pode ser até que eu tenha mostrado para Elis.
Tarso - Você morava em São Paulo nessa época?
Chico - Morava.
Tarso - Vem cá, eu sei que não tem muita resposta pra isso, mas é um negócio curioso: o que tanta gente de música vê na Arquitetura? Qual é o negócio que existe numa Faculdade de Arquitetura que conduz à música? Há um grupo de músicos que saiu da Arquitetura. Você, por exemplo. Qual foi o processo?
Chico - É, não sei também. Já indaguei, já falei com o Tom sobre isso. Somos um grupo, não? As pessoas isoladas, de outras Faculdades, de outras épocas, que saíram da Arquitetura pra música. Tom Jobim, Carlinhos Lyra, Billy Blanco, uma porção de gente mesmo. O Maurício Tapajós, eu não sei não. Não sei fazer a ligação. Depois, eu nunca me senti um arquiteto, mesmo estudando arquitetura. E eu nunca fui, nunca seria um arquiteto.
Tarso - Aliás, você parece que é mesmo um fracasso na Arquitetura?
Chico - Eu era um fracasso, mas podia me formar direitinho. Passei o primeiro ano inteirinho, o segundo eu passei com umas dependências, no terceiro é que eu chutei pro alto.
Tarso - Você tinha um ponto de reunião. Todo mundo tinha ponto de reunião, quando o diretório era livre mesmo. Então você não acha que, a partir disso, havia uma formação política, uma formação cultural e musical para todo mundo?
Chico - É evidente. É uma coisa que não pode ser desligada da outra. Quer dizer, você está se formando lá, você é um sujeito de 20 anos, que está se formando para - bem ou mal - enfrentar essa barra aí e nisso, a formação a discussão política, tem um papel importantíssimo, não pode mesmo excluir, entende?
T- Pra você, qual foi a influência direta do diretório, tanto musical quanto politicamente, no seu caso pessoal?
Chico - As duas coisas eram muito ligadas. A importância que teve pra mim foi a discussão política mesmo. Havia diversas tendências lá e a gente se preocupava com isso. Eu nunca fui um sujeito ligado demais em política e tal, mas também não era desligado. Eu era ligado, mas não era uma coisa tão importante, pra mim. Mas, acho que é importante que haja essa discussão política enquanto a gente é moço, sabe? Porque se não depois não vai pegar mesmo. E você excluir isso da cabeça do sujeito é a mesma coisa que proibir a música, proibir o teatro, proibir a leitura, proibir o futebol, entende? Então, eu acho que corre perigo de estar aí se formando umas gerações com um pedaço a menos da cabeça. . Era isso. Assim, eu discutia, não pertencia a nenhum grupo específico. Aliás, eu conversava com gente das tendências mais diversas. Era um pouquinho gozador também. Mas de qualquer maneira, aquilo fazia parte da minha vida. E 64 foi um baque mesmo, não é? Realmente aí deu uma certa descrença nisso tudo, por algum tempo, por alguns anos, principalmente a decepção que a gente sentiu quando percebeu que não houve reação nenhuma. Então, a gente percebeu que estava sendo iludido o tempo todo e não estava sentindo.
Tarso - Logo depois, disso você se desligou da Faculdade ou levou algum tempo?
Chico - É, porque com 1964, além de tudo, a faculdade, que pra mim já não era muito atraente como perspectiva de profissão, começou a ficar uma chatice. Aí mudou tudo, não é? Fecharam o grêmio e começou a haver uma série de restrições dentro da faculdade também. Claro. Começou a haver uma série de restrições no país inteiro. E, isso, dentro da faculdade, ficou chato. Aí é que eu comecei a sair.
Tarso - Mas mesmo no grupo musical houve assim, como é que se deu, corte de gente? Nesse grupo ao qual você pertencia nessa ocasião? Por que muita gente se afastou nesta época da faculdade, reprimido, preso não sei o quê? No seu grupo mesmo aconteceu isso?
Chico - Não porque nessa época esse grupo que você fala não existia, pelo menos não existia profissionalmente.
Tarso - Não, eu não digo esse grupo que funcionava como música, pra se reunir e coisa?
Chico - Bom, eu fui me afastando um pouquinho desse grupo e, quer dizer, da faculdade, não é? Fui me desinteressando. É o que estou falando. Porque no fim, o que me prendia lá, não era o estudo da Arquitetura, mas esse lado, esse outro lado de que eu falei...
Tarso - Era a reunião mesmo ...
Chico - A reunião da brincadeira, de cachaça e da música e, daí, a discussão mesmo e o contato com as pessoas...
Tarso - Existia a liberdade...
Chico - E então o pessoal era essa e daquela tendência.. você discutia com este, com aquele e tal e havia... Isso é um troço vibrante, não é? De repente parou de haver. Então, pra mim, pessoalmente, perdeu todo o interesse. A não ser se eu estivesse dedicado a estudar Arquitetura mesmo eu continuasse lá e me formasse. Mas, esse outro lado todo, que é complemento da formação que em qualquer faculdade deve ter, acabou. Eu desisti. Aí virou aquele negócio, estudante estuda, não é? Eu já não estudava (risos), então ficou ruço por meu lado.
Tarso - Mas, passado esses anos em que a gente esteve percorrendo o país, juntos e tinha um negócio meio chato de estudante exigindo coisas, quer dizer, definições que não tinham nada a ver com nada, hoje, no seu contato com estudantes, qual é a sua impressão? Quando você vai ao interior sua impressão é a de que o estudante brasileiro está mais consciente?
Chico - Bom, eu não estou mais indo. Não tenho mais feito shows.
Tarso - Mas você é muito procurado por estudantes?
Chico - Sim, mas não pra fazer show.
Tarso - Pra conversar mesmo...
Chico - Eu estou achando que já, agora, nestes dois últimos anos, está aparecendo gente, não é? Estudantes muito mais conscientes, muito mais maduros do que há cinco anos atrás, quando era uma inércia, entende? Só se reuniam ou pra fazer shows, ou pra campeonato de futebol. Agora eles estão mais preocupados e estou sentindo também que, pelo menos, uma boa parte deles está mais amadurecida. Quer dizer: a experiência de 68 não foi a toa...
Tarso - Mas, vem cá, mudando totalmente o assunto, como é que você conseguiu entrar em sociedade arrecadadora? Naquela época estava mais fácil? Porque esse negócio de direito autoral, me parece, continua na mesma porcaria?
Chico - A gente quando está começando não sabe de nada, eu não sabia nem da existência da sociedade arrecadadora. Eu só fui entrar para sociedade, fui colocado na sociedade em 67, depois que a "Banda" tocou bastante no carnaval. Aquele negócio de direito do carnaval. Então, os direitos da própria "Banda", "Pedro Pedreiro", etc., eu nunca vi esse dinheiro. Aí é que eu fui conhecer o negócio. Eu vi outras pessoas que queriam entrar e que não entravam, entende? Não deixavam, porque era um negócio fechado essa sociedade. Tem uma fatia do bolo todo de direito autoral, das músicas que são executadas. Quer dizer, não interessa se, por exemplo, na época, a UBC tivesse todo compositor de sucesso dentro dela. Ela ia receber a mesma coisa como se não tivesse nenhum compositor de sucesso: o dinheiro é o mesmo pra se dividir, entende? Então, se você mete um sujeito lá, um sujeito com algum sucesso, é mais um pra dividir o bolo. Tinha compositores que queriam entrar e não podiam entrar e a música deles era executada. Era feita a arrecadação e distribuída por quem fazia parte das sociedades. Isso, pelo menos, mudou agora porque você não é mais obrigado a pertencer a nenhuma sociedade pra receber seu direito autoral.
Tarso - Mas, me parece que eles pegaram muita gente das velhas sociedades para trabalhar lá, não é?
Chico - Pegaram.
Tarso - Por exemplo, você sabe que o pessoal de escolas de samba em São Paulo, não recebe, não tem mais direito autoral?
Chico - É, isso é incrível. Eu estou sabendo aí que, em primeiro lugar, 80% do que se distribui é ainda segundo o critério antigo, que é o que estava viciado. De fato, eu acredito que seja muito difícil você mudar tudo da noite pro dia. Os outros 20%, que são pelo critério novo, são arrecadados conforme uma pesquisa realizada em algumas rádios só do Rio e de São Paulo. Eu, inclusive, sou beneficiado por isso. Mas, por exemplo, o compositor de música sertaneja, esse não vai receber um tostão disso porque não toca nessas rádios. Em geral são rádios chamadas classe. "A", classe "B" e tal, do Rio e de São Paulo, que não tocam música caipira. Não tocam mesmo. Esse pessoal não vai ver a cor do dinheiro.
Tarso - Você entrou, então em 67, nesse negócio e em 68 houve aquele movimento novo de repressão, aí você foi pra Itália. O que é que determinou realmente, a sua ida pra Itália?
Chico - O que determinou a minha ida à Itália foi o festival que havia lá. O problema não é a minha ida à Itália, o problema foi a minha não volta ao Brasil?
Tarso - Eu me lembro que havia realmente uma ameaça pairando sobre você. Mesmo que você negue, eu me lembro que havia uma ameaça de boca a boca que se falava muito.
Chico - Não, o que havia, que era bastante desagradável também, era o negócio de eu não poder sair sem avisar. Eu estava na mesma como se fosse uma prisão domiciliar, entende? Quer dizer, eu podia sair pra algum lugar, mas teria que pedir permissão antes, a cada coisa que eu fosse fazer. E prisão domiciliar não é prisão, como é que pode dizer? Dentro da cidade. Não pode sair, não podia ir a Petrópolis. Tinha que telefonar antes e tal. Então, o clima já não estava bom, aí...
Tarso - Mas isso foi gerado por quê?
Chico - Até agora eu não sei direito. Eles falavam mais era na peça "Roda Viva", na minha participação numa passeata. Era um clima de horror mesmo. E, depois, começou a aparecer uma série de ameaças, entende? E conselho pra eu não voltar.
Tarso - Houve conselhos pra não voltar?
Chico - Ah! Uma série de conselhos o tempo todo. Não houve, assim, nenhuma proibição oficial, houve conselhos que vinham de alguns lugares, que dava pra gente ficar preocupado, não é? Então eu não voltei, enquanto não tivesse uma certa garantia.
Tarso - Na Itália, como é que você conseguiu viver?
Chico - Bom, aí foi uma parada, não é? Eu vivia fazendo aqueles shows, o que não era nada cômodo, porque, quando eu cheguei tudo bem, fizeram uma festinha lá, não é? Saiu no jornal e tal. Compositor da "Banda" e tal. Mas, na medida em que eu fui ficando, eu deixava de ser o artista estrangeiro, que estava fazendo uma "tournée" ou coisa e tal. Era residente lá. E aí começava a ficar uma figura fácil, começam a desaparecer os convites. E, na época, realmente, não havia mercado pra minha música, quer dizer, pra música brasileira em geral. E aí eu fiquei lá nessa base: o que aparecia pra fazer eu tinha que fazer, Show onde quer que fosse. Em geral, fazia assim a primeira parte de show, como uma "tournée" pra defender, e junto com Toquinho. Era um troço terrível, porque ninguém sabia quem era aquele cara que estava tocando aquela música lá. Eles não entendiam nada, um cara cantando a "Rita", cantando "Pedro Pedreiro". Os caras ficavam olhando assim, parados, não sabiam que bicho era aquilo. Não estou falando de Roma, de Nápoles. A gente ia pra cidadezinhas mesmo, bem precárias. Um teatro que lotava quando ia Josephine Baker, com aquela população da cidade toda indo por teatro e a gente ficava lá enchendo lingüiça, tapando buraco.
Tarso - Você ganhava quanto por show?
Chico - Ah! não lembro. Eu fiquei 45 dias nessa "tournée" e era o justo viver. Eu estava com mulher e uma filha pequena em Roma. No fim da semana, eu corria com o dinheiro, botava no correio pra Roma. Era um negócio muito importante esse dinheiro. Uma vez, terminou a semana justamente em San remo. Havia o pagamento e tem cassino em San Remo, e se existe uma coisa que me deixa louco é a roleta, sabe? Mas, eu como já tinha jogado, eu me conheço e tal, eu sabia como é que a gente deve agir nessa situação. O que a gente faz é o seguinte: vai ao hotel, põe uma parte no cofre lá, e leva o dinheiro pra perder. Não tem perigo de perder mais do que pode. Mas, esse dia não dava tempo de ir antes pro hotel, porque o cassino fecha às duas horas da manhã, a gente recebia o dinheiro à meia-noite. Então, em vez de botar no cofre do hotel, botei o dinheiro, o leite das crianças, no bolso esquerdo e o que ficou no bolso direito eu podia perder todo...
Tarso - Ah, isso funciona muito (risos)
Chico - Aí eu estava vendo, desesperado, que eu ia perder a féria da semana inteira, não ia nem poder voltar no dia seguinte pra Roma. Porque aí vou jogando naquele negócio de dobrando, dobrando, dobrando...
Tarso - Um grande jogador é confiante pra ganhar, não é?
Chico - É. Sendo que no fim, o último dinheiro que eu tinha, que não deu pra dobrar, eu joguei, cerquei o 33, lembro até hoje, e deu. E daí eu recuperei pelo menos o que eu tinha jogado. Fiquei desesperado, porque, se não me mandasse acho que ia ter um problema lá em casa muito sério.
Tarso - E daí parou o jogo?
Chico - Parei de jogar às duas horas - ah, parei. Esse realmente foi um susto feio.
Tarso - Nessa mesma fase na Itália, tem um negócio que me irrita até hoje. Você tem a capacidade de esquecer um pouco mais do que eu tenho, mas certa parte da crítica que hoje te endeusa aí, (inclusive eu escrevi isso no Folhetim) te endeusa assim "Chico acabado e coisa", como é que você recebia essas notícias lá?
Chico - Recebia. Mas, é a mesma coisa que está se repetindo agora, só que está ao contrário, porque na época, vamos dizer, o Caetano e o Gil sofreram muito mais do que eu .Eles ficaram presos, uns dois meses presos, e foi uma loucura. Então, há sempre essa preocupação maniqueísta de colocar uns contra os outros. Eu lembro que tinha um negócio: artista preferido é Caetano /Gil, como se Gil fosse sobrenome de Caetano . E pior artista, nota zero, era pra mim, sempre, batata.
Tarso - Você lembra alguma nota zero?
Chico - Eu ficava chateado porque achava que podia até o sujeito gostar da música do Caetano e não gostar do Gil. Ou gostar da minha e gostar da do Gil e não gostar do Caetano, mas era uma coisa sempre assim colocada...
Tarso - Você lembra de um cara que deu nota zero? Você já me falou isso quem era? Você lembra, ou não?
Chico - Não.
Tarso - Um cara que te deu nota zero mesmo, foi do Pasquim até.
Chico - Não. Ganhei muita nota zero.
Tarso - Zero?
Chico - Zero, Zero mesmo (risos) redondinho. Então, havia isso, entendeu? Hoje, eu entendo, até fico vendo esse negócio que está havendo com Caetano e Gil. Continua sendo um sobrenome do outro, quando eles fazem coisas às vezes muito diferentes. São duas pessoas muito diferentes. E agora tudo é pau em cima deles. E quando me usam pra isso, eu acho meio desagradável. Inclusive, tive uma longa conversa com Caetano. Uma pessoa fantástica, eu gosto muito dele. Gosto do Gil também.
Tarso - Bom, teve a peça "Roda Viva" e teve coisa assim de pessoas dizerem que não era você mesmo que tinha feito e não sei o quê. Mas, tirando a peça, a música "Roda Viva" você não sentiu um negócio estranho na época? No festival não se entendeu "Roda Viva". Você lembra que teve uns negócios de "Roda Viva" ficar patinando, inclusive houve reação de um grupo contra "Roda Viva".
Chico - É aqui existia sempre, existia o ...
Tarso - Será que não havia um despreparo político para entender o que era o negócio de "Roda Viva" naquela época? Coisa que eu acho foi despertada depois, apesar de você, "Roda Viva" não cumpriu esse papel e hoje "Roda Viva" é um negócio entendido.
Chico - Mas eu acho que quando você está enquadrado dentro de um negócio desse, você não tem saída não. Eu lembro de uma música que eu fiz naquela época, que as pessoas vieram me pichar, pichar essa música, não sei o quê, achando que ela era, talvez até que fosse uma música reacionária, quando eu nunca fui um cara reacionário e que diz exatamente uma coisa do "O Que Será". A música chama-se "Bom Tempo". Ela diz a mesma coisa do "O Que Será", noutra linguagem e as pessoas vieram pichar porque era uma música otimista, uma coisa assim e tal. Realmente, porque você está enquadrado dentro de um negócio, eu era considerado conservador, reacionário não, conservador. Fatalista conservador, como diziam. E, de repente, agora, voltando ao negócio sério, o Caetano faz uma música como "Gente", que é uma música com conteúdo social muito evidente e tal e ninguém nota isso. Ninguém fala disso. "Gente não é pra morrer de fome, gente é pra luzir". Bonita à beça, não é? E de conteúdo social. E político.
