Chico Buarque, na Brazuca: “Podendo, vou até os 95
“Se tiver bola, eu dou a entrevista”. Essa foi a única exigência do nosso companheiro de pelada, Chico Buarque, numa caminhada entre o metrô e o campo. Uma bola. E eu acabara de informar que o dono da redonda não viria à pelada de quarta-feira. Éramos dez amantes do futebol, órfãos.
Sem saber se esse era um gol de letra dele para fugir da solicitação de seus parceiros jornalistas, ou uma última esperança, em forma de pressão, de não perder a religiosa partida, eu, que não creio, olhei para o céu e pedi a Deus: uma pelota!
Nada de enigma, oferenda ou golpe de Estado. Ele estava ali, o cálice sagrado da cultura brasileira, que sucumbiu ao ver não uma, mas duas bolas chegarem à quadra pelas mãos de Mauro Cardoso, mais conhecido como Ganso. A partir daí, nada mais alterou o meu ânimo e o da minha dupla de ataque-entrevista, Daniel Cariello. Apesar de termos jogado no time adversário do ilustre entrevistado, tomado duas goleadas consecutivas de 10 x 6 e 10 x 1, tínhamos a certeza de que ele não iria trair dois dos principais craques do Paristheama, e sua palavra seria honrada.
Mas o desafio maior não era convencer o camisa 10 do time bordeaux-mostarda parisiense a ceder duas horas de sua tarde ensolarada de sábado. O que você perguntaria ao artista ícone da resistência à ditadura, parceiro de Tom Jobim, Vinicius de Morais e Caetano Veloso, escritor dos best sellers “Estorvo”, “Benjamin”, “Budapeste” e “Leite Derramado”, autor de “A banda”, “Essa moça tá diferente”, “O que será”, “Construção” e da canção de amor mais triste jamais escrita, “Pedaço de mim”?
Admirado e amado por todas as idades, estudado por universitários, defendido por Chicólatras, oráculo no Facebook, onipresente nas manifestações artísticas brasileiras – sua modéstia diria “isso é um exagero”, mas sabemos que não é –, sua reação imediata ao ser comparado a Deus foi “em primeiro lugar, não acredito em Deus. Em segundo, não acredito em mim. Essa é a única coisa que pode nos ligar. Então, pra começo de conversa, vamos tirar Deus da mesa e seguir em frente”.
Enfim, ainda não creio que entrevistamos Deus, quase sem falar de Deus. Mas foi com ele mesmo que aprendi uma lição, talvez um mandamento: acreditar em coisas inacreditáveis.
(Thiago Araújo)
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Você assume que não acredita em Deus, mas existem trechos nas suas músicas como “dias iguais, avareza de Deus” ou “eu, que não creio, peço a Deus”. No Brasil, é complicado não acreditar em Deus?
Eu não tenho crença. Eu fui criado na Igreja Católica, fui educado em colégio de padre. Eu simplesmente perdi a fé. Mas não faço disso uma bandeira. Eu sou ateu como o meu tipo sanguíneo é esse.
Hoje há uma volta de certos valores religiosos muito forte, acho que no mundo inteiro. O que é perigoso quando passa para posições integristas e dá lugar ao fanatismo. O Brasil talvez seja o pais mais católico do mundo, mas isso é um pouco de fachada. Conheço muitos católicos que vão à umbanda, fazem despacho. E fica essa coisa de Deus, que entra no vocabulário mais recente, que me incomoda um pouquinho. Essa coisa de “vai com Deus”, “fica com Deus”. Escuta, eu não posso ir com o diabo que me carregue? (Risos). Tem até um samba que fala algo como “é Deus pra lá, Deus pra cá – e canta – Deus já está de saco cheio” (risos).
Você já foi em umbanda, candomblé, algo do tipo?
Já, eu sou muito curioso. A mulher jogou umas pipocas na minha cabeça, sangue, disse que eu estava cheio de encosto. Eu fui porque me falaram “vai lá que vai ser bom”. Passei também por espíritas mais ortodoxos, do tipo que encarnava um médico que me receitou um remédio para o aparelho digestivo. Aí eu fui procurar o remédio e ele não existia mais. O remédio era do tempo do médico que ele encarnava (risos).
Já tive também um bruxo de confiança, que fez coisas incríveis. Aquela música do Caetano dizia isso muito bem, “quem é ateu, e viu milagres como eu, sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar.” Eu vi cirurgias com gilete suja, sem a menor assepsia, e a pessoa saía curada. Estava com o joelho ferrado e saía andando. Eu fui anestesista dessa cirurgia. A anestesia era a música. O próprio Tom Jobim tocava durante as cirurgias. Eu toquei para uma dançarina que estava com problema no joelho. Ela tinha uma estreia, mas o ortopedista disse “você rompeu o menisco”. Ela estreou na semana seguinte, e na primeira fila estavam o ortopedista e o bruxo (risos).
Uma vez, estava com um problema e fui ao médico. Ele me tocou e não viu nada. Aí eu disse “olha, meu bruxo, meu feiticeiro, quando ele apertava aqui, doía”. Ele começou a dizer “mas essa coisa de feitiçaria…” e atrás dele tinha um crucifixo com o Cristo. Daí eu perguntei “como você duvida da feitiçaria, mas acredita na ressurreição de Cristo?”. Eu acho isso uma incongruência. Gosto de acreditar um pouco nisso, um pouco naquilo, porque eu vejo coisas inacreditáveis. Eu não acredito em Deus, acredito que há coisas inacreditáveis.
De vez em quando você dá uma escapada do Brasil e vem a Paris. Isso te permite respirar?
Muito mais. Eu aqui não tenho preocupação nenhuma, tomo uma distância do Brasil que me faz bem. Fico menos envolvido com coisas pequenas que acabam tomando todo o meu tempo. Aqui, eu leio o Le Monde todos os dias, e fico sabendo de questões como o Cáucaso, os enclaves da antiga União Soviética, que no Brasil passam muito batidos. O Brasil, nesse sentido, é muito provinciano, eu acho que o noticiário é cada vez mais local.
Meu pai, que era um crítico literário e jornalista, foi morar em Berlim no começo dos anos trinta. Foi lá, onde teve uma visão de historiador, de fora do país, que ele começou a escrever Raízes do Brasil, que se tornou um clássico. A possibilidade de ter esse trânsito, de ir e voltar, eu acho boa. É como você mudar de óculos, um para ver de longe e outro para ver de perto.
Nesse seu vai e vem Brasil-França, o que você traria do Brasil para a França, e vice-versa?
Eu traria pra cá um pouquinho da bagunça, da desordem. Os nossos defeitos, que acabam sendo também nossas qualidades. O tratamento informal, que gera tanta sujeira, ao mesmo tempo é uma coisa bonita de se ver. Você tem uma camaradagem com um sujeito que você não conhece. Aqui existe uma distância, uma impessoalidade que me incomoda.
Para o Brasil, eu gostaria de levar também um pouco dessa impessoalidade. Da seriedade, principalmente para as pessoas que tratam da coisa pública. Não que não exista corrupção na França.
Outra coisa que eu levaria pra lá é o sentimento de solidariedade, que existe entre os brasileiros que moram fora. Isso eu conheci no tempo que eu morava fora, e vejo muito aqui através das pessoas com as quais convivo. Eles se juntam. Como se dizia, “o brasileiro só se junta na prisão”. Os brasileiros também se juntam no exílio, na diáspora.
Falando em exílio, tem uma história curiosa de Essa moça tá diferente, a sua música mais conhecida na França.
É. A coisa de trabalho (N.R.: na Itália, onde Chico estava em exílio político, em 1968) estava só piorando e o que me salvou foi uma gravadora, a Polygram, pois minha antiga se desinteressou. A Polygram me contratou e me deu um adiantamento. E consegui ficar na Itália um pouco melhor. Mas eu tinha que gravar o disco lá. Eu gravei tudo num gravador pequenininho. Um produtor pegou essas músicas e levou para o Brasil, onde o César Camargo Mariano escreveu os arranjos. Esses arranjos chegaram de volta na Itália e eu botei minha voz em cima, sem que falasse com o César Camargo. Falar por telefone era muito complicado e caro. Então foi feito assim o disco. É um disco complicado esse.
Você acabou de citar o Le Monde. Para nós, que trabalhamos com comunicação, sempre existiu uma crítica pesada contra os veículos de massa no Brasil. Você acha que existe um plano cruel para imbecilizar o brasileiro?
Não, não acredito em nenhuma teoria conspiratória e nem sou paranoico. Agora, aí é a questão do ovo e da galinha. Você não sabe exatamente. Os meios de comunicação vão dizer que a culpa é da população, que quer ver esses programas. Bom, a TV Globo está instalada no Brasil desde os anos 60. O fato de a Globo ser tão poderosa, isso sim eu acho nocivo. Não se trata de monopólio, não estou querendo que fechem a Globo. E a Globo levanta essa possibilidade comparando o governo Lula ao governo Chavez. Esse exagero.
Você acha que a mídia ataca o Lula injustamente?
Nem sempre é injusto, não há uma caça às bruxas. Mas há uma má vontade com o governo Lula que não existia no governo anterior.
E o que você acha da entrevista recente do Caetano Veloso, onde ele falou mal do Lula e depois acabou sendo desautorizado pela própria mãe?
Nossas mães são muito mais lulistas que nós mesmos. Mas não sou do PT, nunca fui ligado ao PT. Ligado de certa forma, sim, pois conheço o Lula mesmo antes de existir o PT, na época do movimento metalúrgico, das primeiras greves. Naquela época, nós tínhamos uma participação política muito mais firme e necessária do que hoje. Eu confesso, vou votar na Dilma porque é a candidata do Lula e eu gosto do Lula. Mas, a Dilma ou o Serra, não haveria muita diferença.
O que você tem escutado?
Eu raramente paro para ouvir música. Já estou impregnado de tanta música que eu acho que não entra mais nada. Na verdade, quando estou doente eu ouço. Inclusive ouvi o disco do Terça Feira Trio, do Fernando do Cavaco, e gostei. Nunca tinha visto ou ouvido formação assim. Tem ao mesmo tempo muita delicadeza e senso de humor.
A música francesa te influenciou de alguma maneira?
Eu ouvi muito. Nos anos 50, quando comecei a ouvir muita música, as rádios tocavam de tudo. Muita música brasileira, americana, francesa, italiana, boleros latino americanos. Minha mãe tinha loucura por Edith Piaf e não sei dizer se Piaf me influenciou. Mas ouvi muito, como ouvi Aznavour.
O que me tocou muito foi Jacques Brel. Eu tinha uma tia que morou a vida inteira em Paris. Ela me mandou um disquinho azul, um compacto duplo com Ne me quitte pas, La valse à mille temps, quatro canções. E eu ouvia aquilo adoidado. Foi pouco antes da bossa nova, que me conquistou para a música e me fez tocar violão. As letras dele ficaram marcadas para mim.
Eu encontrei o Jacques Brel depois, no Brasil. Estava gravando Carolina e ele apareceu no estúdio, junto com meu editor. Eu fiquei meio besta, não acreditei que era ele. Aí eu fui falar pra ele essa história, que eu o conhecia desde aquele disco. Ele disse “é, faz muito tempo”. Isso deve ter sido 1955 ou 56, esse disquinho dele. Eu o encontrei em 67. Depois, muito mais tarde, eu assisti a L’homme de la mancha, e um dia ele estava no café em frente ao teatro. Eu o vi sentado, olhei pra ele, ele olhou pra mim, mas fiquei sem saber se ele tinha olhado estranhamente ou se me reconheceu. Fiquei sem graça, pois não o queria chatear. Ele estava ali sozinho, não queria aborrecer. Mas ele foi uma figuraça. Eu gostava muito das canções dele. Conhecia todas.
Falando de encontros geniais, você tem uma foto com o Bob Marley. Como foi essa história?
Foi futebol. Ele foi ao Brasil quando uma gravadora chamada Ariola se estabeleceu lá e contratou uma porção de artistas brasileiros, inclusive eu, e deram uma festa de fundação. O Bob Marley foi lá. Não me lembro se houve show, não me lembro de nada. Só lembro desse futebol. Eu já tinha um campinho e disseram “vamos fazer algo lá para a gravadora”. Bater uma bola, fazer um churrasco, o Bob Marley queria jogar. E jogamos, armamos um time de brasileiros e ele com os músicos. Corriam à beça.
Vocês fumaram um baseado juntos?
Não. Dessa vez eu não fumei.
E essa sua migração para escritor, isso é encarado como um momento da sua vida, já era um objetivo?
Isso não é atual. De vinte anos pra cá eu escrevi quatro romances e não deixei de fazer música. Tenho conseguido alternar os dois fazeres, sem que um interfira no outro.
Eu comecei a tentar escrever o meu primeiro livro porque vinha de um ano de seca. Eu não fazia música, tive a impressão que não iria mais fazer, então vamos tentar outra coisa. E foi bom, de alguma forma me alimentou. Eu terminei o livro e fiquei com vontade de voltar à musica. Fiquei com tesão, e o disco seguinte era todo uma declaração de amor à música. Começava com Paratodos, que é uma homenagem à minha genealogia musical. E tinha aquele samba (cantarola) “pensou, que eu não vinha mais, pensou”. Eu voltei pra música, era uma alegria. Agora que terminei de escrever um livro já faz um ano, minha vontade é de escrever música. Demora, é complicado. Porque você não sai de um e vai direto para outro. Você meio que esquece, tem um tempo de aprendizado e um tempo de desaprendizado, para a música não ficar contaminada pela literatura. Então eu reaprendo a tocar violão, praticamente. Eu fiquei um tempão sem tocar, mas isso é bom. Quando vem, vem fresco. É uma continuação do que estava fazendo antes. Isso é bom para as duas coisas. Para a literatura e para a música.
Tanto em Estorvo quanto em Leite derramado o leitor tem uma certa dificuldade em separar o real do imaginário. Você, como seus personagens, derrapa entre essas duas realidades?
Eu? O tempo todo, agora mesmo eu não sei se você esta aí ou se eu estou te imaginando (gargalhadas).
Completamente. Eu fico vivendo aquele personagem o tempo todo. Entrando no pensamento dele. Adquiro coisas dele. Você pode discordar, mas chega uma hora que tem que criar uma empatia ou uma simpatia. Você cria uma identificação. E alguma coisa no gene é roubado mesmo de mim, algumas situações, um certo desconforto, não saber bem se você é real, se você está vivendo ou sonhando aquilo. Por exemplo, agora que ganhamos de 10 a 1 (referência à pelada que jogamos três dias antes), eu saí da quadra e falei: “acho que eu sonhei. Não é possível que tenha acontecido” (risos).
Você é fanático por futebol?
Não sou fanático por nada. Mas eu tenho muito prazer em jogar futebol. Em assistir ao bom futebol, independentemente de ser o meu time. Quando é o meu time jogando bem, é melhor ainda, pois eu consigo torcer. Agora mesmo, no Brasil, tinha os jogos do Santos.
Mas eu vou menos aos estádios. Eu não me incomodo de andar na rua, mas quando você vai a alguns lugares, tem que estar com o cabelo penteado, tem que estar preparado para dar entrevistas. Aqui, eu estou dando a minha última (risos). Aqui, é exclusiva. Fiz pra Brazuca e mais ninguém. Eu quero ver o pessoal jogar bola. Então eu vejo na televisão. E quando não estou escrevendo, aí eu vejo bastante.
É verdade que um dia o Pelé ligou na sua casa, lamentando os escândalos políticos no Brasil, e disse “é, Chico, como diz aquela música sua: ‘se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão’”?
É verdade (risos). Eu falei “legal, Pelé, mas essa música não é minha”. O Pelé é uma grande figura. Nós gravamos um programa juntos. Brincamos muito. Conheci o Pelé quando eu fazia televisão em São Paulo, na TV Record, e me mudei para o Rio. Os artistas eram hospedados no Hotel Danúbio, em São Paulo. O mesmo onde o Santos se concentrava. Então, eu conheci o Pelé no hotel. E sempre que a gente se encontra é igual, porque eu só quero falar de futebol e ele só quer saber de música. Ele adora fazer música, adora cantar, adora compor. Por ele, o Pelé seria compositor.
E você, trocaria o seu passado de compositor por um de jogador?
Trocaria, mas por um bom jogador, que pudesse participar da Copa do Mundo. Um pacote completo. Um jogador mais ou menos, aí não.
Você ainda pretende pendurar as chuteiras aos 78 anos, como afirmou?
Não. Já prorroguei. Tava muito cedo. Agora, eu deixei em aberto. Podendo, vou até os 95 (risos).
O Niemeyer está com 102 anos e continua trabalhando. Aliás, não só trabalhando como ainda continua com uma grande fama de tarado (risos).
Ele me falou isso. Eu fui à festa dele de 90 anos e ele me disse: “o importante é trabalhar e ó (fez sinal com a mão, referente a transar)”. Aí eu falei “é mesmo?” e ele respondeu “é mesmo”.
Falando nisso, o Vinícius foi casado nove vezes. Você acha a paixão essencial para a criação?
Sem dúvida. Quando a gente começa – isso é um caso pessoal, não dá pra generalizar – faz música um pouco para arranjar mulher. E hoje em dia você inventa amor para fazer música. Se não tiver uma paixão, você inventa uma, para a partir daí ficar eufórico, ou sofrer. Aí o Vinícius disse muito bem, né? “É melhor ser alegre que ser triste… mas pra fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza, é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não”.
Quando eu falo que você inventa amores, você também sofre por eles. “E a moça da farmácia? Ela foi embora! Elle est partie en vacances, monsieur!”. E você não vai vê-la nunca mais. Dá uma solidão. Eu estou fazendo uma caricatura, mas essas coisas acontecem. Você se encanta com uma pessoa que você viu na televisão, daí você cria uma história e você sofre. E fica feliz e escreve músicas.
Pra finalizar. Se você fosse escrever uma carta para o seu caro amigo hoje, o que você diria?
Volta, que as coisas estão melhorando!
Papo cabeça pra pensar
O REDATOR DO MEU PRIMEIRO ALMANAQUE
Para celebrar a centésima edição do ALMANAQUE, decidimos convidar queridos amigos que, de um jeito ou de outro, estiveram presentes ao longo dessas 100 edições. E eis que na lista pintou o Chico. Afinal, foi com ele que fiz o meu primeiro almanaque, em forma de capa e encartes de seu disco de 1981. Era, de certo modo, o embrião desta revista que o leitor tem em mãos. Mas o que fazer se o sujeito é tão avesso a entrevistas? Vamos então de papo-rápido, por e-mail, em que ele se lembra de histórias, dá palpites sobre a composição ministerial e, como sempre, dá um jeitinho de se gabar de seu dito “futebol vistoso”.
Entre as principais influências artísticas de muita gente da música brasileira está Vinicius de Moraes. Ele, amigo de seu pai, foi também importante na sua formação, na escolha de sua carreira?
Vinicius foi um grande amigo meu, mas no fundo nunca deixei de vê-lo como uma extensão do meu pai. Era uma espécie de meu pai mais doido que me acompanhava por aí, um papai de noitadas, bebedeiras e confissões exau
stas. Era às vezes o meu pai em versão criança. E acabou sendo um meu pai mais íntimo. Mas muita coisa que vi no Vinicius já tinha aprendido com meu pai. Como achar graça de quem se dá importância, de quem se leva muito a sério.
Qual a sua primeira imagem de Vinicius?
Minha primeira lembrança do Vinicius vem de Roma, em 1953 ou 1954. Era o Vinicius lá em casa, cantando e tocando o violão da Miúcha, um violão chamado Vinicius. Eu me lembro dele cantando Quando Tu Passas por Mim e Cem por Cento. Depois que ele ia embora, o assunto Vinicius ficava mais uns dias rodando lá em casa. Minha mãe dizia que Cem por Cento tinha sido feita para a Tati, primeira mulher dele. E eu achava que o Vinicius tinha de casar de novo com a Tati.
O que te levou à música, em detrimento de tantas escolhas que se apresentavam?
Um compacto simples chamado Chega de Saudade, de João Gilberto, lançado em 1958.
Ao longo de seus mais de 40 anos de carreira, dezenas de discos, você se arrepende de alguma música que escreveu? Dizem que há um certo desgosto com as canções do Volume 4, de 1970...
Não passo muito tempo relembrando minhas canções antigas. Mas algumas me dão certa aflição, porque claramente feitas às pressas, desperdiçadas. Outras me parecem obscuras, não sei bem o que eu queria dizer com elas.
E, por outro lado, há alguma música da qual você mais se orgulha? Ou um álbum inteiro?
Não tenho muito isso, não. Na verdade, tenho gosto pelas músicas e pelos álbuns durante o processo de criação, em fase de ensaios, nas gravações.
Lembrança minha: nós em um carro, indo talvez para uma partida de futebol, e você deu um jeito de parar o carro, arranjar um telefone e ligar para o seu pai, perguntando quem, afinal, tinha chegado a uma ilha e queimado os navios para não mais poder sair dali. A história acabou entrando em Eu Te Amo, sua e do Tom, de 1980 (Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios / Rompi com o mundo, queimei meus navios / Me diz pra onde é que inda posso ir). Mas o fato é que aquela idéia era tão avassaladora, tão urgente... É sempre assim seu processo de criação?
Não me lembro desse telefonema, mas é bastante crível. Só que a história de queimar os navios, que eu saiba, se passou com Pizarro na chegada ao Peru, para evitar que seus soldados pensassem na possibilidade de uma retirada. Se estou com uma idéia que me parece boa, fico assim mesmo, meio irrequieto. O Drummond dizia que, quando começava a escrever um poema, sentia um pouco de febre.
Uma confissão de inveja: há alguma música de alguém que você gostaria de ter feito?
Isso sim. Gostaria de ter feito milhares de músicas que outros fizeram. Quando estou distraído, só canto e assobio as músicas dos outros. Outro dia, num avião de volta ao Brasil, fiquei mole só de ouvir o Caymmi: Quem vai pra beira do mar, ai/ nunca mais quer voltar, ai.
Qual o seu próximo trabalho, um livro ou um disco?
Gostaria de escrever um novo romance, mas ainda não encontrei o caminho.
Como você interpreta as duas fases mais visíveis da sua produção, como músico e como escritor? Elas formam um conjunto ou são, realmente, duas facetas distintas?
São distantes, nem se falam.
O seu LP Almanaque, de 1981, foi o primeiro almanaque que fiz. É, de certo modo, um embrião deste almanaque que completa 100 edições...
Acho que o projeto gráfico ficou todo por sua conta. Que eu me lembre, colaborei com os textos, mas alguns textos como os de As Vitrines, espelhados, já sugeriam a solução gráfica que você encontrou.
Na sua infância você costumava ler almanaques?
Não me lembro muito de ler almanaques. Do que eu gostava mesmo era de álbum de figurinhas.
Mas tem algum gosto tipo almanaque?
Talvez criar palíndromos seja um gosto de almanaque.
Há muitos boatos relacionados a você, como o de que teria feito a música Jorge Maravilha, de 1974 (Você não gosta de mim / Mas sua filha gosta), para a filha do então presidente Ernesto Geisel. De todas essas lendas, qual você considera a mais divertida?
Nunca fiz música pensando na filha do Geisel, mas essas histórias colam, há invencionices que nem adianta mais negar. Durante a ditadura, de um lado ou de outro, as pessoas gostavam de atribuir aos artistas intenções que nunca lhe passaram pela cabeça. Achavam que a maioria dos artistas só fazia música pensando em derrubar o governo. Depois da ditadura, falam que o artista só faz música para pegar mulher. Mas aí geralmente acontece o contrário, o artista inventa uma mulher para pegar a música.
É verdade que, na Itália, você serviu de motorista para o Garrincha?
Eu morava em Roma, quando o Garrincha chegou com a Elza Soares, que foi fazer uma temporada de shows. Eles foram esticando por lá, fizemos amizade. Fiquei mais próximo do Garrincha, mesmo porque, ao contrário da Elza, ele não tinha muito o que fazer. Ele já não podia atuar profissionalmente, mas era muito popular e ganhava algum dinheiro para jogar bola nos arredores de Roma. Eram pequenos estádios, cujas arquibancadas lotavam para ver o Garrincha. Eu tinha muito orgulho de levá-lo para cima e para baixo no meu pequeno Fiat. E passávamos horas no meu apartamento, bebendo grappa e falando de música, mais que de futebol. O Garrincha era fã de João Gilberto.
Outra que não sei se é verdade é que muitas vezes, no exterior, você teria se dito jogador aposentado da seleção brasileira... Que história é essa?
Aposentado, não, simplesmente jogador da seleção, quando me perguntam se sou brasileiro. É para impor respeito.
Lembro que, numa manhã, há muito tempo, enquanto nos preparávamos para uma daquelas peladas, falei do meu filho Bento, que, apesar de levar todo o jeito para o esporte, tinha desistido por conta do preconceito que sofria. Você disse que havia passado pela mesma situação. Como foi isso?
Talvez não fosse exatamente preconceito. Mas ouvi, sim, rudes ameaças de alguns zagueiros adversários, aborrecidos com meu futebol vistoso.
Agora, política. Você foi o idealizador do Ministério do Vai dar Merda, desgraçadamente não implantado pelo governo federal. Ainda é tempo? Como seria a atuação dele?
Um pessimista mais radical poderia sugerir que esse ministério tivesse poderes retroativos, até 500 e tantos anos atrás. Com o argumento do “vai dar merda”, D. Manuel seria convencido a não financiar a expedição de Cabral.
E já que a palavra de ordem é criar novos ministérios, alguma outra idéia para tratar das questões do País? Ou quem sabe uma nova instituição?
Sim, proponho que se acabe com esse negócio de “este país é uma merda”. Além de ciclotímico, brasileiro é muito auto-referente. Uma vez um italiano me perguntou por que é que aqui há tanta música falando em Brasil, Brasil, Brasil. Drummond já dizia que o Brasil precisa descansar de nossas terríveis carícias.
Qual o seu partido? Ainda está para ser criado?
Nunca tive partido, nem pretendo ter. A entrevista da edição passada foi com Hermínio Bello de Carvalho, que disparou a idéia de uma seção de epitáfios. O dele: “Não vim ao mundo para fazer gracinhas!” Lembrou também o de Eneida de Moraes: “Essa mulher nunca topou chantagem”. E o seu, qual é?
Não quero epitáfio, não. Mas, para a sua sessão, sugiro aquele do Aretino: Qui giace l’Aretin, poeta tosco / Che disse mal d’ogni un, fuorché di Cristo / Scusandosi col dir: non lo conosco [em português: Aqui jaz Aretino, poeta toscano / Que falou mal de todos, menos de Cristo / Desculpou- se dizendo: não o conheço].
Aos 62, Chico diz que debate sobre esquerda é conversa boba e de direita Publicidade
Despojado com camiseta branca e calça jeans, Chico Buarque, 62, pediu ontem respeito aos seus cabelos brancos, respeito ao seu direito de pedestre e respeito a poder discordar "quase sempre" de Caetano Veloso.
No ensaio do show "Carioca", que estréia no dia 4 no Canecão, em Botafogo, zona sul do Rio, questionado pela Folha, Chico comentou a frase do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: "Se você conhecer uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque ela tem problemas; se você conhecer uma pessoa muito nova de direita, é porque também tem problemas".
"Isso é uma bobagem. Como bobagem não precisa ser levada tão a sério. Esse assunto não rende mais não. Essa conversa é muito antiga de incendiário e bombeiro. Essa é uma conversa de direita sem dúvida. Eu não mudei porque tenho cabelos brancos. Não sei se botox é de direita ou de esquerda", disse o cantor e compositor.
Ainda se acha de esquerda, Chico? "Acho que sim", respondeu seco. No dia seguinte ao ataque de traficantes que causou 18 mortes, deixou 23 feridos e provocou a destruição de dezenas de ônibus, carros e prédios públicos, Chico se mostrou tranqüilo. "Pessoalmente não me sinto mais inseguro, porque na verdade era de se esperar. Quando aconteceu em São Paulo, as pessoas mais atentas perguntavam quando aconteceria no Rio. Não é nenhuma surpresa para mim."
Disse que não é alarmista nem estava disposto a viver a "paranóia" da insegurança. "Todas as grandes cidades pioraram. Não sou saudosista. Não tenho saudades do Rio. Tenho boas lembranças. Não tenho saudades de mim. Tenho boas lembranças. Hoje é uma cidade mais violenta, mais deteriorada."
O compositor criticou também a violência de classe média. "O sujeito aqui corre risco de ser atropelado mesmo na faixa da segurança. Ficam falando em violência e violência, mas é violência também quem dirige um carro e avança o sinal. Outro dia estava lá andando, atravessando na faixa, o sinal aberto para mim, o cara quase me atropela. Podia ter quebrado a perna ou ter morrido. E o cara tinha um adesivo: "Basta!" Basta de violência. Violência também é isso", disse em referência à campanha de organização não-governamental liderada por grupos de classe média que pede mais segurança.