Tarso - A mudança da crítica com você de ontem para hoje é um negócio incrível. Você mesmo já tinha dito isso. Não te dá um certo cansaço esse tipo de mudança das pessoas, assim tão fácil? Em minha opinião, muitos críticos usam você, um cara que escreve assim: "Caetano é um m..., mas o Chico é maravilhoso", etc. Você não sente um certo uso do seu nome pro cara explicar, o cara não em defesa, ele mesmo? O crítico, eu estou falando.
Chico - Sim. Tudo isso eu já falei. Já falei sobre isso. Esse negócio de crítica eu fiquei muito chateado naquela época e não me comove. Mesmo que seja a favor, entende? Porque quando a porrada vem ela vem brava, não é? Eu te contei aquele negócio do Lux Jornal?
Tarso - Eu ia falar nisso mesmo.
Chico - Pois é.
Tarso - Eu mesmo sempre pegava o Lux Jornal uma época e queria responder de madrugada, tudo, não é?
Chico - Não, isso aconteceu. Assim que eu cheguei, tinha uma pessoa que fazia isso pra mim. Eu nunca guardo nada, eu não tenho. Ele fazia porque, inclusive, ele precisava, você conheceu...
Tarso - Orestes Bastos?
Chico - Pois é, trabalhava com o Sérgio Porto. É um cara muito e tal, e ele fazia esse negócio pras pessoas e eu, tá bom, faz pra mim também tudo legal. E eu fui fazer a besteira de ler, quando cheguei ao Brasil, aquelas pilhas de recortes. E aí não dormi aquela noite. Fiquei lendo e queria responder pra todos os jornais ao mesmo tempo. Em vez disso eu pedi desculpas ao Orestes e dispensei o serviços dele. E não dá pro cara responder. Não dá, mesmo. Especialmente porque era a nível pessoal, entende? A nível pessoal.
Tarso - Mas, me diga uma coisa, eu lembro quando você chegou ao Rio, você foi morar lá na Prado Júnior, que era um local finíssimo, não é? Foi sua avó que escolheu, uma coisa assim, aliás, sua mãe, não é?
Chico - Foi a minha mãe, é.
Tarso - Copacabana, perto da praia, aí você...
Chico - Minha mãe chamava a rua Prado Júnior de rua Goulart, ainda, porque era do tempo, ela morou lá, inclusive, eram casas e tal, em 1910, mais ou menos; então ela: ah! Aluguei um apartamento ótimo na rua Goulart. Rua Goulart era a Prado Júnior, "Beco da Fome" (risos).
Tarso - Beco da Fome?
Chico - Beco da Fome.
Tarso - Estou me lembrando de umas histórias, agora. Por exemplo, você ia à Gôndola, porque a Gôndola estava na moda. E quem eram seus conselheiros musicais nessa época?
Chico - Espera aí, a Gôndola? Eu ia muito ao Cervantes.
Tarso - É, ou ao Cervantes, eu não me lembro. Mas me lembro o seguinte as pessoas que você achava importante do Rio, quais eram?
Chico - Não, eu estava muito deslocado aqui no Rio, então...
Tarso - Por exemplo, Sérgio Bittencourt, um dia, te aconselhou não vá?
Chico - Mas eles eram amigos do Franco Paulino. Franco Paulino era meu amigo de São Paulo. Franco Paulino e Luís Vergueiro, mais ou menos se mudaram para o Rio por essa época também. Quando eu cheguei, eu tinha que me situar, tinha que me localizar e aí, ou através dos diretores do show, que eram o Carvana e o Fontoura...
Tarso - Isso pode acontecer a qual quer um...
Chico - Pois é, ou então através das amizades desse pessoal lá de São Paulo. Eu não conhecia mesmo o ambiente aqui. O sujeito chega e fica completamente perdido. Mas aí...
Tarso - Daí, então, você olhava o Sérgio Bittencourt e outros como ídolos...
Chico - Não. Não exagera também.
Tarso - Bom, olha aqui e quando é que começou uma efetiva ação da censura com você. Foi com a peça "Roda Viva" mesmo?
Chico - Antes já houve o caso do Tamandaré, que o pessoal da Marinha não gostou. Depois foi a peça "Roda Viva".
Tarso - Como é que era exatamente Tamandaré?
Chico - "Tamandaré" era uma música brincadeira com a nota de um cruzeiro. A nota de um cruzeiro, na época, era Tamandaré, lembra? Então era uma brincadeira sobre a desvalorização da moeda, falando de Tamandaré, quer dizer, a desvalorização do próprio Marquês de Tamandaré. Depois foi "Roda Viva". Não havia censura prévia nessa época. Tanto que "Roda Viva" foi levada e tal. Houve um caso de pancadaria em São Paulo, houve caso de seqüestro lá no Rio Grande do Sul e depois ela foi proibida. Essa nossa censura prévia só na volta da Itália é que eu fui encontrar.
Tarso - A primeira censura acho que foi com o " Samba de Orly" não foi?
Chico - Não, essa foi bem depois. Essa eu já estava aqui. Na Itália eu...
Tarso - Não, eu digo, das músicas que você mandava pra cá?
Chico - Não, que eu mandei pra cá não houve censura, não. A censura braba começou depois de "Apesar de Você".
Tarso - Que foi uma música dedicada a uma moça, não é?
Chico - Claro.
Tarso - Uma namorada que você teve em São Paulo, não foi?
Chico - É, que era muito, muito mandona.
Tarso - Você não acha que depois se desenvolveu também um folclore em torno de você? Quer dizer, à medida, que um país um mal informado entende? É um negócio assim, que o Fernando Henrique Cardoso, inclusive, coloca como um negócio de - como é que chama? - "coisa de caipira mesmo". Então, você não acha que um pouco pelo próprio fato de uma alienação de grande parte da população, realmente em decorrência da desinformação imposta pelo Governo, você não acha que essas pessoas começaram a usar você como um folclore? Quer dizer: Chico é censurado de tudo, de repente ficar solidário com você é uma técnica para não ter quer fazer nada?
Chico - É, esse perigo existe, não é?
Tarso - Não é como você especialmente, com diversas pessoas, quer dizer, com Niemeyer, com Glauber, sei lá, como diversas pessoas.
Chico - Claro. Esse perigo existe é um pouquinho como aquele negócio de estudantes também, não é? De repente, o cara está servindo, está dando show pra estudantes e tal e aquele negócio que o fim serve pra satisfazer a consciência dessas pessoas e pra não fazer nada, também, né? Então isso é muito perigoso. E é perigoso pra quem, principalmente pra quem se entrega a isso, porque pode criar até uma autocomiseração, entende? Auto-complacência, que tem que ser evitada de qualquer maneira, entende? Eu, quando me queixo (sempre me queixei, eu acho que é obrigação a gente estar se queixando quando acontece caso de censura), não é pra chamar a atenção sobre mim, entende? É pra chamar a atenção sobre a censura. Isso é o que às pessoas as vezes confundem, achando que, não, você esta falando muito de censura e tal, está querendo se promover com a censura. Não, isso é uma besteira, quer dizer, isso pode ser até uma projeção que ele esteja fazendo, achando que o sujeito se promove com isso. A gente tem que denunciar a censura, porque tem que dificultar o trabalho dela. E, cada vez que se denunciar a censura, a gente está criando dificuldade, entende? Porque o sujeito não pode virar uma vítima. O sujeito não pode virar uma vítima da censura porque a opinião não vai aceitar, entende? Então, por exemplo, eu tenho a certeza que algumas músicas minhas, ou mesmo peças de teatros foram liberadas porque outras haviam sido proibidas e porque chiei e porque uma parte da imprensa me deu uma cobertura boa. Nesse sentido eu acho útil não um folclore em torno da censura, não, mas a denúncia do negócio, a comunicação disso, porque a coisa mais brutal que aconteceu nesse tempo todo de censura e a mais eficiente foi o caso da peça "Calabar", que eles proibiram e proibiram a divulgação da proibição, entende? Mas assim é fácil, é psicologia de canhão. Agora, quando pode ser denunciada, eu acho que tem que ser denunciada. Eu falo isso tudo também porque agora está um pouquinho melhor, a gente deve reconhecer, entende? Mas, nada garante a gente. A gente não tem nenhuma segurança de que amanhã não vá ficar igual a ontem ou pior.
Tarso - Olha, Alguma vez você conseguiu entender a censura? Um critério de censura?
Chico - Não, critério de censura não dá para entender. Não sei qual é. Não existe.
Tarso - Você toma muito cafezinho lá. Vai lá, eles te tratam bem e coisa?
Chico - Não, agora, não, mais recentemente eu não tenho sido chamado, não.
Tarso - Eu acho até que dá, só dá pontos a favor ser proibido pela censura. Mas, as músicas foram praticamente perdidas, não é? Com o tempo.
Chico - Muitas sim, Porque a música tem esse negócio imediato. Tem até um lado circunstancial, às vezes. É o caso da música que eu fiz pra Portugal que, se agora for liberada, não interessa mais. Não estou interessado em mandar o abraço. Porque eu fiz em determinado momento histórico. Agora, já não é a mesma coisa, entende? Isso acontece. Ou mesmo músicas que a gente não se interessa mais, porque você está trabalhando, está se renovando, até musicalmente. Às vezes não é nem questão da letra, não. Agora se eles liberarem "Tamandaré", que eu compus em 1965, por exemplo, aí está um caso, eu não vou gravar, porque não interessa, eu já não faço aquele tipo de música. A gente tem isso também. É um processo. Um disco vem depois do outro e não é coisa apanhada, assim. Você recria. O que interessa é fazer música nova e gravar música nova pra dar certo.
Tarso - Se houvesse a chance de liberação, qual é a música que você gravaria hoje no meio das proibidas? A que te interessa mais?
Chico - Olha, eu não tenho, não tenho essa perspectiva.
Tarso - "Cálice", por exemplo?
Chico - É, "Cálice" eu gravaria. Mas também não é tão importante pra mim isso agora. Porque eu já não estou mais preocupado com "Cálice". Se fosse tão importante, o que eu ia fazer era ir pra Portugal, por exemplo, e gravava lá e tinha essa música gravada, como eu fiz com "Tanto Mar", essa música que eu falei. Aliás, ela saiu, cumpriu o papel dela, só que no Brasil ninguém conhece. E saiu lá com letra e tudo.
Tarso - Agora, você acha que é possível uma etapa entre censura melhorada ou que a única luta que interessa é a anulação da censura? Você não acha que essa é a única posição correta que pode haver num país pra ser livre?
Chico - Claro. E quando eu digo que a censura está melhor agora do que estava antes, não estou agradecendo, nem nada, porque é uma conquista parcial nossa e não tem que estar satisfeito com isso. Por enquanto é uma conquista parcial e eu acho que liberdade não tem esse negócio de parcial, de ser pela metade, nem pode ser relativa.
Tarso - E o negócio de teatro? Há épocas em que você tem um negócio compulsivo. Você fica louco de repente. Eu lembro quando você começou a escrever "Fazenda Modelo", por exemplo. Foi a solução na hora que você estava danado da vida com todo o negócio de música, não foi? Você se dedica como solução e depois vira uma quase obsessão.
Chico - Não. O que aconteceu foi que eu, naquela época, fiquei realmente sem alternativa, sabe?
Tarso - Inclusive você tinha feito um conto, até que a gente discutiu o conto que você tinha feito.
Chico - É, inclusive desenvolvi alguma coisa que tinha escrito antes e tal. E não havia outra alternativa, porque eu tinha tido a peça "Calabar" proibida e logo em seguida o disco de um show que eu fiz ao vivo também proibido. E realmente, eu não estava em condições de gravar nada, nem de compor, entende? Eu estava vendo que qualquer coisa que eu fizesse, ia ser mais um desgaste, mais um trabalho à toa. Então eu parti pro livro. E aí parti mesmo, inteiro. Tempo integral e não fiz outra coisa o tempo todo. No fim do ano, a Phillips queria lançar um disco e aí é que houve aquela idéia daquele disco "Sinal Fechado", só com músicas de outros autores. Mas, inclusive, eu ia pro estúdio gravar com a cabeça no livro que estava em casa. Voltava pra Fazenda Modelo.
Tarso - Quem te apoiou muito nessa época foi o Julinho Adelaide, não é?
Chico - O Julinho Adelaide fez uma música aqui e ali.
Tarso - "Chama Ladrão"?
Chico - Fez "Chama Ladrão", fez.
Tarso - Devia ser pai dele, não é? O marido da Adelaide...
Chico - Fez "Você não gosta de mim" e não sei o que, não é? Heim?
Tarso - Devia ser o marido da Adelaide, não é?
Chico - Quem?
Tarso - O ladrão.
Chico - O ladrão, marido da Adelaide? (risos)
Tarso - Você não é freqüentador de teatro, você não gosta muito de teatro e escreve pro teatro, não é? Agora, suas peças você vai ver diversas vezes, não vai?
Chico - Não, não vou ver muito, não. Só vejo em tempo de ensaio, depois, não vejo mais. Mas eu também não gosto de música e faço (risos).
Tarso - Você escuta música quantas vezes por ano? Na sua casa, você sentar, pegar a vitrola, ligar e escutar.
Chico - Eu não escuto mesmo. É muito difícil eu fazer isso. Escuto assim quando sai um disco novo e tal.
Tarso - Seu?
Chico - Não, meu não. Meu só escuto a fatia na época de gravação mesmo de estúdio, naquela empolgação. Quando sai o disco, já com a capa e tudo, eu já não estou mais ligado nele. Agora, um disco assim do João Gilberto, com esse que saiu agora, disco do Tom Jobim, de Caetano, de Gil, de Milton, esses eu ouço. Mas não fico ouvindo o tempo todo. Eu não fico também fazendo música o tempo todo, como muita gente faz. Os compositores que eu considero mais compositores do que eu, são mais músicos do que eu, fazem, entende? Chegam na casa da pessoa estão sempre lá tirando o som e coisa e tal. Então eu tenho um outro lado que compensa um pouquinho, que é o lado mais ligado à letra, às palavras mesmo, né? que pode ser fazer letra de música, ou poder ser escrever um negócio, ou escrever para teatro. Até mesmo teatro o que me interessa mesmo é a parte literária dele.
Tarso - Prefere ler a ir ao teatro?
Chico - Eu prefiro ler. Eu entendo mais se eu ler do que seu for lá assistir. E eu tenho um negócio que renega mais uma vez a minha tentativa de fazer Arquitetura: uma falha na minha sensibilidade, eu não entendo nada do que é visual. Não sei se a peça está bem, se o cenário está bonito se não está, entende? essa coisa assim, se a montagem está assim ou assada, foge à minha capacidade de percepção.
Tarso - Cinema, por exemplo.
Chico - Ah! A luz não estava boa, não percebi. Ah! tinha luz? A gente vai assistir a um show que nem agora "Saltimbancos" e tal. No som eu percebi todas as falhas, luz eu nem sei onde é que estava. Cinema também não me atrai muito sabe.
Tarso - Qual é então, o passatempo seu?
Chico - Eu não tenho passatempo. Eu gosto de trabalhar mesmo. Ou jogar futebol, porque eu jogo muito bem, aliás, eu volto a afirmar.
Tarso - Há divergências (risos).
Chico - Ou um bate-papo, isso também é legal.
Tarso - Mas você tem um tipo de disciplina básico, que eu não consigo ter. Você consegue se fechar e trabalhar horas. E é engraçado, porque você é um vagabundo, quer dizer, eu te vejo como vagabundo, bebe, diz besteira e coisa. Como é que surge esse processo de disciplina, que eu quero saber, aliás, pra minha informação? (risos).
Chico - Eu tenho muita tendência à dispersão, o dia que passo sem fazer nada, não acho legal, não me sinto bem, entende? Tenho uma certa ansiedade de fazer as coisas, estar fazendo sempre. Mas isso é uma coisa. Esse negócio de disciplina que você está falando, é um negócio que eu me imponho a duras penas. Também não é verdade que eu fique trabalhando o tempo todo. Mas eu fico trancado aqui em frente da máquina, às vezes, com um papel branco.
Tarso - Você, nesse show do Milton em Três Pontas, resolveu "vou". Você tem um tipo de autodisciplina, que eu sei lá, deve ser um negócio meio de formação, quase de escola, não parece isso?
Chico - Não, porque eu, não era assim. Eu levava a vida como ela vinha. Mas, você por exemplo, você trabalha no jornal, você tem uma pauta lá, você tem um negócio pra fazer, você faz. Ou não faz (risos). Mas eu não tenho essa pauta na minha frente. É um trabalho que se você não se perguntar, não se educar, não se disciplinar um pouco você não vai fazer.
Tarso - Eu tenho a impressão seguinte, pra mim você é o melhor brasileiro, boneco (risos).
Chico - Aí!
Tarso - Você não se transformou neste músico maravilhoso, com base no jogo de palavras? Me parece que você tem uma paixão longa, já amadurecida, com os jogos de palavras. Deve ser um negócio do ginásio, quase infância.
Chico - Em primeiro lugar eu não sou poeta; eu faço letra de música e não poema..
Tarso - Não, mas espera aí, poeta não é um negócio assim, poeta tal, música tal, você vê...
Chico - Não, porque estão fazendo uma certa confusão em torno disso, entende? E até os poetas, poetas mesmo, estão ficando chateados com esse negócio. Parece que eu, Caetano e outros estamos assumindo uma postura de poeta. Não é isso. Agora, mais uma coisa pra reforçar isso que eu estou dizendo: eu tenho paixão mesmo pela palavra. Eu transo a palavra, quando estou fazendo música e letra, eu transo a palavra junto com a música. É um trabalho, é uma coisa só...
Tarso - Mas, você joga muito com a sonoridade da palavra. O que me parece é que a partir do som de algumas palavras, você cria a música. A música entra como auxiliar das palavras.
Chico - Eu acho que acontece ao contrário.
Tarso - É mesmo?
Chico - Normalmente acontece o contrário. Eu, a partir da sonoridade de uma música, a partir do mesmo, eu vou descobrir a palavra correspondente. Tanto que as minhas parcerias são quase todas fazendo letra pra músicas que estão prontas. Eu vou tentando colocar ali as palavras que parecem corresponder aqueles sons que estão ali.
Tarso - Agora vem cá, passemos a outra coisa: numa entrevista do Florestan Fernandes, há o seguinte: que este papo de cientista não pode fazer política é uma besteira, porque a política é uma decorrência, entendeu? De você, de vez em quando, dizem assim: "Não, o Chico não é político, o Chico é um músico". Você não acha que todo ser obrigatoriamente político, que esse papo de que sujeito não se mete em política é uma besteira, você não é uma pessoa claramente situada politicamente?
Chico - Eu sou, mas, eu não coloco isso assim como uma ordem, não. Eu não acho que o artista tenha que ser político necessariamente.
Tarso - Não, ele será político mesmo pela ausência quer dizer, a omissão é uma posição política.
Chico - Então aí que está outra coisa. Por exemplo, João Gilberto. Se você perguntar a ele quem é o presidente da República, ele não sabe. Não sabe mesmo. Agora, a arte dele é revolucionária, entendeu? E acaba tendo um papel político, sem que ele queira. Sem que ele saiba.
Tarso - Sim, mas você não entendeu. A minha tese é a seguinte; é que é proibido a quem quer que seja proibir o cara de participar ativamente de política.
Chico - Ah? Isso é claro. É proibido proibir. É evidente. O sujeito eu acho que até pra exercer a profissão de médico é bom que tenha uma visão política. A não ser que seja um sujeito tipo artista, entende, um tipo João Gilberto.
Tarso - Escuta, a TV Globo entendeu que é o Ministério da Informação de tudo o que há de pior no país. Quer dizer, qualquer restrição, a Globo está apoiando, tanto que houve aquele episódio do Festival Internacional da Canção, em que eles quase levaram vários compositores à cadeia. Bom, atualmente, já se fica conversando que você voltaria pra Globo, aquele papo. Então, eu acho bom deixar claro o seguinte: qual a razão do seu afastamento da Globo, especificamente?
Chico - Tem várias razões pra eu não estar na Globo. O que há de novo agora, é uma insistência por parte da Globo em colocar a mim e outras pessoas lá dentro, entende? E isso é uma coisa evidente que eles estão querendo computar, né? Não interessa mais excluir. Não interessa mais censurar. No momento, não interessa mais omitir o nome, como faziam tranqüilamente. Interessa muito mais cooptar, quer dizer, enquadrar fulano, fulano, e fulano, que não estão. Por que não estão na TV Globo? É a pergunta né? Vamos botar.
Tarso - Mas, de repente, parece uma questão de honra pra eles levar vocês pra lá.
Chico - Eu não tenho muita questão de honra com a TV Globo. Acho que esse valor não existe muito lá. Mas eu acho que há interesse, não só da Globo, mas de tudo o que ela representa, em colocar todo mundo dentro daquele quadrado.
Tarso - Quer dizer, fazer o monopólio mesmo também na área artística e coisa.
Chico - Claro. E fazer, dar a impressão de que não existe oposição no país. Oposição de nenhum nível. Não estou falando de MDB, nem de nada.
Tarso - Mas, falando no MDB, na campanha de 1974, você deu um apoio a certas pessoas. Quer dizer, não só com você, como o meu querido Érico Veríssimo, como uma série de pessoas. Um desses, por exemplo, que é Oscar Freire, eu posso citar. Almocei com ele outro dia e ele me defendeu numa posição das mais baixas que eu já conheci.
Chico - Marcos Freire.
Tarso - Marcos Freire.
Chico - Oscar Freire é uma rua (risos)
Tarso - Que conste. Eu estava almoçando com o Marcos Freire e ele disse assim. "Eu acho que nós devemos lutar pela anistia parcial, hoje". Acho que a posição é inteiramente incorreta. Agora, suponhamos o seguinte, esse MDB que virou conglomerado de divisões, quer dizer, o MDB não virou um partido, é oportunista mesmo. Você não acha que em certos casos há muito risco em se dar uma mão para essa gente?
Chico - Olha, toda posição, toda expressão de posição política, implica num risco, implica sempre num desgaste muito grande. Realmente é muito mais fácil você não se manifestar, nem dar apoio a ninguém e não criticar ninguém. É muito mais fácil. Agora, eu não conheço essa posição que você está falando, do Marcos Freire, mas na época me pareceu que valia a pena apoiar e, inclusive, o negócio foi feito porque é um amigo comum, né? Um sujeito lá de Recife, que é um amigo meu, em que eu confio, me pediu esse apoio. Eu dei entende? Mais tarde, alguém ligado ao Brossard, pediu a mesma coisa. Eu dei. No caso do Brossard, inclusive, havia o apoio de Érico Veríssimo. Eu fiquei pensando, vem cá?... o Brossard não é um homem da Revolução, que eles chamam, né? Um homem do golpe de 64. Mas, não, há mil nuanças aí, que eu às vezes nem consigo perceber direito. Então, de certa forma, você está se desgastando, na mesma medida que um sujeito, quando topa fazer um anúncio publicitário na televisão, está se desgastando, só que está recebendo dinheiro para isso. Nesse caso não está se recebendo e eu acho que a gente tem que evitar e brigar um pouco contra essa imagem puritana do artista, colocado lá no alto.
Tarso - Mas, olha aqui, te conheço há 150 anos...você não é e nunca foi ingênuo. Você sabe o que faz, quer dizer, você sabe a importância que você tem hoje dentro do país, né?
Chico - Bom, até certo ponto, Tarso, mas eu não tenho acesso a todas as informações que eu deveria ter. Agora, nesses casos, e às vezes eu posso até fazer besteira, mas eu atendo a pedidos de amigos meus, em que eu confio nesse sujeito, é um amigo meu. Está bem, porque se não é impraticável. Eu teria que estudar a vida desse cara, ver qual é a posição dele, conversar com ele. Depois, eu não acho que seja uma coisa tão importante assim, tão preciosa, para eu ficar valorizando assim, entende? Aí estou me tornando um garoto propaganda colocando o meu preço e... Agora, é claro que eu tenho uma série de restrições a todo esse negócio do MDB, a essa toda situação toda. Mas eu não posso nem ficar caindo no outro lado, que foi para onde eu caí também um pouquinho, logo depois de 64, que é a negação de tudo e a descrença em tudo. A gente procura dar um certo crédito e muitas vezes a gente sai decepcionado. Muitas vezes. Mas é uma atitude, pelo menos, generosa.
Tarso - Eu acho muito correta.
Chico - Com os riscos todos que ela inclui.
Tarso - Mas tem outro lado da coisa aí. Tem uns amigos seus que pedem pra você, pelo menos pediam, uma época, eu me lembro, amigos nossos, que pediam pra você: " toma mais cuidado, não se exponha tanto e coisa" não é verdade?
Chico - Existe isso?
Tarso - Mas melhorou esse negócio, né? Porque no início, há uns dois anos atrás, havia muito apelo. "Chico pára com isso, não provoque" e coisa. Hoje, parece que entenderam que você está na posição irreversível de ser uma pessoa correta, dizer as verdades que acha.
Chico - Não, e depois há outra coisa. Eu acho que uma posição um pouquinho mais violenta, que eu tinha há uns quatro anos atrás, aparentemente era fruto dum desespero, entende? Porque o sujeito desesperado, sem perspectiva nenhuma, não pode, nem parar pra pensar em agir prudentemente. Enquanto que agora a situação já é bastante diferente, acho que a gente está em condições de pensar um pouco nas coisas. Não vou dizer que estejamos com a faca e o queijo na mão, mas pelo menos a faca e o queijo não estão mais na mão de quem estava, entende? Não está tão claro assim o controle absoluto da situação pelas forças de repressão como estava há quatro anos atrás. Então, eu acho que é, inclusive, a hora de evitar brigas pessoais, entre quem mais ou menos se feche em torno de uma idéia democrática. É uma hora de ser menos intolerante e menos individualista.
Tarso - É mais você, agora por exemplo, neste momento, estão movendo campanhas contra Caetano, que você me falou e contra Glauber. A campanha contra Glauber é um negócio impressionante.
Chico - Incrível. Eu, inclusive, gostaria até de conversar com Glauber, porque eu acho que ele está equivocado. Acho mesmo, na posição dele. Mas, de qualquer maneira é um cara que não está acomodado, que está querendo entender o momento político brasileiro. O chato é que, atrás dele tem um cordão de gente menos preparada, que não parou pra pensar e sai dizendo besteira. Achando que está na mesma posição do Glauber.
Tarso - Não sei se você tem essa visão, mas há de um lado um grupo que é profissional do dedodurismo e que acusa outro grupo de ser entregue ao poder.
Chico - Mas não tem nada a ver.
Tarso - Quer dizer o processo que quase você sofreu quando você voltou entende? E teve sujeito que insinuou: "ah! então fez as pazes, né?
Chico - É, fui acusado disso mesmo.
Tarso - Então, de repente, é um crime você voltar pra sua pátria e abrir o debate. Quer dizer, hoje o Fernando Henrique diz assim: "Se me chamarem pra esse negócio de Escola Superior de Guerra, eu vou lá. Eu tenho muita coisa a dizer a eles, entendeu? Eu tenho muita coisa a dizer". Como o Florestan. Eu estou falando nesse grupo que é um grupo que me parece mais importante, mais lúcido deste país, que levanta e diz assim: "Não o problema não é discutir o problema eleitoral, é discutir os temas básicos de um país, né? E só são discutidos quando vem um "pacote de abril" essas coisas. Então, quer dizer, o Glauber bem ou mal abriu debate, entendeu? Que coincide, por acaso em alguns pontos com o Florestan. É claro que eu também discordo com alguma coisa do Glauber mas coincide naquele negócio: "militar e a burguesia não tem muita diferença, são formados tudo no mesmo esquema, nunca teve a audácia e a honradez de fazer uma revolução nacional mesmo, né? Então, essa acusação me parece, muito vaga, eu quero saber ponto-de-vista, esse negócio de acusação, se é possível esse negócio?
Chico - Essa é uma outra discussão muito longa. Mas eu acho que o Glauber se firmou numa posição que ele tinha quando a situação, quer dizer, quando os exemplos que ele tinha eram Alvarado, no Peru, e a jovem revolução portuguesa dos primeiros tempos. E agora já ele perdeu um pouquinho esse pé de apoio. Mas essa é uma longa discussão que é saudável existir, exatamente como eu estou dizendo.
Tarso - Com todo esse clima que se estabeleceu aqui, você não sente, de vez em quando, um profundo cansaço da mesquinharia que se estabeleceu? É um país que está debatendo coisas menores, você não sente isso no ar? De repente você olha a primeira página de um jornal e é uma besteira, é uma coisa assim, o que é que você lê, o que você consegue ler no jornal de hoje?
Chico - Essa impressão a gente tem muito quando chega de viagem. Depois a gente vai se acostumando, isso é que é mais triste. Você chega de uns 15 dias de um lugar onde haja assim uma abertura maior e você lê as coisas, então você volta pra cá, já vem naquele avião, tudo fechado, lê aquele jornal, a claustrofobia toma conta da gente.
Tarso - O que me impressiona muito é que se a gente comparar o que os membros do governo falavam há um ano atrás, às vezes nem um ano, às vezes há um mês atrás e o que fala hoje, mudou tudo, né? Então, por exemplo, o que seria o ministro da Cultura, eu digo o que seria, porque uma pessoa que admite a censura, etc. não me parece ministro da Cultura, o Sr. Ney Braga passou um tempo dizendo que queria aproximação com a classe artística e sei lá, entende? E, de repente, é o primeiro a sair na rua e dizer que não tem esse papo, que estudante precisa estudar, que artista é pra atuar e não sei o que. No caso dos músicos ele fez alguma tentativa de aproximação, de diálogo pra discutir coisas que favorecessem a classe?
Chico - Não, fez, inclusive, eu devo até dizer que nesse negócio todo a Som-Brás, que é uma organização de músicos e tal foi ouvida pelo Conselho de Direito Autoral, entende? Nós tivemos palavra lá dentro na mudança, por enquanto ainda precária, mas em todo caso uma mudança no sistema de arrecadação dos direitos autorais e tal. Outra coisa que ele não podia é resolver o problema da censura dos artistas, porque o problema da censura está sujeito a outro Ministério, entende? Aí ficou uma aproximação inútil, entende, pelo menos pros artistas. E acontece essas coisas, tipo da peça do Vianinha, né, "Rasga Coração", que é premiada pelo SNT, que é ligado ao MEC e proibida pela censura que é ligada ao Ministério da Justiça. E isso que está aí, entende? Isso é o retrato do que está acontecendo, inclusive, da inutilidade de sentar um diálogo com o Ministério da Educação e Cultura, no que se refere à censura.
Tarso - Então você discute com um ministério que pode até financiar um negócio, te ajudar e outro proíbe. Quer dizer o governo não tem a menor coerência nisso.
Chico - Não tem. De jeito nenhum.
Tarso - Um certo humorista "toc, toc, toc" uma vez diretamente na Veja, que um certo cantor usava a contestação pra se promover. Depois, na declaração no "Diário da Noite" e "Diário de São Paulo" citou você nominalmente. Então, isso me parece indignidade total. Insinuar isso, porque me parece que o disco censurado da prejuízo. Os seus discos mais visados, mais censurado, não deram prejuízos? No geral?
Chico - Ah! dá. Um disco como esse todo cortado, sem letra, não sei o que, ele não tem interesse. Isso eu já falei e há uma solidariedade das pessoas e tal, mas que pode até conferir um certo prestígio numa área bastante restrita ao artista, ao intelectual, entende? Como há a simpatia pelas pessoas que são condenadas, ou coisa. Isso existe mas é uma coisa muito pequena em relação à potencialidade de um disco que como esse último que eu lancei, que vendeu dez vezes mais do que aquele outro. Depois, o sujeito fica ligado, não ao trabalho que está fazendo, mas à censura, entende? Isso não é bom de jeito nenhum. Não dá camisa a ninguém, nem dá satisfação nenhuma, porque o sujeito é parado na rua; "hei, como é que vai a censura", em vez de perguntar pela sua música, entende? A gente quer é mostrar a música da gente.
Tarso - Como o jornal, a técnica que a censura usa e que em grande parte cola é a seguinte: levar o censor ao extremo de promover a auto-censura, quer dizer, criar um caso de auto-censura dentro dos jornais. No seu caso, você acha que eles conseguiram alguma coisa assim? Você quando está fazendo alguma música, sente um toque de auto-censura? Você tem um medo de não botar uma palavra? Você passa a se cuidar ao fazer uma música?
Chico - Não. Conscientemente, não. Não tenho consciência disso não. O que acontece também é que num país...
Tarso - Mas existe um clima de tensão, né? Você manda a música pra censura e fica com tensão, porque eu já vi você diversas vezes esperando resposta de Brasília, feito um louco. Com o advogado indo e vindo e não sei o que?
Chico - Claro, eu curto. Cada disco que você faz é a coisa mais importante. Tudo é a censura. Em seguida vem arranjo, estúdio, enfim, a coisa. A cabeça está pensando nisso. Você quer lançar o disco tal dia, não sei o que? Aí tem que gravar às vezes mais músicas, já pensando que pode ser censurado, entende? E tanto faz fazer o show quanto gravar um disco é um trabalho, hoje em dia, que desgasta muito o artista, porque tem essa ameaça constante da censura sem parar. Estou cansado de fazer show e quase não estou fazendo. Os poucos que eu vou fazer, na hora, tem problema de policia, de censura, do diabo.