Chico elogiou o novo disco de Caetano Veloso, mas disse discordar dele "quase sempre". "Eu adoro o disco do Caetano. É interessante isso. Ele é o contrário do meu. A gente convive há 40 anos, às vezes por caminhos paralelos, às vezes por caminhos diferentes, mas é bom que seja assim. É bom que seja assim para todo mundo: para mim, para ele, para a música. Durante estes 40 anos já tentaram criar algum tipo de conflito entre nós. E não dá certo porque a gente se gosta, sou amigo dele, sou admirador dele. "Também discorda na política, Chico?" "Também. Não preciso concordar em tudo com o Caetano. Aliás, discordo quase sempre. Isso é bom. A gente discorda amigavelmente. Acho o disco muito forte, muito bom. Está procurando uma coisa que não é o que eu estou fazendo. Ele foi por um caminho, eu fui por outro. Pode ser que daqui a alguns anos eu me interesse também por outra coisa e ele... Na raiz está tudo lá. Meu disco sem dúvida é mais rebuscado harmonicamente. Foi uma preocupação que eu tive. São caminhos que o Caetano pode trilhar. Eu posso querer fazer um disco mais cru. O rock não é a minha linguagem . É muito mais dele do que minha."
Chico Buarque e suas novas namoradas
"Quando pego o violão, é como começar um caso amoroso, uma mulher que você não conhece. No começo você faz muita cerimônia"
Há alguns meses, Chico Buarque iniciou um novo "caso amoroso". As palavras são dele para descrever seus próprios sentimentos. Após ter finalizado o romance Budapeste, lançado em 2003, o escritor abandonou o teclado do computador para, com vagar, se dedicar à paixão do músico: o violão e a composição. Os dois anos dedicados exclusivamente à literatura, no entanto, dificultaram a transição:"Quando volto a compor, não sei mais como se faz para escrever uma música. Quando pego o violão de novo, é como se não tivesse domínio do instrumento. É um pouco como começar um caso amoroso, uma mulher que você não conhece, não sabe como lidar, no começo você faz muita cerimônia. E o violão ficava ali, arredio. Mas, quando a música começa a aparecer, ela é inteiramente nova. É mesmo uma nova namorada", disse em entrevista em Paris, no apartamento que mantém na capital francesa. Desse namoro, nasceu, em abril passado, o CD Carioca, o primeiro em oito anos depois do lançamento de Cidades [1998].
Desde que passou a alternar a música com a literatura, seus discos e shows se tornaram mais raros e espaçados, mas o desejo de criar algo musicalmente novo na sua obra, construída em 42 anos de carreira, permanece: "Você já seguiu muitos caminhos, mas quer fazer o que ainda não fez, uma vontade de procurar algo original e, portanto, mais difícil. Às vezes, você tem a impressão de que já falou sobre tudo, todos os assuntos, já tocou todas as notas, já harmonizou de todas as formas possíveis. Mas você sempre pode descobrir coisas novas. As músicas que eu compus agora têm pouco a ver melódica e harmonicamente com o que eu fiz antes".
INSPIRAÇÃO FRANCESA
O novo disco traz doze canções, suas novas namoradas, com tratamento orquestral diferente para cada uma. Em "Subúrbio", a última a ser composta, foi incluída uma seqüência harmônica tipo espanhola. "Eu ficava fazendo aquele desenho harmônico mil vezes por dia. Mudava uma coisinha no dia seguinte e regravava. É sempre uma coisa obsessiva para mim. Eu trabalho obsessivamente", diz. Já "Outros Sonhos" surgiu a partir de versos anônimos que seu pai costumava cantar: Soñé que el fuego heló/Soñé que la nieve ardía/Y por soñar lo imposible, ay, ay/Soñé que tú me querías . "Meu pai cantava muito isso quando eu era garoto, lembro muito disso e, depois, sumiu. De repente, volta, e aquela idéia começa a ficar te perseguindo, "tenho de fazer essa música", conta. Apenas duas canções são relacionadas, por tratarem do mesmo tema, "As Atrizes" e "Ela Faz Cinema". "Uma é a continuação da outra. Mas assim mesmo são diferentes, uma é um choro canção, outra é uma bossa nova", nota.
A inspiração para "As Atrizes" apareceu durante as gravações realizadas em Paris para a recente série de DVD sobre a vida e a obra do compositor. A capital francesa foi escolhida como cenário para o DVD À Flor da Pele, sobre a temática feminina de suas canções. Em 1954, quando a família Buarque de Hollanda morava na Itália, o menino Francisco, de apenas 10 anos de idade, desembarcou pela primeira vez na Cidade Luz acompanhado dos pais. Foi a descoberta dos jogos de fliperama e, principalmente, de mulheres nuas. Em imagens penduradas nas bancas de jornais e pôsteres colados nas paredes, as mulheres se exibiam num despudor até então desconhecido aos seus olhos. Foi o seu primeiro "alumbramento", disse, numa referência aos versos do poeta Manuel Bandeira em Evocação do Recife: "Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado o coração batendo /Ela se riu /Foi o meu primeiro alumbramento". "Eu nunca tinha visto nada parecido, nunca tinha visto peito na minha vida. Na verdade, só os das minhas irmãs, mas isso não contava, elas não tinham peito, eram mais novas do que eu. Então, aquele menino ficou deslumbrado com aquela coisa. E logo depois tinha aqueles filmes franceses, proibidos para menores de 18 anos, mas que a gente, às vezes com jeitinho, conseguia, com 15, 16 anos, entrar no cinema para ver Martine Carol e aquelas atrizes francesas - e mais tarde a Brigitte Bardot - nuas. Então, escrevi essa música em cima dessas reminiscências de infância, pré-adolescência e de adolescência, das atrizes nuas que eu via e ficava de boca aberta", conta.
Na sua música, as mulheres costumam ser despidas em versos. Já se tornou lugar-comum dizer que, pelas letras de suas canções, Chico Buarque é um profundo conhecedor da alma feminina. Modestamente, ele discorda: "A alma feminina é um grande mistério. Sinto-me um voyeur diante das mulheres, gosto de observá-las, e não de ser observado por elas. Acho uma contradição isso de dizer todo tempo que eu expresso muito bem o sentimento feminino, pois, para mim, as mulheres são um enorme mistério", confessou no depoimento feito para o DVD à Flor da Pele. Já Paris, reconhecida como cidade de alma feminina, há muito tempo não lhe é mais misteriosa. "Hoje, o fruteiro já me reconhece e sabe que gosto de papaia. Tenho minha casa aqui e minhas referências na cidade." Embora sua residência permanente seja o Rio de Janeiro, as temporadas passadas na capital francesa são freqüentes, sobretudo em período de criação literária. "Num mês aqui escrevo quase o dobro do que escreveria no Rio. Você fica mais isolado", diz. O Rio, no entanto, é o seu porto seguro: "Eu gosto do Rio de Janeiro, cidade onde nasci e moro, mesmo, há 40 anos. Fui com 2 anos para São Paulo, estive um tempo em Roma, mas com 21 anos voltei para o Rio para fazer um show e fiquei. É a cidade onde sei morar melhor. Cidade não é só gostar, tem de saber morar."
"Eu não sou tímido na minha vida normal. Mas eu não acho que seja normal você subir no palco e cantar."
SEXAGENÁRIO ASSUMIDO
A turnê nacional do show Carioca estréia no dia 30 de agosto, no Tom Brasil, em São Paulo, e se estenderá até junho de 2007, por mais sete cidades. Para Chico Buarque, no entanto, subir no palco ainda provoca uma certa angústia: "Eu não sou tímido na minha vida normal. Mas eu não acho que seja normal subir no palco e cantar. Ali, realmente, travo um pouco. Não se como vai ser o próximo show, espero não sofrer. Eu gosto dos ensaios, gosto de viajar com os músicos, essa coisa toda é muito boa, a gente se diverte muito. Mas entrar no palco, uma estréia, quando penso agora fico um pouquinho apreensivo. Às vezes, a boca fica seca. Sei lá, acontece mesmo de esquecer tudo, de dar tudo errado. Mas ao logo da temporada vai melhorando".
Aos 62 anos, completados no último dia 19 de junho, Chico Buarque é um pai avô que curte a família, "Eu me dou bem muito bem com as minhas filhas, e gosto de crianças, de netos. É aquela corujice normal. Nem sou muito curtidor de bebê, mas, quando começa a falar e fazer comentários, a definir a personalidade, isso é muito interessante. Tudo tão diferente um do outro. Fico provocando para saber como cada um vai reagir." Para o sexagenário assumido, a velhice se insinua cada vez mais, mas não é uma de suas preocupações cotidianas: '"Ela vai chegando, vai se instalando aos poucos. Tem umas coisinhas que você vai percebendo, uma mazelazinha ali que não tem jeito, é mesmo assim. Mas não estou me queixando'". Sua sempiterna paixão pelo futebol confirma: três vezes por semana joga pelada no seu campo no Recreio, vestindo a camiseta número 9 de seu time, o "imbatível" Politheama. Quando não está com a bola nos pés, caminha à beira-mar, no calçadão do Leblon e de Ipanema. "Eu não jogo futebol para ficar em forma, eu fico em forma para jogar futebol. Então, tenho de fazer minha caminhada'",diz. Seu footing também é um laboratório de criação, pois ele só consegue criar em movimento. Quando é interrompido no meio do caminho por um fã em busca de uma foto ou de um autógrafo, já tem a resposta pronta: "Não posso dizer que estou trabalhando, porque aí ninguém vai acreditar. Então, digo que estou me exercitando, que meu personal trainer está vindo lá atrás e não me deixa parar'", diz, rindo.
Às vésperas de enfrentar a nova turnê e já preparando o espírito para, mais tarde, começar a escrever um novo livro, Chico Buarque diz não temer a morte: ' "Gosto muito da vida, não quero morrer, não. Quero viver, viver bastante. E viver bem. Acho que com saúde, fazendo as coisas direito, dá para viver um bocado mais. Gostaria de viver com saúde e com imaginação, com vontade de criar coisas. Aos noventa e tantos anos e virando a noite por causa de uma música, por causa de um livro. Formidável".
"Gostaria de viver com saúde e vontade de criar coisas. Aos noventa e tantos anos e virando a noite por causa de uma música, de um livro"
A dupla vida de Chico
Ele mostra mais uma vez que se move com desenvoltura de craque nos campos paralelos da música e da literatura
Chico flutua no campo de futebol, a bola colada aos pés, como se reencarnasse Pagão, o refinado centro-avante que jogou ao lado de Pelé antes que surgisse Coutinho. Por alguns toques e deslocamentos, lembra outro atacante que admira, Hidegkuti, da magnífica seleção húngara de 1954. E em certos momentos, por alguns toques e passes sutis, poderia ser confundido ora com Zico, ora com Ronaldinho Gaúcho.
São coisas do futebol e da história do futebol, uma das paixões a que Chico se entrega três vezes por semana, sempre que possível. Almoça frugalmente em seu apartamento no Leblon e segue com o amigo, produtor e escudeiro, Vinicius França, para seu campinho no Recreio dos Bandeirantes, quando está no Rio. Quando não está, procura um campo para matar a insopitável fome de bola.
Pois o futebol que Chico gostaria de jogar, com o tempero desses craques históricos e lampejos de Pelé, lembra sempre o refinamento e a sutileza das letras de suas canções, essas, sim, de craque consumado.O maior dos craques.
Tal habilidade, sutileza e refinamento aparecem de novo no recém-lançado disco, Carioca, que pode ser acompanhado do DVD Reconstrução, sobre os bastidores da gravação. Seu disco anterior, As Cidades, é de 1998. Entre um e outro disco, lançou em 2003 o romance Budapeste, depois de ter escrito Estorvo, Benjamim e algumas peças e musicais.
É nesse campo, o artístico, que ele de fato desliza suave, às vezes flutua, magistral como ninguém. Esse é seu melhor campo. Nele circula feliz e se move com facilidade, apesar das agruras da criação. Move-se com tanta facilidade que, pelos resultados, nem parece ter tido o trabalho exaustivo de depuração que confessa ter. Trabalho de pesquisa, de mergulho interior, da busca permanente da melhor forma: "... reescrevo tudo inúmeras vezes". É de seu trabalho, de sua maneira de escrever e de suas preocupações que fala nesta entrevista.
Francisco Buarque de Holanda nasceu no Rio em junho de 1944 e passou a juventude em São Paulo, depois de uma estada e estudos em Roma, quando garoto, levado pela família: o pai, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, foi adido cultural e professor em Roma em 1954 e 1955.
Em São Paulo, cursou colégios da cidade e o primeiro ano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi em São Paulo também que se iniciou musicalmente ao participar dos festivais da década de 60. Era conhecido como "carioca", porque passava as férias no Rio, na casa de parentes, e tinha (e tem) sotaque carioquês. É o Rio que homenageia com seu último disco. Não só o Rio da zona sul, que sempre freqüentou e onde mora, mas o da periferia. O Rio humilde pouco conhecido dos que visitam a cidade, que talvez continue maravilhosa. O Rio que não está nos mapas turísticos.
Língua — Desde o lançamento de seu disco anterior, você voltou a ter contato com o público em shows e, agora, no novo trabalho. O jovem de hoje recebe bem os artistas de sua geração?
Chico — Muita coisa mudou. As pessoas mais velhas relacionam as canções com momentos da própria vida, com fatos da época. Festivais, perseguições políticas, diferenças entre tendências musicais. Para os jovens, isso não existe. Um dia um deles disse que gostava muito de uma de minhas canções, Com Açúcar, com Afeto, que já tem 40 anos! Tenho impressão de que para a maioria deles sou um músico de um passado talvez sem nuances. Mas eles gostam das músicas. A maioria gosta. E olha que em certo momento já fui considerado completamente ultrapassado por alguns. Depois o interesse voltou. Pode ser que daqui a algum tempo percam de novo o interesse. Mas eu sou teimoso. E, a esta altura, não preciso me preocupar com o sucesso imediato.
Você ficou famoso como músico, letrista. De vez em quando pára e dedica-se a livros. O que o leva a uma coisa e outra? São dois Chicos?
Comecei a escrever Estorvo após mais de um ano sem conseguir trabalhar com música. Provavelmente, o livro já estava se escrevendo desde algum tempo na minha cabeça. Imagino que a cabeça esteja sempre a trabalhar, mesmo ou sobretudo em períodos de aparente bloqueio criativo. Estorvo trata da questão da linguagem, da palavra. Resulta um pouco da minha curiosidade pela palavra, pela linguagem.
Nos tempos de escola, você já desenvolvia essa curiosidade? Interessava-se muito pelo idioma? Estudava além das obrigações escolares?
Sim. Mas nunca estudei além das obrigações escolares. Sempre tive bons professores e não fui péssimo aluno.
E agora? Consulta dicionários ou livros de referência sobre o idioma quando escreve?
Sempre. Consulto o Caldas Aulete, o Houaiss, o Dicionário de Verbos e Regimes e o de Regimes de Substantivos e Adjetivos, ambos de Francisco Fernandes, e o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo.
E o Aurélio, de seu tio, não?
(Rindo) Também, claro.
Tem alguma dificuldade com a língua? Grafia, regência, concordância...?
Não tenho especial dificuldade, mesmo porque me socorro sempre dos dicionários. Mas um deslize ou outro sempre aparece, quando da revisão de meus livros.
Suas músicas e livros não tomam liberdade com a língua oficial. A exceção talvez seja "quem te viu, quem te vê", pronome paulistês descontraído misturado com "quem não a conhece...", "quem jamais a esquece...". E depois, "Todo ano eu lhe fazia uma cabrocha de alta classe, de dourado lhe vestia...". "te" paulista e "lhe" carioca. Compôs assim só porque lhe pareceu a melhor forma?
Quando comecei a gravar minhas canções, em meados dos anos 60, era não só aceitável como, às vezes, bem-vindo o uso de coloquialismos, o desrespeito à norma culta. Havia uma idéia mais ou menos disseminada, talvez desde a época dos CPCs da UNE, de que as letras de música popular deviam se aproximar do linguajar comum.
Qual é o seu método de trabalho? É sistemático? Tem horários, disciplina? Trabalha todos os dias? Recolhe-se? Viaja para ter sossego?
Quando escrevo um livro, trabalho sem parar, até dormindo. Às vezes, viajo para ter sossego, às vezes, fico por aqui mesmo, mas mando dizer que estou na fazenda, embora não tenha fazenda.
Alguns autores começam a escrever e não sabem o que vai acontecer depois. Que a história se conduz sozinha. Era o que dizia Georges Simenon. Como é no seu caso?
Quando começo a escrever sei exatamente o que vai acontecer depois. Só que depois acontece outra coisa.
Rascunha, desenvolve a idéia primeiro na mente ou faz um esboço escrito? Ou escreve diretamente ao computador, sem escalas?
Escrevo rascunhos, esboços, idéias esparsas, no computador ou em qualquer papel ao alcance da mão. Quando o livro já está encaminhado, escrevo no computador, imprimo, leio, risco, rasuro, anoto, volto ao computador, imprimo, leio e assim sucessivamente. Reescrevo tudo inúmeras vezes.
Ernest Hemingway trabalhava de pé, diante da máquina de escrever posta numa plataforma alta. E você?
Escrevo sentado, mas as melhores idéias me vêm em movimento. Ando pela casa, saio andando pela rua com uma caneta e um bloco no bolso.
Demora muito para criar? Empaca às vezes? Trabalha sob pressão? Obriga-se a trabalhar? Você levava mais tempo antes do que agora para compor?
Tudo tem demorado mais, cada vez mais. Empaco muitas vezes, mas não me sinto pressionado, geralmente trabalho com prazer. Com a experiência, a gente aprende a fazer tudo mais devagar.
Como se sente quando termina um trabalho? Alívio, frustração, euforia, dor de barriga?
Vazio.
Que influências literárias recebeu?
No começo eu queria ser Rubem Braga, escrevia crônicas nos jornais do colégio. Depois quis ser escritor russo. Depois virei escritor francês, fui virando Flaubert, Zola, Proust, acabei sendo Céline, eu adorava Louis Ferdinand Destouches, dito Céline. Na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, eu já estava para ser Kafka, quando um colega me disse para deixar de ser besta e me mandou ler em português. Foi mais ou menos nessa época que virei Guimarães Rosa. Depois virei músico e parei de ler. Também li muito Graciliano, Vinícius, Bandeira, João Cabral, muito João Cabral.
E na música? Quem você ouviu ou ouve mais?
Ouvi de tudo, desordenadamente, mas o que mais me impressionou, e para sempre, foi a primeira audição de Chega de Saudade, de Tom e Vinícius, com João Gilberto.
Você aprendeu outras línguas sempre nos países de origem ou estudou alguma no Brasil?
Italiano aprendi na Itália, onde morei dois anos quando menino. Na mesma época aprendi inglês, língua que se falava na escola americana de Roma. O francês elementar, que aprendi no ginásio em São Paulo, aprimorei com leituras, muitas leituras. O espanhol aprendi falando, chutando, confundindo com o italiano, em minhas viagens pela América Latina. Também leio bastante em espanhol. Tenho, aliás, facilidade para desaprender essas línguas, por isso me forço a ler o que posso no original. Em 64 ou 65, fui aluno ouvinte de Boris Schnaiderman [professor de Língua e Literatura Russa] na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Eu tinha a pretensão de ler Tolstoi e Dostoievski em russo, mas não passei do alfabeto cirílico.
É muito diferente compor músicas e escrever romances ou peças?
Escrever romances é muito diferente de compor músicas. E minhas peças de teatro, peças musicais, têm mais afinidade com a música que com a literatura. A música acaba marcando a minha literatura. As personagens são obsessivas, repetem-se, são como personagens de música, são como temas de música, que tendem a repetir-se. Mas o princípio que me move é o mesmo: vontade de me comunicar.
Já abandonou projetos começados?
Bem, há projetos de canções que ficam pelo caminho, isso acontece o tempo inteiro. E agora me lembro de uma comédia teatral, O Dia em que Frank Sinatra Veio ao Brasil, projeto que abandonei com a morte de Paulo Pontes, então meu parceiro.
E já retomou alguns, depois de abandonados?
Tenho uma gaveta cheia de músicas abandonadas, mas não costumo abri-la. Eu teria dificuldade em mexer nessas músicas. Tenho a impressão de que elas endureceram, e aqui estou plagiando Ernst Jünger [romancista alemão, 1895-1998], quando se referia à sua incapacidade de mexer em seus antigos escritos.
A sensibilidade feminina expressa em algumas de suas músicas (em geral temas de personagens) é tão grande que chegaram a pensar que uma mulher as tivesse composto. Sua porção mulher é muito pronunciada?
Eu é uma moça.
Você já quis botar letra em algumas músicas, mas desistiu. Lembro uma do Astor Piazzola. Isso acontece muito?
Tenho quatro gavetas cheias de músicas alheias que não consegui letras. Essas gavetas eu abro de vez em quando, e já me aconteceu de escrever a letra para uma música que me fora enviada 15 anos antes e ainda estava maleável. Se deixo de escrever letras e músicas é simplesmente porque não dou conta do serviço, sou um artífice vagaroso. Acho até que já escrevi músicas e letras em demasia, mas ainda assim vou ficar devendo.
Suas histórias em geral são "difíceis", de estrutura incomum. Você se preocupa em ser original, não-linear? Ou elas se compõem assim naturalmente para você?
Não, não me preocupo em ser original. Acho que sou meio esquisito mesmo.
Muita gente considera Estorvo um livro difícil. Você tentou experimentar com a linguagem, com a estrutura?
Não, escrevi daquele jeito porque não sei escrever de outro.
Gostou das adaptações de seus livros para o cinema?
Gostei muito. Penso que a atmosfera de Estorvo é impossível de reproduzir em cinema. E o Ruy Guerra a reproduziu. A adaptação de Benjamin, da Monique Gardenberg, é também muito boa. É uma leitura feminina do meu livro.
As personagens de Benjamim têm nomes estranhíssimos: Castana Beatriz, Benjamim Zambraia, Ariela Mazé, Zorza, Grango, Alejandro Sgarati, Dr. Campos Celeste, Cantagalo, Geovau, Gâmbolo. São apelidos de jogadores do time do seu time, o Politheama?
Não, são nomes e sobrenomes reais, do meu time de botão.
Por que Budapeste, cidade que você não conhecia? Não pensou numa cidade fictícia para ambientar a história?
Por causa da língua, que eu conhecia um pouco, umas 20 palavras e um time de futebol. Cheguei a escrever sobre um país imaginário, com uma língua inventada. Inventei umas palavras, mas não dava certo, a coisa não andava. Então me lembrei das palavras húngaras.
Alguns estranham seu novo CD à primeira audição. A maioria das músicas não é assobiável. Pelo menos não à primeira, ou às primeiras audições.
Mais de uma pessoa já disse que não é fácil gostar desse disco na primeira audição. Talvez não seja mesmo. Nisso, lembra o anterior. Mas tenho a esperança de que ele seja ouvido outras vezes. No meu caso, é difícil esperar que uma de minhas canções seja um grande sucesso, que toque no rádio. Minhas músicas agora resultam de um tempo maior de meditação, de apuro. Todas são mais trabalhadas. E não só na composição, mas nos arranjos, no estúdio. É um trabalho mais sério, mais pensado. Ele e outros não saíram assim porque eu queria fazer música pretensiosa, refinada ou rebuscada de propósito. Acho que minhas músicas mais recentes são o resultado do amadurecimento. Talvez por isso quem sabe durem mais...
Por causa desse estranhamento, você acha que seu trabalho não é bem compreendido?
Sei que em jornal, crítico de música geralmente é crítico de letra. É difícil não ser de outro jeito. A letra é visível, impressa, a partitura não. No entanto, eu dou cada vez mais importância à música. Quase sempre faço a letra que a música pede. Todos deviam perceber que as letras não são poesia; elas se integram à música para compor uma canção. Talvez seja pedir demais.
Na música Subúrbio, você chama a atenção para a periferia do Rio...
Sim, eu quis cantar a periferia. Tem relação com a posição marginal d Brasil no mundo e com a posição cada vez mais periférica do Rio em relação às tomadas de decisão do poder, quase sempre concentradas em São Paulo. O subúrbio que eu canto é a periferia fora do mapa de uma cidade, ela própria meio marginal. Mesmo assim, o subúrbio ainda mantém um lado idílico, com suas tradições e formas de expressão próprias. Foi isso que me motivou. Não a saudade do velho Rio e do velho subúrbio, que todo mundo tem. O que me inspirou foi o subúrbio de hoje.
Depois dos governos de FHC e de Lula, você ainda tem esperanças na política?
Os dois decepcionaram. A pessoa que chega ao poder se torna um pouco fantasma daquela que deu a vida por algo que não se realizou.
Colaboraram Ferando Faro e Selma Borbagian
Preconceito na mira
Chico Buarque lança um novo CD depois de oito anos e, com a lucidez de sempre, fala sobre política, velhice e criação
Eleitor histórico de Luiz Inácio Lula da Silva. Chico Buarque aproveita lançamento de um disco inédito, depois de oito anos sem gravar, para dar o seu recado: nunca viu a figura do presidente da República ser tão desrespeitada quanto agora. Chico vê "uma rejeição desrespeitosa", "preconceitos arraigados", e a vontade furiosa de "despachar" Lula do poder, o que seria um grave "retrocesso" para o País. Intitulado Carioca, o CD passeia pelo Rio de Janeiro, falando em doses iguais de suas belezas e mazelas. O tema do disco é uma oportunidade para o compositor expor publicamente a sua visão mais que crítica da classe política carioca, a pior do País, na sua opinião. Nesta entrevista, com a lucidez habitual, Chico também discorre sobre violência urbana, drogas, velhice e imprensa.
Carta Capital: Os cariocas estão dispostos a ver o Rio de Janeiro de forma crítica, como o senhor propõe no disco e em recentes entrevistas?
Chico Buarque: Quando o Rio de Janeiro era a capital da República e havia um certo reconhecimento da hegemonia política e cultural da cidade em toda parte, a gente não precisava ficar sublimando essa superioridade. Hoje em dia, isso mudou. O peso é outro. O Rio perdeu importância. São Paulo cresceu muito. O bairrismo carioca que está surgindo veio como uma espécie de reação, um desdém, com ou sem justificativa, ao que vem de fora. E os cariocas contra-atacam São Paulo. Mas, até por sentimento arcaico de superioridade, o carioca se dá ao direito de falar mal da própria cidade.
CC: E o paulista?
CB: O paulista não fala mal de São Paulo. Quando vou para São Paulo, vou como visitante. Eu pego táxi no aeroporto e vejo aquele engarrafamento terrível. As pessoas não se queixam mais disso... E aí você fica sabendo de uma enchente na marginal Tietê, as pessoas demoram três horas para chegar em casa e nada. Ninguém reclama. Para nós, cariocas, isso é quase incompreensível. Não apenas no disco, mas também nas entrevistas, levanto questões para serem discutidas. Mas me dou ao direito de, como carioca, amar essa cidade e ao mesmo tempo apontar os problemas que são gritantes.
CC: Os políticos do Rio, por exemplo...
CB: Evidentemente, quando eu digo que os políticos do Rio são os piores, não quero dizer que são todos horrorosos. Acho que essa coisa de execrar a classe política como um todo é muito perigosa. especialmente para quem viveu a época da ditadura. para quem viu o golpe de 64, se arvorar como, o defensor da cidadania contra a corrupção, contra o comunismo etc. A política foi cerceada durante todos esses anos com essa justificativa: os políticos são todos iguais, os políticos são todos corruptos, a política é suja. Então, esse é um discurso muito perigoso.
CC: Quando o senhor se refere aos políticos, imagino que esteja se referindo à turma de ponta, que representa a cara do Rio na política nacional...
CB: Se você for olhar para cada partido, dá para ver isso. O PMDB deve estar com vergonha da atitude do Garotinho, que é a figura mais proeminente do partido no Rio. O PT carioca sempre viveu uma crise de identidade, com muitos conflitos. O PSDB é insignificante... O Rio é sempre um problema. A fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio foi nociva para o Rio. Talvez fosse necessária, não sei. Mas foi imposta e o resultado não foi bom.
CC: Mas é sempre bom lembrar que somos nós, os eleitores, que escolhemos os políticos...
CB: O Rio de Janeiro já foi mais progressista, mais expressivo. No começo da ditadura, o Rio de Janeiro era o Estado da oposição, uma preocupação para os militares. Hoje em dia, isso se diluiu um pouco. Há fenômenos novos, a própria emergência dos evangélicos. O Brasil mudou, com o Rio não foi diferente.
CC: Essa situação incomoda?
CB: Não, não me incomoda, mas... Isso é apenas um disco, não é um manifesto político. Agora, se eu sou chamado a falar de política do Rio, vamos embora. Confesso que não é o meu assunto preferido.
CC: Apenas mais uma pergunta sobre esse tema, então. O que o senhor acha da decisão do Garotinho de fazer greve de fome?
CB: Eu não preciso nem dizer nada. Eu li nos jornais que representantes do próprio partido estão constrangidos com essa história.
CC: Em uma canção do disco, o senhor defende de passagem a adoção de uma política de combate às drogas diferente.
CB: Acho tão inócuo culpar o consumidor ou pedir que ele se abstenha de consumir droga quanto o papa ou o Bush proporem a abstinência sexual como única alternativa para se prevenir contra a Aids. A repressão policial também não produz resultados. É uma questão complicadíssima. Como é que se vai legalizar o comércio de drogas? Isso está sendo discutido em muitos outros lugares. No México, na Holanda.. E aqui eu não vejo isso ser discutido. O problema não é levado a sério. Eu também não gosto de ficar pontificando. Não quero que a minha canção seja um hino, uma bandeira em defesa das drogas. Mas, de fato, eu acredito que é melhor legalizar as drogas. Traz menos danos à sociedade do que o tráfico. A tentativa de responsabilizar o consumidor é ingênua, mais ingênuo que o sonho descrito na canção, que fala da maconha da tabacaria e das drogas da drogaria.
CC: Como o senhor viu a ocupação das favelas cariocas pelo Exército?
CB: A ocupação das favelas me espantou muito. E o que mais me espantou foi o apoio maciço da classe média, das pessoas que escrevem no jornal. Eu entendo o fato de a classe média estar apavorada. Eu entendo o resultado do plebiscito das armas: a pessoa achar que andar armada pode ser uma solução, pode contribuir para a defesa. Eu discordo. A imagem de canhões apontados para a favela, para mim, é assustadora. E, nas cartas de apoio, as pessoas defendem soluções drásticas, como se isso fosse resolver o problema do morro. É um erro tratar todo habitante do morro como um delinqüente, dizer que todos os moradores das favelas precisam ser removidos de lá, quando não eliminados, como está mais ou menos aparente e às vezes até explícito. O que se ouve é: "Toca fogo no morro, resolve isso de uma vez".
CC: Esse conservadorismo não chega a ser uma novidade...
CB: Sim, mas está cada vez maior.
CC: No ano passado, o senhor manifestou a esperança de que a crise política tivesse algum proveito e não apenas provocasse "alegria raivosa" em quem não votou no Lula. Hoje, qual é a sua avaliação da crise?
CB: A alegria raivosa está menos alegre porque há uma grande possibilidade de reeleição do Lula. Os opositores se batem contra isso de uma forma brutal. Há insultos contra a figura do presidente da República como eu nunca vi anteriormente, nem mesmo ao Collor. Tudo bem, está certo, o Lula, em ano eleitoral, faz o que pode para se reeleger e a oposição faz a sua parte para impedir. Mas acho que há uma rejeição despropositada, algo que passa do limite. Acho uma besteira bandeiras como "Fora, FHC!" Na verdade eu nunca bati muito bem com certos setores do PT. Nunca fui petista, mas, como votei seguidamente no Lula, me chamam de petista. Os petistas sabem que eu não sou petista. E eu via muitas vezes em alguns militantes essa arrogância de achar que quem não é petista é calhorda. Isso, pelo menos, é um proveito que se tira da crise. Acredito que o partido possa se reerguer, mas carregará essa mancha para sempre. E isso é bom.
CC: Mas o senhor acha que a critica está acima do tom?
CB: Acho que há um desrespeito ao presidente Lula. Há um componente, sim,de preconceito de classe muito forte. As pessoas não diriam "vagabundo","burro"e "imbecil" para um professor como Fernando Henrique Cardoso, sociólogo e poliglota, ou mesmo para um representante da elite nordestina como o Collor. As pessoas se dão ao direito de se referir ao Lula dessa forma. Esses preconceitos estão arraigados. Dizem: "Nós lhe prestamos um favor, para você ocupar o palácio por um tempo. Como não se portou direito, vai embora". Isso é grave. A eleição dele foi muito boa para o Brasil. E despachar o Lula dessa forma não é bom. Simbolicamente é um retrocesso. E é o que as pessoas querem fazer. Ou seja, pessoas que nunca aceitaram muito bem a eleição de um operário metalúrgico e agora se voltam com toda a fúria.
CC: Em uma passagem do DVD, alguém pergunta: "Quantos discos o senhor ainda pretende fazer?" Depois de pensar um pouco, a sua resposta é: "Enquanto a gente estiver fazendo alguma coisa, está bom". A frase revela uma certa preocupação com o envelhecimento.
CB: Nem tanto. É claro que isso me preocupa porque chega um momento em que a gente sabe que não resta tanta vida pela frente. Eu não gosto da idéia de morrer. Gostaria de viver muito, com saúde e com capacidade de criar. É isso o que gosto de fazer. Por isso que, enquanto estiver fazendo, está bom. É bom escrever um livro, é bom escrever canções, é bom gravar... Trabalhar e criar, para mim, é essencial. Agora, a pergunta é complicada. Cada vez mais os tempos de criação são mais extensos. Levo mais tempo para escrever uma música hoje do que há 20 anos. Levo mais tempo para escrever um livro hoje do que os primeiros livros. Essa demora entre uma coisa e outra, esses tempos aumentando e a perspectiva de vida diminuindo... Por isso eu brinquei com ele: "Isso é pergunta que se faça?"
CC: Este é um disco um pouco mais melancólico que os anteriores?
CB: Eu não acho. Isso foi dito do meu último disco, o anterior. Talvez a minha voz seja triste. Ou talvez porque, no outro disco, eu tenha escolhido tonalidades mais graves. Isso talvez pudesse conduzir as pessoas a achar o disco mais triste. Mas eu não achava as canções tristes, nem as letras nem nada. Esse eu acho até mais brilhante nesse sentido de tonalidade, é um pouco mais vivo. Tem canções alegres, canções irônicas e canções tristes. Tem uma tão triste que o autor da música, o meu contra baixista, falou: "É tão triste, tão triste. mas tão triste, que chega a ser engraçada". E ele falou isso sem conhecer a letra. Quando ele disse isso. eu pensei: "Que bom, então está certa a letra".
CC: Qual é a diferença de gravar um disco por uma gravadora estrangeira e outro por uma gravadora brasileira?
CB: Para mim, na prática, nenhuma. Hoje, preciso de mais tempo de estúdio. E eu tive aqui toda a liberdade para fazer, para mudar coisas, para ficar insatisfeito, refazer tudo... Como tinha antes em gravadoras multinacionais. A esta altura eu sou bem tratado. Agora eles têm paciência comigo. Antigamente eles não tinham essa paciência toda, não. As músicas novas levaram um ano e meio para serem escritas. E o disco mesmo levou oito meses de estúdio.
CC: Como o senhor encara esse processo cada vez mais massificador de divulgação? Em um mesmo dia, o resultado do seu trabalho estará em todos os jornais e revistas...
CB: Nessa parte eu não me meto. Acontece muito quando eu lanço um livro. Mas esse é um problema mais da imprensa do que nosso. Essa é uma preocupação do departamento comercial da gravadora. Eu me submeti a isso. Eles perguntam: "Topas dar entrevista?" Eu topei, estou aqui falando. Quando lancei o livro, eu não dei entrevistas. O meu editor ficou zangado: "Como é que você não deu entrevista para o livro e agora fala?"
CC: Por que não deu entrevista para o livro?
CB: É difícil, mas eu procuro evitar me valer do nome que tenho. Não quero tirar proveito de 40 anos de vida pública para promover um livro. Quero separar uma coisa da outra. Eu não vou ocupar o caderno cultural dos jornais com um livro que, se fosse de outro escritor, não teria esse mesmo espaço. Acaba tendo espaço, mas pelo menos eu não contribuí para isso. Agora eu resolvi falar, até para não ser aquele artista que não fala nunca. O sujeito que não fala nada é a Greta Garbo. Se ele fala muito, é arroz-de-festa. Então eu resolvi ser arroz-de-festa uma vez para não ser esquecido.
CC: Recentemente, o senhor foi vítima de um paparazzo, que o flagrou com uma mulher casada na praia. Pelo visto, o episódio está superado...
CB: Eu já enfrentei situações piores. Não sou um sujeito cheio de melindres, não sou não-me-toques. Já briguei com a imprensa bastante, por motivos mais graves. Eu não vou querer lembrar isso agora. Há 20 anos a barra era mais pesada. Essa coisa de invasão de privacidade é chato, mas eu não vou deixar de viver por essa besteira. Não vou deixar de andar na praia por isso. Tive problemas, no passado com vários jornais. E não fiz greve de fome por causa disso. Alguns passavam da conta, falavam demais, mentiam. Deixei de falar com alguns. Mas depois de alguns anos eles me absolveram.
CC: O senhor tem uma preocupação particular com a preservação da sua obra, não?
CB: Eu trituro todos os rascunhos e jogo na fogueira. Hoje, menos, porque muitos rascunhos são apagados no computador. Algumas vezes eu imprimo e corrijo a mão. Esse material impresso eu prefiro destruir. É uma questão de pudor. Não quero que ninguém veja um rascunho inacabado.
CC: Dessa forma, o senhor pretende evitar o "comércio de material inédito"?
CB: Isso me incomoda bastante, mas comigo não vai acontecer. Não deixei rastros. E não vou deixar.
Ele é carioca e afirma isso isto não só no titulo, mas em veias referências geográficas e sonoras do novo álbum, o primeiro solo de canções inéditas desde 1998. Mas Chico Buarque não é bairrista e numa de suas muitas sacadas espirituosas disse que o disco é uma homenagem a São Paulo, porque foi Carioca o apelido que ganhou aqui quando morou nos anos 50. Teve gente que não entendeu a piada e, para completar, as críticas que fez ao urbanismo da cidade deram o que falar nos últimos dias. "Não sou bairrista, só não gosto de mau humor", disse ao Estado. "Você mora em São Paulo? Parabéns!", zombou do repórter, ás gargalhadas.
Produzido por Vinicius França, com arranjos e direção musical de Luiz Cláudio Raptos, Carioca é a primeira produção independente da carreira de Chico e foi lançado ontem pela Biscoito Fino em duas versões: CD simples e dual disc, incluindo um DVD com os bastidores das gravações. É nesse DVD que ele brinca com a homenagem aos paulistanos. Para quem não se lembra, antes de se tornar compositor e escritor, Chico estudou na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo)e foi aluno de Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha. Bem, fala sério, não há paulistano consciente que discorde de Chico quando diz que urbanisticamente a cidade está ficando cada vez pior.
Embora Carioca traga embutidas muitas lembranças de bons tempos de São Paulo e do Rio, Chico diz que não é um disco saudosista. Ele prepara turnê para o segundo semestre e faz urna prévia em Berlim, no dia 16 de junho, dividindo o palco com Mart'nália, dentro dos eventos musicais da Copa da Alemanha. A seguir, tópicos da entrevista em que ele discorre sobre temas relacionados ao disco, entre reminiscências, rap, cinema, Zezé di Camargo ( muitos fãs de Chico torceram o nariz quando ele aceitou o convite para gravar um dueto com o sertanejo em Minha História) e sonhos tema recorrente em suas letras, que agora volta em Outros Sonhos, com a qual defende a descriminalização das drogas.
SÃO PAULO
Não é nem detestável, é invivível. Na semana passada fiquei lendo sobre a intenção da Prefeitura, ou sei lá de quem, de resolver o problema do engarrafamento aumentando as pistas da Marginal, invadindo o canteiro central. A cidade já não tem verde e o pouco que tem vão tirar. A cidade fica careca, não absorve a água da enchente, e aí vejo na televisão a cidade, que já não é bonita, paralisada, onde ninguém anda. Ao mesmo tempo chego a São Paulo e, ao contrário dos cariocas, que têm o costume de xingar, de falar mal da própria cidade, costumo encontrar gente bem-humorada, que aceita essas coisas com naturalidade. Agora, a cidade urbanisticamente não deu certo. Não falo da arquitetura, porque a arquitetura de São Paulo tem coisas muito mais interessantes do que a arquitetura moderna do Rio, na Barra da Tijuca. Aquilo é urna excrescência arquitetônica.
SOFISTICAÇÃO SONORA
Há um depuramento maior, certamente. Quando faço um disco novo, quero gravar um disco novo em relação ao que já fiz. Mas não há nenhuma busca de complicações, pelo contrário. Gostaria até que fosse tudo mais simples. Quando digo que tenho de abandonar a literatura, é para conseguir encontrar de novo a linguagem da canção. Mas também discordo que a música tem de ser facilmente escutável porque me acostumei com a idéia de que as músicas não vão tocar no rádio. Se tocarem, vai ser por acidente. Não tenho esse compromisso, então imagino que as músicas serão ouvidas por gente que ouve um disco inteiro mais de uma vez.
SONHOS
Não é uma obsessão, mas sou muito curioso nesse assunto e guardo alguns sonhos. Tenho essas idéias de sonhos permanentemente. Tem até músicas que sonho, mas sou outro compositor quando sonho com música e às vezes acordo e a música está pronta. Mas estranhamente nunca são as minhas música. São sempre de outros autores, como Zeca Pagodinho e outros inventados, nunca alguma que eu pudesse aproveitar.
REMINISCÊNCIAS
A letra de Leve é atual, a música remete à Copacabana da minha infância, como talvez o arranjo de Sempre traga algum ar de anos 50. E há algo de reminiscência nesse disco, até quando se fala do titulo como referência ao meu apelido Carioca. Há reminiscências na letra de As Atrizes, que é uma música do carioca pré-adolescente que morava em São Paulo, mas é só isso. Imagina um caso muito engraçado. Fiquei sabendo recentemente que era uma música de juventude do Tom. Conheci essa música durante a preparação da filmagem de Pra Viver um Grande Amor. E o Tom nunca me disse que essa música era antiga. Isso foi em 1982. A letra de Leve não é saudosista, é juvenil. Mas fica nisso, no resto o que há são releituras. Mesmo os arranjos do Luiz Cláudio são modernos, ousados. Acho que musicalmente nesse sentido é um disco até atrevido.
O FIM DA CANÇÃO
Não fui eu que levantei essa lebre. Foi um jornalista italiano que uma vez comentou isso comigo e ele também não tinha inventado isso na hora. Alguém diz que a canção nesse formato talvez seja própria do século 20 e no século 21 pode ser que ela caia de moda, venha outra coisa. A comparação era com a ópera, típica do século 19 e não sobreviveu ao século seguinte. A música brasileira, que tinha um pé na polca, nas músicas de salão, na música dos escravos, foi se transformando, primeiro no maxixe, depois no samba e tal. Isso é um argumento contra mim, que procuro desmentir fazendo canções. Mas quem disse que daqui a 50 anos, olhando para trás, este disco, por exemplo, não seja tardio, um disco do século 20 que apareceu em 2006?
RAP
Essa enxurrada de revivals, compilações, de revivência de músicas do século passado, talvez seja sintoma de que hoje não é mais necessário fazer músicas novas. E talvez também o rap seja tinha negação desse formato de música. Não sei se é. No caso de Ode aos Ratos, desde o começo disse que essa música ia entrar no disco. Tinha a idéia de introduzir um elemento novo. E tinha pensado num rap. Mas eu não soube fazer direito e depois comecei a ficar duvidando um pouquinho dessa idéia. .Já via muito rap utilizado em comerciais e não sei quê, talvez não fosse uma boa idéia, mas era. Aconteceu que na tentativa de fazer o rap, surgiu a embolada. É parecido, só que tem melodia, mas tem o ritmo dos fraseados, as rimas internas, as aliterações, é meio um pouco Jackson do Pandeiro. Foi interessante isso, aí cobri esse buraco, achei que podia continuar cantando e experimentei isso no estúdio. O Rodrigo( de Castro Lopes), que é o engenheiro de som, sugeriu colocar aquela distorção na voz, que parece som de radinho de pilha. Eu gostei do efeito e tal.
CINEMA E TEATRO
O disco tem algumas músicas feitas para cinema, uma para teatro(Ode aos Ratos) tem duas que falam de cinema, mas isso foi por acaso. Acho que ao longo da minha carreira discográfica, pelo menos a partir dos anos 70, quase sempre havia nos discos algumas músicas que eram feitas para teatro ou Cinema. Eu me lembro que antes da Ópera do Malandro ficar pronta, já tinha algumas músicas que inclui no disco anterior, porque estavam ali, deu vontade de gravar. As Atrizes fiz em cima daquela entrevista que tinha dado para o Roberto de Oliveira (diretor da série da Direc-TV, lançada em DVD), falando das minhas lembranças de garoto, na minha fascinação pelas atrizes francesas, as moças nuas que vi pela primeira vez quando estive em Paris. Depois de ter falado sobre tudo isso, achei que dava um bom tema e escrevi a música, que entrou no programa.
Depois, o mesmo Roberto pediu uma música para o programa dele que abordava cinema. Falei, "pô", mas já fiz. Achei que não podia fazer, porque já tinha feito, depois achei que podia fazer exatamente por isso, seria uma atualização desse tema, trazer a idéia daquela fascinação pelas atrizes para hoje. Dai fiz Ela Faz Cinema.
DUO COM ZEZÉ
Conheci Zezé di Camargo numa reunião com Lula e outros artistas. A idéia é dele, não minha. Ele que quis gravar Gesú bambino, que é unta versão minha, e me convidou para gravar. Simplesmente isso. Não fui gravar de caso pensado. Foi uni convite dele, que aceitei com prazer. Foi muito bonito a forma como foi feito. Mas, sinceramente, a esta altura do campeonato, não posso nem pretender atingir esse ou aquele público. Faço aquilo que tenho prazer de fazer, aquilo que eu sei fazer. O rap, sim, é uma forma de me atualizar, quer dizer, procuro utilizar os recursos modernos, tecnológicos, ou usar elementos pop na música, coisas que vão se incorporando. Isso é natural. Não quero fazer uma música de 40 anos atrás, é uma música feita agora, gravada com as condições de hoje e incorporando o que eu ouço. Não é que eu escute tanta música assim.
OUVIDO MUSICAL
Ouço aleatoriamente o que me chega, ouço às vezes o que quero ouvir e o que não quero também, mas são coisas que vão impregnando meus ouvidos. Por mais que eu não queira eu ouço aquilo, tanto é que costumo brincar que detesto música. Porque se eu estiver aqui conversando com você e tiver uma música tocando, não vou conseguir conversar direito porque vou ficar ouvindo aquela música, que vai ficando chata porque me atrapalha. Mas na verdade a música me suga. Então, o tempo todo estou ouvindo essa trilha sonora difusa da cidade, no rádio do botequim, no carro que o sujeito passa ouvindo alto, a música que eu ponho no meu CD, isto tudo vai se misturando com as informações antigas, porque isso você não abandona nunca. Tenho o ouvido já feito, a cabeça feita por uma quantidade grande de influências que ainda não esgotei.
*O repórter viajou a convite da gravadora
"Chico diz que vota em Lula de novo"
Decepcionado com o PT, Chico critica oposição que trata Lula como um 'vagabundo que deve voltar à senzala'
Fernando de Barros e Silva
"É duro jogar na defesa." Foi esse o comentário bem-humorado que Chico Buarque fez assim que terminou a primeira parte de uma entrevista feita em dois tempos, no domingo à noite e na segunda-feira à tarde, no seu apartamento no Leblon. O compositor se referia à defesa que acabara de fazer do governo Lula.
Mas Chico Buarque não sabe, não gosta e não joga na defesa. Como no futebol, que, perto de completar 62 anos, em junho próximo, continua praticando três vezes por semana, Chico partiu logo para o ataque. Disse que o escândalo do mensalão o deixou, sim, decepcionado com o governo e é desastroso para o PT. Mas disse com ênfase ainda maior que as críticas da oposição e de parte da mídia a Lula exorbitaram tanto no tom quanto no conteúdo e são, por isso, inaceitáveis.
Mais ainda, Chico vê o recrudescimento do preconceito de classe contra o presidente: "Como se fosse uma concessão, deixaram o Lula assumir. "Agora sai já daí, vagabundo!". É como se estivessem despachando um empregado a quem se permitiu esse luxo de ocupar a Casa Grande", diz Chico.
Há no PT a idéia de que ou você é petista ou é calhorda, assim como o PSDB acha que você ou é tucano ou é burro
"Carioca", que chega hoje às lojas, está distante oito anos do CD anterior, "As Cidades", de 1998. No meio do caminho, o também escritor lançou o romance "Budapeste" (2003). Depois da Copa, ele deve retornar aos palcos apresentando o novo trabalho pelo país.
Folha - No fim de 2004, em entrevista à Folha, você via uma onda de ódio aos pobres e de ódio a Lula no país. Entre aquele diagnóstico e a situação de hoje houve a crise do mensalão. Você está decepcionado? O que mudou no governo Lula?
Chico Buarque - É claro que esse escândalo abalou o governo, abalou quem votou no Lula, abalou sobretudo o PT. Para o partido o escândalo é desastroso. Espero que disso tudo possa surgir um partido mais correto, menos arrogante. No fundo, sempre existiu no PT a idéia de que você ou é petista ou é um calhorda. Um pouco como o PSDB acha que você ou é tucano ou é burro [risos].
Agora, a crítica que se faz ao PT erra a mão. Não só ao PT, mas principalmente ao Lula. Quando a oposição vem dizer que se trata do governo mais corrupto da história do Brasil, é preciso dizer "espera aí". Quando aquele senador tucano canastrão vai para a tribuna do Senado dizer que vai bater no Lula, dar porrada, quando chamam o Lula de vagabundo, de ignorante, aí estão errando muito a mão. Governo mais corrupto da história? Onde está o corruptômetro? É preciso investigar. Tem que punir, sim. Mas vamos entender melhor as coisas.
Folha - Como assim?
Chico - Pergunte a qualquer pequeno empresário como faz para levar adiante seu negócio. Ele é tentado o tempo todo a molhar a mão do fiscal para não se estrepar. O mesmo vale para o guarda de trânsito. E assim sucessivamente. A gente sabe que a corrupção no Brasil está em toda a parte. E vem agora esse pessoal do PFL, justamente eles, fazer cara de ofendido, de indignado. Não vão me comover. Eles fazem o papel da oposição, está certo. O PT também fez o "Fora FHC", uma besteira.
Mas o preconceito de classe contra o Lula continua existindo -e em graus até mais elevados. A maneira como ele é insultado eu nunca vi igual. Acaba inclusive sendo contraproducente. O sujeito mais humilde ouve e pensa: "Que história é essa de burro!? De ignorante!? De imbecil!?". Não me lembro de ninguém falar coisas assim antes, nem com o Collor. Vagabundo! Ladrão! Assassino! -até assassino eu já ouvi.
Fizeram o diabo para impedir que o Lula fosse presidente. Inventaram plebiscito, mudaram a duração do mandato, criaram a reeleição. Finalmente, como se fosse uma concessão, deixaram o Lula assumir. "Agora sai já daí, vagabundo!" É como se estivessem despachando um empregado a quem se permitiu esse luxo de ocupar a Casa Grande. "Agora volta pra senzala!" Eu não gostaria que fosse assim.
Folha - Você acredita que o Lula seja de fato visto como uma ameaça pelos mais ricos?
Chico - A economia, na verdade, não vai mudar se o presidente for um tucano. A coisa está tão atada que honestamente não vejo muita diferença entre um próximo governo Lula e um governo da oposição. Mas o país deu um passo importante elegendo o Lula. Considero deseducativo o discurso em voga: "Tão cedo esse caras não voltam, eles não sabem fazer, não são preparados, não são poliglotas". Acho tudo isso muito grave.
Folha - Você vai votar no Lula?
Chico - Hoje eu voto no Lula. Vou votar no Alckmin? Não vou. Acredito que, apesar de a economia estar atada como está, ainda há uma margem para investir no social que o Lula tem mais condições de atender. Vai ficar devendo, claro. Já está devendo. Precisa ser cobrado. Ele dizia isso: "Quero ser cobrado, vocês precisam me cobrar, não quero ficar lá cercado de puxa-sacos". Ouvi isso dele na última vez que o vi, antes de ele tomar posse, num encontro aqui no Rio.
Folha - Vários artistas andaram criticando o PT, o governo e Lula. O meio artístico, ao que parece, não vai mais embarcar no "Lula lá".
Chico - Pelo que eu ando lendo, a grande maioria dos artistas está contra o Lula. Tenho a missão de contrabalançar um pouco isso [risos]. Há também entre os artistas um pouco daquela competição: quem vai falar mais mal do presidente? Mas concordo em parte com o Caetano. Em parte.
Quando ele fala que as pessoas do atual governo se cercam da aura de esquerda para justificar seus atos e reivindicar para si uma posição superior à dos demais, tudo isso também vale para o governo anterior. Os tucanos costumam carregar essa aura de esquerda com muito zelo. Volta e meia os vemos dizendo que foram contra a ditadura, que são intelectuais de esquerda. Fernando Henrique foi eleito como candidato de centro-esquerda. Na época a vice entregue ao PFL parecia algo estranho. Depois se provou que não era.
As pessoas se servem do passado de esquerda como se fosse um título, um adorno. Na prática política essa identidade não funciona mais. Mas não funciona não só porque as pessoas viraram casaca. A história levou para isso. Levou o PSDB a se tornar o que é e obrigou o PT a abdicar de qualquer veleidade socialista ou revolucionária.
Folha - O que você acha do PSOL e dessa turma que deixou o PT fazendo críticas pela esquerda?
Chico - Percebo nesses grupos um rancor que é próprio dos ex: ex-petista, ex-comunista, ex-tudo. Não gosto disso, dessa gente que está muito próxima do fanatismo, que parece pertencer a uma tribo e que quando rompe sai cuspindo fogo. Eleitoralmente, se eles crescerem, vão crescer para cima do PT e eventualmente ajudar o adversário do Lula.
Folha - Como você vê a atuação da mídia no escândalo do mensalão? Tem gente que ainda diz que a mídia criou ou inventou essa crise.
Chico - Não acho que a mídia tenha inventado a crise. Mas a mídia ecoa muito mais o mensalão do que fazia com aquelas histórias do Fernando Henrique, a compra de votos, as privatizações. O Fernando Henrique sempre teve uma defesa sólida na mídia, colunistas chapa-branca dispostos a defendê-lo. O Lula não tem. Pelo contrário, é concurso de porrada para ver quem bate mais.
Folha - O rumo que tomou o Brasil e o mundo o faz se sentir derrotado? A sua geração perdeu?
Chico - É evidente que parte da minha geração que chegou ao poder não lutou a vida inteira para isso. Eu vou dizer: até mesmo pessoas que hoje são execradas publicamente, como o Zé Dirceu...
Não tenho maior simpatia pelo Zé Dirceu, não assinei manifesto em defesa dele, acho que ele errou, que ele tem culpa, sim, por tudo o que aconteceu, mas eu respeito uma pessoa que num determinado momento entregou a sua vida, jogou tudo o que tinha em nome de uma causa, do país.
Como o Zé Dirceu eu poderia citar outros nomes que chegaram ao poder, mas chegaram despidos daquele sonho em nome do qual eles lutaram a vida toda. Quem sabe para chegar ao poder tiveram justamente que se render ao pragmatismo. A pessoa que chega ao poder é um pouco um fantasma daquela que deu a vida por algo que não se realizou.
Folha - O público mais jovem tem interesse pelo que você e sua geração fazem hoje? O que mudou na recepção do seu trabalho?
Chico - Mudou muita coisa. Para as pessoas mais velhas, as músicas costumam ter história, lastro, estão ligadas à vida de cada um ou relacionadas a momentos do país. É comum ouvir "isso me lembra as Diretas-Já, isso me lembra Geisel, isso me lembra o Festival da Record". Para a garotada não há nada disso. Para eles sou músico de um passado só. Outro dia um jovem me disse: "Adoro aquela sua música". "Qual?", perguntei: "Com Açúcar, com Afeto" [risos].
A música tem 40 anos!.
Folha - É uma jovem senhora, mas ainda chama a atenção.
Chico - Isso na verdade é cíclico. Nos anos 80, em determinado momento que uma parte expressiva da mídia flertou com muito entusiasmo com uma certa idéia de internacionalização da cultura e de desbunde com o mercado, parecia que a música da gente já era. Nacional, só rock e olhe lá. Eu fui considerado completamente ultrapassado. Depois voltou. Daqui a pouco pode ser que não interesse mais. A gente continua fazendo -existe uma teimosia aí. E também, a essa altura, uma natural despreocupação com o sucesso imediato. Mesmo porque o sucesso imediato não acontece.
Folha - Você considera que o novo CD exige uma digestão mais lenta?
Chico - Você e outros comentaram que, a exemplo do anterior, o disco não é fácil de se gostar na primeira audição. Talvez não seja mesmo. Eu aposto um pouquinho no fato de que a pessoa vá ouvir várias vezes.
É difícil no meu caso ter uma música que seja um grande sucesso, que toque no rádio -eu não conto com isso. Não estou preocupado em fazer, como diziam os italianos, uma música "orecciabile", "orelhável". No final dos anos 60, quando morei em Roma, eles queriam que eu fizesse outra música como "A Banda", "orecciabile". E eu acabei não fazendo outras músicas "orelháveis", frustrando muitas expectativas. Hoje não existe nenhuma expectativa, nem minha nem de ninguém, de que eu precise ou vá compor uma música "orecciabile".
É natural que haja um tempo maior e um apuro maior, não apenas no processo de composição mas também no trabalho de estúdio, durante os arranjos, as gravações. É sem dúvida um trabalho mais sério, mais cuidado do que era há anos atrás. Não quero dizer que isso resulte numa música "impopular" de propósito, uma música sofisticada demais -não acho isso-, mas é uma música que não tem compromisso com o sucesso. Isso talvez a torne mais longeva.
Folha - Você transmite a sensação de que gostaria de ver seu trabalho melhor compreendido.
Chico - Sei que é difícil falar do disco. Até para mim é difícil. Em jornal, crítico de música geralmente é crítico de letra. É compreensível que seja assim -a letra vai impressa, o crítico destaca este ou aquele trecho. Funciona assim. Eu cada vez mais dou importância à música e tenho vontade de dizer: "Olha, só fiz essa letra porque essa música pedia. Isso não é poesia, é canção". Enfim, fico um pouquinho chateado com essas coisas, mas sei que é difícil.