Tarso - Agora, isso de você evitar show é um negócio mais pessoal do que da censura ou a censura tem uma influência grande nisso?
Chico - Não. Eu nunca vou dar esse gostinho à censura. Dizer que eu parei de fazer show por causa de problema de censura. Se bem que é, realmente, uma barra pesada. Sempre, em qualquer lugar que se vai, volta e meia, há intimação, gente no camarim, policial, aquela coisa, é um negócio muito chato. Mas não é por isso que eu dei essa parada, não.
Tarso - Eu já vi, várias vezes, dentro de um camarim seu a censura ir levar solidariedade. Quer dizer, ninguém tem culpa na censura, você não acha estranho isso?
Chico - É, eles estão sempre. Mas essa é a história do "você não gosta de mim e sua filha gosta". É claro que existe também, né? Eu já fui detido em casa, por um sujeito que no elevador pediu autógrafo pra filha. Isso acontece sem parar, né? Mas isso é inclusive a proteção que a gente tem.
Tarso - No seu último disco, "Meus Caros Amigos" que estourou mesmo foi o "O Que Será?", né? O pessoal do exterior o Paulo Francis mesmo falou que quando viu a música se debulhou em lágrimas e tudo. Imagine o Paulo Francis debulhando em lágrimas e tendo que tirar os óculos (risos). Como é a origem dessa parceria com o Milton? De repente deu certo o jogo de vozes de vocês, porque a Gal ia gravar essa música. Como é que começou mesmo essa história?
Chico - Isso começou muito por acaso. O problema é que a gravação era pro filme. E, na época, o diretor estava achando que não devia ser uma mulher a cantar. No fim, acabou sendo mulher. Na época, a idéia era para ser a Gal. Mas daí ele achou que talvez, problema de Gabriela e o problema de não parecer que era Dona Flor que estava cantando e queria, bom queria uma voz de homem.
Tarso - Estranho, é? A Sônia Braga não tem nada a ver com Gabriela.
Chico - Aí, o Milton apareceu no estúdio. Eu estava com o Francis, o Francis estava tocando piano e tal e aí ele se ligou na hora na música. O Milton, quando quer uma coisa, consegue. Haja visto esse show que ele levou em Três Pontas, cada um viajando 15 horas de carro, pra chegar lá e foi todo o mundo. Aí a gente se apaixonou pela idéia na hora, o Francis e eu. Nós estávamos fazendo o arranjo e ficou sendo o Milton. Aí houve outros problemas com relação ao filme. No fim a Simone gravou para o filme e a gente fez pro disco e o disco dele.
Tarso - Como é esse compacto que vocês vão lançar agora?
Chico - A gente resolveu fazer músicas junto. Ele tinha umas três músicas e eu pus letras em duas delas. Agora a gente vai gravar. Mas há um problema: ele é de uma gravadora e eu sou de outra. Assim, resolvemos produzir esse disco, pagar estúdio, pagar o que tiver que pagar e tal e depois ver como é que eles se entendem. A Oden e a Philips. Vão ter que se entender de alguma maneira e o disco vai sair.
Tarso - Como é o tratamento, as gravadoras exercem uma ditadura próxima do que os direitos autorais exerciam com os compositores?
Chico - O problema mais sério das gravadoras é com os cantores de vendagem média e pequena. É evidente que a gente que goza de situação privilegiada lá dentro tem uma série de regalias e não tem muito esse problema. Tanto que a gravação do "O Que Será" foi resolvida e essa vai ser resolvida também. Então, não é aí exatamente que você deve procurar o problema do relacionamento entre o artista e a gravadora.
Tarso - Mas, por exemplo, o que você gravou na RGE, não pode gravar noutra companhia nunca.
Chico - Isso é outra coisa. Eles praticamente, ficam donos da música, durante algum tempo, 10 ou 15 anos, uma coisa assim. Mas isso aí também é aquele negócio que eu estava falando também. Eu não tenho muito interesse pelo que já foi feito. Eu deveria estar preocupado aí porque é um negócio fora do natural, eu não ser dono das coisas que eu fiz, entende? Agora, eu também guardo, assim como não guardo revistas, recortes e tal, eu também não estou preocupado com as músicas que eu gravei há 10 anos atrás.
Chico
Há cinco anos ele não conseguia por na rua um disco inteiramente seu. E há quatro pelo menos não aparecia na tevê. Mas o público continua cada vez mais fiel a Chico. Seu especial feito pela TV Bandeirantes faz enorme sucesso e o disco Meus Caros Amigos já vendeu 300 mil cópias.
Coojornal - Você faz parte do grupo de músicos e compositores projetados no início da carreira pela TV, pelos festivais da Record de 65/66. Quase todos estão hoje afastados da televisão e você há quase três quatro anos não aparecia nos vídeos. Agora você voltou com programa especial feito pela Bandeirantes de São Paulo e que está passando em todo país com uma acolhida muito boa. Como foi sua volta?
Chico Buarque - Não foi assim uma volta programada. Eles me fizeram um convite que achei razoável. Eu já havia feito um programa em 73 com o Roberto de Oliveira, que dirigiu este agora. Foi tudo muito livre, muito à vontade. Gravaram 17 horas de bate-papo, de besteira para tirar uma hora e pouco de programa. Eu gostei muito, achei muito bom.
Coojornal - Significa que você fez as pazes com a TV?
Chico Buarque - Nunca estive brigado com a televisão, nunca disse que não transava TV. Não concordo com o monopólio, com o tipo de censura que a Globo andou fazendo, por exemplo. O que houve foi isso: estive cortado da televisão, em parte pela censura oficial em parte pela censura da Globo.
Coojornal - Mas agora, se a Globo convidar par um especial você topa?
Chico Buarque - Agora sou eu que não quero. Acho inadmissível uma censura, como a Globo andou exercendo por aí, principalmente numa época em que a censura oficial era braba.
Coojornal - Eles já lhe propuseram algo assim?
Chico Buarque - Sim, já propuseram, há mais de seis meses. Mas agora não me interessa, não estou a fim. Não acho que esteja perdendo alguma coisa com isso. Também não é nenhum ato heroíco não fazer TV Globo. Eu não gosto do que vejo lá. Não acredito que possa fazer um programa bom lá. Vejo gente boa lá, vejo e não gosto do resultado final.
Coojornal - Quem você viu lá que não foi bem?
Chico Buarque - Não vamos entrar nisso, não. Mas já vi coisas incríveis, apesar de bem intencionada às vezes.
Coojornal - A Globo é uma imensa máquina, você não teria o controle do programa como teve na Bandeirantes, é isso?
Chico Buarque - Não é controle, é confiança. É outra coisa. O Roberto Oliveira já tinha feito trabalho comigo, bem feito, honesto e eu me entreguei. Se ele quisesse fazer um programa muito ruim, me derrubando, ele podia fazer com o material que ele tinha lá, 17 horas de gravação. Era só escolher as mil coisas que não deram certo e pronto. Não estou dizendo que a Globo iria fazer uma coisa dessas comigo, isso é bobagem. Só que acho que eles não dariam o meu tempo. Eu vejo cantor na TV Globo assustado, não sei se é impressão minha, mas parece que o cara está assustado, se errar vai bater o gongo. Isso não é culpa de fulano ou de cicrano não. É um sistema que existe... doente.
Coojornal - E como escapar dele?
Chico Buarque - Acho que tem que haver concorrência. Tem coisas muitos ruins lá que todo mundo assiste porque não tem outra coisa. Isso tem que ser dito: com o que os outros estão fazendo aqui no Rio não dá para virar o botão, só para desligar.
Coojornal - Você acha que a concorrência aperfeiçoa...
Chico Buarque - Estou falando num país capitalista, nós estamos vivendo aqui. Acontece que de repente nós temos uma televisão com todos os defeitos da televisão estatal, aliados a todos os defeitos da televisão em livre iniciativa. Estamos com os defeitos e só os defeitos dos dois lados. Eu morei na Itália. Lá a televisão tem coisas chatas, por que é do Estado, não há concorrência. Mas quando você chega aqui e vê o volume de anúncios que nos jogam em cima, você leva um susto.
Coojornal - O que você acha desses caras, atores de novela, Chico Anísio e outros que estão gravando disco, faturando a força da Globo?
Chico Buarque - Acho que não é o caso de discutir os caras, o Chico Anísio ou outro porque gravou um disco. O caso é a Globo que está entrando na música como está entrando no teatro e no cinema e com um poder, uma máquina de promoção com a qual ninguém é capaz de competir. A dificuldade de se montar uma peça porque os atores estão todos vinculados à Globo e não podem trabalhar em determinados horários é uma coisa séria. E isso não é nada: a Globo começa entrar, indiretamente , em promoção de teatro e até em filme. Não é a Globo, é gente ligada a Globo. Então você vê lá num horário nobre, no Jornal Nacional a propaganda de uma peça. Jamais você vai conseguir fazer isso com Gota D'água, por exemplo, você não terá dinheiro para isso nunca. Quer dizer; o negócio é feito através de permuta, os artistas estão na produção, fazem um especial, não sei o quê acaba tendo o dedo da Globo nisso. Isso é muito grave por que no fim eles não tem o monopólio apenas da televisão. Estão entrando de sola na música. Você vai ver a lista do hit parade, é o tema da novela das 8, em primeiro lugar, segundo lugar é a faixa internacional da novela das 10...
Coojornal - Mas esse é o hit-parade da Globo...
Chico Buarque - Não, isso é verdade. Quem vende mais disco são eles mesmos, longe. São os discos de novela e nisso ai há mais sacanagem porque eles pegam uma coisa aqui outra ali, nas músicas internacionais então nem se fala. Essa novela do Mário Prata o Estúpido Cupido, não aparece Ray Connif, segundo o texto do Prata deveria ter a música do Ray Connif. Mas a Globo não chegou a um acordo com a gravadora dele, então não entrou Ray Connif. É assim. O que for mais barato eles pegam e vendem qualquer coisa. Põem discos com 29 faixas e você compra contente porque tem mais música. Mas as músicas vêm cortadas e estragam logo porque os sulcos são muito estreitos. É violentíssimo.
Coojornal - E como se combate isso?
Chico Buarque - Por enquanto o que se pode fazer é atacar no terreno de direito autoral. O grosso da arrecadação de direito autoral no Brasil é festinha no interior, a boate no Acre, a música que toca de fundo em restaurante, e a rádio e a televisão, que é o que tinha , que paga mesmo, é uma ninharia o que eles pagam. A TV Globo paga uma ninharia, enquanto nos Estados Unidos o que pagam o rádio e TV representa 85% do direito autoral arrecadado. Agora promete-se uma solução para este assunto, vamos ver.
Coojornal - Em que estágio está isso?
Chico Buarque - Bom, tem aí esse Conselho Nacional do Direito Autoral, cuja intenção é sanear esse negócio. Agora não é fácil. Aí também entra o poder das velhas sociedades arrecadadoras e não se pode subestimar o poder delas. Aí tem ligações que você não imagina.
Coojornal - E a Sombras? Como está a Sombras
Chico Buarque - A Sombra é um movimento de classe que por enquanto atua mais dentro do problema do direito autoral. Mas que pode vir a ser um órgão de classe atuante. Ainda não é porque é uma coisa muito difícil, com muita suspeita em cima, porque está mexendo numa caixa de marimbondo que são as velhas sociedades arrecadadoras de direito autoral. Então já vêm aquelas acusações todas de praxe, que é um bando de subversivos.
Coojornal - Quantos compositores já estão ligados à Sombra?
Chico Buarque - Não tenho os números. Ela tem um problema, por enquanto não pode atuar fora do Rio. Em São Paulo atua um pouquinho. Mas no Rio são pouquissímos os jovens compositores e músicos que não são ligados à Sombras. Ela ainda é precária, ainda não pode atender aos problemas de cada um. Mas só não está na Sombras quem está desinformado ou desiludido ou está ligado ao velho sistema de arrecadação de direito autoral.
Coojornal - O pessoal da Sombras teve algum problema, algum boicote nessa área do direito autoral?
Chico Buarque - Que eu saiba não. Mil ameacinhas. Tom Jobim mesmo recebeu telegrama; ele é da SBACEM, acho que ameaçando expulsão uma coisa assim. Eles têm uma porção de cláusulas dessas. Eu, por exemplo, já tinha recebido ameaça de expulsão dos quadros da UBC (União Brasileira de Compositores) há algum tempo, quando comecei a fazer música com o Tom Jobim mesmo e com outros compositores que não são da UBC. Hoje não existe mais esse problema. Mas existia isso. Você para fazer música com um parceiro tinha que pedir carteirinha para saber se ele era da mesma arrecadadora. Era um absurdo e caiu porque não convinha a eles mesmos e porque eu sou um cara com bastante nome, podia chiar e ia ficar mal. Quer dizer, neste nível se você me perguntar ou perguntar a outros compositores de mais nome se eles sofreram alguma pressão, não vai encontrar nada.
Coojornal - O problema são os menos conhecidos, os principiantes...
Chico Buarque - É. O problema não somos nós não. É aquele compositor que se passarem a mão, se mandarem embora, não vai acontecer nada. Não vai sair no Zózimo. E aí tem até crime.
Coojornal - Como crime?
Chico Buarque - Crime de morte. Teve um cara aí que levou bala porque falou mal da sociedade.
Coojornal - É uma caso com a Sica aqui no Rio, não? Como era o nome do cara?
Chico Buarque - Chamava-se Nelson, parece. É um compositor que a gente não conhece, evidentemente. Eles não vão dar um tiro no Tom Jobim.
Coojornal - Foi difícil a formação da Sombras?
Chico Buarque - Claro que foi. Eu me lembro: desde que me dou por compositor, de uns doze anos pra cá , há essa conversa de discutir direito autoral, de tentar reunir o pessoal e nunca deu certo. Isso por que a profissão condena a gente a um certo individualismo. É muito difícil juntar em torno de qualquer tema comum. A Sombras parecia ser mais uma tentativa destas e acabou dando certo, principalmente porque no momento dos escândalos, nas sociedades arrecadadoras estavam chegando a proporções policiais. Quando estava apenas se formando, era apenas discutida em bate-papos, começou a sofrer uma série de ataques das sociedades, alarmadas com a idéia, e isso acabou dando força à Sombras. Então, aquela idéia que era de uns 10 ou 12 caras acabou se ampliando. E hoje a Sombras tem voz, ela é ouvida em termos de direito autoral.
Coojornal - Seu último disco "Meus Caros Amigos" vendeu já 250 mil cópias. É uma coisa surpreendente. Como você explica: a música do Chico é que mudou ou aumentou a receptividade para o tipo de música que o Chico faz?
Chico Buarque - Primeiro: foi mais de 250 mil. É um pouco mais de 300 mil. E eu não sei explicar. Acho que conta o fato de que eu estava há muito tempo sem lançar um disco de coisas novas. Não entendo também nada disso: um disco de peça de teatro vende menos do que o disco que não é peça de teatro. Disco de filme não vende, é tabu.
Coojornal - Seus últimos discos que foram aquele da peça Calabar que acabou saindo como "Chico Canta" e o "Sinal Fechado" foram discos que representam uma descida na tua carreira justamente por causa do problema da censura. Este é o primeiro disco em que você conseguiu formar um repertório novo, não é?
Chico Buarque - É, outro dia nós tivemos uma coversa lá na companhia discutindo se vamos gravar ou não vamos gravar e vimos que menos do que todos esses discos aí, menos que "Sinal Fechado", que praticamente não tinha música minha, e o "Calabar", que saiu todo mutilado, foi o "Quando o Carnaval Chegar". E este é um disco de filme , mas é um disco de músicas quase todas minhas e ainda tinha Nara e Bethânia para reforçar. Vendeu 40 mil, que em comparação ao que eu vendo normalmente é muito pouco.
Coojornal - Desde quando não havia um disco inteiramente seu, assim como este "Meus Caros Amigos"?
Chico Buarque - É. Tinha esse disco do filme, com Nara e Bethânia, disco de show com o Caetano, o "Calabar", que saiu todo errado com a capa toda branca, o "Sinal Fechado", que era com músicas com músicas de outros compositores, o disco do show do Canecão com a Bethânia. Quer dizer, nada disso era um trabalho meu, normal. O último que foi assim um trabalho inteiramente meu, normal, foi "Construção" em 1971.
Coojornal - O momento atual , em que o país começa a redescobrir o exercício da crítica em todos os níveis, não seria propício para esse tipo de música sua. Isso não teria influído para chegar a esses 300 mil discos?
Chico Buarque - Eu já falei sobre isso. Mas se fosse pensar assim, um disco como "Calabar" teria tudo para ser um estrondo em vendagem. Acredito que haja 200 mil pessoas informadas neste país. Então, uma peça que foi proibida, foi proibida inclusive a divulgação da proibição dessa peça, e consegue sair um disco com uma músicas desta peça era uma coisa para, como as pessoas dizem, faturar em cima. Mas nada, foi um fracasso. Agora, reconheço que o momento atual talvez seja um pouco mais quente do que alguns anos, atrás, mais otimista no sentido de que as coisas podem melhorar. Está havendo uma mobilização muito maior, inclusive você vê isso em termos de espetáculos públicos. O Milton Nascimento lotando o Maracanãzinho, lotando três noites o Ibirapuera em São Paulo, em Porto Alegre também. E não é só isso: espetáculos com artistas menos conhecidos também estão levando muita gente. Acho que está havendo uma necessidade de reunião muito grande. Claro que o disco não tem muito a ver com isso que estou falando. Mas acho que é paralelo.
Coojornal - Que diferença você vê entre esse último disco e os outros discos seus?
Chico Buarque - Sem que eu tenha tramado nem nada, parece que ele está dentro de um espírito assim um pouco menos lamentoso do que "Calabar", por exemplo. È um negócio mais aberto, jogado para fora, mais otimista mesmo.
Coojornal - Você está mais otimista?
Chico Buarque - Não é otimista diante dos fatos, não. É que depois de cinco anos debaixo daquele peso todo da censura, quando abre qualquer portinha a gente extravasa, talvez até demais. Eu sou muito cauteloso. Mas acho que está havendo quase a necessidade de criar coisas mais vivas, mais brilhantes. Uma vontade mesmo de um desafogo. E de uma certa forma é preciso reconhecer que em termos de censura, principalmente a censura à imprensa, nós estamos melhor do que há três ou quatro anos atrás.
Coojornal - Teve uma época em que você mandava três músicas e duas eram cortadas. Como está a censura agora com você?
Chico Buarque - Bem, teve uma época em que havia, e isso foi declarado, havia um caso pessoal. E esse caso pessoal passou. Agora acho que estou igual aos outros, não há mais essa discriminação. Por que afinal, com isso eu estava sendo prejudicado mas, por outro lado, a gente tem que contar que as autoridades também se desgastam com essas coisas. A gente não pode subestimar a força delas, mas ao mesmo tempo tem que saber que elas se desgastam. Eu sentia isso pela manifestação das pessoas. Pessoas me perguntando, pessoas até com pena. Eu não ganhava nada com isso, mas eles perdem. Veja só: tenho certeza de que a peça Gota D'água foi muito difícil de liberar, mas eu tenho certeza que a proibição de Calabar contribuiu para liberar a Gota D'água. É um jogo que existe.
Coojornal - Você encara esse avanço como conquista ou concessão deles?
Chico Buarque - É uma conquista. De jeito nenhum acredito em concessão e não tenho nada a agradecer, muito pelo contrário...
Coojornal - Você falou uma coisa não muito sabida: Gota D'água teve problemas para liberar?
Chico Buarque - Ah, sim. Ela voltou com tantos cortes que não sobrava nada.
Coojornal - E aí, como você conseguiu liberar?
Chico Buarque - Foi o Paulo Pontes. Ele foi para Brasília, não sei os detalhes. Voltou ainda com vários cortes, mas que não afetaram o essencial da peça.
Coojornal - Paulo Pontes negociou com quem lá? Com parlamentares ou...
Chico Buarque - Não sei, não sei mesmo. Parlamentares eu acho que não, senão saberia. Essas coisas são muito discretas né.
Coojornal - Havia uma caso pessoal da censura contra você. Por que?
Chico Buarque - Não era só contra mim. Mas era principalmente porque eu chiava. Nunca perdi oportunidade de chiar.
Coojornal - Na posse do governo Geisel tocou música sua...
Chico Buarque - Como é isso...
Coojornal - Na festa da posse tocou uma fita com músicas suas.
Chico Buarque - Isso pode até ser distração. Mas eu acho que esta questão da censura não é somente isso porque hoje em dia ainda há censura. Só que da maneira que era ela não interessava mais ninguém. Só uma parcela mínima dentro da Arena aprova a censura do jeito que ela está sendo efetuada. Só a linha José Bonifácio, a linha Dinarte Mariz, porque um "liberal" da Arena já é contra. Não digo contra a censura como existe hoje, mas contra o que existia há quatro anos atrás, vamos dizer. Hoje se você perguntar para o Magalhães Pinto ele vai dizer que é contra um endurecimento da censura.
Coojornal - Mas não são os políticos nem a Arena que decidem sobre a censura...
Chico Buarque - É, mas não pode esquecer que eles estavam identificados e estão identificados com o que acontece aí. Não pode esquecer isso não.
Coojornal - Você foi censurado até nas entrelinhas, como foi o caso do "Apesar de Você".
Chico Buarque - Cada letra, cada música tem mil leituras, mesmo que eu não queira dar uma dupla interpretação ela tem uma interpretação múltipla. O público pode entender como quiser e eu acho até saudável que o público interprete uma música assim ou assado. Acontece que o censor não é público. E houve caso até de censura estética, do censor não liberar uma música por achar de mau gosto. No caso do "Apesar de Você" a censura do Rio liberou, depois levou um pau de Brasília. Houve censor ameaçado de perder o emprego. A música não tinha nada.
Coojornal - Como é essa história de censor perder o emprego?
Chico Buarque - Não, isso aconteceu. Tem até uma história que parece anedota mas é verídica. Um censor carioca disse para um amigo meu: "Pôxa, não dá. Se a gente libera uma música do Chico leva bronca de Brasília, se não libera leva bronca do Zózimo"(Nota da Redação: Zózimo Barroso, colunista social do jornal do Brasil, do Rio).
Coojornal - A existência da censura influía no teu ânimo? Ou melhor: como é que influía no teu trabalho essa perspectiva de ver esse trabalho, uma música, cortada pela censura?
Chico Buarque - Bem, influía mais em relação ao teatro do que à música. É chato você iniciar um trabalho achando que ia trabalhar meses em cima e a coisa não ia sair. Se bem que a própria repressão no caso era uma forma de atiçar.
Coojornal - E no caso da música?
Chico Buarque - Nunca me preocupei muito se ia ser proibida ou não. Sempre trabalhei normalmente.
Coojornal - Você tem muita coisa censurada e que não conseguiu liberar ainda? Seu "arquivo morto" é grande?
Chico Buarque - Tenho, mas não é questão de ficar guardando e pensando em amanhã ou depois liberar. Porque acho que a música tem o momento, a hora que foi feita, depois não me interessa mais. Não que ela tenha envelhecido, mas eu não vou ficar agora lamentando da música que foi feita há quatro anos atrás, que foi proibida e está na gaveta. Não estou nem preocupado em tentar liberar agora. Claro que se eu fizer uma música agora e ela for censurada talvez eu vá gravar em Portugal. Mas é no momento. A gente está animado, está fazendo ou acabou de fazer, e ela ser proibida é um baque, uma porrada. Mas a porrada que você levou quatro anos atrás já não dói tanto.
Coojornal - Daria um disco de censuradas? Quantas são?
Chico Buarque - Numericamente não são muitas, mas isso tem pouca importância . Porque também há mil formas de censura: há musica que não pode tocar no rádio, música que pode sair, depois não pode mais, a coisa é variada.
Coojornal - Aquele livro que você escreveu em 1974, "Fazenda Modelo", foi uma maneira de escapar ao bloqueio que você estava sofrendo na música?
Chico Buarque - Talvez tenha começado porque estava sem perspectiva de lançar um disco de músicas novas. Mas depois disso não. Durante o trabalho era aquilo que quis fazer mesmo, enquanto estive trabalhando não pensei mais nessas coisas. Aquilo era uma coisa que eu sempre pensei em fazer.
Coojornal - Mas foi uma coisa, digamos, inesperada porque você é um homem que lida mais com a música do que com a palavra, com teatro...
Chico Buarque - Não. Eu lido com a música e com a palavra e até lido mais com a palavra sem a música do que com a música sem a palavra. Mesmo antes de fazer música, nos tempos de colégio já escrevia. Sempre gostei muito. Então escrever para teatro era um fascínio para mim.
Coojornal - Então é correto quando dizem que você é mais letrista, trabalha melhor, se preocupa mais com a letra do que com a música?
Chico Buarque - Não, não acontece isso. Quando faço música e letra faço as duas coisas junto. Uma coisa leva vantagem sobre a outra não. Minha preocupação é de que fique uma coisa só e pra isso ás vezes tenho que cortar um pouco da música para encaixar com a letra, mas geralmente eu corto mais a letra do que a música. Talvez, é verdade porque eu tenho mais facilidade literária do que musical, tecnicamente falando. Para deixar bem claro não faço letra sem música e às vezes faço música sem letra. Excepcionalmente faço letra para a música e às vezes faço letra para a música de outra pessoa, como já fiz música para um poema de João Cabral. Mas não é o meu trabalho habitual esse.
Coojornal - No caso do livro, houve muitas restrições a ele do ponto de vista da crítica literária. O fato de você ser um compositor consagrado terá influido nisso? Quanto ao teatro há também essa reação?
Chico Buarque - Vai haver sempre uma restrição. Eu não sou considerado um dramaturgo e já escrevi três peças. Afinal, eu me firmei como compositor. E há outra coisa: há um certo tipo de crítica mais acadêmica, que gosta de ficar passando a mão na cabeça das pessoas. E é mais fácil passar a mão na cabeça do compositor do que do escritor. Aquela coisa, o compositor da Banda, tem mais é que ficar fazendo música. Mas é natural. Na época talvez tenha ficado mais magoado, mas depois passou.
Coojornal - As críticas desestimularam o Chico escritor?
Chico Buarque - Não. Eu vou escrever quando quiser. Quando escrevi aquele livro não queria saber de mais nada. Foi uma época maravilhosa, eu não queria saber de outra coisa. Daria tudo para entrar numa dessas outras vez, mas também não vou procurar como não procurei. Quando pintar pintou.
Coojornal - Você falou em conquista. Em que termos isso ocorreu?
Chico Buarque - Evidentemente, todo o trabalho da gente não teria qualquer ressonância maior se não fosse o preço do chuchu. Houve um tempo em que eles podiam ficar de picuinha com um compositor. Havia uma euforia por aí, classe média andava por aí com carros cheios de plásticos Meu Brasil Eu Te Amo e tudo mais. Então tinha um chato ou meia dúzia deles, que ficavam incomodando, era simples calar a boca deles. Agora os tempos são outros. Qualquer música minha não vale uma fila do feijão. Eu não sou a pessoa mais credenciada para analisar a situação toda, mas acho que a coisa está preta mesmo e do jeito que está não tem muita saída. Eu vejo na minha área o pessoal muito animado, com muita disposição para fazer coisas, acreditando que as coisas vão melhorar. Acontece que essa minha geração já viveu outra época de euforia muito grande também em 68 e vai sempre com o pé atrás.
Coojornal - Como você vê essas manifestações dos estudantes aí?
Chico Buarque - Pois é , a gente já enfrentou uma situação dessas, já viu não dar em nada, que há muitos riscos aí muito grandes. Mas ao mesmo tempo estou vendo que eles são muito menos porra louca do que em 68. A gente poderia imaginar que o garoto de hoje, que em 68 tinha 11 anos, não tivesse aprendido nada. Mas está se vendo que a experiência nunca é perdida.
Coojornal - Então não é correto dizer que o país formou uma geração de alienados?
Chico Buarque - É. Está vindo uma leva nova aí. Sem dor e também sem desbunde, já um pouquinho cansada da alienação. Outro dia fui ver uma peça, que não vou dizer qual é, mas senti um negócio que tinha antigamente que as pessoas falavam, um ranço de coisa política.Falavam nisso, não é? Em certos ambientes falar de reforma agrária era uma negócio de péssimo gosto. Como se o problema agrário do país tivesse sido resolvido, quando se parou da falar de reforma agrária. Então eu senti um ranço de desbunde, quer dizer, o desbunde está rançoso, o surfista, a gatinha. Os próprios caras da peça, que eu gostei afinal, se davam conta e procuravam dar a volta por cima. É a tal história do sonho que cansou e está havendo de novo uma ansiedade. Pelo menos está acabando a passividade, o "eu estou na minha" ou o "não quero nem saber".
Coojornal - Você não está mais fazendo shows ao vivo. Porque?
Chico Buarque - É. O último que fiz foi um show da Sombras, há um ano e meio mais ou menos. Eu nunca me senti bem em show assim. É uma coisa muito pessoal, eu entrava no palco já querendo chegar ao fim logo, me desgasta muito. É um esquema que não tenho vontade de encarar.
Coojornal - Alguns artistas usam esse contato direto com o público como um termômetro, uma maneira de ver como o público está reagindo ao seu trabalho. Você não sente falta disso?
Chico Buarque - Olha, na verdade esse entrosamento com o público não me acrescenta nada. Em primeiro lugar por aquilo que já falei, eu fazia o show querendo terminar. Depois porque não compensa, aquilo me consome muito, consome os nervos, consome a cabeça. É claro que tem momentos bons, que você fica contente, fica envaidecido e tal. Mas eu prefiro ir a São Paulo e ver a Gota D'água, ver o público julgando o meu trabalho sem precisar estar lá no palco. Há artistas que entram no palco e aquilo faz parte da vida deles e aquela transmissão, aquele entrosamento, faz com que eles cresçam, se transformem. É o caso da da Bethânia, do Milton Nascimento, não é o meu caso.
Coojornal - Quer dizer: o show foi um meio que usaste para chegar ao público numa época em que isso era impedido ou dificultado em outros meios.
Chico Buarque - É, foi o tempo dos circuitos, em que eu saí por aí pelo Brasil inteiro. Não tinha outra saída. E aí junta tudo, até o problema econômico. Você não toca no rádio, não aparece na TV, os discos também não estão vendendo, junta tudo e aí você não tem dinheiro pra viver. Tem então que sair para isso.
Coojornal - Então os shows foram também um meio de você fugir a pressão econômica?
Chico Buarque - Eu não sei até se a pressão econômica foi proposital. Mas é o resultado de tudo. Se você está fechado para rádio, televisão, e mesmo para jornal, como foi o caso de Calabar, que não foi censura... A censura veio depois. O que fizeram foi impor falência à Companhia e jornais não podiam dizer.
Coojornal - Havia então pressões extra-censura, digamos?
Chico Buarque - O que a gente sente é que na época mais negra, mais dura, não precisava de uma ordem expressa do governo para apertar o sujeito. Aquelas proibições de rádio, na TV Globo aqui no Rio e várias rádios não eram por ordens vindas de Brasília. São coisas mais realistas que o Rei, dos puxa-sacos, isso em todos os níveis. Me lembro por exemplo que ia pegar um negócio uma vez, um negócio que até não era uma coisa boa. Era um disquinho que uma companhia de aviação queria distribuir entre seus clientes. Não era um jingle. Eu ia fazer a tradução de uma músicas americanas, se não me engano. Ia fazer aquilo para ganhar uma graninha. Mas quando o presidente da tal companhia soube que era eu disse não, que de maneira nenhuma. Deu um pulo: "Isso pode criar problemas com a Aeronáutica".
Coojornal - Em compensação, aquela imobilária de São Paulo, a Clineu Rocha, usou com a maior cara de pau uma música tua como jingle...
Chico Buarque - Mas ela foi a falência como castigo (risos)
Coojornal - Como foi mesmo essa história da Clineu Rocha?
Chico Buarque - Não, foi um negócio de dez anos atrás. Eu fiz uma musiquinha, gravei com violão assim, que era para essa empresa distribuir aos sue clientes de brinde no Natal. Mas estava escrito, não era gravação comercial, não era para tocar na rádio nem nada. Agora há dois anos atrás usaram no Natal como jingle da firma. Aí fui lá e processei e eles me deram a grana porque era um abuso.
Coojornal - Aquela história com a Banda foi semelhante?
Chico Buarque - Ah, essa nota que saiu no jornal há pouco. Não era de agora, não era daquela época. Eu vi que a Banda estava tocando como fundo para uma convocação do Serviço Militar, estava há bastante tempo. Ai fui me irritando, me irritando e mandei a carta. Mandei dizer que estava muito surpreso, que nunca pensei que a Banda fosse uma banda para chamar para o Serviço Militar, nem era uma banda militar, era uma bandinha de interior.
Coojornal - Qual foi resposta?
Chico Buarque - Nenhuma. Eu li no jornal a explicação que davam de que aquilo não era com eles, era com a firma encarregada da propaganda, não era a Assessoria da Presidência da República. Mas tiraram a música. E deixei assim.
Coojornal - E os planos? Você tem coisas projetadas já?
Chico Buarque - Não faço planos a longo prazo, muito menos em questão de música. Eu tenho um projeto de fazer um trabalho com Milton Nascimento, é com ele e o Guarnieri. Está muito no ar ainda, está entre uma peça e... no começo era uma peça, depois a gente começou a pensar num espetáculo, algo com Milton cantando, com músicos e atores.