Como é que vai imprimir uma partitura no jornal e explicar aos leitores?
Folha - Você volta a fazer shows?
Chico - Tenho vontade de fazer, sim. Depois da gravação, do convívio com os músicos no estúdio essa vontade aparece. É o passo seguinte, de certa forma natural. Vamos ver depois da Copa.
Folha - Você acaba de gravar 12 programas dirigidos por Roberto de Oliveira, que mesclam entrevistas inéditas e imagens de arquivo cobrindo praticamente toda a sua carreira. Chama a atenção a maneira desinibida com que você acabou passando a limpo a sua trajetória. O que o levou a fazer esse balanço?
Chico - O Roberto foi me engabelando [risos]. A idéia inicial eram dois ou três programas. Achei que a proposta de recuperar imagens de arquivo que de outra forma ficariam perdidas justificava o trabalho. Mas só fazia sentido se isso viesse acompanhado de algo mais.
Folha - Esses documentários dos anos 70 e 80 que os programas recuperam chamam atenção pelo despojamento, pelo ambiente caseiro, de ensaios descontraídos. Vivia-se em outro planeta, não?
Chico - Fiquei muito tempo fora da Globo durante a ditadura, primeiro porque eles me vetaram, depois, quando me chamaram, porque eu não queria. Esses programas eram um contraponto à programação e à estética da Globo. Mostravam os artistas gravando, bebendo, era uma coisa meio mal-acabada, meio alternativa. Alguns discos, não apenas os meus, também tinham esse clima.
Era uma bagunça. Ouvindo hoje a gente tem a sensação de que o cantor bebeu, o maestro fumou e o produtor cheirou, não necessariamente nessa ordem [risos].
Era muita loucura, o estúdio cheio de gente, garrafas pelo chão, uma festa. Hoje você entra num estúdio e é aquela coisa ascética. Parece um hospital. Não se come, não se bebe, não se fuma, não se faz nada ali dentro.
Naquela época havia um certo valor nessa transgressão, nesse desregramento. Você ia gravar daquele jeito, todos no estúdio estavam daquele jeito e provavelmente quem ia ouvir os discos também estava daquele jeito. Não deixava de ser uma maneira de enfrentar e suportar a repressão. Hoje não faria nenhum sentido gravar naquelas condições.
Folha - Era uma época mais simpática?
Chico - Não acho nada simpática. Não dá para abstrair a ditadura. Uma coisa é Maio de 68 na França. Outra, completamente distinta, o nosso dezembro de 68.
"Existe a intenção de fazer cantar a periferia da periferia da periferia"
Folha - Quando pensamos nas mazelas do Rio, a imagem que nos vem à cabeça é a dos morros, das favelas dominadas pelo tráfico, da miséria pendurada na paisagem da zona sul. Sua canção "Subúrbio" desloca nossa atenção para as costas das montanhas, onde o drama social parece condenado ao esquecimento e ao silêncio. É como se a própria miséria tivesse também a sua periferia...
Chico - Existe mesmo na canção a intenção de fazer cantar a periferia -ou antes a periferia da periferia da periferia. O Brasil sempre ocupou uma posição periférica no mundo e o Rio, cada vez mais, está numa situação periférica em relação às decisões nacionais, ao poder, a São Paulo. O subúrbio do Rio é a periferia dessa cidade meio marginalizada e está literalmente fora do mapa.
Fui procurar mapas do Rio quando estava fazendo a canção e não encontrei nenhum incluindo o subúrbio. As pessoas se lembram de Vigário Geral por causa da chacina, sabem que existe Olaria e Madureira por causa do futebol, mas não se vai muito além.
Folha - Quando você se refere ao subúrbio, não fala apenas da vida inviável, da violência, da condenação ao esquecimento, mas de um lugar que, para além disso, preserva tradições populares e formas de arte como o samba-de-roda, as cabrochas e o próprio choro. Isso convive com o rap, o hip hop, o funk, o rock. Enfim, há vários tempos históricos convivendo na canção.
Chico - Isso existe, esses tempos estão lá. Mesmo esse subúrbio idílico, que aparece muito nas novelas, isso também existe, mas misturado a outras formas de existência e expressão dessa realidade.
Folha - Você diz, entre sério e irônico, que "Carioca", o título do CD, é uma homenagem a São Paulo, pois era assim que lhe chamavam os amigos paulistanos quando você vivia na cidade. Já foi mais fácil ser carioca?
Chico - "Carioca" é o nome do disco, não sou eu me declarando -não se trata de uma afirmação pessoal. O disco acabou resultando carioca pela temática de várias canções e pela linguagem musical -essa, sim, talvez mais acentuadamente do que em outros discos meus, é carioca.
Folha - Você não teme com esse título reavivar ou ser vítima de velhos bairrismos?
Chico - Não pensei nisso e não tenho essa intenção, pelo contrário. Talvez também porque tenha morado muito em São Paulo e algum tempo fora do país eu sempre achei qualquer forma de bairrismo uma grande besteira. Enquanto é brincadeira, vá lá, tolera-se, mas quando começa a virar coisa séria não dá.
Concentração em trem de Paris para Nancy, França: "Na hora de produzir você sai do zero, não do pódio. Quando vou escrever, não sou nada"
O telefone tocou passava da meia-noite. Do outro lado da linha, a inconfundível voz de um dos maiores nomes da música popular brasileira exclamou: "Descobri! É 'gestatório'!". Era a palavra que faltara em meio à entrevista realizada na véspera para se referir à liteira que serve para transportar o papa em ocasiões solenes: "Cadeira gestatória". Chico Buarque é um escritor e compositor obcecado pelas palavras. Uma obsessão que o persegue durante seu processo criativo. Avesso a religiões e outras crenças, suas bíblias são os volumes de dicionários; as orações, suas canções e romances. "Gestatório" tem, como primeira definição, "relativo a gestação"; e "gestar", no sentido figurado, é "trazer e levar palavras". O verbete tem tudo a ver com o inquieto personagem, que confessa sentir uma "sensação desagradável" quando está "parado", seja na música ou na literatura. Três anos após o lançamento do bestseller Budapeste e oito anos passados desde o lançamento de seu último CD, Cidades (1998) o estudante de arquitetura volta ao "urbanismo cultural" e põe na praça um disco chamado Carioca.
Muito próximo de chegar aos 62 anos (no próximo 19 de junho), Chico também tem dificuldade em ficar fisicamente parado. Além de jogar peladas três vezes por semana no seu campo no Rio, defendendo as cores de seu time, o Polytheama, ele é um veterano caminhante. Em suas andanças pelo calçadão do Leblon e de Ipanema ou como um aplicado flâneur nas ruas de Paris, assobia novas melodias, cria versos e imagina o desenrolar das histórias de seus romances. Uma das dificuldades que enfrenta é quando o interrompem no meio do caminho: "Não posso dizer que estou trabalhando, porque ninguém vai acreditar. Então digo que estou me exercitando, que meu personal trainer está vindo atrás e não me deixa parar", diz, rindo.
Na tarde de uma quarta-feira da primavera européia, no entanto, Chico Buarque permaneceu sentado numa cadeira da sala de seu apartamento em Paris por exatas duas horas e meia (com pausas para buscar água na cozinha ou ir ao banheiro) para falar ao gravador da Trip. A conversa, entre momentos mais graves e outros bem-humorados, discorreu sobre criação, música, literatura, política, futebol, mídia, arquitetura, psicanálise, sexo, drogas e hip hop. A seguir, os melhores momentos da entrevista.
Nesta edição a Trip debate a importância que uma boa relação com o lugar em que moramos e com a nossa cidade tem para a felicidade de cada um. Você estudou arquitetura na USP. Você acha que teria sido feliz como arquiteto? Eu sei que não seria um bom arquiteto. Às vezes fazia um trabalho de estagiário em escritório de arquitetura, e eu borrava tudo com nanquim, ficava uma porcaria. Eu não tinha gosto pela coisa técnica da arquitetura. Na verdade, não tinha talento para isso. Fui para a arquitetura por exclusão, não sabia para onde ir. Pensava "vou ser escritor". Mas não adianta estudar letras, tinha de ter urna profissão. Nenhum escritor vivia de ser escritor. Meu pai era professor, os outros escritores tinham outra profissão. A exceção clássica era o Jorge Amado. Eu não ia ser advogado, nem médico, nem engenheiro, nem administrador, e fui para arquitetura, que tinha alguma coisa a ver com arte. E naquela época tinha aquela empolgação, arquitetura era concorrida, muita gente moça queria ser arquiteta por causa de Brasília, de Oscar Niemeyer. E a escola era muito boa, os professores eram o Paulo Mendes da Rocha, o [Vilanova] Artigas e o meio universitário era estimulante. Foram bons anos ali, mas não por causa da arquitetura. Eu estudava em colégio de padres, e foi a primeira vez em que estudei em colégio público. Era outro mundo para mim.
Você largou a faculdade depois de 1964, quando o clima ficou chato... O clima ficou muito chato mesmo. Não falo que larguei a faculdade por causa do golpe de 64, porque seria mentira. Cursei um ano de arquitetura em 1963. No segundo ano claro que a faculdade ficou chata, fecharam o grêmio, tudo ficou mais chato. Mas eu também já estava começando a fazer música. Quando me chamaram para fazer Morte e Vida Severina eu ainda era estudante da FAU. Em 1965, fiz um pouquinho e larguei pela música.
Teu último romance tem o nome de uma cidade e teu CD anterior se chama Cidades. De qual cidade você mais gosta e por quê? Eu gosto do Rio de Janeiro, cidade onde nasci e moro, mesmo, há 40 anos. Fui com dois anos para São Paulo, estive em Roma, mas com 21 anos voltei para o Rio para fazer um show e fiquei. É a cidade onde sei morar melhor. Cidade não é só gostar, tem de saber morar.
Você já disse que durante muito tempo resistiu à idéia de ser carioca. Eu sempre me senti carioca, o que acho meio chato é a coisa do bairrismo, de "ah, sou carioca". Não me sinto um carioca da gema, do chopp em bar, até já fiz isso muito. Mas essa coisa do cariocão não tem muito a ver comigo, da mesma forma que acho paulistice chata, baianice chata, mineirice chata.
E São Paulo? É uma cidade onde não gostaria de morar. Mesmo porque a cidade hoje tem muito pouco a ver com a São Paulo da minha infância. Eu era criança e ia para o Rio todas as férias. E, além de ter a família, os primos, a praia, quando chegava no Rio tinha sempre a sensação de que estava chegando numa cidade grande. Quando chegava, geralmente um tio ia me buscar e eu vinha pela beira-mar vendo aqueles prédios todos, aqueles anúncios luminosos. Era uma coisa assim de estar chegando à capital, à metrópole. Quando voltava para São Paulo estava voltando para uma cidade de província, uma cidade quase de interior. A rua onde eu morava - que hoje é uma rua muito chique, cheia de lojas de grifes, a Taiarana, que virou a Vittorio Fasano [onde fica o hotel FasanoJ - era uma rua de terra, a gente jogava futebol ali. Hoje vou para São Paulo e não conheço mais a cidade. Não sei andar em São Paulo. Se me derem um carro, não vou saber sair dirigindo.
É uma cidade que, hoje, você não aprecia? Eu tenho laços afetivos com São Paulo, amigos lá, mas a cidade é um desastre. Era uma cidade amável nos anos 50, se podia gostar dela. Hoje em dia acho impossível alguém gostar. Estou falando da cidade, da arquitetura, do urbanismo. Se vai falar da vida noturna, cultural, dos restaurantes, hotéis, médicos, aí é muito boa. Mas a cidade é detestável. É um desastre, é a cidade que não deu certo. Lá no Rio, às vezes dá no noticiário "temporal em São Paulo", e aí vêm aquelas imagens da marginal. Não se pode ...viver assim, engarrafado.
Você costumava sonhar com cidades imaginárias. Ainda sonha? Eu penso em cidades para dormir. Fico imaginando essas coisas, porque para pegar no sono tem de ficar inventando histórias. O único passo para você entrar no sono que eu conheço, a não ser que seja um sonífero, é a imaginação. Você cria um mundo e vai para lá. Tem uma hora que você percebe que está pegando no sono, e esse mundo começa a ficar meio solto, frouxo. Às vezes a gente já está dormindo, meio que acorda e fala "oba, já estou entrando no sono". E um desses pensamentos bons ou úteis, soporíferos, é a invenção de cidades. Aí chego na cidade, tem o aeroporto, a avenida. E desenhava cidades, algo que gostava muito de fazer, mas não tenho tido muito tempo. Qualquer hora posso voltar à ativa.
Você lembra e analisa seus sonhos? Tenho uns sonhos de música que são engraçados. Descobri que não sou compositor nos meus sonhos. Eu componho músicas dos outros, mas ainda não parei para analisar por quê. Mas aconteceu uma série de vezes. Compus a música do meu bisavô, uma música inteira que existe [e cantarola "maré, maré]. Compus uma música do Sérgio Ricardo, era o "Samba da Biblioteca". E uma vez compus uma música do Zeca Pagodinho. E o mecanismo do sonho é formidável. Eu estava no palco, acho que no Canecão, e por algum motivo ia cantar uma música do Zeca Pagodinho. E eu dizia "droga, não estudei essa música, não sei nada, a música, a letra". E aí o conjunto começou a tocar e tinha um grupo de apoio, backing vocal, atrás de mim, que começou a cantar. E eu peguei a manha de ir ouvindo eles e cantando junto. Era uma coisa chamada "Samba de Roda". E aquele pânico, "como vou cantar essa música do Zeca Pagodinho, ninguém me ensinou, o que estou fazendo aqui no palco?". E tinha lá atrás o pessoal cantando "vai o samba de roda..." [canta]. Eu ia um pouquinho atrasado. E a platéia do sonho aplaudiu e tudo, não percebeu que eu estava enrolando. É engraçado isso. Eu podia compor uma música minha mesmo, acordar e, pá, o serviço já estava pronto [risos]. Seria mais fácil a vida, você dormir bastante, tendo sonhos musicais, acordava e ia direto para o estúdio gravar.
E você tem pesadelos? Tenho [silêncio]. Tem uns sonhos assim que voltam. Tinha um que era muito bom, que faz tempo que não tenho, que era de voar. Faz alguns anos eu sonhei de novo que eu voava, e era tão bom, acordei tão feliz, "eu ainda sei voar". Voava, mas não como o Super-Homem ou o Capitão Marvel. Meu ídolo de infância era o Marvel. Minha primeira mulher, antes de as francesas mostrarem os peitos, era a Mary Marvel com uma sainha curta, que voava assim. Mas eu não voava como eles, não. No sonho era como se eu pulasse, como se não tivesse a lei da gravidade. Era como se a minha gravidade fosse menor, então eu podia abrir a janela e dar um pulo até aquele telhado ali, e se eu pousasse no chão e pegasse um impulso voava cada vez mais. Então não é voar, é flutuar. E bem alto, de ir até as nuvens e voltar. Era delicioso esse sonho. Eu tinha direto.
Como foi sua relação com a análise? Não me dei bem com a psicanálise. Fiz três vezes e larguei as três. Uma acho que era junguiana, outra freudiana, nem lembro mais. Não gostei, não me dei bem. Antidepressivo nunca tomei. Remédio é só para dormir, em último caso. Evito me viciar nessas coisas. Tomo às vezes, quando preciso, um Dormonid. Mas se puder não tomo nenhum e bebo vinho. Com um vinho e mais uns placebos, umas besteirinhas, e mais umas idéias na cabeça eu consigo dormir. Mas é difícil. Eu prefiro evitar ficar dependente. Mas a seco não dá para dormir, simplesmente não dá, você deita e não consegue. Não sei como se faz para dormir.
Você já teve depressão? Depressão, depressão, não. Talvez eu não seja a pessoa mais feliz do mundo, sei o que é angústia, mas não sou uma pessoa deprimida e nem dada a depressões. Angústia criativa eu sei o que é. Nas três vezes em que entrei para a psicanálise foi um pouco por isso, assombrado por um período de infertilidade criativa. Não conseguia fazer nada, e aquilo foi me angustiando, e aí entrava na análise. Por algum motivo, alguma hora eu começava a fazer música, mas não acredito que isso se devia à análise. Quando eu começava a fazer uma música ou algo assim eu me dava alta. Hoje lido melhor com isso. A experiência ajuda, você se diz "paciência, isso é normal". Você passa por períodos mais brilhantes e outros mais opacos.
Durante algum momento de sua vida já passou pela sua cabeça a idéia de se matar? Não, nunca. Gosto muito da vida, não quero morrer, não. Com tudo o que há, eu quero viver, viver bastante. E viver bem. No futebol eu já anunciei que eu iria pendurar as chuteiras em 2022. Anunciei no campo. Até vai ter uma festa, o pessoal quer fazer um churrasco. Mas isso já faz alguns anos, e agora estou achando que 2022 é cedo, vou estar com 78 anos. Estou com vontade de adiar um pouco [risosl. Você podendo fazer algumas coisas boas até mais adiante dá para viver.
Para você, o ato de criar é sempre algo misterioso, começa de um jeito e acaba de outro completamente inusitado. Foi assim também na criação deste novo disco? É assim desde que comecei a alternar a música com a literatura. Quando volto a compor não sei mais como se faz para escrever uma música. O violão fica realmente encostado durante anos. A transição é difícil. Estava ainda mergulhado naquele mundo de literatura, queria sair dele, mas o violão custou a me atender. Quando você pega o violão de novo é como se não tivesse domínio do instrumento. É um pouco como você recomeçar um caso amoroso. É uma mulher que você não conhece, não sabe como lidar, no começo você faz muita cerimônia. E o violão ficava ali, arredio. Mas, quando a música começa a aparecer, ela é mesmo como uma namorada nova. Eu já estava com vontade de fazer música, com tesão musical mesmo. Então as músicas começaram a aparecer, e eram melodias e caminhos harmônicos novos para mim. Mas a letra demorou a aparecer, porque a cabeça ainda estava um pouquinho impregnada de literatura. E letra de canção não tem nada ou muito pouco a ver com literatura, é outro tipo de linguagem.
A cada disco você diz que essa inspiração misteriosa é confinada a um espaço mais estreito, menos fácil e espontâneo, como era há décadas. Isso é natural. Você já seguiu muitos caminhos e quer fazer o que não fez ainda. Você começa a desconfiar quando tudo parece fácil, tem de abrir o olho. Não é uma esterilidade, mas uma vontade de procurar um caminho novo, original e, portanto,mais difícil. Você sempre pode descobrir coisas novas. Depois há um trabalho de depuramento que você começa a curtir mesmo. E é natural da, vamos dizer, terceira idade [risos] você se deter mais tempo na música, achar que sempre pode melhorar um pouquinho. Então cada canção leva um bocado de tempo para nascer, outro tanto para terminar e outro para burilar e chegar a forma final.
Você já falou sobre obsessões na hora de compor, imagens que te perseguem na hora da criação de uma música. Você teve obsessões neste disco? É um trabalho obsessivo. E cada vez mais.Para você começar a escrever uma canção não precisa de um motivo forte. O motivo às vezes não é forte em si, mas acaba se tornando forte pela obsessão."O que eu faço com isso? Tenho de fazer uma música." Mas você não sabe por que aquilo apareceu na tua cabeça. E você não vai sossegar enquanto não transformar em canção, em verso Eu lembro que a última música que fiz fiquei dois meses tocando, não vinha a letra, e era meio diferente, uma música meio espanhola. E acabou que não tem nada de espanhola.. E ficava fazendo aquele desenho harmônico mil vezes por dia. Mudava uma coisinha no dia seguinte e regravava. É sempre uma coisa obsessiva. Trabalho obsessivamente.
Qual é a música? A música se chama "Subúrbio".
E a música "Outros Sonhos". Pois é, para você ver, tem coisas também que vêm lá de trás, e emergem. "Outros Sonhos" vem de um mote que meu pai cantava. A música acho que é chilena. Depois fui descobrir que os versos foram musicados por um autor chileno, mas também por um autor argentino. Tem um tango do Carlos Cardel que diz a mesma coisa. Enfim, estes versos são anônimos: "Soñe que el fuego hebala, soñe que la nieve ardia, y por soñar lo imposible, some que tu me querias". Meu pai cantava muito isso [repete os versos contando] Cantava muito, só quando eu era garoto. Mas, de repente, volta. Volta e começa a ficar te perseguindo, e fica um "tenho de fazer esta música".
Você ainda teme que a música possa te abandonar um dia? Já sublimei um pouco isso com essa coisa da literatura. Mas também não sei até quando vou levar isso. Parece um jogo perigoso porque vai acontecer. Quando este período de música passar, vou fazer shows e, depois, isso vai morrendo de morte natural. Aí imagino que vá querer escrever um novo livro e, evidentemente, não vou saber por onde. Não tenho idéia nenhuma, não penso isso. Não escrevo nada, tenho muita dificuldade para escrever. Escrever uma carta para mim é difícil, fico horas. Engraçado que antes de ouvir "Chega de Saudade", quando jovem, pensava que seria escritor.
Você vai fazer um aquecimento para a turnê num show em Berlim, como parte dos eventos culturais da Copa do Mundo, e vai aproveitar para assistir a dois jogos da seleção brasileira. Qual você acha que deve ser a composição do "quadrado mágico" do técnico Parreira? Eu não entendo nada de futebol, nada de tática. Eu quero ver os melhores jogadores ali, todos juntos. Mas tem o Ronaldo e o Ronaldinho. Kaká está muito bem. Adriano não está muito bem, mas pode entrar. O Robinho acho ótimo. Acho que o Juninho Pernambucano também pode jogar. O Edmílson devia jogar também, porque avança. Eu gosto de jogadores que vão para frente. A defesa fica cheia de buracos, mas aí é problema do técnico. Eu não sei, não entendo mesmo, gosto de jogar e de ver. De ver jogadas criativas, ver gol, os passes, os dribles. Gosto menos de ver defesas brilhantes, beques que atrapalham as jogadas do ataque. Para mim eles atrapalham o espetáculo.
Por falar em espetáculo, a turnê de Carioca vai começar logo mais. Ainda é angustiante para você subir no palco? Aí vem essa coisa que todo mundo fala "ah, porque é tímido, mas neste dia ele não tava tímido". Todo dia eu não estou tímido, mas eu sou tímido porque assim está escrito. "O tímido, o supertímido Chico Buarque neste dia se soltou." [Risos] Mas" ele" está se soltando todo dia. Eu não sou tímido na minha vida normal. Mas eu não acho que seja normal você subir no palco e cantar. Ali, realmente, travo um pouco. Não sei como vai ser o próximo. Espero não sofrer. Gosto dos ensaios, gosto de viajar com os músicos, a gente se diverte muito. Mas entrar no palco, uma estréia, quando penso agora fico um pouquinho apreensivo. Às vezes a boca fica seca. Sei lá, acontece mesmo de esquecer tudo. Mas ao longo da temporada vai melhorando.
O fato de ser um dos compositores mais importantes da música brasileira já influenciou na sua maneira de produzir? A responsabilidade atrapalha? Não, porque na hora de produzir você sai do zero. Não sai do trampolim, do pódio. Você não está de salto alto. Você tem de estar descalço. As pessoas imaginam que o artista pensa nele o tempo todo. Que fica se olhando no espelho, se achando o máximo. E você age como uma pessoa normal, porque você se sente uma pessoa normal. E aí as pessoas dizem "tá lá o artista fingindo que é uma pessoa normal". Quando vou escrever, não sou nada.
Você acha que o tipo de música que faz, a "canção", está com os dias contados? É um assunto interessante. Um jornalista na Itália me perguntou uma vez se a música popular não seria um fenômeno restrito ao século 2º, assim como a ópera tinha sido restrita ao século precedente. Há vários indícios. Também não estou querendo jogar contra mim Estou fazendo músicas novas e talvez sejam músicas tardias, não sei. Ou talvez eu já seja um sujeito tardio, do século passado. Mas é interessante, porque algumas coisas levam a acreditar nisso. É o caso da percussão em detrimento da harmonia e da melodia, do rap que é um pouco a negação da canção como a gente conhece. Também esta proliferação de revivals, de coletâneas, de besto f, esse anseio do público pelo velho, pelos standards. Seriam sinais de fim de linha da canção como modo de expressão? Talvez sejam, tomara que não. Mas aí já interpretaram mal, de uma forma um pouco malévola, como se eu estivesse dizendo que nós fomos das últimas gerações a compor, e agora vocês vão pegar esta sopa, e não vai ter música para vocês, não [risos]. Pode ser que exista uma maneira. O rap já é um pouco isso. Também, não sei se o rap vai continuar imperando, e amanhã podem dizer que o rap foi uma moda do começo dos anos 2000.
Você escuta rap? Eu até ouço às vezes. E até ouvi, por dever de ofício. quando pensei no rap para "Ode aos Ratos" [do musical Cambaio. em parceria com Edu Lobo, e gravada no novo disco]. Depois desisti de fazer Um rap, pensei "não, essa coisa já está um pouco vulgarizada, já está todo mundo fazendo, vejo até em anúncio de TV, não vou fazer rap, não". Mas aí fiz essa embolada, que é um pouco um rap, um pouco falada. Uma coisa já antiga, nordestina, mas que tem a ver com a divisão do rap.
E a música eletrônica, o que acha dela? Já dançou ao som de um DJ? Não sou muito bom de dançar. Aliás, uma vez eu dancei, mas foi num lugar em que não era preciso dançar muito. Não sei o que era. A pessoa que estava comigo reclamou que não era tecno, que era house, ou que era house e não era tecno. Eu não entendia nada daquilo. Isso foi aqui em Paris. Mas as luzes piscavam e você não precisava dançar. Meio que mexia assim (faz o gesto), e você olhando de fora via algo como robôs dançando. Se é assim, então tá bom, você não precisa ser um Fred Astaire para brilhar na pista. Aí entrei, dei meus passos e tudo bem.
Você tem iPod? Não, nem sei direito o que é isso. Eu ouço falar, mas não sou bom nisso. Não sei lidar muito bem com informática. Só sei o básico. Até hoje não consegui entender como se faz para gravar um CD. Tenho tudo lá em casa, mas aí quando fui fazer as músicas e tive de mandar para o Luiz Cláudio Ramos, que é o arranjador, tentei e não consegui. E aí recorri ao velho gravador cassete. Foi à moda antiga.
O telefone celular você usa pouco e de forma utilitária, mas a Internet se tornou parte de sua vida. Aqui em Paris e quando viaja eu sei que você freqüenta cibercafés. Como é isso? Freqüento para saber notícias do Brasil, e sempre tem essa coisa de correspondência. Eu comecei a ter só por necessidade imperiosa, para troca de e-mails com os tradutores, quando começaram as traduções de Budapeste. Quando fiz Budapeste usava o computador como uma máquina de escrever, com o Word. Não tinha Internet. E aí passei a ter para isso, para o contato imediato. Antigamente, isso era feito por telefone, por fax, era complicado, e o e-mail facilita muito a vida. Mas também você perde um pouco de tempo ali. Antes, ficava jogando paciência, que era uma espécie de aquecimento dos dedos para começar a escrever. Durante todo o tempo em que fiz meu livro tinha esse ritual. E agora, em vez da paciência, tem o Google, sei lá, para fazer uma pesquisa, ver uma sacanagem.
E o que você acha do sampler no trabalho de criação musical? Você está achando que vai me pegar, que eu não sei o que é sampler, né?(Risos.) Mas eu sampleei uma vez, também não sou tão bobo assim, não. Foi numa música chamada "Tempo e Artista" [1993], em que eu queria um serrote. Tentaram localizar um cara que tocava serrote em São Paulo, mas parece que já tinha morrido. E a referência que tenho do serrote é a introdução de "Ne me quitte pás", do Jacaques Brel. E aí o que nós fizemos? Sampleamos a introdução de "Né me quitte pás". Nessa você não me pegou.
Ao colocar o ponto final em Budapeste, aqui em Paris você disse:"E agora? Tenho de arranjar outra coisa para fazer". Você está se sentindo assim depois de ter finalizado o Carioca ou ainda não deu tempo? Já está começando perigosamente. Porque dá um brancão, né? Não posso ficar parado, senão dá uma sensação desagradável. Eu me lembro que estava aqui em Paris quando cheguei, na minha cabeça, ao final do livro. Ele estava num ritmo muito lento, e sabia que vindo para Paris em um mês eu adiantaria. Porque num mês aqui eu escrevo quase o dobro do que escreveria no Rio. Você fica mais isolado. E lembro o dia em que estava andando à beira do Sena, e tem aquele pessoal que fica dançando ali no verão. Naquele ano, pelo menos, era mágico. São vários anfiteatros e cada um tem um gênero de música. O pessoal do hip hop aqui, e lá adiante tem o pessoal dançando música brasileira. E tem um meio caminho em que você está ouvindo uma coisa e vendo outra. É muito louco isso, estar ouvindo uma música percussiva, que ficou ali para trás, e vendo o pessoal dançando tango ali adiante. E eu ia passeando por ali com a cabeça noutro lugar, eu estava no livro. Era uma forma de distrair um pouco a vista, mas a cabeça estava trabalhando. E foi em um dia assim que descobri que tinha chegado ao final do livro. Aí eu parei e fiquei olhando o pessoal dançando um tango do Piazzolla E aí me deu uma alegria e uma tristeza misturadas. Lembro que fiquei com os olhos marejados, emocionado com aquela dança, e ao mesmo tempo a cabeça dizendo "pô, terminou meu brinquedo já sei que meu livro tem um fim". E agora também, o disco estava pronto e vim para cá, e saí por aí ouvindo o disco, andando com esse fone. Não é um iPod e essas coisas, mas um velho walkman. Esse é um momento bom de curtir, porque é uma despedida também. Ontem já acordei um pouquinho de ressaca, "já não vai ser mais tão bom como antes" {risos}. Depois você entrega o disco e ele cai na vida, as pessoas vão ouvir, vão gostar ou não, e vão gostar disto ou daquilo, e você já não está mais vivendo aquilo.