Coojornal - Você seria um dos atores?
Chico Buarque - Não, é uma experiência que já fiz e não quero repetir. Fiz o galã no filme "Quando o Carnaval Chegar", na época gostei, foi muito divertido, mas para um trabalho sério não dá. Não me considero um bom ator. Ao contrário, sou muito canastrão.
Coojornal - E além desse espetáculo, algo mais?
Chico Buarque - Tudo está um pouco vago. Hoje mesmo a gente estava conversando aí o negócio de uma viagem em agosto para a África (Angola, Moçambique e Guiné), eu, o Milton e o Rui Guerra, que está com a idéia de fazer um filme lá. A gente ia para conhecer o processo lá e talvez fazer alguns shows, mas isto é secundário.
(1) A Sombras ( Sociedade Musical Brasileira)é uma entidade civil criada há dois anos para defesa da música e dos direitos do compositor brasileiro. Seu presidente é Antonio Carlos Jobim, e tem como companheiro de direção Chico Buarque de Hollanda, Herminio Belo de Carvalho, Luiz Gonzaga Junior, Vitor Martins Aldir Blanc e outros. No ano passado, a Sombras mandou um extenso relatório ao Ministro da Educação, Ney Braga, sobre a situação de direito autora no Brasil. O ministro achou "calamitoso" o quadro descrito no relatório que acabou dando origem ao Conselho Nacional de Direito Autoral, órgão ligado ao Ministério da Educação.
Transcrição da fita da entrevista gravada em setembro de 1974
Última Hora- Não ia fotografar?
Julinho da Adelaide - O que?
UH - Você tá com duas cicatrizes?
(Referindo-se ao episódio em que Sérgio Ricardo, tendo sido vaiado durante a apresentação de sua canção Beto bom de bola, num dos festivais de MPB, atirou o violão contra a platéia.)
JA - Não, pegou assim, o cabo pegou assim aqui e a caixa desse outro lado.
UH - Quer dizer que você é um sujeito marcado pela música popular brasileira? (risos)
JA - Sou marcado pela música popular brasileira. Foi aí que eu despertei para a música, inclusive foi nesse momento que eu despertei para a música popular.
UH - Certo. Ô Julinho, é essa 2ª vez que você... Essa primeira vez que você veio para São Paulo, você estava passeando. Só.
JA - Tava. Eu, inclusive,não tinha vocação nenhuma musical, foi...
UH - Como foi?
JA - Aí que eu despertei realmente para a música popular.
UH - Como é que você veio? Veio de ônibus, trem, como foi?
JA - Vim de ônibus.
UH - Nessa época, você estava construindo casa na Gávea?
JA - Não, isso é um pouco de confusão que estão fazendo. Quem está construindo casa na Gávea é meu irmão Leonel.
UH - Leonel?
JA - É.
UH - Mas o...
JA - Meu irmão e procurador.
UH - Certo. Depois a gente fala do Leonel... Mas, Julinho é essa a 2ª vez que você está em São Paulo. Você está aqui profissionalmente? Eu soube que você está com 3 músicas novas aí, você tá pra...
JA - Três não, têm muito mais de três! Devo dizer isso. Agora, não tenho culpa se pessoas pedem sempre as mesmas. As pessoas pedem, em geral, o Chama o ladrão, o Jorge maravilha e O milagre, são as 3 que pedem mais. Agora têm muito mais músicas que isso. Olha, o Chama o ladrão teve um problema com a censura e O Milagre teve também. Inclusive, eu queria dizer que eu não quero criar nenhum conflito com a censura, entende? Porque eu tenho, através do Leonel, um diálogo muito bom com eles, entende?
UH - O Leonel faz o quê?
JA - Eu entendo que.. O Leonel é meu procurador, é ele que quebra todos os galhos, em todos os sentidos, entende?
UH - Mas ele tem... Qual a profissão dele?
JA - Na carteira, é comerciário, mas ele não exerce muito a profissão de comerciário. Ele trabalha mais mesmo como meu procurador e tem assim boas relações. Ele vive disso. Inclusive tem boas relações com a polícia. Então com relação à censura eu tenho essa posição. Eu acho bobagem a pessoa falar que a censura prejudica, quando eu acho que o negócio é fazer samba, tem que fazer muito samba mesmo, entende? Eu faço muito samba, quer dizer, faço vários por dia mesmo. Tanto que o sujeito que trabalha lá, o trabalho dele é censurar música, eu respeito muito o trabalho do cara, quer dizer, ele terminou o dia... quantas músicas você censurou hoje? Ele fala: 7. O cara que disser 17, por exemplo, vai ser promovido logo. Eu também, meu trabalho é fazer samba, quantos samba você fez hoje? Oito, nove? No dia que eu faço dez vou dormir em paz com a minha consciência, entende? Cada um no seu ramo.
UH - Mas você realmente faz oito, dez sambas por dia?
JA - Faço e faço samba duplex também.
UH - Espera aí, antes de falar sobre samba duplex, por que você só foi descoberto agora, por que só agora que estão cantando suas músicas?
JA - Porque eu, relativamente há pouco tempo que estou fazendo mesmo, profissionalmente. E estou divulgando, e tem um grande problema... O autor jovem tem um grande problema: eu andei em todas as empresas e não consegui nada.
UH - Sei...
JA - É claro que minha voz não é muito boa. Eu não sou cantor. Hoje em dia, quase todos os compositores são cantores, entende? Eles que defendem o material, a matéria-prima deles, eles que se lançam. Eu não posso fazer isso, tenho que procurar. Tenho que procurar as fábricas. Aí o sujeito me empurra pro outro. Um dia, eu fui parar na Phillips e acabei no departamento gráfico, (risos) eu fui de porta em porta..."Não, você fala com o fulano... Isso lá no Rio, na Phillips.
UH - Sei. Agora esse negócio...
JA - Cheguei até a falar com Roberto Menescal, autor do Barquinho.
UH - ...da cicatriz te grila muito também, não é?
JA - Embora eu não seja cantor, um dia, pretendo gravar um disco. Você vê, gente que canta bem como Chico Buarque, o Vinícius de Moraes, o Antonio Carlos Jobim, essa gente toda canta também, entende? A minha voz não é muito boa. Outro dia, eu vi o disco do Nelson Cavaquinho, ele é mais rouco do que eu. E grava um disco. Eu posso até gravar um disco um dia, entende? Aí a minha foto vai atrapalhar a vendagem do disco, não é? É claro que eu não vou botar na capa do disco a minha foto. Mas se já estiver a minha foto ligada a minha pessoa, amanhã, sei lá, menininhas dessas bonitas aí da Rua Augusta e tal que... podem comprar pensando que é um sujeito bonito e vende mais o disco, acho, não é? Pelo menos com a minha cara ligada a minha pessoa vende menos. Então, é melhor não ter cara do que ter a cara que eu tenho.
UH - Não vamos nem discutir isso...
JA - Eu fico meio nervoso quando falo nisso, eu fico meio nervoso, viu?
UH - Não. Aí é um problema pessoal, a gente não vai forçar. O Bosco pode inclusive...
JA - Quem?
UH - O Bosco, o fotógrafo, ele vai entender isso, não tem problema nenhum.
JA - Se quiser tirar, tira de costas ou então tira do meu irmão Leonel, é claro. O Leonel já se ofereceu, inclusive, para se eu fizer um disco ele aparecer na capa. (risos) O Leonel é um quebra galho.
UH - O Leonel está aqui com você, agora?
JA - Não, ele me mandou... porque disse que leu nos jornais, o Leonel lê muitos jornais.
UH - O que ele está fazendo aqui?
JA - Aqui em São Paulo, tem muita casa de samba, uma coisa que lá no Rio não tem. Lá tinha uma só. Era o Sucata. Mas um show já montado e não podia entrar e cantar no meio. E aqui parece que as pessoas podem chegar e... Eu não sei porque cheguei agora, eu quero até pedir um conselho, quais são as casas melhores. Vou lá e vou pedir minha vez pra cantar, já avisando antes e pedindo desculpas que não sou bom cantor, mas acho que tenho muita música, já fiz uma chegando aqui hoje.
UH - Você já fez música e a letra?
JA - Faço tudo junto. É claro que eu faço samba duplex. E quase todos são duplex.
UH - Samba, duplex, o que que é?
JA - São sambas que você pode mudar, entende? Por exemplo, esse que eu fiz agora pode mudar... é sobre o problema da meningite que o Leonel falou que tinha isso aí. Falou: "Olha, vai para lá e cuidado com a meningite". Ele me explicou o que significava, porque eu não leio muito jornal. Ele é que lê mais. Aí eu fiz o samba no meio do caminho que diz assim: "Eu fui para São Paulo com a Judite, só saí de lá com meningite." Agora, do jeito que é feito a música, dá pra cantar.... porque eu sei que tem umas propagandas de vir para São Paulo nos fins-de-semana e tal. Eu não quero prejudicar ninguém. Pode dar problema isso. Se der problema: "Eu fui para São Paulo com meningite e sai de lá com a Judite", Inclusive, fica como se São Paulo tivesse curado a meningite.
UH - A Judite é paulista?
JA - Não, o samba é duplex. Se eu tivesse chegado com a Judite, cheguei de algum lugar, da Bahia, pode ser que ela seja baiana. Se eu tivesse chegado com a baiana e saísse com a Judite, então a Judite é paulista. O samba é duplex. Inclusive eu faço adaptação de samba. Tenho umas idéias pra contar agora para o Vinícius de Morais, que admiro muito.
UH - Você vai gravar com ele?
JA - Não, eu não conheço ele pessoalmente. Estou procurando um contato com ele, porque eu fiz uma adaptação daquele samba dele: "Formosa" que fica assim "China nacionalista". Quer dizer, eu já estou com bastante tarimba nesse negócio.
UH - Julinho, você lê muitos jornais?
JA - Não, só que o Leonel manda ler... Agora, em geral, ele já dá o serviço todo em vez de mandar ler. Porque sou o criador, entende? Se eu ficar o tempo todo lendo, não vou poder me expressar bem.
UH - O Leonel é uma figura importante em sua vida?
JA - Acho que devo tudo na minha carreira... Bom, devo a criação. Devo minha vida à duas pessoas. À minha mãe, Adelaide, à qual devo inclusive o meu nome. Meu sobrenome é Oliveira, mas Oliveira todo mundo é. Então eu sou da Adelaide, que aqui pode não ser muito conhecida, mas no Rio é. E devo ao Leonel, que me orienta agora, na minha carreira.
UH - Fala um pouco da Adelaide.
JA -Adelaide foi a pessoa que me orientou a vida inteira, entende?
UH - Existe um boato, que li numa revista, que Adelaide teria sido uma das mulheres do Vinícius? Desculpe (risos).
JA - Não se pode falar assim da minha mãe (risos). Minha mãe é muito honesta. Ela casou mais de uma vez, mas casou sempre. Quando ela viajou para a Alemanha, casou com um luterano. O Leonel é luterano por causa disso, loiro e luterano. Inclusive agora ele alisou o cabelo e está dizendo que é parecido com esse Robert Redford (risos). Mas ele não é muito parecido, não, que o nariz dele é igual o da minha mãe. É grossão, assim.
UH - Mas é loiro?
JA - Loiro sarará. Aquele negócio, parecido assim com o Ademir da Guia. É bem parecido. Tipo físico do Ademir da Guia, só que agora ele alisou o cabelo e está achando que é artista de cinema. A minha mãe casou com esse alemão. Ela esteve na Europa com a Brasiliana. Ela era casada na igreja Católica Apostólica Romana, na igreja Católica Brasileira, na Luterana e tem mais 3 casamentos aí. Eu sou filho da Igreja Católica Brasileira.
UH - Você é filho do primeiro casamento?
JA - Não, do terceiro.
UH - Como a gente não sabe nada da sua mãe, então se ela foi com a Brasiliana, ela é mulata mesmo?
JA - Mulata retinta. Quase preta, quase sangue puro.
UH - Mas e essa sua cor mais clara?
JA - É que meu pai, eu não cheguei a conhecer, entende? Ele morreu pouco depois de eu nascer (risos).
UH - Ele fazia o quê?
JA - Meu pai? (pena, hesitação) Meu pai trabalhava em jornal (risos). Era copy-desk (risos). Naquele tempo...
UH - Então quer dizer que você já teve uma origem um pouco mais cultural, você teve uma certa informação?
JA - Sempre tive muitos livros, apesar de morar sempre em favela. Não tenho nenhuma vergonha disso, de ter sido criado em favela, porque tem muita favela lá que é melhor do que essas coisas que estão construindo agora no Rio, que são casas de tijolo e cimento armado, mas eu não trocava a favela onde eu me criei por esses empreendimentos que estão fazendo. Eu vi até um anúncio, no intervalo daquela novela "O Espigão", eles anunciam muito esses novos apartamentos, sala e quarto... Eu fui ver um porque o Leonel disse que tinha um dinheirinho para mim que talvez desse. Fui ver, um quartinho menor que o barraco onde eu me criei...
UH - Então já está pintando um dinheirinho?
JA - Diz o Leonel que sim. Eu ainda não pus a mão nesse dinheiro porque o Leonel tem procuração minha para fazer tudo. Ele acha que não é bom pegar o dinheiro e fazer logo alguma coisa. É melhor empregar e ele empregou meu dinheiro. E parece que o dinheiro já vai dar agora um dividendo, uma coisa assim...
UH - Mas, e aquela casa que você está construindo lá na Barra? É com dinheiro de vendagem?
JA - Não sou eu que construí... Quem comprou um terreno na Barra foi o Leonel e vai construir uma casa lá. Mas isso é problema do Leonel, ele tem os bicos dele por fora. Leonel tem participação nos meus lucros e ele faz com o dinheiro dele o que ele bem entende.
UH - Julinho, essa transposição do anonimato... Aqui em São Paulo não, que você está chegando aqui agora, você teve só um incidente aqui, mas lá no Rio você é muito conhecido, pelo menos no Degrau, no Antônio's.... Como é que foi essa transposição do anonimato - com o devido respeito - da favela para as colunas sociais, colunas de música? Quem é que te deu essa força? Porque é muito difícil para compositor novo.
JA - Isso eu devo ao Leonel, porque ele é muito ligado ao pessoal do Rio de Janeiro, Zózimo Barroso do Amaral, que trabalha no Jornal do Brasil. Ele é ligadíssimo. É como se fossem irmãos. Tem amigo que é dono de jornal, já falou de muita gente que ele é amigo... do Doc... Ele me promove, me promove muito. Ele é um cara 100%. Vocês precisam conhecer ele.
UH - Eu te conheço recentemente, e, convenhamos, você é uma figura pouco conhecida no Brasil.
JA - Ainda sou, infelizmente, mas eu confio em Deus e que com a ajuda dele e a do Leonel eu...
UH - Você não seria uma criação da imprensa carioca? Como você entende isso?
JA - Por algum tempo eu fiquei magoado com isso...
UH - Seu pai foi um copy-desk de jornal. Você acha que está sendo lançado pela imprensa carioca, que tem repercussão nacional? Como você se sente?
JA - Claro que a imprensa ajuda muito, mas eu tenho o meu trabalho também. Eu vim aqui para mostrar o meu trabalho, não é badalação só. Esse negócio de badalação de jornal, não dá dinheiro a ninguém. Não dá camisa a ninguém. Minha primeira música vai ser gravada agora, finalmente! Só agora, mas eu tenho feito, em média, de quatro a cinco músicas por dia. Com essa primeira música, acho que vai ser um grande empurrão que vou receber na minha carreira. E, daqui por diante, acho que todo mundo se interessa em gravar música do Julinho da Adelaide.
UH - Quem já cantou música tua até agora, ou já gravou?
JA - O Chico Buarque cantou num show que ele fez no Rio. E, aliás, foi muito bom. Leonel diz que daí que deu mais dinheiro porque teve dinheiro de SBAT e tal
UH - Qual?
JA - O Jorge maravilha. E o MPB-4, a Nara Leão. Eu entreguei outras músicas aí, mas não sei se estão cantando. Pra uma porção de gente: Tim Maia, Ângela Maria, vários estilos inclusive, entende? Não sei se estão cantando também, não tenho controle, o Leonel que sabe.
UH - Estou curioso pra saber o seguinte: o nome Julinho da Adelaide começou a se projetar, é inegável isso...
JA - Você quer saber da onde vem o nome?
UH - Eu estou preocupado em saber se você realmente tem uma produção muito boa ou se você está se utilizando do Chico Buarque, do MPB-4, Tim Maia e todo esse pessoal pra quem você mandou música, para se projetar...
JA - Desculpe, mas como já disse antes, eu não sou cantor. Eu preciso dos cantores para lançar o meu nome. Acho que é um interesse recíproco. Eu não devo nada a ele e ele também não. Ele tá faturando em cima do meu nome e eu estou faturando em cima do dele. Acho que isso é normal. Não acho que seja ético da minha parte. Eu sou pragmático.
UH - Julinho, aqui em São Paulo, o pouco que se sabe de você são histórias mirabolantes, inclusive o Chico Buarque - não sei se você soube - em um show falou que Julinho era figura das crônicas policiais que passou para as crônicas sociais. Ele tem (Prata corrige) Você tem, realmente, um passado que o denigra...
JA - Eu sou muito tímido, você pode perceber que eu sou tímido. O Leonel, com essa história dele ser procurador, é uma pessoa muito descontraída e ele faz muitas coisas, inclusive "impensadas", e quando vão perguntar o nome dele, ele diz (ri) que tem procuração minha. Então, é justo que eu pague as coisas boas e ruins que ele faz (risos). Às vezes ele faz coisas ruins. E depois não acontecem muitas coisas com ele, porque quando o sujeito tem relações muito boas na polícia, coisa que eu não tenho...
UH - Coisas ruins, como? Por exemplo?
JA - Ah! Ele faz muita bagunça, entende? Esses negócios de forró...
UH - Ele já foi preso alguma vez?
JA - Já. Algumas vezes. Eu conto isso, inclusive num samba: Chama o ladrão.
UH - Eu quero lembrar o seguinte: à medida que você mesmo disse que é muito pragmático, esse negócio de carregar o nome da mãe, não é uma jogada oportunista da sua parte para sensibilizar uma faixa do público?
JA - Não, de jeito nenhum. Mais uma vez eu queria repetir que não sou aético. Eu me chamo Julinho da Adelaide porque todo mundo só me chama assim lá no morro. Minha mãe é mais famosa do que eu, lá no Rio. Ainda é! (Alterado) Minha mãe é séria!
UH - O que é que ela fez?
JA - (quase gritando) Vou te contar o que ela fez! Ela estava no primeiro elenco do Orfeu Negro. Foi amiga íntima de Vinícius de Moraes, Antonio Carlos Jobim e Oscar Niemeyer. E fazia o cenário do.... (perde-se um pouco) Não... o Haroldo Costa. Ela conheceu intimamente o Oscar, tanto é que há cinco, seis anos atrás, eles moravam na Favela da Rocinha e quando começaram a erguer o Hotel Nacional ela dizia pra mim: "Está vendo filho? Está vendo Julinho? É homenagem do Oscar para mim." Inclusive, brotou uma porção de homenagens na Barra e ela lembra dele assim, entende? É claro que ela está mais velhinha agora e ela falando isso, eu estou sabendo que não é homenagem do Oscar Niemeyer pra ela. O Oscar talvez nem se lembre dela. Mas ela viajou com a Brasiliana, casou com o luterano, não é pouca coisa, não! Aprendeu a fazer caçulé, e a feijoada branca dela, no morro, é conhecidíssima,. Então eu fiquei sendo o Julinho. Qual Julinho?, Julinho da Adelaide. Não sou o Julinho de Oliveira.
UH - Você está consciente de que está faturando a sua mãe com esse negócio de Julinho da Adelaide. Tanto que o Leonel não se chama Leonel da Adelaide...
JA - Leonel é Leonel Kuntz. (Confusão. Todos falam ao mesmo tempo)
UH - Pode ser que doravante a sua mãe seja conhecida como Adelaide do Julinho (risos)
JA - Não tenho nada contra isso.
UH - A Adelaide mora com você ainda?
JA - Eu não tenho moradia muito fixa, mas, sempre que posso, passo uma noite com ela.
UH - Mas você mora aonde, atualmente, no Rio?
JA - Atualmente eu estou morando na Selva de Pedra. O Leonel alugou um apartamento para mim.
UH - Está dando um dinheirinho?
JA - Está dando para comer e...
UH - Morar na Selva de Pedra?
JA - ,É morar na Selva de Pedra e pegar ônibus pra São Paulo.
UH - O que é Selva de Pedra?
JA - Selva de Pedra é um conjunto que fizeram lá no Rio. Iam fazer um parque, quando derrubaram a favela do Pinto. Eu tenho origens lá, inclusive já morei na Favela do Pinto.
UH - Você nasceu em que favela?
JA - Eu nasci na favela da Rocinha, mudei para várias favelas. Tenho mais raízes na favela da Rocinha, mas também tenho na favela do Pinto. E hoje eu moro lá, que não deixa de ser uma volta as raízes. Destruíram a favela do Pinto, no fizeram muito bem. Iam fazer um jardim lá. Depois mudaram de idéia e fizeram uma Selva de Pedra, que são vários prédios com janelas pequenas, mas perto da praia.
UH - Você mora sozinho, sem tua mãe?
JA - Lá, eu moro sozinho.
UH - E a Adelaide, como é que está?
JA - A Adelaide está muito bem, fazendo aquele feijão dela, cada vez melhor.
UH - Pra fora?
JA - Pra fora como?
UH - Ela...
JA - Ela tem um quiosque, não é? A casa dela, uma vez por semana, enche de gente e o pessoal...
UH - Tua mãe é do Rio mesmo?
JA - É, é carioca.
UH - Neta de escravos, não é?
JA - É. Ela conheceu a avó dela e a mãe dela foi beneficiada com a Lei do Ventre Livre. A gente tem uma gratidão muito grande com José Bonifácio.
UH - O que você acha dessa música feita aqui no asfalto sobre a música do morro? Você acha que é autêntico?
JA - Olha, eu não quero me comprometer, eu sei que aqui em São Paulo estão fazendo muito samba. Eu não posso dizer para vocês que não é boa música, se não, a entrevista pode sair e eu vou ficar muito mal com meus colegas aqui e é capaz que eu nem arranje emprego. Só vou dizer que prefiro a música autêntica.
UH - O que é música autêntica?
JA - É música da favela feita na favela, música da cidade, feita... por exemplo, eu gosto muito do Charles Mingus.
UH - Mas qual a relação do Charles Mingus com a música da favela?
JA - Charles Mingus é Americano, então ele faz música americana, entende? Esse negócio de morar aqui e fazer música de outro lugar, eu não gosto. Agora, eu gosto também. Às vezes são boas...
UH - Essa é a segunda vez que você vêm pra São Paulo?
JA - Em São Paulo é a 2ª vez. Encontrei muito mudada. De 67, 68. pra cá, quando eu vim pro Festival.
UH - Esse Festival foi interesse musical ou você estava...
JA - Não, eu mandei... Claro, foi quando eu despertei para a música... mas antes de despertar, eu fiz umas músicas... mas não havia despertado pra música. Eu fazia quase que como se a minha mão fizesse e eu não soubesse delas. Quando eu tomei aquela pancada na cara (risos)... Eu rio mas eu fico muito nervoso com esse negócio de novo.
UH - Como foi o seu contato com o Chico, com o Vinícius, com o Tim Maia?
UH - O Chico, principalmente, está divulgando sobremaneira.
JA -. Isso é o seguinte: há um ano atrás eu estava trabalhando na fábrica lá no Rio de Janeiro, no Alto Boa Vista, na Phonogram. Na fábrica, entende? Prensagem de disco e tal. E lá eles tem um time que aos sábados joga contra compositores, contra essa gente assim. Eu estava sempre nessa pelada. E aí que fui conhecendo esse pessoal. Fiquei conhecendo o Silvio César, Maestro Erlon Chaves, Paulo Sérgio Valle, uma porção de artistas...E o Chico Buarque, e o MPB 4.
UH - Mas como é que foi? Você chegou para o Chico e mostrou a música, deu uma fita, cantou para ele?
JA - Eu não falei direto com ele, falei antes com um dos integrantes do conjunto vocal MPB-4. Foi justamente quando eu estava entrando na área e, sabe aquele baixinho, o Rui? Me deu uma porrada por trás. O juiz não deu pênalti. E na hora que eu estava caído no chão, ele foi legal: "desculpa". Eu aproveitei que ele tinha puxado conversa comigo (risos) e daí: "eu sou compositor"(mais risos). Ele não deu muita bola, mas o contato já tava feito, e como eu trabalhei na fábrica e tem prensagem de disco, consegui prensar um acetato, camaradagem do pessoal lá. Eu prensei um acetato com duas músicas, com "Jorge maravilha" e "Chama o ladrão". Aí parece que gostaram e mostraram pro Chico Buarque. Depois eu fiz "O milagre" e achei que era melhor ainda, para mim é a música mais forte. Gravei de novo no acetato para eles. Parece que a Nara Leão se interessou pelo "Chama o ladrão" mas aí houve um problema com a música.
UH - Há um problema, Julinho, sem querer dedar ninguém, que o Chico tem cantado essa música e tem dado a entender que a música é dele. Ele fala de você como se fosse uma figura mitológica, mas no fundo parece que é dele. Acho que você tinha que tomar uma certa providência.
JA - Olha eu não sei... Esse pessoal que têm nome feito pode fazer muita coisa, não adianta eu ficar aqui reclamando desse pessoal. Como disse, sou pragmático. Eu preciso dele, ele precisa de mim. Não adianta você me dizer isso, parece que está me colocando contra ele. No dia em que eu for conhecido e famoso talvez eu faça dele a mesma coisa, entende? As pessoas tem que tirar proveito do que lhe cai na mão. O Leonel que me disse isso.
UH - Agora, eu queria que você se definisse. A expressão "pragmático" foi utilizada o tempo todo. Faça uma definição de você.
JA - Não sei. Pra falar a verdade, o Leonel que mandou eu dizer que sou pragmático (risos). Quando perguntassem alguma coisa, o que eu achava disso ou daquilo, coisa mais complicada, entende? O que que você acha da censura? Pragmático?. Ele falou outra também, ecumênico (risos). Isso foi a propósito da versão que fiz pro negócio da China.
UH - Eu não sei disso.
JA - Eu não contei da "Formosa" que eu mudei a letra pra China nacionalista? Disse que quando perguntarem se você gosta da China ou de Cuba? Se falarem, se você gosta de Cuba, você fala: que é pragmático e ecumênico. Se não, você se mete em complicação. Então eu digo, mas não posso definir exatamente a expressão: sou pragmático. (Acho que essa foi uma definição pragmática) (risos).
UH - Assim encerrou a entrevista, mas prossigamos.
JA - Hein, Quem deu a revista?
UH - Você encerrou, mas prossigamos...
JA - Só não quero ficar muito tempo aqui, porque tenho que fazer a ronda da noite, agora.
UH - Você vai aonde?
JA - Eu quero, inclusive, um roteiro de vocês, porque eu tô aí pronto pra...
UH - Fala Avenida Ibirapuera.
JA - Fala o quê?
UH - Fala Avenida Ibirapuera.
JA - Avenida Ibirapuera. (risos)
UH - Na Avenida Ibirapuera tem boas Casas de Samba, você vai se dar bem.
JA - É lá que é a boca, é?
UH - É lá.
JA - Então é para lá que eu vou. Fala com um taxi aí... Avenida Ibirapuera?
UH - Eles conhecem, não tem problema nenhum.
JA - E qual a melhor casa? Eles pagam bem?
UH - Tem o Bambu, o Sambão.
JA - O Leonel só me deu um nome, foi um tal de Catedral do Samba, é lá também?
UH - A Catedral não, Catedral é samba de Benito de Paula. Conhece?
JA - Conheço.
UH - O que você acha?
JA - Eu acho legal (risos). Acho que todo mundo deve fazer o que pode, o que sabe. Eles dão chance aos novos? Ou tem que ter contrato?
UH - Não.
JA - Vou falar a verdade do que eu quero. Eu quero entrar num lugar desse, cantar um samba meu e se possível arrebatar o pessoal. Aí o dono da casa vem lá e.... como eu vi num filme...
UH - Porque o Leonel não veio? Ele tá sempre com você ou te dá as dicas?
JA - Às vezes ele dá as dicas e me manda pro lugar. Ele não sai do Rio porque tem muitos afazeres lá.
UH - Mas ô Julinho, com o maior respeito a você e sua família, o que eu ouço falar do Leonel é que ele é um tremendo mau caráter, que ele não paga conta, pede aval...
JA - (irritado) Bom eu... Se vocês estiverem querendo me irritar... Acabei de falar... Vocês são de jornal, meu pai foi de jornal, eu não quero me irritar com ninguém. É meu irmão, se você quiser falar isso...
UH - Tem uma história... deixa só eu completar, um parêntesis só, Julinho. Tem uma história que ele alugou um apartamento lá onde era a favela do Pinto e depois mudou do Rio. O compromisso caiu em cima de você, ele sumiu, tem umas histórias assim... Não sei, não sei se é boato, mas corre. Corre à boca pequena.
JA - É normal.
UH - A respeito de ... de.... de...Leonel...(gagueja. ESQUECE O NOME DO IRMÃO) tudo é possível.
JA - Eu quero ver você dizer isso na frente dele. Eu não vou te responder, diga a ele (risos, confusão). Eu devo tudo ao meu irmão.
UH - Você não acha um, problema?
JA - Irmão a gente só tem um, apesar de ter vários. Mas cada um é único para mim.
UH - Como apesar de ter vários?
JA - Eu tenho outros irmãos que eu não vejo, quase. Mas eu estou mais ligado ao Leonel, estou ligado não só afetivamente, mas profissionalmente. Devo tudo da minha carreira ao Leonel. Ou você acha que não?
UH - Não sei, estou te conhecendo hoje. Estou dizendo o que ouço falar.
JA - Certo! Você está me conhecendo porque o Leonel me mandou para cá.
UH - Foi.
JA - E eu dando a minha primeira entrevista para um jornal de São Paulo. No Rio dei muitas entrevistas, viu?
UH - Eu sei, pra onde?
JA - Dei pra Notícia, pra Última Hora do Rio de Janeiro, e dei uma para Manchete, que até agora não saiu, mas deve sair daqui a pouco.
UH - Julinho, eu só levantei esse problema, porque o Leonel é um... inclusive você poderia corrigir isso, se defender, porque falam que ele assina contrato com e você não aparece, e que ele está vivendo, atualmente, em função do teu nome. Inclusive, ele já está dizendo: sou Leonel da Adelaide, coisa que ele nunca disse.
JA - Leonel Kuntz. (Começa a enrolar um pouco a língua) Ele não é Leonel da Adelaide porque ele saiu cedo de casa. Ele não era conhecido como Leonel da Adelaide, era Leonel. Tem gente que pensa que ele é meu primo, um parente próximo ou um amigo que vai lá de vez em quando. Outro dia, veio um cara e disse que tinha feito um contrato leonino comigo (risos). Isso é trocadilho, porque o cara chama Leonel e o contrato leonino. E só porque ele ganha 50%. E dizem que os empresários normalmente têm 20 só. Aqui no Brasil, porque diz que lá fora tem dez. Agora, ele não é só um empresário. Se fosse só um empresário, tá legal, ganhava 20%. Ele não é meu empresário. Ele é meu conselheiro e meu irmão, entende? Então, a gente divide irmamente as partes. Acho justo isso. E tem mais, ele ainda aplica nos mercados de capitais os meus lucros.
UH - Julinho, uma pergunta de ordem econômica. Vocês que estão no Rio de Janeiro, onde o mercado de música é muito maior, por que você está agora em São Paulo tentando...
JA - Não, o mercado da música não é maior no Rio. Pelo que me informaram, pro tipo de música que eu faço, São Paulo está muito melhor agora. Aliás, casa de samba, no Rio não tem, entende?
UH - Você é mais um cantor da noite do que um compositor? É isso?
JA - É como eu disse para você. Para falar a verdade eu tenho bastante autocrítica, eu não sou bom cantor. Então eu só posso cantar depois da meia-noite (risos). Porque lá pras oito ou nove horas, horário de teatro, ninguém me atura, não. Não canto muito bem. Mas depois da meia-noite, como todo mundo canta, está todo mundo mais alegre, as pessoas nas mesas cantam. Eu sou um cara que canta no microfone como se estivesse cantando na mesa. Agora, o que eu estou vendendo ali não é minha voz, é meu material, minhas composições. Eu sou compositor.
UH - Aqui em São Paulo você não fez nenhum show, ainda?
JA - Não, se eu tiver sorte, começo hoje. (risos)
UH - No Rio você não tem promoções, não é?
JA - No Rio eu já fiz promoções naquelas noites de samba de opinião, segunda-feira, já apresentei lá. Mas não pagam, entende? Lá é mais pra prestígio, ganhei muito prestígio com isso. A gente canta em troca do prestígio. Agora, eu acho que já tenho um certo prestígio.
UH - Você está achando que seu nome está crescendo aqui?
JA - O Leonel disse que estavam falando muito em mim aqui, quando mandou eu vir.
UH - Realmente estão.
JA - A prova é que vocês estão aí. Jornalistas me entrevistando aqui. Não fui eu que fui até a redação do jornal, como era antigamente.