Já passou pela sua cabeça trabalhar com outras pessoas para se aventurar em outros caminhos musicais? Eu tenho impressão de que não faço tudo sempre igual {risos}. São 12 músicas, 12 canções bem diferentes. Com tratamento orquestral diferente para cada uma. Cada uma é uma história à parte, com exceção de duas músicas que são bem coladas, porque a temática é a mesma. Uma outra é continuação da outra. "As Atrizes" e "Ela Faz Cinema. Mas assim mesmo são bem diferentes. Uma é um choro-canção, outra é uma bossa nova.
Elas foram escritas no mesmo elã? Não. Isso foi engraçado. Eu compus "As Atrizes porque estava gravando aquela série de DVDs, vim gravar aqui em Paris, e surgiu o assunto de Paris na minha vida. E me lembrei daquele momento em que vim a Paris pela primeira vez. Era pequeno, tinha uns oito anos de idade, morava em Roma com toda a minha família. O maior impacto para mim naquela época foi ver mulheres com peitos de fora. Não digo mulheres inteiramente nuas, mas tinha fotos de mulheres de peitos de fora nas bancas de revista. Nós passeamos à noite pelo Moulin Rouge, perto de Pigalle, e naquelas casas noturnas e cabarés havia fotos de mulheres quase totalmente nuas. Eu nunca tinha visto nada parecido, nunca tinha visto peito na minha vida. Na verdade, só os das minhas irmãs, mas isso não contava, elas não tinham peito, eram mais novas do que eu. Então aquele menino ficou deslumbrado com aquela coisa. Mais tarde, vieram aqueles filmes franceses, que eram proibidos para 18 anos, mas que às vezes a gente, com jeitinho, conseguia, com 15, 16 anos, entrar no cinema e ver. Ver Martine Carol e aquelas atrizes francesas, e mais tarde a Brigitte Bardot, nuas. E só existia isso em filme francês. Então escrevi essa música em cima dessas reminiscências de infância e adolescência, das atrizes nuas que me deixavam de boca aberta. Depois, o Roberto de Oliveira [amigo de muitos anos e diretor da série de DVDs], que foi me enrolando e muito delicadamente me levando a fazer mais e mais programas, fez um sobre cinema, e disse "você não quer fazer uma música nova sobre cinema?". Musicalmente é outra coisa, mas é uma continuação, é o marmanjo já, que termina a outra música dizendo "com tantos filmes na minha mente, é natural que toda atriz, presentemente, represente muito pra mim". Esse é o mote, o estopim para a música seguinte, tanto é que quando termina a música há quase uma sugestão de ligação musical com a faixa seguinte, que é "Ela Faz Cinema", que é então já o adulto, que é vítima de uma mulher que só faz cinema.
Você comentava sobre essas mulheres peladas da sua infância. Sempre estudou em colégio de padre e teve essa educação católica bem rigorosa, primeira comunhão, crisma e... É. Era no tempo em que a missa era em latim, e eu fui coroinha no colégio. Tinha a sacristia, e a gente roubava hóstia - não consagrada, que é pecado mortal - e às vezes um gole de vinho. Além de estudar latim, eu sabia ajudar na missa, sabia tudo.
Hoje você é religioso, tem alguma crença? Não, nada. Sete anos em colégio de padre foi bom para não gostar muito de Igreja. Eu não gosto de nada, sempre achei meio esquisito. As minhas lembranças de Igreja hoje são sempre muito sombrias. Um dia, em Roma, minha mãe conseguiu uma audiência - não particular, claro, mas uma audiência restrita, com umas 100 pessoas - para ver o papa. Quando apareceu o papa, o Pio 12, fiquei com um medo dele, daquele velho. Ficamos numa sala, e aquele cheiro de incenso que me enjoa, e esperando, esperando, e em pé. E a minha mãe, que é católica - meu pai, é claro, não estava ali -, levou os sete filhos para ver o papa de perto. Depois de sei lá quanto tempo, apareceu o papa numa... não sei como se chama esta cadeira, tem um nome em latim, depois eu vejo. E ele passando carregado pelos soldados da Guarda Suíça. Ele com aquela batina branca, sendo carregado, cheio de almofadas brancas, e aí minha irmã mais nova falou alto "a papa é folgada, não é?" [risos]. Foi a única coisa que me relaxou. Enfim, eu me afastei completamente da Igreja. Já perdi a fé lá na escola de padre.
Você diz, mesmo assim, ter tido uma experiência positiva no trabalho com a Organização de Auxílio Fraterno. Isso era bacana. Eu tenho conhecidos, amigos, que são padres da igreja progressista, mas sempre achei meio esquisito. Não acredito muito que eles acreditem naquela coisa da Igreja, nos dogmas. Mas esse padre André, canadense. levava a gente para dar cobertor e sopa para mendigos ali na Estação da Luz. Lembro de chegar lá e os mendigos ficarem assustados. A gente ia chegando como se fosse se aproximando de índios. Esse padre era legal. Lembro que quando chegou lá só falava francês, e a gente achava legal porque ele jogava vôlei junto com os alunos. Eu comecei a ensinar português para ele. Tinha a manchete no vôlei, e eu dizia "ô, a punheta, padre, bonita a punheta" [risos]. Eu ensinei português para o padre e ele me ensinou a ver os mendigos na Estação da Luz. Mas hoje não tenho religião nenhuma, não gosto de religião.
No filme Vinicius você fala sobre um tempo em que as casas eram abertas para todos e existia uma passionalidade nas relações. Você sente saudades dessa boemia? Não sinto falta, porque não sinto nostalgias. Não só havia casas mais abertas, como havia os bares. Na verdade, havia mais bares do que casas. A gente se encontrava nos bares, ficava no Antonio's, depois no Luna Bar. Vinicius, Tom, a gente ficava horas. Não sei como é que eu podia fazer outra coisa. Lembro de uma vez, a gente bateu o recorde. Chegamos no Antonio's ao meio-dia e pouco e saímos às 3h da manhã. Acabou, passou esse tempo. Eu sinto falta das pessoas. Mas não dá para recuperar isso.
Você acha que falta romantismo nos relacionamentos? O beijo e o sexo ficaram fáceis demais, perderam o valor da conquista, como você disse uma vez? Isso já existia. No pós-pílula, anos 60 e tantos, já era assim. Eu não peguei isso na minha formação sexual, e é uma pena, gostaria muito de estar me formando sexualmente agora [risos]. Naquela época, as primeiras experiências sexuais já eram mais tardias do que hoje porque você tinha menos informação. Hoje, um garoto de dez anos está sabendo o um garoto de 15 daquela época não sabia. E a formação sexual se dava com prostitutas ou com empregadas domésticas, que faziam um pouco prostituição também. No meu caso foi isso, minha primeira mulher era uma empregada que dava... ela não dava, cobrava, baratinho até. Era a empregada de um amigo da turma que tinha essas liberalidades. A gente sabia, e tinha aquela fila [risos]. E depois, as prostitutas e tal. Namoro não chegava às vias de fato. Eu tive várias namoradas com quem rolava uma forma qualquer de sexo, mas incompleto. Já depois, nos anos 60, eu já com 20 anos começou uma certa liberação. Então, que bom que a questão é mais aberta, menos traumática, menos hipócrita. O que me preocupa é que às vezes parece que há um certo enfado, que não existe mais a vibração que existia pela própria facilidade com que as coisas são obtidas. Pode ser. Mas pode ser impressão minha.
O que há de melhor e pior entre ser casado e solteiro? No meu caso, vivi casado 30 anos e estou há dez anos só. Não me sinto só, não sinto solidão. Mas também não sei se é um caso especial. Porque eu trabalho sozinho, e gosto de trabalhar. Então posso de estar acompanhado, mas certamente gosto de estar sozinho também. Há momentos em que eu quero estar sozinho.
Você já tomou Viagra? Eu sou contra essa coisa de dependência, tenho medo disso. Não sou contra Viagra, não, porque provavelmente eu vá ter de recorrer a ele. O que eu acho um pouco preocupante é esta idéia de ter um Viagra sempre à mão para facilitar as coisas. E tem gente nova que toma por medo de fracassar. Isso pode se tornar um problema, você vai precisar de Viagra para ficar de pau duro sempre. Pode até fazer uma experiência, mas criar mais essa dependência... queria não. Não sei, estou falando isso hoje, amanhã pode ser diferente.
Você já brochou? Claro que já. Todo mundo já brochou, menos o Ziraldo [risos]. Ele diz que nunca brochou. Isso faz tempo. As pessoas falam muitas coisas. Tem outro que falou que teve mil mulheres. Eu digo: "Bom, mas, então, não foi bom nunca, para comer mil". O cara não é velho, tem vinte e poucos anos, e comeu mil. Mesmo que tenha comido uma por dia... Não acho uma vantagem comer mil mulheres.
Você já foi cantado por homens? Já fui cantado por homens. Não foi adiante [risos].Eu achei graça até. Era garoto, recebi uma proposta mirabolante. Achei engraçado. Quando eu era garoto talvez achassem que eu pudesse ser veado, eu era um menino atraente. Mas nunca fui veado, não. Pensando bem, já faz muito tempo que não tem um homem que me faz uma cantada.
Como foi sua experiência com as drogas? Experimentou um pouco de tudo? Não experimentei tudo. Nunca fui na heroína, nunca me piquei. Foi o básico: fumei, cheirei, tomei ácido. E larguei isso tudo. Na verdade nunca fui um bom maconheiro. Eventualmente posso até fumar. Por exemplo, já me foi recomendado para dormir, eu tenho esse problema de insônia. Mas não dá certo comigo. Não me dá leseira, nem larica. Me deixa excitado. Aí eu preferi a cocaína, mas parei também, parei há muito tempo. Maconha ainda posso eventualmente fumar aqui e ali, não vejo muito mal. Mas não sou adepto.
Você é a favor da legalização de alguma droga? Sou. E cada vez mais. No Brasil, nos países pobres principalmente, a quantidade de vítimas que o tráfico de drogas faz é muito maior que a de vítimas das próprias drogas. No Brasil, no Rio de Janeiro, moleques de nove, dez anos já estão cheirando cocaína, porque manejam, vendem cocaína. Envolve às vezes uma quantidade muito grande de crianças, adolescentes, acaba com a vida dessa gente, morre gente pra burro. Fora a violência toda que o próprio tráfico vai desencadeando. É claro que você não pode pensar em liberar abertamente o consumo de drogas se não tiver um interesse internacional. Senão, cria-se um problema. Você pode ir a Amsterdã e fumar sua baga na e tal, mas não pode sair de lá com o negócio. Se produzissem legalmente cigarros de maconha, se fossem vendidos nas tabacarias, no Brasil, como aliás digo numa música,não vejo que o dano... quer dizer, haveria, claro, um problema de saúde pública, como com o cigarro, como com as drogas farmacêuticas, o consumo de álcool. Há pessoas que entram na viagem e podem virar maconheiros, se tornar inúteis, mas podem se tornar meros consumidores de maconha e ter uma vida completamente normal. Não há comparação com a quantidade de vítimas que o tráfico traz. E mesmo a cocaína. Cocaína é barra-pesada, eu não recomendo a ninguém. Antigamente se vendia cocaína em farmácia. Descriminalizar ou comercializar de alguma forma com assistência médica, com licença ou isso e aquilo, não sei como se chegar a isso. Certamente, há alguma maneira melhor do que permitir que se trafique, porque isso é permitido, todo mundo sabe que há conluio da polícia, e um tráfico aberto faz um número de vítimas muito maior.
Como é sua relação com a política hoje? Você já disse experimentar um certo fastio da política. Não vejo grandes novidades na política. Nem vejo muito espaço para grandes mudanças, sinceramente. Já não alimentava grandes ilusões de grandes mudanças com o governo Lula. Achava bonito isso, de ele ser eleito. Bom para o país um operário ser eleito e chegar à presidência da República. Mas também não achava que íamos ter transformações profundas na sociedade. É difícil. E agora ficou provado que é mais difícil até do que se imaginava.
Crises do mensalão, CPIs sobre corrupção, a queda do ministro Antonio Palocci, eleições se aproximando... Como você vê esse momento do Brasil e do governo Lula em particular? Não vejo com nenhuma satisfação especial. Não é assunto que me entusiasma, não. Mas,enfim, fazer o quê? Podemos falar disso também, até porque as pessoas estão muito exaltadas. Não sei por que as pessoas estão tão exaltadas assim. A argumentação política cedeu lugar a ofensas pessoais, e parece que isso vai se agravar nestes meses que vêm por aí. Não há muito argumento. Porque no fundo, no fundo, honestamente, não vejo como um próximo governo, com quem quer que seja eleito, possa ser muito diferente desse governo Lula, assim como o governo Lula não foi muito diferente dos governos que o antecederam. As notícias de corrupção, mensalão estão na ordem do dia porque são mais recentes, mas elas também repetem práticas similares de governos anteriores. Todo mundo sabe disso. Claro que o governo do Lula é mais vulnerável hoje porque é a vidraça, porque o próprio PT ajuda a jogar pedra na sua vidraça, ao contrário dos partidos mais conservadores, que, por mais que se debatam lá dentro, não saem atirando uns nos outros. Eu fico vendo este pessoal do PSDB e do PFL indignados na TV. Peraí, vamos falar sério, né? Vocês não podem estar tão indignados, surpresos com o nível de corrupção, que não é maior do que foi no governo anterior. Todo mundo sabe como foi conseguida a malfadada reeleição presidencial [do FHC], que é nociva, na Constituição. Todo mundo sabe o que aconteceu, as falcatruas, as tentativas bem-sucedidas de abafar CPIs. Então fica reduzido a quê? O sujeito gosta deste ou gosta daquele. Ou tem simpatia ou alguma vantagem pessoal a levar com governo tal. Eu não tenho isso, não quero proximidade nenhuma com poder nenhum. Mas eu fico um pouco espantado com o grau de agressividade das pessoas. Eu conheci o grau de agressividade do PT, sei como é. Eu já falava isso, tem muito chato neste PT. Ficam enchendo o saco da gente, enchendo o saco dos artistas, cobrando isso e aquilo. Isso acho até que vai acabar um pouco, porque acabou a idéia de que o PT é um partido superior aos outros. Agora, também não vejo por que nesse clima que se instalou no país as pessoas se sentem no direito de ofender o Lula, de enxovalhar. Qualquer um vai para o jornal e manda "e o Lula?", "é um merda", "é um bosta" . As pessoas não gostam que se diga, mas isso evidentemente traz um preconceito de classe muito forte. São pessoas que não admitem, até hoje não engolem o fato de o Lula ter sido eleito, ter ocupado o Palácio da Alvorada, ele com a dona Marisa. Então, se na próxima eleição os candidatos forem o Lula, o Alckmim, talvez o Garotinho e uma dissidência à esquerda, eu voto no Lula até por isso. Não posso dizer que estou satisfeito com o governo dele, mas não vejo vantagem nenhuma no governo voltar às mãos do PSDB e do PFL. E, se o Lula for reeleito, acredito que ele, ao contrário do Fernando Henrique, possa fazer um segundo mandato melhor do que o primeiro. Até porque estará livre de uma porção de malas e de gente que atrapalhou. Ele vai ter de governar mais, escolher as pessoas, estar mais atento, mais presente. Mas não gosto da idéia de ele sair escorraçado, pela porta dos fundos, as pessoas xingando, quando não fizeram isso com o Fernando Henrique, nem com o Collor ou o Sarney.
A crítica da imprensa já te incomodou no passado, ao ponto de afetar sua produção. Como você lida com isso hoje? Isso teve mesmo. Nos anos 80 foi barra-pesada. Você cansa, né? Tomando muita porrada, você vai perdendo a vontade de se expor a mais porrada. Eu tinha de ler o Jornal do Brasil com capacete, porque tinha porrada em tudo que era seção. Até a seção de gastronomia dava porrada. A Folha de S.Paulo, numa época, também era uma coisa barra-pesada. Isso, durante uns dez anos, foi muito chato. Principalmente uma certa imprensa paulista muito, muito agressiva. Depois melhorou um pouco. Hoje, não sei. Às vezes tenho a intuição de que algo está se armando {risos], que estão ali atrás, na esquina, espiando, "ele vai passar agora", prontos para dar porrada. Mas as porradas também com o tempo vão doendo menos, você vai ficando um pouco mais calejado.
Você pensa na velhice, sente ela chegar? Ela vai chegando, vai se instalando aos poucos, tem umas coisinhas que você vai percebendo, uma mazelazinha ali que não tem jeito, é assim mesmo. Mas não estou me queixando, não.
Você tem medo da morte? Medo não, mas quero distância {risos]. Acho que com saúde, fazendo as coisas direito, dá para viver um bocado mais. Gostaria de viver com saúde e imaginação, com vontade de criar coisas. Noventa e tantos anos e virando a noite por causa de uma música, um livro. Formidável. Posso morrer assim.
O Tom Jobim disse que "a gente só leva da vida a vida que a gente leva". O que você levará da sua vida? Não vou levar nada. Alguma coisa deixarei. Umas musiquinhas, uns livros, filhas, netos. Vou deixar umas coisas bonitas. Coisas que valeram a pena.
"Tenho medo de me tornar um idiota"
Aos 60 anos, Chico Buarque fala sobre ser escritor e músico, considera oca a fama de sexy e rejeita o título de ícone
Ima Sanches La Vanguardia
"Tenho 60 anos. Nasci e vivo no Rio. Estou separado e tenho três filhas, duas netas e meia, e um neto: Chico. Sou um democrata que ainda acredita na possibilidade de um socialismo democrático. Já tivemos quase duas décadas de idiotice globalizada. Sou ateu. Publico Budapeste na Salamandra em castelhano e na La Magrana em catalão."
Uma vida rodeado de mulheres. Sim, irmãs, filhas, netas.
O que aprendeu com elas?
Continuo com a curiosidade intacta, com o mesmo desconhecimento e esta estranha admiração. Sempre me surpreendem e suas opiniões me interessam mais que a dos homens.
Você encabeça a lista dos homens mais sexys do Brasil.
Isso é ridículo, e essa lista é ridícula. Tenho 60 anos, percebe?
Sempre fugiu da fama?
Não, participei de festivais e busquei o reconhecimento para meu trabalho. Mas logo aparece a fama boba, oca, que é a sombra do reconhecimento e que fala se o artista está gordo ou com quem vai para a cama. Há 40 anos não era assim.
Como era?
Ficávamos bêbados em Ipanema dizendo coisas absurdas, mas não saía na imprensa. Hoje, alguém vai ver uma partida de futebol e vem o jornalista lhe perguntar como está a partida. Isso não me agrada.
Mas é o que vende
Tem gente que persegue essa fama que não corresponde a nada. É insólito.
Por que teremos chegado a esse ponto?
Nunca vi um movimento geral de idiotice como o de agora. Mas em meu país, de 15 anos para cá, vem crescendo perigosamente. A idiotice nos rodeia, eu mesmo tenho medo de me tornar idiota...
Pense bem...
Talvez tenha razão. Tudo seria mais fácil, nada me surpreenderia e poderia dar entrevistas sem escrever livros.
?...
Sim, sim, anuncio que vou escrever um novo livro e passo dois anos dando entrevistas. Depois falo do livro que não saiu. E assim passa a vida. Hoje é possível viver de feira literária. Há festivais a cada semana em alguma parte do mundo. E agora que finalmente sou escritor...
Custou-lhe três livros.
Sim. Agora já me consideram como tal e posso viver me fazendo de turista literário; certamente conseguiria ser muito mais conhecido como escritor do que sou hoje sem necessidade de escrever mais livros.
Falemos de épocas mais intensas.
Não sou nostálgico, não penso que éramos mais bonitos, mais magros e mais felizes, embora tudo isso seja verdade. Não me agrada recordar nem os anos 60 nem os 70, dos 80 não me lembro, e nos 90 começou a idiotice. Nunca estive de acordo com o que me cercava. Me agrada estar vivo, fazer as coisas em meu ritmo, sem pressões.
Então deve ter vivido infeliz na ditadura.
Em fins de 68 começou a verdadeira censura e a perseguição aos opositores do regime, políticos, simples artistas ou fumadores de maconha. Isso tudo era preciso combater e nós, os artistas mais populares, o fizemos com a música, com prejuízo para a qualidade artística.
Você vivia sendo preso.
Como todos, mas saía sempre. Só dormi na prisão quando era menor de idade e roubava carros.
Um filho de ilustre historiador e sociólogo roubando carros?
Sim, roubávamos carros para circular pela cidade e quando acabava a gasolina os largávamos. No dia seguinte fazíamos o mesmo, assim até que me pegaram. Mas durante a ditadura me chamavam ou vinham me buscar e me levavam para perguntar por que havia cantado isso ou aquilo.
Chegou a ter medo?
Quem tem c... tem medo. Recebia ameaças, cartas. Hoje tem gente no Brasil que tem medo de outras coisas e vive cercada de guarda-costas, sobretudo os famosos, porque ter guarda-costas o torna ainda mais famoso.
Você é um ícone da música; poderia ter dois ou três.
Não me agradaria ser ícone, soa fatal. Chegaram a me chamar de monstro sagrado, que medo!
Para quem escreve as letras de suas canções?
São "cantadas" para mim mesmo: é formidável, experimente, diga-se coisas bonitas. Me lembro de Vinicius de Moraes, que quando viajava sozinho e tinha sonhos se cantava canções de ninar e passava a mão no rosto até adormecer. Eu tentei e não funcionou.
Você é um insone?
Sim, por isso sempre trabalho de noite, o que é fatal para o insone. Quando consigo dormir, escrevo música em sonhos. Compus coisas maravilhosas, mas logo percebi que eram de outros.
Por que está há seis anos sem se apresentar?
Lancei o disco, fiz um ano de concertos, depois lançaram o disco do concerto do disco, e depois o disco do disco do concerto do disco... Em seguida colaborei em teatro, escrevi o livro e agora estou aqui com você.
Como é a sua mãe?
Tem 95 anos e repete constantemente, "Juízo e alegria!", e eu lhe digo: "Mamãe, ou juízo ou alegria." Meu pai era um sonhador e ela equilibrou seu lado boêmio, impunha a disciplina mas com muito sentido de humor, com isso: com juízo e alegria. Sete filhos!
O que significou para você trazer filhos ao mundo?
É formidável. Quando nasceu a primeira eu tinha 24 anos, era quase uma irresponsabilidade. Mas as três são melhores que seu pai e creio que se cada um de nós pudesse dizer isso, se Bush o dissesse, por exemplo, em 30 anos teríamos um mundo melhor.
Tradução de Celso M. Paciornik
Auster "entrevista" Chico Buarque em NY
Escritor brasileiro fala sobre censura, do "jeito" com as mulheres e de seu processo criativo em evento na cidade
Pedro Dias Leite
De Nova York
A programação prometia uma "Conversação: Chico Buarque e Paul Auster", mas, na verdade, o que se assistiu na biblioteca pública de Nova York na ensolarada e fria tarde de sábado foi a uma entrevista, e das boas, conduzida pelo norte-americano com o autor do romance "Budapeste". Apesar da fama mais do que reiterada de tímido, Chico estava muito à vontade. Falou das músicas sob censura ("Eu mesmo, quando ouço as músicas que escrevi, não entendo o que eu quis dizer"), do jeito com as mulheres ("Não tenho nada a ver com essa reputação") e da vocação do rap ("O tipo de música que uma vez foi feita, por mim e por outros, com uma temática social, eles fazem isso melhor").
E ainda brincou com o fato de suas entrevistas no Brasil sempre acabarem na sua faceta de compositor em algum momento: "Fui à Noruega e a repórter perguntou: é verdade que você é também um compositor?". Nos EUA, achava que seria diferente ("Aqui sou mais conhecido como o tio da Bebel"), mas Auster teve de intervir quando um fã pediu que Chico cantasse uma música. "É um festival literário pessoal", disse, bem-humorado, o autor de "Leviatã".
Os dois fizeram a palestra de abertura do PEN World Voices, um festival internacional de literatura que segue até o dia 22 em Nova York. A idéia é que não seja um "festival tradicional", mas, sim, uma "reabertura do diálogo entre a América e o resto do mundo", como explicou na abertura da palestra o presidente do PEN, o britânico Salman Rushdie.
A tarde começou em clima ameno, com Auster perguntando à platéia de cerca de 150 pessoas que lotava o auditório quem ali conhecia a música de Chico Buarque. Não mais que a metade levantou a mão. Quando a questão foi sobre quem já leu seus livros, o número não passou de 40.
Na uma hora e meia que se seguiu, os ouvintes conheceram mais da literatura de Chico, de sua relação com a música, de seu processo criativo. E ainda souberam que o novo livro de Auster está quase pronto ("Brooklyn Folies") e que Chico voltou a compor, com planos de um disco novo e shows.
Na maior parte das vezes, foi um monólogo de Chico sobre música, fama, ditadura e mulheres. Leia a seguir as declarações que o escritor brasileiro fez no festival literário:
Mulheres
"Eu não tenho nada a ver com essa reputação [de entender as mulheres]. Escrevi músicas para mulheres cantarem, porque temos mais compositores homens que mulheres."
"Não seria capaz [de escrever um livro como mulher]. Música é algo curto, você escreve por um momento, não acho que me sentiria confortável escrevendo como uma mulher por dois anos."
Rap
"Gosto muito de rap. O tipo de música que uma vez foi feita, por mim e por outros, com uma temática social, eles fazem isso melhor, porque vêm de lá. Eles falam para sua gente, vêm das favelas e são ouvidos por todos os tipos de pessoas. Eles têm algo a dizer, muito sério."
Censura
"Escrevi meu primeiro livro naquela época, porque tinha muitas músicas que eram censuradas. Mas não foi um bom livro ["Fazenda Modelo", de 1974], porque foi escrito por um outro tipo de necessidade, porque eu não podia escrever música, foi escrito com raiva."
"Muitas vezes, havia tantas metáforas e tantos meios de escapar da censura na década de 70, que, eu mesmo, quando ouço músicas que escrevi, não entendo o que eu quis dizer."
Literatura e música
"Acho que escrevo livros como faço música. Tenho música na cabeça o tempo todo. Eu nunca ouço música, porque atrapalha meu escrever."
"Quando eu escrevo acho que tem música no fundo da minha cabeça. E tem uma necessidade inconsciente de escrever de um modo musical. Se uma frase faz sentido, eu leio, releio, mas algo está errado, esse algo errado tem a ver com o sentido musical, o ritmo da frase, não sei como dizer, mas fico realmente satisfeito quando leio de modo musical."
"Escritores dizem, ah, escrevo ouvindo suas canções, ou música clássica. Eu olho para eles e digo: você não gosta de música. Você gosta, mas não é uma pessoa musical. Não toma sua atenção. Se você gosta, qualquer música, no elevador, chama a sua atenção."
Diálogo entre Chico Buarque e Paul Auster abre festival literário em NY
Alejandra Villasmil
Nova York, 18 abr (EFE) - A faceta literária de Chico Buarque está muito ligada a seu processo criativo como músico, como ficou evidente em um diálogo entre o cantor e o escritor americano Paul Auster em um fórum literário em Nova York.
"Tenho uma necessidade inconsciente de escrever literatura de uma forma musical", disse Chico no último sábado em uma conversa com Auster, na abertura do festival internacional de literatura "Pen World Voices", em Nova York.
Como em uma conversa entre amigos, Auster revelou um Chico escritor e seu processo criativo na produção de literatura, em particular seu último romance, "Budapeste", traduzido para vários idiomas.
Muito apropriadamente para a ocasião, Chico Buarque leu um trecho desta obra - em sua tradução ao inglês - sobre um lingüista brasileiro que, em Budapeste, é seduzido pela língua húngara, "a única no mundo que o diabo respeita".
Enquanto Chico comentou sua produção literária, Auster confessou ter escrito as letras de três canções, às quais depois encomendou os arranjos. "Um romancista realmente bom faz uma composição musical quando escreve", acrescentou.
"Cada vez que escrevo uma canção é porque me vem à mente e pronto. Só escrevo a letra e não penso na música. O compositor se encarrega disso", acrescentou Auster.
Surpreso, Chico pediu que ele explicasse como escreve as letras sem escutar a música em sua cabeça, acrescentando que sempre escreve a letra junto com a música ou primeiro a música, depois a letra, mas não ao contrário.
"Quando escrevo sem pensar na música, escrevo prosa", disse Chico, de 60 anos, que tem três romances publicados. "Sinto prazer quando escrevo, mas, claro, sempre haverá alguma luta, por exemplo, quando é preciso mudar uma palavra que não rima. Em minhas canções, tenho como regra não submeter a música às palavras", explicou Chico.