UH - Agora, você acha que essa facilidade de adaptação da tua música ao gosto do momento, que existe e você reconhece, não te aproxima assim de Dom e Ravel, por exemplo, na música brasileira? Apesar de pobre, assim completamente diferente....
JA - Não... Eu admiro essa dupla, Dom e Ravel, pela oportunidade que eles aproveitaram em determinado momento de fazer uma música determinada. E é mais ou menos esse tipo de trabalho que eu faço.
UH - Já que você está na vanguarda nesse sentido de adaptação ao gosto da sociedade brasileira hoje, o que eu acho muito importante... você não acha que tem uma influência direta de Dom e Ravel?
JA - Não citaria só eles. Tem muita gente boa está fazendo esse trabalho agora, e acho isso uma coisa muita boa. É um trabalho quase parente do "jingle" e parente do samba-crônica, samba que o sujeito lê no jornal e no dia seguinte tem um negócio oportuno, tem um assunto fervendo. Aquele samba que talvez não vai se eternizar, mas que no momento...
UH - O samba pragmático, o que você está fazendo. Por exemplo a TV Globo não se interessou ainda em publicar nenhuma novela, usar como tema esse seu alto sentido pragmático?
JA - Eu fui contatado, já estive lá nos corredores da TV Globo. Um dia vi até o Boni.
UH - Falou com quem?
JA - Falei com um rapaz lá que eu não sei o nome. Disse que era Walter. Mas não sei o sobrenome, nem sei bem qual é a função dele lá.
UH - Você acha válido ou você teria qualquer tipo de objeção? Você acha válido? Acho que essa é a palavra certa.
JA - Acho que tudo é válido, desde que a gente esteja fazendo, entende? Desde que a gente esteja criando. O importante é criar, não é mesmo? (confusão) Eu faço qualquer coisa, entende? Faço até para novela se me pedirem. E acho que vou fazer muito bem.
UH - Julinho, você estudou até que ano?
JA - Eu fiz até o 1º ginásial.
UH - Primeiro. Parou por quê?
JA - Depois eu fui tomar aula particular.... na escola da vida! (risos)
UH - Mas enfim e daí?
JA - E daí que eu sei ler e escrever e acho que me exprimo muito bem. Você não está me entendo?
UH - Mas as suas músicas, das seis que eu conheço, denotam uma certa cultura, assim não de vivência, mas uma cultura geral, daonde teria vindo?
UH - Você incorpora uma série de coisas que realmente não são normais em pessoas assim do teu nível
JA - Eu tenho explicação para isso: a minha origem. Vamos dizer, eu tenho parceiros pela vida. (risos)
UH - Seu pai é copy-desk?
JA - Meu pai é copy-desk, então eu faço copy-desk do cotidiano do morro (risos). Vamos dizer assim. Muitas das músicas que eu faço são...
UH - Interessante não é, porque você não mora mais no morro.
JA - Mas eu vou sempre lá, porque eu tenho que voltar às raízes. Apesar de eu estar nas minhas raíze, porque eu estou em cima da favela do Pinto, como eu disse pra vocês, pelo menos uma vez por semana eu durmo na casa da minha mãe, na Rocinha, na casa da Adelaide.
UH - Você está com quantos anos?
JA - Vinte e cinco.
UH - Teu nome inteiro como é?
JA - Tem gente que me chama de Gato. Mas não é verdade não.
UH - Teu nome todo como é?
JA - Julio César de Oliveira.
UH - ... você tem uma figura assim bem popular, uma figura física; você acredita que poderia fazer uma experiência de androginia? Você acha que daria pé? Nunca pensou nisso? Acha interessante o movimento andrógino brasileiro? Te interessa?
JA - É esse negócio de Secos e Molhados, não é? Olha meu amigo, não (risos) Com todo respeito, eu não ia fazer uma coisas dessas. Eu acho aquilo uma viadagem, entende? Agora, eu respeito o trabalho deles.(risos) Eu respeito o trabalho deles. (risos) como eu respeito todo mundo. Como já disse antes. Mas eu não ia fazer uma coisa daquelas, não (risos)
UH - Mas por quê? É um problema de formação cultural, familiar ou é apenas um pragmatismo?
JA - Bom, aí é que tá... me entenda... se me dessem um cachê muito bom na TV Globo para fazer um número musical que tivesse que ficar com o corpo pintado, bom, então aí talvez eu fosse pragmático, entende? Mas assim falando de fora... A experiência que ensina à gente muita coisa, não é? Eu estou falando sem experiência porque eu nunca tive uma experiência andrógina, entende?
UH - Eu só perguntei isso, porque o Caetano Veloso, você deve conhecer, obviamente...
JA - Conheço e admiro muito.
UH - Caetano Veloso, num show que está em cartaz aqui em São Paulo, ele fica o tempo todo passando a mão no cabelo e tem brinco na orelha esquerda. Você usa esses recursos?
JA - Não, não uso brinco, não senhor, de jeito nenhum. E nem passo a mão no cabelo, porque o meu cabelo do jeito que é, pode passar a mão quanto quiser que ele fica... já é difícil é passar a mão dentro (risos). só passa por fora.
UH - Me falaram uma coisa, tudo que eu sei de você é o que me falaram...
JA - Porque eu sou muito falado e realmente eu acho isso muito bom. É bom sinal. O Leonel me disse: isso mesmo: está todo mundo falando de você.
UH - O Leonel deu uma entrevista para a rádio Marconi.
JA - É mesmo? Quando? Aqui em São Paulo?
UH - É, há duas semanas atrás. Perguntaram para ele se o Julinho seria a favor ou contra o black power. Aí ele contou uma história do Julinho, que antigamente, quando o Julinho tinha uns 15, 16 anos, ele alisava o cabelo. E depois quando começou o black power ele começou a alisar o cabelo, é verdade isso? Você teve uma fase assim de ocidentalização no cabelo?
JA - Tive sim, agora ele não está black power, ele está...
UH - Normal.
JA - Pragmático, desculpe abusar... (risos)
UH - Agora eu queria que você desse nota de zero a dez a três pessoas: Nara Leão, Ibraim Sued e Gerald Ford.
JA - Dez para todos. Alguns com louvor, outros...
UH - Garrincha?
JA - Garrincha.... Garrincha eu não dou nota dez pra ele...Se bem que ele é casado com a Elza Sores, amanhã ela pode querer gravar um samba meu (risos), é bom a gente estar sempre... É isso que eu falei: Nara Leão vai gravar um samba meu, O Gerald Ford, o presidente, nota 10. Ele pode fazer um arranjo muito bom. O Ibraim Sued pode dar uma nota a meu respeito, não é? Nota 10. Agora, não publica isso que eu estou falando, as explicações das notas que estou dando não. Só põe as notas.
UH - Outra figura. Wilson Simonal.
JA - Nota 10.
UH - Eu estou achando você muito condescendente.
JA - Como?
UH - Você me perdoe, não me leve a mal, mas você não me parece ter uma posição política definida. Você me parece muito preocupado em colocar sua música no mercado...
JA - Você vai me obrigar a dizer que eu sou pragmático de novo (risos). Eu não só sou pragmático como sou descontraído, entende? Você está querendo me contrair, me deixar...
UH - Em absoluto. Não, de maneira nenhuma.
UH - Ainda dentro daquela linha do nosso amigo aqui eu vou te pedir pra você dar notas pra três personalidades, Sabu...
JA - Sabu morreu, não é? Eu não achava ele muito bom ator, não. Nota quatro.
UH - Ainda mais agora, morto. (risos)
UH - Golbery
JA - Golbery, nota dez.
UH - Caetano Veloso
JA - Caetano Veloso, nota dez.
UH - Perfeito
JA - Eu não sou como aquela moça da televisão que dá 10 pra todo mundo. Você viu que pro Sabu eu dei nota 4. Eu lembro de ter visto um filme dele do tapete voador, negócio do tapete mágico e tal, do gênio da lâmpada, e eu não achei ele muito bom ator não.
UH - A gente só tem visto você pessoalmente, nunca na televisão, por quê?
JA - Eu sou cantor de rádio, esse é um problema que já falei antes. O problema da fotografia - eu não posso... Eu tenho uma imagem a preservar (risos). É uma imagem que não deve aparecer a preservar. Eu tenho uma falta de imagem a preservar (risos). Eu tenho esse probleminha... tem Pitanguy pra essas coisas. Por enquanto, não dá. Se eu colocar umas quatro ou cinco músicas de sucesso eu faço... Então fica aqui um alô ao Pitanguy: se por acaso pintar alguma coisa e quiser fazer um trabalho de solidariedade... ou se a ordem dos músicos financiar... não sei... a idéia fica lançada... pode haver um show em benefício... eu não vou pedir nada...
UH - Julinho, você gostaria de dizer o que para esse pessoal todo?
JA - (alto) Aquele abraço pro povo paulistano.
UH - Antes disso, Julinho. É que a gente está com um jornal aqui, eu te trouxe três exemplares pra você dar uma olhada
JA - Logo três?
UH - Você gostou, né? A gente tem uma liberdade para dizer o que quiser. Então, o grupo Frias está lhe oferecendo uma página para você dizer o que quiser. O que o Julinho da Adelaide quer dizer hoje, quer passar hoje? Agosto 74? O que você quer dizer? Não, eu não digo uma mensagem assim. Pragmático, mas nem tanto.
JA - Mas não entendi. Uma página inteira para dizer o quê?
UH - É que eu tenho uma página inteira para a matéria. Fala o que você quiser, pedir asfalto na favela, pedir ao Leonel que tire o alisamento do cabelo... para ser mais honesto com você.
JA - Não, eu não tenho queixa nenhuma de ninguém. Como eu falei. Eu estou chegando aqui em São Paulo, eu quero mandar aquele abraço pro povo paulistano. E se alguém ler, imagino que vá ler a sua coluna, me disseram que ela é muito lida. Qual o jornal, mesmo? (risos)
UH - Diário de Notícias.
JA - Diário de Notícias é muito lido aqui em São Paulo. O Leonel disse mesmo que era o mais lido. Então, se alguém se interessar, alguém que tem uma casa de samba, eu estou aí.
UH - Você está em que hotel?
JA - Eu não estou em hotel, eu cheguei agora, estou aqui, como você está me vendo, aqui na...
UH - Na redação.
JA - Na redação. Eu não quis dizer que vim à redação, eu não conheço nenhum jornal. Isso eu não sei como é que você vai resolver. Porque fica meio chato o artista que vai à redação.
UH - Não, todo mundo honesto faz isso. Você não deve se envergonhar... (confusão)
JA - Então, eu tive uma idéia... Aproveitando o fato do meu pai ter sido copy-desk e de eu ter esse vínculo muito estreito com a imprensa, diga na sua entrevista que, se alguém se interessar pelo meu concurso, entende, pelo meu trabalho nessas casas de samba, pra enviar para qualquer redação de jornal, que eu recebo (risos).
UH - Mas no fundo no fundo, seja pragmático, faça uma frase nessa linha. Pra despedida
JA - Com é? Seja pragmático? (Confusão)
UH - O Caetano Veloso, dando numa entrevista, num jornal de São Paulo, disse, pessoalmente, que, pra ele, a censura não tem causado grandes problemas. Você poderia dizer a mesma coisa de você?
JA - Eu disse isso no começo da entrevista. Vou repetir. Eu digo abertamente tudo. Não tenho pêlos na língua. Disse tudo no começo da entrevista. É que você... o senhor não estava aqui. Eu disse mesmo, entende? E....
UH - Eu gostaria que o senhor respondesse a pergunta dele...
JA - Já disse tudo.
UH - Esqueceu... (risos)...
UH - Pelo seguinte. Eu não sei se você sabe, Julinho, mas a censura hoje, isso na minha parca opinião, ela tem, eu não diria tesourado, mas ela tem bloqueado o trabalho criativo dos criadores. Frase bonita, não? (risos). Eu quero saber se essa mesma censura - que tem, inclusive, perturbado um colega teu, um rapaz que eu acho que tá dando uma força pra você, que é o Chico Buarque de Hollanda - se ela tem também te prejudicado. Porque uma das história que Leonel divulgou na Rádio Marconi é que você teria já uma música proibida e pelo fato (inclusive eu acho que Leonel foi um pouco sacana com você, ele falou que bastou você ter uma música proibida, você começou a construir uma casa no bairro da Tijuca), então eu queria saber se você realmente tem alguma coisa proibida, algum problema com a censura.
JA - Eu tenho, já te falei que tenho, mas eu tenho mais diálogo do que problema. Cada vez que surge um problema, para isso que eu fiz o samba duplex, que eu pretendo, inclusive, patentear, porque é uma idéia minha que se puder patentear, eu não sei como que é esse negócio de patente. ... E depois eu acho que quem faz um samba, faz dez. Se proíbem um... Então é o tal negócio. O rapaz que trabalha na censura é um homem, pai de família e tem que trabalhar, (todos falam) como eu. Ele está lá cumprindo seu trabalho. Se ele parar de proibir, vai perder o emprego, porque fica um trabalho inútil. Assim como se eu parar de fazer samba, eu deixo de ser sambista. Então, o censurador deixa de ser censor quando ele parar de proibir. Então, vamos nos unir, né, num grande abraço. Então, o censor censura e a gente faz música e o censor censura e a gente faz música. (todos falam)
UH - ...se o Julinho tem consciência de que isso pode realmente inaugurar até uma vanguarda no Brasil. Esse samba duplex, que eu acho que é uma obra aberta, que é o samba que o ouvinte completa em casa. Você tem uma oportunidade de atingir uma faixa muito grande de ouvintes... É um samba que dá várias leituras, em qualquer nível.
JA - Não, aí é diferente. O samba duplex não se propõe isso. Não uma obra aberta. É uma obra aberta até passar pelo filtro. Quer dizer, ele é duplex, quando eu componho. Quando chega nos canais competentes, o samba assume uma das duas versões. Se eu pudesse, eu faria samba duplex de um lado e outro. Tem que agradar gregos e troianos. Quem me falou isso foi o Leonel (risos). Então eu tenho que fazer em primeiro lugar para gregos e troianos, depois vai ver se o censor é grego ou é troiano e vê o quê que ele acha bom. Porque muitas vezes eu não sei mesmo se devo falar a favor ou contra a meningite. Eu sou contra a meningite, mas eu devo dizer que a meningite está brava aqui em São Paulo, porque é um fato que parece que é real, ou devo dizer que a meningite não está brava aqui em São Paulo? Então eu faço samba duplex. Um dizendo que a meningite está terrível, está uma péssima epidemia grassando por aí. (Cantarola). Eu fui pra São Paulo com a Judite, saí de lá com meningite, ou Eu fui pra São Paulo com a meningite e saí com a Judite. Quer dizer, pra secretaria de sáude, tudo bem tudo bag, a secretaria da saúde pode inclusive se basear nisso pra, se não curar a meningite, pelo menos pra fazer um slogan, né? Eu fui pra São Paulo com a meningite e saí com Judite. Ao mesmo tempo se ele quiser alertar a população contra o perigo da meningite, ela vai usar o outro. Aí que eu tenho que ver se o sujeito, na hora, é a favor da meningite ou contra.
UH - E ao mesmo tempo, se no próprio filtro for bloqueada as duas versões, sobre a mesma base melódica, você acredita que é válido ainda criar, sempre existe...
JA - Você está lançando o samba triplex, né? É aquele que a terceira letra fala de futebol (risos), de um jogo que termina empatado (mais risos), que é um samba que eu tenho em que cabem todas as letras. (risos), que conta uma história de futebol que termina empatado. E tem muito gol dos dois lados pra não dizer que é só retranca. É 4 a 4 que termina o jogo, se não for 5 a 5.
UH - Eu tenho a impressão que o samba duplex vai ser muito bem recebido no seio da família brasileira.
UH - Você está interessado apenas em fazer música para boate, para shows, ou você quer tentar teatro, cinema? Ou coisas paralelas?
JA - Coisas paralelas. Todas as paralelas interessam. Música para novela, música para teatro, música pra cinema, para boate, música para teatro, música música, entende?.
UH - Julinho, eu queria que você cantasse, pra encerrar, uma quadrinha do samba do ladrão.
JA - (Cantarola. Pára no fim da primeira parte. Se perde.) É que é uma musica que precisa de violão. Precisa da harmonia pra acompanhar. A segunda parte é muito romântica e diz assim... Não, deixa eu cantar a segunda parte (cantarola)
UH - Põe em palavras
JA - O pedaço todo da letra? Pra falar a verdade não tá pronta.. (diz um pedaço da letra)
UH - Só para encerrar, você tem alguma coisa para dizer?
JA - Aquele abraço ao povo paulistano (risos), um abraço amplo, descontraído, aético e pragmático, aético não.
UH - Você gosta de São Paulo?
JA - Gosto demais de São Paulo. Todos falam
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