"Portanto, é preciso encontrar essa palavra que rime ou que se encaixe na música. Essa palavra pode ser completamente diferente em significado da palavra originalmente pensada para essa estrofe, mas é válida sempre que tiver o ritmo que busco", acrescentou.
Para Chico Buarque, escrever canções e literatura exigem o mesmo tempo e esforço. "Budapeste", por exemplo, foi escrito em dois anos e dois meses.
Ele também falou de como começou a escrever e de como a censura imposta pela ditadura militar brasileira o levou a escrever metáforas que às vezes nem ele mesmo entende quando as relê.
"Escrever literatura foi uma ambição da minha juventude. Meu pai, historiador e crítico literário, não me pressionou a escrever, mas apreciava quando eu escrevia. Aos 21 anos, comecei a compor canções, e isso foi o que me seqüestrou", lembrou.
Chico destacou também que a publicação de seu primeiro livro foi um risco, já que "ninguém pensa que um compositor bem-sucedido pode escrever um bom romance".
"Assumi o desafio. Após passar um ano sem escrever canções, me disse: 'algo anda mal; tenho que tentar outra coisa'. Então, há 15 anos, escrevi meu primeiro romance e as pessoas começaram a aceitar a idéia de que posso ser um escritor razoável", disse.
O primeiro dia do festival literário aconteceu na Biblioteca Pública de Nova York. O evento reunirá 115 importantes escritores de mais de 45 países até o próximo dia 22 de abril, entre eles o brasileiro Rubem Fonseca, o indo-britânico Salman Rushdie, o argentino Tomás Eloy Martínez, a mexicana Elena Poniatowska, o cubano José Manuel Prieto, o espanhol Antonio Muñoz Molina e a colombiana Laura Restrepo.
O TEMPO E O ARTISTA
Para Chico Buarque, um sentimento difuso a favor do apartheid social está hoje tomando conta da sociedade brasileira
"Querem exterminar os pobres do Rio"
DO ENVIADO A ROMA E A PARIS
Há um sentimento difuso quase a favor do apartheid social no Brasil e existe, por parte das elites, um ódio visceral não vocalizado em argumentos contra o presidente da República operário, que tem um dedo a menos e fala errado.
São sintomas da regressão social que Chico Buarque enxerga no Brasil de hoje, um país "cada vez mais irracional". O governo, porém, também não sai ileso na avaliação de Chico. Vem desperdiçando oportunidades históricas de intervenção social porque assumiu compromissos errados e cedeu demais.
Um exemplo bem concreto: o engavetamento da discussão sobre a descriminalização das drogas, segundo Chico a única maneira de enfrentar a questão da violência ligada ao tráfico no Rio.
"Se o governo Lula não enfrentar isso, não sei quem vai fazer", diz Chico -e completa: "O Lula sabe o que o cara do rap está cantando. Ele conhece aquela voz. Não tem o direito de ignorar".
Neste trecho da entrevista concedida em Paris, o compositor fala ainda sobre o assédio da mídia, da demanda crescente pelos assuntos fúteis e do fato de se sentir cada vez mais como se estivesse permanentemente submetido ao olhar de um Big Brother.
(FERNANDO DE BARROS E SILVA)
Folha - Você faz parte de uma geração de artistas que foi porta-voz de ambições grandes em relação às possibilidades do país. Hoje essas ambições encolheram muito, não se vê mais a perspectiva de mudanças sociais como antes. As aspirações foram redimensionadas para baixo. Como você analisa isso?
Chico Buarque - Hoje em dia a gente vê pouquíssima margem de uma mudança social. Ao mesmo tempo, em países pobres, como o Brasil é, deveria ser mais do que nunca premente a necessidade de uma transformação social. A situação se deteriora e não se enxerga uma alternativa razoável.
Me preocupa que estamos nos encaminhando cada vez mais para uma situação irracional. Tudo passa pela economia. É difícil. Eu tendo a acreditar nos economistas quando dizem ser impossível gerenciar países como o nosso de outra forma. Quem sou eu para opinar? Eu me sinto muito diminuído, tenho pouco interesse em me manifestar, da mesma forma que tenho pouco interesse em ler opiniões de leigos, de gente desavisada a esse respeito.
Às vezes podem dizer coisas interessantes, ou até brilhantes, mas quando chega a hora de uma discussão mais séria essas opiniões soam quase como um escárnio, coisa de poeta.
Folha - Você se vê pressionado a falar sobre esses assuntos?
Chico - Eu cada vez mais me abstenho por reconhecimento da minha limitação, da minha ignorância. Aí eu sou realmente modesto. Não sou modesto em relação ao que eu faço como artista. Mas, sobre os rumos ou possibilidades do país, não vejo honestamente que contribuição eu possa dar.
O que eu posso fazer é só constatar minhas perplexidades, meus receios diante desse quadro cada vez mais assustador. Como não se vê perspectiva de mudança a curto ou mesmo a médio prazo, a sociedade toda é levada a um certo conformismo, ou mesmo a um cinismo. Na alta classe média, assim como já houve um certo esquerdismo de salão, há hoje um pensamento cada vez mais reacionário, com tintas de racismo e de intolerâncias impressionantes.
O medo da violência na classe média se transforma também em repúdio não só ao chamado marginal, mas aos pobres em geral, ao sujeito que tem um carro velho, ao sujeito que é mulato, ao sujeito que está mal vestido. Toda essa indústria da glamourização, de quem pode, de quem ostenta, de quem torra dinheiro -enfim, ser reacionário se tornou de bom tom. As moças bonitas no meu tempo eram de esquerda. Hoje são todas de direita (risos).
Boutades às vezes racistas, preconceitos de classe, manifestações de desprezo mesmo pelos mais pobres se tornaram algo muito comum e socialmente valorizado.
Folha - Estamos diante de uma grande restauração, uma grande maré conservadora?
Chico - Exatamente. E diante da negação de conquistas não só sociais mas também comportamentais. Vejo um pensamento cada vez mais conservador, até mesmo na aparência das pessoas, todo mundo arrumadinho...
Folha - Mas isso convive, no caso brasileiro, com um governo de um líder operário, o que poderia ser visto como uma conquista histórica na contramão desse quadro. Como explicar esse curto-circuito?
Chico - Em primeiro lugar, acho que a eleição do Lula foi uma vitória. Ter conseguido eleger o Lula talvez tenha sido um último sinal de que algo ainda possa mudar para melhor. O outro lado da moeda é esse de que falei.
O Lula sabe o que o cara do rap está cantando. Ele conhece aquela voz. Outros podiam não conhecer, mas o Lula sabe exatamente o que é aquilo, não há de esquecer. O Lula não tem o direito de ignorar isso. Nessa altura, fico depositando minha confiança pessoal no Lula, minha esperança de que ele encontre uma maneira de pelo menos suavizar esse quadro. Mas esse é um fardo muito pesado. É uma esperança talvez demasiada.
De certa forma, o Lula trouxe o acúmulo de esperanças de muito tempo para um tempo em que elas não podem mais se realizar. E aí não é culpa dele. É por isso que tendo a reagir às críticas que são feitas exageradamente ao Lula.
Folha - Parece que você quer evitar jogar água no moinho dos que dizem que as coisas no governo não funcionam ou que o Lula é igual ao Fernando Henrique.
Chico - Não quero jogar, porque já tem muita água nesse moinho. Vejo muita gente com ódio pessoal do Lula. E não vejo essa gente verbalizar com argumentos essa oposição tão visceral ao Lula. Parece que há uma certa vergonha de ter um presidente como o Lula, um operário, um sujeito com um dedo a menos e que fala errado. Uma vergonha de ver o Lula representando o país lá fora. Percebo isso em gente próxima. E vejo isso na mídia também. Na verdade, isso deveria orgulhar um brasileiro -ter um homem com as origens sociais do Lula na Presidência da República.
Folha - Isso é um avanço em relação à era tucana?
Chico - Deveria ser também motivo de satisfação ter tido um professor, um sociólogo como o Fernando Henrique na Presidência. Foi um progresso. Nós vínhamos de anos e anos de generais, que não eram eleitos, depois tivemos o Sarney, acidentalmente, o Collor e o Itamar. A eleição do Fernando Henrique foi um salto qualitativo. É um intelectual, um homem com estofo. Agora, também não concordo com aquela satisfação que se viu no nosso meio -"é um de nós, finalmente". Não quero um de nós na Presidência (risos). Não quero ser presidente. Não gostaria que meu pai fosse presidente da República. Não é por aí. Também não acho que o fato de o Lula não ter curso secundário completo seja em si uma virtude. Virtude é ele poder ter sido eleito. Ele pode ser um bom ou um mau presidente. O Brasil ter eleito Lula contradiz tudo o que eu disse há pouco a respeito de um país que parece cada vez mais estar contra gente como o Lula. E volto a repetir: não vejo apenas um sentimento contra o marginal, o traficante, o ladrão. Mas contra o motoboy, contra o desempregado, contra o sujeito que não fala direito, isso apesar de a elite brasileira falar muito mal o português. Constato um sentimento difuso quase a favor do apartheid social.
Folha - Você não quis incluir os seus jogos de futebol e a sua paixão pelo futebol como tema dos programas que está gravando. Qual a razão?
Chico - Todo mundo sabe que eu adoro jogar bola, que eu gosto de futebol. Já sabem até onde jogo bola. Então, vira e mexe, aparece alguém lá para tirar foto, essas coisas. Aí o futebol vira um acontecimento. Talvez até mais porque eu não esteja fazendo show, não esteja me exibindo em público, o futebol vira uma ocasião de exibição, como se eu quisesse me exibir jogando bola. Não é o caso. Aquilo não é uma exibição. Por isso achei melhor deixar de lado.
Folha - Ou é uma exibição para consumo interno, pessoal...
Chico - Pois é (risos). Mas há uma demanda cada vez maior para assuntos fúteis. Nos sites da internet isso é muito evidente. Qualquer coisa parece ser assunto. Fulano desceu em Congonhas (risos). Isso não é notícia, evidentemente. Mas tem que preencher os espaços, tem que botar foto de artista descendo do avião... Estréia, então. Eu em geral não vou mais a estréias, porque muitas vezes a platéia trabalha mais que o artista. Tem que estar bem vestido, a sua roupa vai ser comentada, essas bobagens todas. Minha empregada outro dia ficou com vergonha porque apareci com a mesma camisa em dois acontecimentos sociais (risos). Isso deve ter ocorrido mesmo. Acho que não estava atento ao meu figurino (risos). Além disso, você é quase sempre solicitado a fazer resenhas críticas no corredor do teatro, tem que sair de casa preparado para estar inteligente, dizer se gostou, por que gostou. Isso quando não enfiam o gravador na sua cara na saída do cinema para saber o que você achou da reunião do Copom, se você acha que a taxa de juros vai cair meio ponto, se o viés é de baixa ou de alta.
Folha - Você convive com assédios variados há muito tempo. Isso mudou de uns tempos para cá?
Chico - Piorou muito. Isso não era assim. No tempo em que nós andávamos expostos, raramente acontecia de sair uma nota dizendo "fulano foi visto bebendo em tal bar". Todos os dias nós estávamos no Antonio's -o Vinícius de Moraes, o Tom, o Rubem Braga, eu. Falavam-se barbaridades, brincava-se muito, bebia-se à beça. Se alguém estivesse por perto anotando, acabava, o Antonio's fechava. Nós andávamos por aí. Ninguém fotografava. Hoje parece que vivemos numa espécie de Big Brother permanente.
Folha - O Rio, onde você mora há muito anos, também mudou muito de cara, em termos sociais. Na sua música, quando a gente pega, por exemplo, dois sambas como "Estação Derradeira", de 1987, e "Carioca", de 1998, percebe-se com clareza essa mudança. Os personagens são outros, a atmosfera é outra, a barra é muito mais pesada, apesar dos muitos encantos da cidade. Como você sente isso no dia a dia?
Chico - O clima hoje na cidade é muito mais pesado. Para não falar lá de cima, na própria zona sul já há territórios demarcados. Eu conheci a praia como um espaço democrático. Hoje em dia já se sente no ar a idéia de que vai existir logo uma fronteira entre Ipanema e o Leblon. Tem um pessoal na altura do Jardim de Alá [moradores de um cortiço na rua do canal que divide Ipanema e Leblon] que desce ali e ocupa a praia. Vira uma paranóia, vira uma hostilidade com esses garotos que ficam circulando ali. Assaltar na praia é o pior negócio que existe. De vez em quando acontece. No dia seguinte, vem a polícia e enfia os meninos no camburão, quando não faz coisa pior. Eles querem tirar da praia, sumir com eles dali. Não vai ter onde botar esses meninos.
As soluções sugeridas para isso, as coisas que eu leio nas cartas dos leitores dos jornais, em geral são fascistas. Virou moda responder a quem defende os direitos humanos com o trocadilho infame dos "humanos direitos" contra os vagabundos que nos retiram o direito de andar livremente pelo calçadão. Isso quando não se defende abertamente a pena de morte, a reclusão dos garotos de rua, a diminuição da maioridade penal, a prisão perpétua. Eles querem exterminar com os pobres do Rio. Se puderem sumir com aquilo tudo -ótimo. Os meninos são os inimigos, são os nossos árabes, são os nossos muçulmanos.
Folha - E o problema cada vez mais grave do tráfico, como fica? Porque o tráfico virou talvez a única perspectiva de ascensão social, ou de possibilidade de um enredo vitorioso na cabeça de um menino morador da favela.
Chico - É. Assim como o futebol ou o pagode, o tráfico virou um veículo de ascensão, de chance de ter dinheiro, poder, mulheres e fama, mesmo ao preço de uma vida muito curta. É o que se reserva para um menino sem estrutura familiar, sem emprego, sem quase nada. Eu não vejo outra saída para a violência ligada ao tráfico senão a descriminalização de alguma forma, não sei se total ou parcial, das drogas.
Lembro de ter lido nos jornais que o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, era favorável a essa idéia quando tomou posse. Não sei porque o governo não levou e não leva essa discussão adiante. Isso pode ser desgastante para os índices de popularidade do governo, talvez por isso ninguém toque no assunto.
Talvez pensem que não é o momento de enfrentar o problema em razão de alianças e de compromissos com os evangélicos do PL, essas coisas. Mas se não enfrentarem o problema agora, quando é que vão enfrentar? Se o Lula não enfrentar... Isso tem a ver com tudo o que a gente estava falando antes, com o rap, com o que os garotos da periferia estão falando, com a falta de perspectivas, com a violência toda que está ali, manifesta nas canções.
O Lula sabe muito bem o que é isso. Se não encarar isso, não sei quem vai fazer. Não entendo por que não se discute isso a sério.
Folha - Você acha que o governo, para além dos constrangimentos econômicos, está deixando escapar entre os dedos oportunidades históricas de intervenção social?
Chico - Acho. Acho. Entendo os compromissos, o FMI, a dívida etc. Tudo bem. Mas isso não tem nada a ver com essas outras omissões. Ou é isso ou é a Bíblia.
O TEMPO E O ARTISTA
Em entrevista em Paris, o compositor diz que a emergência do rap talvez represente o fim do principal gênero musical do século 20
A canção, o rap, Tom e Cuba, segundo Chico
DO ENVIADO ESPECIAL A ROMA E A PARIS
Chico Buarque voltou a compor. Disse que está na hora de finalmente se despir e se libertar do romance "Budapeste", que lançou no final de 2003 e do qual ele se ocupou, acompanhando as traduções, ao longo deste ano.
Paradoxalmente, Chico diz, rompendo um silêncio que vinha de muito tempo, que a canção, tal como a conhecemos, talvez seja um gênero do século passado -e que o rap talvez seja a sua negação. Paradoxalmente, mais uma vez, é o rap o que mais chama a atenção de Chico no cenário cultural brasileiro. "Tem uma novidade importante aí, na periferia se manifestando dessa forma."
O caminho do músico Chico Buarque continua, e cada vez mais, iluminado pelo farol de Tom Jobim, seu maestro soberano. Mas os olhos do artista estão mais do que nunca voltados para a moçada dos morros, onde ele enxerga ao mesmo tempo a desgraça e a antena do país.
Neste trecho da entrevista, Chico fala ainda sobre Cuba e diz que, mesmo discordando da ausência de democracia na ilha, considera louváveis os esforços para preservar os "valores da revolução".
(Fernando de Barros e Silva)
Folha - Podemos começar falando da reclusão que você se impôs neste ano.
Chico Buarque - Fiquei até menos recluso do que estive durante os dois anos em que escrevi o livro ["Budapeste"]. Este foi um ano de entressafra. O meu trabalho foi praticamente acompanhar as traduções, ficar na cola do livro que saiu no ano passado. Pouca coisa a mais. Recebi alguns convites para fazer músicas e não pude atender. Foi nesse sentido quase um ano sabático. Embora dê trabalho acompanhar as traduções.
Folha - Mas é um trabalho de que você gosta...
Chico - Gostar eu não gosto especialmente. Acho que faço para sofrer menos. Cada tradução é um sofrimento. Você nunca pode dizer exatamente o que você quer em outro idioma. Mas, nas línguas que eu mais ou menos alcanço, procuro trabalhar o mais próximo possível do tradutor.
Folha - Por que você preferiu não falar quando o livro foi lançado? Receio de induzir a leitura, de misturar o escritor e o compositor?
Chico - Um pouco disso tudo. Na verdade, neste ano sabático tive que ficar me explicando. Não tenho prazer especial em ficar explicando o que escrevi, os livros, as canções, o que seja. Há artistas que gostam disso e se explicam muito bem. Eu não sei fazer isso. Houve também aquela comemoração toda em torno dos meus 60 anos, uma coisa excessiva sobre a qual eu não tinha muito o que dizer.
Além disso, não quis falar um pouco também para evitar que o livro viesse ocupar o espaço que eu tenho como compositor de música popular. Procuro o máximo possível distinguir as duas coisas. Muitas vezes nem isso é possível. Mas apresentar o livro na TV, tirar fotos, isso confundiria ainda mais as coisas. Vem cá, mas esse é o compositor, o escritor? Parece que fica tudo sendo a mesma coisa, a mesma cara, o mesmo sujeito.
Folha - É visível o seu esforço de separar o escritor do compositor. Por quê?
Chico - Eu procuro separar, sim. Entendo que são duas coisas diferentes. O escritor tem pouco a ver com o compositor. Mas é uma coisa pessoal minha. É difícil convencer o leitor de jornais desse meu sentimento. Mas é por isso mesmo que eu procuro ser um pouco mais discreto enquanto autor de romances. Soma-se a isso o fato de que o personagem central de Budapeste é discretíssimo. Achei que seria complicado ir na contracorrente e desmentir tudo o que o livro diz. Neste sentido o livro é um pouco... Não vou dizer que seja autobiográfico, mas o protagonista tem isso em comum comigo.
Folha - Já falaram que os personagens dos seus três romances -"Estorvo", "Benjamim" e "Budapeste"- são um pouco alter egos do Chico Buarque.
Chico - Os livros são muito diferentes. O que complica um pouco a questão é que o protagonista de "Budapeste" é escritor. O protagonista de "Estorvo" não era nada, e o de "Benjamim" é um ex-modelo-fotográfico.
Depois de um ano, mais de um ano, já está na hora de eu me despir, me libertar deste livro. Eu estou na verdade ansiando por isso, até para escrever outro livro, ou para escrever novas canções.
Folha - Você voltou a compor?
Chico - Consegui fazer uma canção, para o filme do João Falcão, "A Máquina", uma adaptação do livro da Adriana Falcão. Tive outras encomendas, mas não consegui. A única que saiu foi essa.
Folha - Como chama a canção e como ela nasceu?
Chico - Chama-se "Porque era ela, porque era eu". É uma variação sobre um dito famoso do Montaigne [filósofo Michel de Montaigne (1533-1592)] -"Parce qu'était lui, parce qu'était moi". Ele se referia nos "Ensaios" à grande amizade com o Étienne de la Boétie, que morreu muito jovem, dizendo que a ligação entre ambos existia simplesmente "porque era ele, porque era eu". Na canção, o "lui" [ele] virou uma mulher. É uma canção de amor. Por coincidência, estive em Paris no mês passado e vi duas vezes nos jornais alusões à frase do Montaigne. A canção na verdade já estava pronta.
Folha - E virão novas canções? Ou você não sabe ainda o que fazer?
Chico - Tenho muita vontade de fazer música. Mas é difícil planejar. Parece que se tornou uma coisa quase automática -faz um livro, depois faz um disco e assim vai. Talvez eu mesmo não queira obedecer esse script que venho seguindo. Mas sempre foi assim. Depois de um trabalho com literatura, até retomar a música leva um bom tempo. O formato é tão diferente da literatura que a mão fica dura.
Folha - Tem parcerias à vista?
Chico - O Ivan Lins me mandou uma música muito bonita. Está aqui comigo, mas ainda não consegui letrar. Fora as canções de outros autores que tenho comigo há muito tempo -Guinga, Dominguinhos. São coisas que ficam ali na gaveta, numa espécie de arquivo a que eu recorro quando estou num processo de criação.
Folha - O que motivou você a fazer essa revisão da sua obra, a aceitar gravar essa série de entrevistas para os programas da TV?
Chico - A idéia partiu do Roberto [de Oliveira, diretor dos especiais com Chico]. Para mim é um pouco incômodo ficar revendo fitas antigas, falar sobre canções do passado. Estou, na verdade, cedendo a uma demanda que existe -e acho que cada vez mais. Isso é curioso. Talvez tenha razão quem disse que a canção, como a conhecemos, é um fenômeno próprio do século passado, tal é a quantidade de releituras, de compilações, de relançamentos, de gente cantando clássicos -e isso no mundo inteiro. Os meus próprios discos são relançados de formas diferentes pela indústria, em caixas e caixotes, embrulhados assim e assado, com outra distribuição das músicas. E há um interesse muito grande por isso. Se eu lançar um disco novo, vou competir comigo mesmo. E devo perder.
Folha - Você parece estar descrevendo um esgotamento histórico...
Chico - A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo só aprimorou a qualidade da sua música. Mas o interesse hoje por isso parece pequeno. Por melhor que seja, por mais aperfeiçoada que seja, parece que não acrescenta grande coisa ao que já foi feito.
E há quem sustente isso: como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido.
Noel Rosa formatou essa música nos anos 30. Ela vigora até os anos 50 e aí vem a bossa nova, que remodela tudo -e pronto. Se você reparar, a própria bossa nova, o quanto é popular ainda hoje, travestida, disfarçada, transformada em drum'n'bass.
Essa tendência de compilar e reciclar os antigos compositores de certa forma abafa o pessoal novo. Se as pessoas não querem ouvir as músicas novas dos velhos compositores, por que vão querer ouvir as músicas novas dos novos compositores? Quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou. Estou dizendo tudo isso e pensando ao mesmo tempo que talvez seja uma certa defesa diante do desafio de continuar a compor. Tenho muitas dúvidas a respeito. Às vezes acordo com a tendência de acreditar nisso, outras não.
Folha - E o rap? Sem abusar das relações mecânicas, parece que estamos diante de uma música que procura dar conta, ou que reage a uma nova configuração social, muito problemática.
Chico - Eu tenho pouco contato com o rap. Na verdade, ouço muito pouca música. O acervo já está completo. Acho difícil que alguma coisa que eu venha a ouvir vá me levar por outro caminho. Já tenho meu caminho mais ou menos traçado. Agora, à distância, eu acompanho e acho esse fenômeno do rap muito interessante.
Não só o rap em si, mas o significado da periferia se manifestando. Tem uma novidade aí. Isso por toda a parte, mas no Brasil, que eu conheço melhor, mesmo as velhas canções de reivindicação social, as marchinhas de Carnaval meio ingênuas, aquela história de "lata d'água na cabeça" etc. e tal, normalmente isso era feito por gente de classe média.
O pessoal da periferia se manifestava quase sempre pelas escolas de samba, mas não havia essa temática social muito acentuada, essa quase violência nas letras e na forma que a gente vê no rap. Esse pessoal junta uma multidão. Tem algo aí.
Eu não seria capaz de escrever um rap e nem acho que deveria. Isso me interessa muito, mas não como artista e criador. O que eu posso é refazer da melhor maneira possível o que já fiz. Não tenho como romper com isso.
E quando penso na melhor maneira possível, penso imediatamente em Tom Jobim. Ele foi meu mestre desde o começo. E, depois que ele morreu, eu sinto paradoxalmente ele mais presente na minha maneira de pensar a música e mais presente no panorama geral da música brasileira. Esse disco agora, que está sendo lançado ["Ao Vivo em Minas", gravado em 1981], é maravilhoso. Não chamava muita atenção na época um show de Tom Jobim só com o piano. Isso era visto até com certo desdém. Alguém teve a boa idéia de gravar, e agora isso é recebido como uma jóia, que é. É um pouco o que eu via. Ele ali no piano, compondo "Águas de Março", "Luiza" [Chico cantarola: "vem cá, Luiza, nã nã nã nã..."). Vi muito isso. Ele não tinha pudor de mostrar as músicas rascunhadas. Mostrava. Pedia palpites. Ver o Tom em ação, e tendo dúvidas, em processo de criação, era formidável -e difícil. Eu sou incapaz de partilhar um momento como esse, uma obra rascunhada, um pedaço de música ou de letra.
Folha - Ficaram com você canções inéditas do Tom?
Chico - Ao longo dos anos, ele me deu várias músicas para fazer letra e eu não consegui. Não vejo mais sentido, sem ele aqui, de gravar canções que estão comigo. Só tinha sentido com ele junto.
Folha - Você tem uma relação antiga com Cuba. O regime de Fidel Castro vem sendo cada vez mais cobrado pela ausência de democracia, pelas execuções etc. Como você se coloca nessa discussão?
Chico - Minha ligação com Cuba se estabeleceu no fim dos anos 70 até a volta das relações diplomáticas com o Brasil. Na época meu apelido era "el embajador". Eu participava de um intercâmbio cultural que envolvia muitos artistas, músicos, intelectuais. Acho que cumpri bem o meu papel. De lá para cá, tenho ido menos a Cuba. Perdi um pouco o contato.
Folha - Mas você tem amigos músicos em Cuba.
Chico - Tenho. Amigos hoje um pouco distantes. É essa a minha relação com Cuba. Existe, é claro, para a minha geração, um outro tipo de relação, afetiva, que vem da revolução cubana. Nos anos 60, aquilo era muito forte para nós. Um exemplo de resistência. Ainda hoje o ditador Fidel Castro, como gostam de dizer os jornais, inclusive a Folha... Ele é o único adversário dos Estados Unidos na América Latina que resistiu a golpes de Estado e assassinatos e está ali. Todos os outros foram depostos ou assassinados. Ele sobreviveu a vários atentados. Manteve e mantém até hoje uma posição altiva. E isso é algo que ninguém deve ignorar e que eu admiro.
Quanto a fuzilamentos ou a prisão de dissidentes políticos, fico contrariado, porque não gosto e não concordo com isso. A questão toda é muito delicada. Eu gostaria que Cuba fosse um país democrático. Agora, eu gostaria de uma maneira, e o Bush gostaria de outra. Cuba poderia ser hoje o Haiti. Cuba não é. É claro que me desagrada a idéia de um partido único, de liberdades vigiadas, mas existe ao mesmo tempo a necessidade de um controle para manter os valores da revolução, que a meu ver são louváveis.
O TEMPO E O ARTISTA
Filmes dirigidos por Roberto de Oliveira mesclam imagens de arquivo com depoimentos e serão lançados em DVD no final de 2005
Dez programas refazem carreira de Chico
DO ENVIADO ESPECIAL A ROMA E A PARIS
Chico Buarque gosta de contar uma história que ouviu de uma de suas filhas, a atriz Sílvia Buarque. Ela estava em uma loja de CDs no Rio quando reparou que uma moça a seu lado pegou nas mãos o CD "As Cidades" (1998), recém-lançado. Olhou de um lado, virou do outro, e fez o comentário: "Mas só tem música nova!".
A frase da moça divertiu e ficou famosa na família Buarque. O compositor costuma repeti-la quando quer exemplificar a nostalgia que percebe num público ávido pelo "Chico dos anos 70".
Pois a moça não terá mais do que reclamar. A partir de janeiro, Chico reaparecerá numa série de programas para a TV sobre sua obra, todos eles mesclando imagens de arquivo, muitas delas raras, com depoimentos do autor gravados hoje.
A estréia acontece dentro de um mês, no dia 26, quando a DirecTV exibe o primeiro programa, de um total de dez previstos para pingar em princípio mensalmente, embora só três já tenham sido gravados e estejam certos.
O responsável pelo projeto é o diretor Roberto de Oliveira, ex-vice-presidente da Rede Bandeirantes, que conheceu Chico em 1973, quando inventou e pôs em prática o Circuito Universitário -uma espécie de show itinerante de artistas por cidades do interior do país numa época em que a ditadura fechava as portas da grande mídia para muitos deles.
Desde então, Oliveira produziu vários documentários musicais com Chico, exibidos ao longo dos anos 70 e 80, sobretudo na Bandeirantes. É parte desse acervo, que soma cerca de 30 horas de filmes, mais o acervo pessoal de Chico, com algumas gravações amadoras feitas nos anos 60, que está sendo recuperado.
O diretor define os programas como "um grande testemunho, no qual Chico fala da obra dele, da vida dele, do processo de criação, e se vale da recuperação de imagens e canções do passado para ilustrar as coisas que ele diz hoje".
A intenção de Roberto de Oliveira é lançar no final de 2005 cinco DVDs com os programas exibidos, acrescidos do making of, e repetir a dose, com os outros cinco, até o final de 2006.
O roteiro dos programas segue uma divisão temática. O primeiro, intitulado "Meu Caro Amigo", foi feito em torno das parcerias de Chico. A entrevista e as imagens de hoje que dão o fio condutor foram gravadas no Rio. Chico falou na Biblioteca Nacional, onde se realizou uma exposição sobre sua obra como parte das comemorações dos 60 anos, completados em 19 de junho. A exposição chega a São Paulo em 13 de janeiro.
Tom Jobim, a quem será dedicado um programa inteiro, aparece já neste de abertura, cantando ao piano "Falando de Amor", ao lado de Chico. Francis Hime e Edu Lobo, os dois parceiros mais assíduos, também comparecem, em versões de "Meu Caro Amigo", canção clássica da resistência à ditadura gravada em meados dos 70, e "Choro Bandido", já dos anos 90. Chico canta ainda com Djavan, com a irmã Miúcha e com Dorival Caymmi, entre outros.
No depoimento que dá sobre o velho compositor baiano, Chico o define como "um caso à parte na música brasileira, de tal forma despojado que é difícil até imitá-lo, fazer uma música à la Caymmi". "Não sei de onde vem Caymmi nem sei para onde vai", diz, rendendo homenagens a um grande mestre que, segundo ele, não deixou discípulos na MPB.
O momento mais marcante do programa de estréia talvez seja a aparição histórica ao lado de Elis Regina, num show de 1974, quando interpretaram juntos "Pois É", canção feita em parceria com Tom. Os dois mal se olham no palco. É sabido que Chico e Elis não tinham afinidades e acumularam pinimbas ao longo da vida.
O segundo programa, previsto para fevereiro, foi gravado há dez dias em Paris e vai se chamar "À Flor da Pele", nome de uma das duas versões de "O Que Será", gravada no disco "Geraes" (1976), de Milton Nascimento. O motivo do programa é o conhecido e repisado universo feminino nas canções de Chico, assunto que ele não gosta de abordar.
"Roberto, você vai perguntar e eu vou embatucar, não sei falar sobre isso", avisou Chico antes da gravação, feita num bistrô em frente à ilha de Saint Louis, no centro de Paris. Provocado pelo diretor, acabou comentando várias de suas canções. Disse até que foi em Paris, quando era um menino de 9 ou 10 anos, que viu pela primeira vez mulheres com os seios nus nas capas de revistas.
Houve também momentos de simpático embaraço. Num deles, o diretor deu voltas, tergiversou e lançou uma pergunta a respeito da inspiração de "Morena dos Olhos d'Água", feita em 1966 para a hoje socialite Eleonora Mendes Caldeira. Chico olhou sorrindo para o diretor: "Ô Roberto, a Eleonora Mendes Caldeira é uma senhora. Você não vai querer que eu fale sobre isso nessa altura do campeonato. Nem fica bem". A equipe caiu na gargalhada.
O terceiro programa foi gravado em Roma, uma semana antes. Será exibido em março com o título "Vai Passar", canção de Chico que se tornou um hino da campanha pelas Diretas-Já, em 1984.
O eixo do programa é a política, sobretudo a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Chico morou em Roma durante 13 meses, entre 1969 e 70, numa espécie de exílio voluntário. Já havia morado na cidade quando criança, entre os oito e dez anos, quando seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda lecionou na Universidade de Roma.
"A ditadura me encheu muito o saco, mas também enchi bastante o saco dela", disse Chico na entrevista gravada num hotel. Nela, o compositor passou o período do exílio a limpo, comentou o prazer de caminhar pelas ruas de Roma e disse que o disco "Construção", lançado em 1971, representa um marco em sua obra, uma espécie de perda da inocência presente nas canções do período anterior.
Neste terceiro programa, há algumas imagens históricas. Numa delas, pouco conhecida, Chico caminha pelo palco do Anhembi, em São Paulo, de microfone em microfone, procurando um que não tivesse sido desligado. Era 1973 e ele cantava "Cálice" quando lhe cortaram o som do teatro.
No final de janeiro, Chico deverá gravar a entrevista para o quarto programa da série, sobre literatura. Em princípio, em Portugal, mas o compositor gostaria de estender a viagem a países da África que falam o português, o que está sendo negociado.
Chico contra o cinismo
O compositor fala com exclusividade à Folha, que o acompanhou durante duas semanas em Paris e em Roma, nas filmagens de um documentário
FERNANDO DE BARROS E SILVA
ENVIADO ESPECIAL A ROMA E A PARIS
"O Lula trouxe o acúmulo de esperanças de muito tempo para um tempo em que elas não podem mais se realizar." A frase é de Chico Buarque. Resume, mais do que uma frustração, uma posição complexa diante um governo que ele apoiou e ajudou a eleger, mas sobre o qual tem hoje várias críticas, embora não o considere o único nem o maior responsável pelo fato de o Brasil estar caminhando para uma situação que chama de "cada vez mais assustadora e irracional".
Chico falou à Folha com exclusividade na quarta-feira da semana passada, durante duas horas, no seu apartamento em Paris. Acabava naquele dia uma maratona de gravações de duas semanas, a primeira delas em Roma, para dois de uma série de dez programas sobre sua obra, mesclando imagens de arquivo com depoimentos, que a DirecTV vai levar ao ar a partir de janeiro.
A Folha o acompanhou durante todas as gravações, a maior parte delas com cenas de Chico caminhando (o que mais gosta de fazer, ao lado de jogar bola) pelas ruas de Roma e de Paris.
É a primeira vez, desde que Lula foi eleito, que Chico aceita falar longamente, inclusive sobre a situação do Brasil, assunto sobre o qual sempre é cobrado. Primeiro, disse que se sentia "diminuído" e se abstinha de opinar porque hoje "tudo passa pela economia" e ele próprio não costuma dar muita atenção aos palpites dos leigos.
Mas logo a seguir veio a crítica central ao que ele diz ver em curso no país: "Diante da ausência de perspectiva de mudança social a curto ou a médio prazo, a sociedade toda está sendo levada a um certo conformismo, ou mesmo ao cinismo". Na alta classe média, disse, "assim como já houve um esquerdismo de salão, há hoje um pensamento cada vez mais reacionário. O medo da violência se transformou em repúdio não só ao chamado marginal, mas aos pobres em geral, ao motoboy, ao sujeito que tem carro velho, ao sujeito que anda mal vestido".
"No meu tempo as moças bonitas eram de esquerda", disse sorrindo. Sejam de esquerda ou de direita, jovens ou senhoras, as "moças" continuam encantadas por Chico. Foi um frisson entre as funcionárias da embaixada do Brasil em Roma, todas já coroas, quando Chico chegou ao belo palácio na Piazza Navona para gravar algumas imagens. Fotos e autógrafos, como sempre.
Uma estudante pernambucana de 18 anos que vive em Roma passava pela rua e viu Chico na porta. Ficou paralisada e começou imediatamente a chorar. As lágrimas escorriam por seu rosto. Não parava por nada neste mundo. Mais fotos e algumas palavras trocadas meio sem jeito de parte a parte.
Aos 60 anos, Chico segue sendo o mesmo menino tímido diante de qualquer desconhecido. Gosta mais de ouvir e de observar do que de falar e ser observado. Não se sente à vontade quando é abordado na rua. Em seu semi-anonimato nas cidades da Europa, estava na maior parte do tempo descontraído. E às vezes brincalhão com a equipe do documentário.
Em Roma, a produção alugou um carrinho de golfe para acompanhar Chico pelas ruas. Entre uma locação e outra, ele próprio quis dirigir a engenhoca. Num determinado momento, começou a cantar um tango em voz alta, acompanhando o cinegrafista argentino, Mariano, que ia filmando ao seu lado.
Amigos, cinema e futebol
Chico aproveitou a viagem para rever alguns amigos. Jantou em Roma com Sergio Bardotti, o criador de "Os Saltimbancos", que ele adaptou para o Brasil em 1977, fazendo da peça musical uma espécie de "Revolução dos Bichos" ao contrário e transformando-a num dos maiores sucessos do teatro infantil no Brasil. Em Roma, disse Bardotti, "Os Saltimbancos" nunca emplacaram.
Em Paris, o compositor aproveitou um dos intervalos das gravações para ir ao cinema sozinho. Assistiu ao novo filme de Bergman, "Sarabanda". Lacônico, disse ter gostado muito: "Bergman é um mal necessário".
Dias antes, também em Paris, havia ido visitar a família do fotógrafo Sebastião Salgado, seu velho amigo. Tião, como ele o chama, estava viajando, mas Chico foi recebido pela mulher, Lélia, e pelos dois filhos, Rodrigo e Juliano, com um lanche à base de baguete, frios e foie gras. Assistiu ainda pela Globo Internacional ao jogo entre São Paulo e Flamengo pelo campeonato brasileiro. Torcedor do Fluminense, não parava de provocar durante a partida o amigo e assessor Vinícius França, rubro-negro dos mais fanáticos.
O futebol o acompanhou pela Europa. Em Paris, com a temperatura marcando em média -1º, não conseguiu parceiros em número suficiente para armar sua pelada. Um mês antes, Chico havia contraído uma gripe fortíssima justamente por ter jogado a céu aberto e sob uma garoa fina num campinho de terra batida na mesma capital francesa.
Em Roma, porém, jogou bola duas vezes. Arrumou a pelada no centro esportivo da RAI, a TV e rádio estatal italiana. O time brasileiro, com ele à frente, ganhou a primeira partida dos italianos por 13 a 11 e empatou a segunda por 5 a 5. "Fora de casa, dois bons resultados", disse Chico, sério.
Houve, porém um incidente que o deixou irritado. O par de chuteiras velhas e rasgadas de Chico foram parar no lixo. A camareira do Hotel de Russie, um dos mais elegantes de Roma, ao lado da Piazza del Poppolo, achou que aquilo era um calçado imprestável e deu sumiço. Chico reclamou na recepção, mas em vão. Não conseguiu recuperar o mimo. "Uma chuteira com história, mais de 2.000 assistências e duas centenas de gols", brincou depois com os amigos.
Um dia antes de partir de Roma, Chico deu já na madrugada da sexta-feira, dia 10, uma entrevista ao vivo para um programa sobre música brasileira na rádio da RAI. Falou sempre em italiano fluente. E ainda ironizou a maneira como os italianos costumam pronunciar seu nome: "Kiko Bárkue".
'Escrevo para me entender melhor', diz Chico Buarque
Mariana Timóteo da Costa
da BBC Brasil
O compositor e escritor Chico Buarque de Hollanda foi o centro das atenções em um evento promovido pela editora Bloomsbury na quinta-feira à noite, no Queen Elizabeth Hall, em Londres, para lançar a edição em inglês de Budapeste.
Acompanhado de Patrícia Mello, que está lançando Valsa Negra na Grã-Bretanha, Chico leu trechos de Budapeste em português e inglês - confortavelmente - e conversou com a platéia sobre a sua vida e obra. "Escrevo, tanto livros como músicas, para me entender melhor", disse Chico, bem-humorado.
"E às vezes descubro coisas que queria --e que também não queria-- descobrir", completou o autor e compositor.
Chico falou basicamente sobre literatura, muito pouco sobre música.
Sobre isso, ele apenas declarou que até se divertia, durante a ditadura, ao adotar o pseudônimo Julinho de Adelaide para escapar da censura. "Nunca tinha pensado que, assim como o protagonista de Budapeste, tinha virado um ghost writer."
Depois do evento, Chico distribuiu autógrafos e beijos na imensa maioria de mulheres presente, que não perdeu a oportunidade de tirar uma foto com o ídolo.
Leia a seguir os melhores momentos de Chico durante o evento da Bloomsbury.
Criatividade: "Levei dois anos escrevendo Budapeste. Tinha a idéia de escrever sobre um cara com a vida completamente destruída. Ia inventar uma língua para ele aprender, mas achei que ia ser muito difícil criar uma nova língua. Optei pelo húngaro, que é muito mais fácil, né? (risos)".
Hungria: "Achei mais fácil escrever sobre um país que nunca visitei. Mas tive uma namorada húngara há muito tempo e era fã da Seleção da Hungria da Copa de 1954. Todos os meus jogadores de futebol de botão tinham nomes dos jogadores húngaros. Acho que isso acabou me inspirando".
Frustração: "Às vezes ficava dois, três meses, sem ter uma idéia boa. O trabalho de escritor requer disciplina e fica meio solitário de vez em quando".
Falar em público: "No Brasil, não existem eventos literários como este, que me obrigam falar em público. Achava que ia ser fácil me tornar escritor e ficar mais recluso. Mas pelo visto não escapei do palco. Se bem que ler é ainda mais fácil do que cantar".
Melodia nas palavras: "Não ouço nenhuma música enquanto escrevo livros porque sempre já tenho uma música martelando em minha cabeça. Acho que meus livros acabam tendo uma melodia, sim. É inevitável. Se as palavras juntas não me soam bem musicalmente, preciso reescrever a página".
Egoísmo:"O trabalho de escritor, assim como o de compositor, é bastante egoísta, claro que eu escrevo em busca de alguma coisa, para entender talvez o passado, talvez eu mesmo. Às vezes descubro coisas boas, às vezes não".
Tradução: "Uma jovem australiana traduziu Budapeste para o inglês, acho que ela fez um excelente trabalho em buscar palavras relacionadas à palavra em português, que expressassem as minhas idéias. Mas é claro que o livro traduzido fica diferente, não dá para escapar disso".
Teatro: "Não tenho este orgulho de falar que sou um autor de teatro. Minhas peças foram apenas a criação de links para unir as minhas músicas. Não me considero nem de longe um teatrólogo".
"Já estou pegando o violão"
Com uma música nova, já pronta, enquanto termina as revisões de "Budapeste", Chico afirma que "mora no limbo", conta dos ciúmes que tem de suas canções e de porque fica ressabiado se o chamam de "poeta". Para aqueles que andavam sentindo falta do Chico Buarque das canções, uma boa notícia: ele está de volta. Depois de mais uma incursão aos labirintos da literatura, com seu terceiro romance, "Budapeste", o compositor, que acaba de completar 60 anos, feitos em 19 de junho, já está tirando a poeira do violão e se prepara para mergulhar na música outra vez. Não que os livros tenham ficado de lado. Chico também tem se dedicado ao trabalho de fazer traduções de si mesmo. Ocupado com revisões de edições previstas para sair ainda neste ano em diversos lugares do mundo (incluindo na lista, além dos previsíveis Espanha e Itália, as improváveis Sérvia e Montenegro e Hungria) ele se rendeu às facilidades da Internet e agora tem até e-mail, para facilitar o trabalho.
Entre tantas atividades, Chico Buarque conseguiu separar um espaço na agenda para um bate-papo com a "Ocas". Ao longo de duas horas, falou sobre sua rotina ("Dá tempo de jogar bola, andar na praia"), sua obra ("Tenho algumas músicas que são boas, né?"), experiências pessoais ("Quando fui pego pela polícia, apanhei um bocado"), ONGs ("É como se a sociedade toda tivesse suprido todo o tipo de carência"), política ("A pior coisa que pode acontecer para um governante e estar cercado de puxa-sacos") e sua relação com a imprensa ("Prefiro não falar para não me aborrecer").
O compositor, que marcou a conversa para uma tarde de sábado, fez uma única ressalva quanto à entrevista: "Vai ter que ser depois do meu futebol". Leia, a seguir, a prosa de Chico Buarque.
OCAS - Como andam as traduções de Budapeste?
CHICO BUARQUE - As que eu acompanho, que são espanhol, inglês, italiano e francês, já estão na fase de revisão. A de inglês estava para sair no mês passado. Italiano, como terminamos há pouco, deve sair só no meio do segundo semestre. Volta e meia chegam notícias de novos lugares interessados. Nesta semana, por exemplo, recebi a notícia da venda do livro para a Sérvia e Montenegro, além da Hungria. Só que essas traduções eu não acompanho, por causa do idioma.
OCAS - E nas traduções que você acompanha, você dá palpite, interfere...
CHICO - Sim, sempre foi assim. Antigamente era mais complicado, tinham que me mandar as coisas por fax. Agora é muito mais rápido. Leio tudo. O que acontece às vezes é que percebo erros evidentes de tradução ou compreensão e acabo ficando em dúvida se é realmente aquilo que a pessoa quer dizer. Nessa situação sugiro: "Não seria isso? Não seria aquilo?" e depois o sujeito manda de volta. Às vezes, rebate, às vezes, concorda. Fica uma conversa assim, e é bom. Até para que você compreenda melhor o que você escreveu, é preciso ter muita certeza do que escreveu. Às vezes essas dúvidas levantam a discussão com o tradutor, querendo saber: "Mas você quis dizer exatamente o que com isso, com essa palavra?", e, como já passou um bom tempo, você mesmo fica se perguntando: Mas o que será que eu quis dizer com essa palavra?" (risos). É um pouquinho cansativo, mas por outro lado não é. Lembro no primeiro livro, o "Estorvo", de eu no meio da tradução resolver criar outras coisas. O sujeito traduziu, e eu corrigi. O cara até vinha e dizia: "Mas não foi isso que você escreveu", e eu respondia: "Eu sei, mas agora eu quero que seja:assim" (risos). Uma coisinha ou outra você mexe, você tem o direito de mexer.
OCAS - Você sente vontade de fazer retoques também na sua música?
CHICO - Sim. Na música já senti muito isso, porque tem um momento em que você entrega e pronto, tem que largar. Mas já me aconteceu, por exemplo, de eu fazer uma música e uma letra e, quando eu vou gravar, quando sou eu o cantor, quase sempre na hora de cantar, no estúdio e tal, eu tenho uma outra idéia e mudo uma coisinha ou outra. Já me aconteceu uma vez de gravar, o disco ficar pronto, a capa ficar pronta com as letras impressas e eu, meio dormindo, ter um estalo: "Pá! A palavra não é essa, tem que ser outra!". Aí acordei gente, o disco já estava realmente na prensa, e eu: "Pára! pára! pára!". No final das contas, deu mais ou menos tempo de parar a prensa, mas com a música foi complicadíssimo porque era a época de cortar fita a gilete. Estava tudo pronto, com arranjos e mixado, e era uma palavra só, mas que eu tinha que trocar. Fui para o estúdio, gravei a palavra nova, eles cortaram a fita e enfiaram a palavra nova, sem alterar a música. Fiz por cima, e foi bastante complicado porque a música é toda corridinha, picadinha, e o técnico teve um trabalho cirúrgico. Então acontece isso sempre. Depois não dá mais para mexer. Aí quando você vai, lá adiante, regravar uma música, dá vontade de mudar.
OCAS - A letra? Pode?
CHICO - Pode, se for uma outra gravação, outro arranjo. Até porque não faz sentido gravar igual. Você pode mudar o andamento, o arranjo, a levada, a harmonia, por que não a letra? Volta e meia mudo uma coisinha ou outra, por que não? Agora é claro que sempre a versão que fica, é a da primeira gravação. É ela que fica registrada, que vai songbooks e tal.
OCAS - Você já disse que não gosta de se escutar. É por isso, pela vontade de mexer?
CHICO - É um pouco isso. Mas na verdade eu não escuto muita música. E escutar a mim mesmo só se for para fazer alguma coisa, um arranjo novo. Ficar escutando por escutar eu não gosto. O que às vezes é uma vantagem. Em primeiro lugar, porque é curioso ouvir coisas que você hoje em dia faria diferente, mas também porque você esquece, e pode acontecer de ter uma surpresa boa. Às vezes você ouve uma música sua que não conhece mais, que lembra vagamente. Porque faz 20, 30 anos que você não mexeu mais naquilo. Aí, de repente, você ouve e acha interessante. Isso só acontece por acaso mesmo, porque alguém regrava uma música sua. Agora mesmo passei por isso, arrumando a casa, as minhas fitas. Tinha uma porção de coisas que eu queria jogar fora, pegava e colocava para tocar querendo saber que música era aquela e, de repente, pá!, tinha a surpresa, essa música é minha. Esse cara que está cantando sou eu (risos). É bacana você ficar ouvindo e pensando: "Para onde é que vai agora?". Isso quando a música é boa. Porque, você sabe, tem algumas que são boas, né? (risos).
OCAS - Alguns compositores dizem que, ao criar uma canção, sentem que a métrica e a rima formam uma espécie de prisão, sem possibilidade de expansão, com limites bem traçados.. A literatura parece não ter isso. Essa foi uma das razões de você ter escapado para a literatura, para ter uma coisa mais ampla?
CHICO - Talvez a parte literária da composição seja um bom exercício para, depois, na hora de desamarrar, você se sentir mais solto. Talvez tenha, sim, um prazer nessa liberdade. Mas, por outro lado, existe um prazer muito grande em fazer letra. Muitas vezes faço música em parceria, faço letra para canções prontas. Quando sou eu compondo, nunca faço a letra antes. Mas a música vai puxando a letra e pode ir se moldando, posso ir modificando a música conforme a necessidade da letra, porque ela é mais maleável. Quando eu pego uma música pronta e vou letrar, essa música para mim é intocável, é quase uma questão de honra não mexer, não acrescentar uma sílaba. E isso vira uma espécie de desafio. Então fazer letra de música para além do valor que elas possam ter, para mim, deve ter servido como um exercício, eu devo ter ficado mais forte para poder escrever livremente depois de ter passado por isso. Realmente são dois trabalhos muito diferentes, e se por um lado é um alívio você não ter mais aquele constrangimento da métrica, por outro lado é um pouco assustador você ter essa liberdade toda, poder escrever uma frase de 50 linhas, sem pontuação, com as palavras que quiser, já que não tem que rimar com nada. E tenho a impressão de que existe um certo ritmo na literatura para quem está habituado a trabalhar com música que é peculiar. Existe, mesmo sem querer, um ritmo próprio de quem está acostumado a trabalhar com literatura oral. São palavras que foram escritas para serem ditas. Não é que eu saia lendo meu livro em voz alta, mas é que em algum pedaço da cabeça procuro um ritmo. Porque acho que, se não houver esse ritmo, vou rejeitar aquela frase, vai parecer que ela não está correta, que está manca.
OCAS - Quanto tempo ao todo "Budapeste" levou para ser escrito?
CHICO - Dois anos.
OCAS - Jogou muita coisa fora?
CHICO - Ah, bastante. Muita coisa, principalmente por eu ter uma certa inexperiência. Acontece muito de, no meio do livro, quando você está seguindo por um caminho, lá adiante, depois de um mês de trabalho, você começa a se desgostar, lê e aquele negócio não está legal. Aí é difícil, por ser uma hora em que você é obrigado a renunciar a meses de trabalho porque uma coisa saiu errada. E muitas vezes você nem sabe o que é. Lendo, você diz: "Não é isso, não está bom, a história não está boa, o personagem seguiu um caminho errado". Você percebe isso pela inconsistência das frases, começa a não acreditar no que está escrito, acha que está mecânico. Então é isso, jogar fora, jogar fora, jogar fora, o tempo todo.
OCAS - Todo escritor passa por isso, na sua opinião?
CHICO - Não, acho que todos têm uma facilidade maior para escrever. Mas eu não sou esse escritor. Eu, aliás, não sou um escritor, sou um homem de música que escreve textos. Escritores geralmente não me consideram escritor, também. E eles têm razão. Até porque eu não faço questão de me considerar um escritor. Quando viajo, chego ao hotel e tenho que escrever minha profissão, escrevo sempre "músico". Mesmo quando vou a festivais de livros, lançamentos, é sempre "músico". Sendo que os músicos também não me consideram músico... (ri muito). Os músicos vivem dizendo: "Mas ele é um poeta". Porque, não sei se você sabe, quando os músicos não gostam da música do sujeito, dizem que ele é um poeta. Já conheço essa gracinha e, quando eles falam que eu sou um poeta, olho feio. Agora mais recentemente é que os músicos estão me redimindo (risos). Mas, se você for perguntar para um spalla da orquestra sinfônica se eu sou um músico, ele vai ficar ofendido. Ele não me considera um de seus pares. Assim é também com a grande maioria dos nossos literatos (risos).
OCAS - Você está num limbo, então.
CHICO - É, moro no limbo (risos).
OCAS - Você trocou a música pela literatura?
CHICO - Há 2 anos, eu simplesmente só fiz escrever. Meu violão ficou desafinado. Não é que eu não tocava violão, eu não tocava no violão. Porque eu não consigo misturar as duas coisas. E agora estou penando para voltar para a música, existe essa dificuldade. Parece coisa fácil, as pessoas acham que é um pouco isso, mas não é. Do tipo deu na veneta escrever um livro, pronto, vou Iá e escrevo um livro. Deu na veneta fazer música. Não é assim, é custoso. Começar a escrever um livro demora muito, você tem que escrever todo dia, aquela coisa. Eu, por exemplo, quando cheguei ao terceiro capitulo, falei: "Caceta, esse cara não é um arquiteto, a profissão dele não é essa". Aí volta tudo. Quer dizer, não foram 2 anos escrevendo um livro de 170 paginas. Foram 2 anos escrevendo vários livros que joguei fora. Todo mundo sabe que é assim, mas é mais do que as pessoas imaginam. E não ache que eu estou me queixando, pelo contrário, foram 2 anos maravilhosos. Tive momentos muito difíceis, em que tinha que jogar fora coisas que eu gostava. Ficava uns 2 dias até conseguir tomar a decisão. Quando conseguia, me sentia muito bem, como se eu largasse um vício, uma coisa que me fazia mal. Depois, na hora de retomar, dá medo de entrar no caminho errado de novo, de trabalhar mais 1 mês e ter que jogar fora. Em muitos momentos, dá uma grande agonia. Você não sabe onde está o final, quando tem que acabar, se vai ficar bom, se vai interessar a alguém. Mas dá muito prazer conseguir, antes de dormir, à noite, imprimir o que você escreveu naqueles dias, ler e gostar daquilo que escreveu. Porque o escritor tem que gostar de ler. Tem que gostar de ler aquilo que, por um acaso, foi ele quem escreveu. A questão é que agora essa história de tradução ainda está me prendendo a esse livro. Eu gostaria de já estar livre dele, porque quero voltar a compor. Já estou pegando o violão, mas estou com a cabeça um pouco presa lá ainda.
OCAS - Você se impõe uma rotina para compor?
CHICO - A rotina da literatura não existe, porque você fica o dia inteiro pensando nisso. Claro que dá tempo de jogar bola, andar na praia, mas você está com aquilo na cabeça o tempo todo. Durante esses 2 anos era um pouco difícil para mim ir ao cinema, me entregar inteiramente a um filme que eu fosse assistir. Você fica muito autocentrado, girando naquele mundo que você criou, que ainda está em gestação. Tudo o que você vê e lê de certa forma você acha interessante, acha que pode de alguma forma te sugerir coisas. Não imediatamente, porque isso não existe. Um jornal que você lê não traz uma notícia que vai te servir ao livro. Ao mesmo tempo teu livro é contemporâneo àqueles acontecimentos. De certa forma uma coisa acaba sendo filtrada pela outra. Já o trabalho com música é mais disperso. Geralmente, música é mais dispersiva. Disciplina não existe nenhuma, porque você não consegue fazer nada em trabalhos com arte sem prazer. Se você não tiver prazer naquela escrita, quando começa a não sentir mais isso, é porque alguma coisa está errada. Você pega o violão, começa a tocar, tem uma idéia, vem uma seqüência harmônica interessante, e é capaz de ficar 8 horas repetindo aquilo, não almoçar, não jantar. Agora se você tentar perseguir aquilo e aquilo não vem, e você passa meia hora com o violão, buscando, e aquilo não chega, você tem mais é que sair e tomar um sorvete. Porque não adianta, aquilo vai te deixar doente. A busca do prazer não funciona dessa maneira. Ele está ali ou não está. Não adianta forçar. Então, no caso da música, você faz uma coisa aqui, burila, burila, termina a música, vem um hiato até aparecer outra música. O que significa que, durante 1 ano, eu posso compor as canções de um disco, 10 músicas e não mais que isso. Porque tem essa história de os tempos de criação começarem a ficar mais largos. E o tempo de vida vai ficando mais estreito (risos). Por isso é que às vezes eu penso que vai chegar uma hora em que eu vou ter que parar com essa brincadeira, porque não vai mais dar tempo. (Começa a falar de modo irônico) Por exemplo, para eu fazer um disco, tenho que me livrar do livro, e isso leva alguns meses. No último disco, levei 1 ano compondo as músicas, o que quer dizer que no próximo vou levar 2. Então, para me livrar de um livro, ao invés de 1 ano, vou precisar de 2 também. Depois de 2 anos vou começar a compor esse disco, e só daqui a 4 anos vou ter terminado de gravá-Io. Aí o pessoal vai dizer: "Vamos fazer show, vamos fazer show", e Iá vou eu fazer show. E isso vai ser daqui a 5 anos. Em 6 anos, vou escrever outro livro. Então, mais 1 ano aí na conta para eu começar a escrever de verdade esse livro. Daí para o próximo livro são 3 anos, que significa que, pela minha matemática, o próximo livro ficaria pronto daqui a 11 anos. Aí eu vou estar com mais de 70 anos (ri muito). E, se eu ainda decidir nessa época fazer música de novo, esses prazos todos vão crescer, e em progressão geométrica! Mas, falando sério, tem uma hora que você, evidentemente, quer fazer uma coisa só. Pode ser que daqui a 1 ano eu pare e veja que não estou mais conseguindo fazer música. Aí a única solução é fazer música no tempo de Caymmi: faço uma canção, descanso, espero, faço outra (risos). É uma idéia, também. E, ao invés dos pincéis dele, posso talvez me dedicar à literatura. Mas, mesmo assim, daqui a uns 20 anos, não tendo mais escrito nenhuma música, e tendo feito uns 2 livros, quando eu for me registrar no hotel vou colocar "profissão: músico".
OCAS - Ainda sente prazer em fazer shows?
CHICO - Sinto saudades do clima de show, do clima de camaradagem com os músicos, estarmos juntos. Depois do show, é ótimo sempre, jogar futebol, jantar, tomar um vinho. Ter essa família, como dizia o Vinicius. Gosto desse clima de encontrar as pessoas no avião, no ensaio, no restaurante, no camarim. Adoro ter essa trupe viajante, gosto muito do clima entre os músicos. Porque depois vou me trancar, escrever ou compor, e isso é uma solidão danada. A música é gregária, não só a parte de show como também estúdio e gravações. Gosto de ir para o estúdio com as músicas, conversar sobre os arranjos, ouvir palpites, mudar aqui e ali, brincar. Isso é muito bom.
OCAS - A idéia, quando você começa a compor, é que isso sempre desemboque num show?
CHICO - Não é obrigatório. Já gravei discos sem fazer show. O que acho um pouco difícil, mas que também pode acontecer, é fazer um show sem o disco. Já fiz isso, é uma variação da mesma história. Quando eu terminei de escrever o "Estorvo" passei por esse mau bocado por um tempo. Pensava que não conseguia mais fazer música. E o interessante nessa dificuldade era que a dificuldade não estava em fazer música, e sim em fazer letra. Eu lembro que falei meio brincando na época que eu estava fazendo várias músicas e que precisava de um letrista. E apareceram tantos candidatos a letrista que tive que avisar para as pessoas que era mentira. Porque eu não sei fazer isso, fazer a música e dar para outra pessoas fazer a letra. Morreria de ciúmes. Sei fazer o contrário, pegar a música de outro botar a letra. E, se o sujeito não gostar, peço desculpas. Acho que não gostaria de alguém colocando Ietra nas minhas músicas porque tenho uma idéia de Ietra que não consigo realizar. Geralmente o músico entrega para um letrista porque ele não tem idéias para a letra, não está acostumado a escrever. Quando o cara ainda faz um pouquinho de letra, cria-se um pouco de atrito, como era o caso do Tom. Tivemos vários atritos amigáveis, porque ele entregava a música para eu colocar a letra e depois ficava querendo mexer na minha Ietra (risos). A gente discutia e tal. Mas não é isso que acontece na maioria das vezes. Quase sempre o cara só tem, no máximo, o título da canção. É engraçado isso, sair da literatura e ir para a música. Porque é quase como se a música estivesse te chamando, você está carente dela. Você quer tocar violão. E parece o tempo todo que você está escrevendo, que tem uma música tocando lá no fundo da sua cabeça. Ela fica ali no teu pé, te marcando. Talvez querendo se vingar, acho. Aí o problema é que você não sabe mais o que fazer com as palavras, porque elas não estão mais habituadas a sair assim, em forma de música, se agrupar daquela maneira. É impressionante a incapacidade que sinto nessas ocasiões em juntar palavras em forma de música. Agora estou mexendo no que seria a primeira música que vou fazer depois desse tempo todo. A música está legal, estou gostando, a letra está quase pronta. Mas a dificuldade de dizer as coisas é absurda. É quase como se a cabeça não obedecesse.
OCAS - Você disse que acompanha de perto as traduções do livro. E as adaptações para cinema, você participa do processo?
CHICO - Não, nesse caso você entrega e seja o que Deus quiser. Até porque não quero me meter no trabalho das pessoas. Não entendo disso, não sei mexer em cinema. Sei menos cinema do que sei língua estrangeira. E não é que eu saiba muito, mas posso dar algum palpite quando se trata de outro idioma. O Ruy Guerra, por exemplo, me mostrou só o primeiro tratamento do "Estorvo", me perguntou o que eu achava, eu falei, e depois disso ele mexeu em muita coisa, mas nem me perguntou mais nada. Nem eu quis que perguntasse. A Monique (Gardemberg, diretora de "Benjamim") me mostrou um pouco mais, me perguntou, pediu opinião. Discordei de algumas coisas, ela acatou, outras não.
OCAS - Você foi à estréia do filme sobre seu pai, o "Raízes do Brasil": Você tem saído mais depois que terminou o livro?
CHICO - Não, mas, quando estou escrevendo, aí é que eu saio menos ainda. Por aquilo que eu te disse, é difícil ficar o dia inteiro, dia após dia, pensando numa coisa, e depois ir assistir a um filme. Sua cabeça não vai acompanhar. Então fico mais recluso.
OCAS - Agora é diferente?
CHICO - Um pouco, mas a questão é que não gosto de lugares com muita gente. As pessoas falam em timidez, mas não tem timidez nenhuma. Eu não sou uma pessoa tímida. Se eu estiver numa mesa com até 4 pessoas, acho bom. Se tem 5, a quinta pessoa já atrapalha um pouquinho (risos), porque parece que a conversa vai ficar cruzada. É como música em restaurante. Sempre peço para tirar a música, pelo amor de Deus. A música começa a perturbar meu pensamento, eu começo a prestar atenção só na música, a pessoa fica falando comigo e eu não consigo fazer tudo ao mesmo tempo. Porque eu quero falar com aquela pessoa. Por exemplo, se eu estiver numa mesa falando com você, e tiver 2 pessoas ali ao lado falando também, vou querer ouvir o que você está dizendo, mas vou querer saber também o que os outros 2 estão falando. Ou como quando você chega nessas festas que têm música tocando alto, você não entende nada do que as pessoas estão falando, aquilo me deixa um pouco incomodado. Alguns me dizem: "Então vai dançar", mas eu não sou bom dançarino. Então é isso. Não é vontade de reclusão. Gosto de uma boa conversa, sair com os amigos, caminhar na praia, converso com o porteiro, o carteiro.
OCAS - Quando alguém te reconhece na rua, você responde, atende quando te chamam?
CHICO - Como assim, você quer saber se viro a cara?
OCAS - Quero saber se você conversa com fãs na rua.
CHICO - Claro, eu sou muito educado (risos).
OCAS - A imprensa, à época do lançamento do filme sobre seu pai, publicou fotos e entrevistas suas com sua mãe. Como é sua relação com ela?
CHICO - Bom, minha mãe, por exemplo, odeia Dia das Mães. Como ela não gosta de dias em geral, tipo Dia da Secretária, essas coisas. Porque a cada ano parece que tem um dia novo, né? A Câmara dos Vereadores está sempre aprovando alguma coisa assim, Dia de Marido. E minha mãe é antiga, ela viu quando essa história de Dia das Mães começou, os americanos trazendo essa tradição para cá. Então ela não acha graça, mesmo. E eu era garoto, um dia chegaram as preparações para o tal dia, e a professora de português resolveu fazer um concurso de redações. Quem ganhasse ganhava uma caixa de bombons e um buquê de flores para dar para a mãe. Eu fiz um soneto e com esse soneto ganhei a competição. Ah! e tem também outra coisa: minha mãe era também a mais velha entre as mães dos outros garotos, porque minha mãe, quando eu nasci, ela já tinha mais de 30 anos. Os meninos falavam para mim: "Pô, sua mãe é velha, hein?" (risos). Enfim, aí ganhei esse concurso e cheguei em casa feliz da vida. Minha mãe gritou: "O que é isso? Que bobagem de Dia das Mães! Como é que você ganhou essas flores?". E eu respondi: "Com esse soneto que eu fiz para você" (ri muito). Aí ela leu o soneto, ficou ofendidíssima e jogou fora. Ela não quis entender como uma peça de ficção dirigida a uma mãe fictícia, ela levou para o lado pessoal (risos). Mas a verdade é que lá em casa éramos muitos filhos, e nunca fui paparicado. Só minha babá que me paparicava:
OCAS - Uma parte do seu cancioneiro tem a presença da pobreza. Você é uma pessoa que nasceu na elite, mas seu cancioneiro reflete esse outro lado.
CHICO - Em primeiro lugar acho que temos que deixar claro que não fui criado como um filho da elite. Não nasci no morro, não passei fome, mas também não tinha tantas facilidades. Eu vi a pobreza se agravar ao longo dos tempos. Por exemplo agora já não são mais crianças que vão morar na rua, são crianças parindo outras crianças na rua. O lado mais miserável da pobreza por acaso eu tive contato com ele, por algum tipo de preocupação social de gente que me criou e me acompanhou desde a minha primeira juventude. Sem contar que meu pai era professor, não era um banqueiro. E eu convivia na rua com gente pobre. Não conheci muito essa miséria associada à violência, porque ela ainda não existia. Vou contar uma história, pra você entender melhor. Fui preso, com 17 anos, pela minha brincadeira de playboy, aquela história de roubar carros, pegar o carro do sujeito, andar até acabar a gasolina, largar o carro na puta que pariu e voltar para casa a pé. E, quando fui pego, apanhei um bocado. Tem gente que fala que foi o golpe militar que piorou a situação nas delegacias de polícia, mas porrada em preso já existia. Isso é uma instituição nacional e secular. Depois de tomar porrada de todos os guardas, do ascensorista, do delegado, ser ameaçado de tortura, finalmente consegui convencer aqueles caras de que eu era menor de idade e fui transferido para o que seria hoje uma Febem. Passei uma noite lá, meu colega de cela estava preso porque tinha roubado uma mula. Quer dizer, não existia drogas, essa loucura toda que é hoje em dia. Há pouco tempo fui jogar futebol com uns artistas contra meninos de uma espécie de Febem dessas, de Niterói, para dar uma alegria para a garotada. Só que, chegando lá, eu falei que não sabia se deveria jogar no time dos artistas ou dos menores infratores (risos). Quando era pequeno briguei muito, quebrei dedo, mas nunca ouvi filar de ninguém perto de mim que tivesse puxado uma arma. Não existia essa possibilidade. Era fora de propósito a idéia de um garoto, mesmo pobre, mesmo fodido, fazer esse tipo de coisa. Não acredito que o fato de ter sido bem criado, ter freqüentado boas escolas, me faça sentir estranho perto do mundo da pobreza, da miséria e da violência que têm acompanhado a gente no dia-a-dia. Tenho visto isso o tempo todo, cada dia crescendo mais. Se eu pegar a minha música, não vejo essa coisa mitificada. O que eu vejo, por exemplo, é que canções falando sobre esse tema compostas nos anos 70 são quase ingênuas se trazidas para hoje.
OCAS - De que maneira a situação de violência no Rio te afetou?
CHICO - A mim, pessoalmente, muito pouco. Na semana passada, roubaram a bicicleta da minha filha, por exemplo, ali na Lagoa. Todas as minhas meninas já foram assaltadas mais de uma vez, mas eu nunca fui. Nunca andei de relógio, anel, corrente, até para evitar isso, para não ter muito o que levarem. Então, desses pequenos crimes ando mais ou menos salvo. Mas isso não quer dizer nada. Essa confusão não me afeta fisicamente, mas de resto afeta tudo. É ruim estar nessa loucura. Não vivo com paranóias, não tenho essa preocupação. Já passei por climas parecidos, mas que eram mais fáceis de lidar. Por exemplo, no tempo da repressão, sendo realmente ameaçado de ser morto, sofrer acidentes, eu convivia com isso. Não era paranóia de repente chegar uma caixa na minha casa e eu ter que atirar longe para ver se explodia. Mas o que acontece hoje é que você vive com esse clima, e o que te ameaça não vem do inimigo. Esses caras que estão fazendo isso, eu provavelmente dou razão a eles. Se o cara quiser entrar aqui em casa e levar essa porra toda, me dar porrada, eu vou ficar muito puto, não vou gostar de apanhar, mas no fim das contas vou pensar que se eu estivesse no lugar dele faria a mesma coisa. Às vezes as pessoas jogam pedras do mirante aqui na minha piscina, e eu penso que, se eu estivesse lá em cima, também jogaria, entende? Estou lá, vendo isso tudo aqui embaixo, estou sem um puto, eu não vou virar evangélico, não vou ler a Bíblia, talvez tente trabalhar e não consiga nada e, aí ainda mais, eu vou querer aquela bicicleta daquela garota que está passeando na Lagoa.
OCAS - Como você vê a iniciativa das ONGs? Você acha que existe um esvaziamento da responsabilidade do governo, que acaba caindo nessas organizações?
CHICO - Sei que é difícil você se conformar com o trabalho assistencial. E hoje em dia se vê muito mais, até mesmo por parte do governo, esse tipo de iniciativa. Como se a sociedade toda tivesse suprido todo o tipo de carência. Estou pensando aqui, não sei se tem a ver com a sua pergunta, que eu estudava em colégio de padres. Éramos alunos de uma escola cara, de padres progressistas, e que nos levavam para distribuir cobertores e sopa na Estação da Luz, em São Paulo. E, naquela época, esse tipo de assistencialismo era ridicularizado. Diziam que não era nosso papel mudar o país. De lá até hoje, as idéias revolucionárias dos movimentos estudantis, por exemplo, se perderam dos anos 60 para cá. E sobrou isso como alternativa. Seja, como é para alguns, uma forma de aplacar a consciência, seja um trabalho de dedicação verdadeira como é para outros, que querem ser úteis à sociedade. Agora, se vai resolver ou não, é muito pouco provável. Porque as ONGs entram onde o poder público não entra e atacam problemas que o governo, por um ou outro motivo, não enfrenta. Mas não dá para cobrir todas as frentes.
OCAS - Por que você não foi ao jantar de desagravo ao ministro José Dirceu? A imprensa divulgou que você chegou a confirmar presença, mas não apareceu.
CHICO - Pois a imprensa se enganou. Porque eu fui convidado pelo Eric Nepomuceno no dia 17 de abril, e ele mesmo se encarregou de passar a mensagem ao Fernando Morais de que eu não poderia ir ao jantar no dia 30. Eu disse que não queria. Na véspera estava Iá em todos os jornais o meu nome como presença confirmada. No dia seguinte disseram que eu faltei alegando problemas de agenda. No outro dia, saiu na coluna social da "Folha de S. Paulo" que minha ausência foi notadíssima. Aí fui obrigado a falar com a moça da coluna. Eu simplesmente não poderia estar em São Paulo naquela noite. Eu também acho que existe uma má vontade muito grande da imprensa com esse governo. Outro dia me perguntaram se eu não tinha telefonado para o José Dirceu. Eu mal conheço o José Dirceu, não acho que tenho que ficar telefonando para ele. Perguntaram para mim também se eu estava satisfeito com o governo Lula, e eu respondi que era óbvio que não. E acho ótimo eu não estar satisfeito. A pior coisa que pode acontecer para um governante é estar cercado de puxa-sacos. Mas isso também não significa que eu esteja decepcionado com o Lula. Votei nele várias vezes, votei dessa vez e não me arrependo do meu voto. É claro que há coisas que tenho esperança de que ele vá resolver. Espero talvez o impossível, mas alguma parte do impossível eu imagino que ele cumpra, porque nem ele pode estar satisfeito. Nem estou muito surpreso, não esperava coisa muito diferente, pelo menos nos 2 primeiros anos. Não podia esperar o rompimento com a linha econômica que foi traçada antes, por exemplo. Agora outra coisa é essa intimidade com o poder. Sou um pouco avesso a isso, não me sinto muito à vontade para, por exemplo, ir jogar futebol com o Lula. Eu quero continuar gostando do Lula, torcendo por ele, mas a distância. E ele sabe disso. Não me vejo muito indo jantar com o ministro. A única pessoa lá que tenho mais contato é o Gilberto Gil. E mesmo assim tenho dificuldade em vê-Io como ministro, eu o vejo como o Gil, entende? Ficar telefonando, estar próximo, essas coisas não são papel do artista. Prefiro não ter vínculos sociais, só isso. E em nenhum momento há uma animosidade, ou uma vontade de demonstrar publicamente contrariedade. Há uma má vontade com o Lula muito forte, com ou sem motivos. E o que puderem fazer para criar atrito em qualquer área parece interessante.
OCAS - Qual a sua relação com a imprensa atualmente?
CHICO - Fico um pouco desgostoso quando sou obrigado a falar. Porque, quando sai publicado, não gosto da maneira que saiu. Mesmo que sejam as palavras que eu disse. Porque as pessoas que ouviram minhas palavras escreveram aquilo, e elas já não são mais as que eu disse. Aí prefiro não falar, para não me aborrecer. Porque acabo sempre me aborrecendo. Se eu puder evitar, é melhor.
Guardian unlimited
The lionised king of Rio
Jemima Hunt
Sunday July 18, 2004
The Observer
Chico Buarque's songs and novels have made him a hero in Brazil - even though exile is his main theme
Last month saw the 60th birthday of Chico Buarque. In Brazil, where he lives, the event was national news. TV channels replayed interviews and clips from past concerts and public appearances. Two of the country's leading broadsheets ran lengthy articles on the man who has helped define Brazilian culture for the past four decades. Not wanting to be left out and in acknowledgement of Buarque's support of his election campaigns, the Brazilian President Lula de Silva wrote a letter offering birthday greetings.
'I'm an amateur,' says singer-songwriter turned bestselling novelist Buarque, as he pours coffee in his apartment high above Rio de Janeiro's Ipanema beach. 'It's the same with songs. I'm not a professional. Yet somehow I manage to get away with it.' Modesty is a well-known Buarque trait. He is notoriously press-shy. That the protagonist of his latest novel, Budapest (Bloomsbury £13.99, pp192) is a ghostwriter is no coincidence. The character's job is to observe and write without exposing himself, which is what Buarque has always sought for himself. Yet, here in Brazil, he is nothing short of a national treasure. His lyrics are studied as part of the Portuguese BA curriculum. His songs are hummed across the country. Women fawn over his startling blue eyes and chiselled good looks. And as the author of Turbulence, the recently filmed Benjamin and now Budapest, Buarque has sold nearly half a million copies.
He wrote his first short story at 18. 'My father agreed to send the story to the literary editor of [broadsheet] Folha de Sao Paulo only after reading it first.' Buarque neatly explains the father-son relationship. His father, Sergio Buarque de Hollanda was then one of Brazil's leading literary critics and historians. His father approved. The story was published and with it Buarque's career as a man of words was born. Not only did he have his father to compete with but also his cousin, Aurelio Buarque de Hollanda, the man responsible for writing the popular Brazilian-Portuguese dictionary, affectionately referred to as the Aurelio.
Perhaps to escape comparisons, Buarque originally made his name as a musician - albeit one with a strong sense of history. 'Music kind of kidnapped me for a while,' he says. Starting out composing songs in the Sixties, he went on to write hundreds of them. His gift as a social commentator was to inhabit the lives of Brazil's disenfranchised. He sang about street kids, a prostitute given the chance to save the world. 'Construcao', a surrealist fantasy about a construction worker falling to his death became a popular classic, enamouring him to a public struggling with political repression under military rule. He learnt the importance of words at a time when words were banned. 'It was a challenge," he says. 'I had to write 20 songs in order to get two past the censors.'
Novels escaped the censors. Their audience was deemed an insignificant threat. Buarque's first novel, written in 1974, has been erased from his CV. 'I'm not proud of it as literature. It was a book written out of anger,' he says, insisting that protest does not inspire great art. In 1968, Buarque's first play, Roda Viva, an anarchic satire, landed him in trouble with the law. Like his fellow musicians - Caetano Veloso and Gilberto Gil (Brazil's Minister of Culture) who, inspired by bossa nova, created the anti-establishment Tropicália movement, Buarque was forced to flee the country. He went to live in Italy for 18 months. Veloso and Gil fled to London.
Exile is a recurrent theme in Buarque's life and work. Budapest is the story of José Costa, a writer who finds himself stranded in the Hungarian capital when a bomb scare grounds his plane. Written in Buarque's deceptively spare prose, the book is extraordinary for its observations on language, foreignness and love. 'It should be against the law to mock someone who tries his luck in a foreign language,' begins Costa's journey in a strange land. He embarks upon an affair with a woman who mocks him for his poor sentence construction in a language famously described as the devil's tongue. With thoughts of Rio never far from Costa's mind, the story meanders like the unfolding of consciousness.
Plot, admits Buarque, comes second to words. 'When I derived the idea for the book, I thought of setting it in an invented place with an invented language.' That this imaginary place ended up as Hungary was inspired in part by a Hungarian girlfriend, as well as memories of the 1954 World Cup. 'I remember being struck by the players' names,' he says. What emerges is a humorous and philosophical take on the experience of being abroad. The freedom of seeing the world through new eyes, like a child, is matched by the frustration of being faced with an impenetrable wall of sound. Can anyone escape their mother tongue any more than they can shake their past? The theme came back to haunt Buarque as he worked alongside the translator responsible for the English version of Budapest . He discovered that some things had to be rewritten. 'They did not translate,' he says.
He writes every day. His country of birth and city of residence still surprise him. 'Every time I drive into Rio from the airport, I see the city for the first time and think how strange it is,' he says. But it is here in the glamour capital of Brazil where the favelas [shanty towns] cling to the mountain sides and Christ the Redeemer stands with open arms to offer protection to the city, that Buarque finds his inspiration. He worries about Brazil's escalating violence. He believes in the democracy of the beach and the passion of football. He supports Rio's home team Fluminense. On his study wall is a framed photograph of himself as a young man with Bob Marley. Both are dressed in football strip. 'Good times,' he says.
A helicopter's shadow passes suddenly overhead. Somewhere a dog begins to bark. It is time for his stroll along the pavement of what is arguably the most famous beach in the world. In Rio even Chico Buarque can walk freely on the beach.
"É evidente que não estou satisfeito"
Coluna de Mônica Bérgamo
Cada vez mais refratário à imprensa, o cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda surgiu ao lado de sua mãe, dona Maria Amélia, na pré-estréia do filme "Raízes do Brasil", anteontem, no Rio. Numa das cenas do longa de Nelson Pereira dos Santos sobre a vida de Sérgio Buarque de Hollanda, pai de Chico, o presidente Lula aparece novinho, à época da fundação do PT, discursando à frente de Sérgio. O cantor, que apoiou a eleição de Lula à Presidência em 2002, tem evitado falar sobre o governo. Depois de alguma insistência, ele revelou sua opinião à coluna:
Folha - Para você, qual seria a opinião de seu pai sobre o Lula?
Chico Buarque - Ele foi um dos fundadores do PT, mas não sei. Não posso falar por ele, não sei o que acharia.
Folha - E você?
Chico - Eu não sou do PT.
Folha - Mas o que acha do governo Lula até agora?
Chico - Você quer que eu responda isso aqui, agora?
Folha - É, rapidinho...
Chico - É evidente que não estou satisfeito, que ainda falta muita coisa. Nem o próprio Lula está satisfeito. Mas acho que ele ainda tem tempo de realizar pelo menos parte do que prometeu.
A nova festinha de Edu e Chico
Hugo Sukman e Roberta Oliveira
No início de suas carreiras, nos anos 60, Edu Lobo e Chico Buarque tinham um motivo fundamental para compor sem parar.
- Havia aquelas festinhas todas, o que, para mim, era como uma encomenda, lembra Edu.
- Todo mundo ia chegar com música nova e pegava mal não ter uma para mostrar. Imagina chegar na casa do Tom sem música nova para mostrar. Rolava uma adrenalina, não podia chegar com aquela que todo mundo conhece. Hoje não tem mais as festas, por isso é importante a encomenda de uma peça, de um filme para ter motivo para compor.
No que Chico interrompe:
- As festas existem, a gente é que não é mais convidado. Esses jovens de 23 anos fazem essas canções todas para quê? Arrumar namorada.
Nesse clima
- "As meninas também não se impressionam mais apenas com uma música nova. Afinal, o autor é velho", rebate Edu
Eles retomam, 12 anos depois do último trabalho de fôlego (as canções do balé "A dança da meia-lua"), uma parceria que vem fazendo história. No lugar das festinhas, encomendas de teatro ou balé.
O bom motivo para a dupla agora é a peça "Sonhos", título provisório do musical de Adriana e João Falcão previsto para abril de 2001. Com o espetáculo, dirigido por João, Edu e Chico prosseguem a parceria marcada por espetáculos de dança feitos para o Balé do Teatro Guaíra, "O grande circo místico" (83) e "A dança da meia-lua" (88), e de teatro, "O corsário do rei" (85), de Augusto Boal.
A parceria dos dois, que já rendeu clássicos inquestionáveis como "Beatriz", "Valsa brasileira" e "Choro bandido", além de mais de 30 canções no mínimo excelentes, só não teve patrão encomendando nem qualquer ligação com o palco por duas vezes: a primeira de todas, "Moto-contínuo" ("Que serviu para inaugurar a parceria", diz Chico), feita para o disco "Almanaque", de Chico, e depois regravada por Edu com Tom Jobim; e "Nego maluco", samba do último disco solo de Edu, "Corrupião".
Para quem estava com saudade das grandes canções de Edu e Chico, uma boa notícia. Das 12 que pretendem fazer até janeiro, quando serão gravadas num disco com participação de diversos cantores da MPB, quatro já estão prontas, com títulos provisórios e motes curiosíssimos: "Uma canção inédita", "Canção que existe" e um tema de verão (uma canção de amor), além de um hit.
- Passei meses para conseguir compor este hit. Mas sei que, nos dias de hoje, essa música não seria um sucesso de jeito nenhum - lamenta Edu, que inspirou-se simplesmente na sonoridade do último disco de Miles Davis para achar o som do que ele sonha que deveria ser um grande sucesso.
- Trabalhar em teatro é estimulante por isso, mesmo quando fica desesperador. É um processo que nos leva a encarar ritmos com os quais não temos a menor intimidade. Talvez não seja o melhor tango do mundo, mas eu jamais faria um se não fosse o "Tango de Nancy" de "O corsário do rei". Assim como nunca faria um hit como esse. E Chico e eu, quando pegamos um projeto desse tipo, não estamos querendo fazer apenas paródias, mas músicas que também nos agrade ouvir.
Velha amizade que demorou a virar parceria
Desde que começaram suas carreiras, Edu Lobo e Chico Buarque sempre usaram o teatro para fazer canções. Chico debutou no palco com as canções para a montagem de "Morte e vida severina", enquanto o primeiro trabalho de fôlego de Edu foi o desafio de musicar "Arena conta Zumbi", o marco do teatro brasileiro criado por Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal. Na década de 90, entretanto, ambos ficaram longe dos palcos.
- Nós nos afastamos porque ficou difícil produzir. Ao ser remontada anos depois, "Gota d'água" (peça escrita e musicada por Chico) teve que ser feita com fita, porque não havia como manter um espetáculo com músicos ao vivo - diz Chico, lembrando que o projeto de "Sonhos" começou com um convite de um produtor paulista para que a dupla compusesse as canções para um espetáculo sobre os 500 anos do Descobrimento.
- O musical sobre os 500 anos não suscitou interesse, mas a idéia de retomar a parceria sim.
Amigo de João Falcão desde que este dirigiu a atriz Marieta Severo na peça "A dona da história" e tendo acabado de ler "A máquina", livro de estréia de Adriana, Chico ligou para a escritora e propôs que o casal escrevesse um roteiro. Numa madrugada, a dupla rascunhou aquela que é até hoje a trama de "Sonhos": um homem absolutamente comum, num mundo em que todos querem ser alguém, sonha ser uma pessoa especial enquanto um astro, que acaba de lançar um hit cantado no mundo inteiro, sonha ser anônimo.
- Na verdade, no fim descobre-se que se trata apenas do astro sonhando ser um homem comum, sonhando ser alguém famoso. Ao acordar, ele lembra que era uma pessoa que não tinha o que ele tem, mas que tinha coisas que ele não tem, como liberdade - conta João, que ainda não definiu o número de personagens, mas quer escalar atores desconhecidos que, além de interpretar, possam cantar, dançar e até fazer malabarismos.
- Embora tenha um formato tradicional, com início, meio e fim, o fato de ser uma história que se passa num sonho dá aos personagens a possibilidade de fazer coisas que acordados não poderiam fazer, como andar cantando ou esquecer a gravidade.
O musical e os discos da trilha - o primeiro, gravado por intérpretes conhecidos, e um segundo com o elenco escolhido para o espetáculo - deverão ter 12 faixas.
Tendo outros trabalhos em teatro no currículo, como "O berço do herói", de Dias Gomes, foi Edu que teve a idéia da parceria teatral e, em 1983, convidou Chico, que também já trabalhara em espetáculos como "Roda viva" e "Calabar", para inaugurar a parceria com "O grande circo místico".
- Assim como está acontecendo agora, o trabalho de criação se dava em parceria com os roteiristas, porque, muitas vezes, nos era feita uma encomenda, mas o caminho que a música tomava era outro. Em "O grande circo místico", por exemplo, a personagem chamava-se Agnes e não Beatriz, mas o nome não cabia na letra - conta Chico, lembrando que, à medida que ele e Edu compunham as músicas daquele espetáculo, descobriram que o poema "O grande circo místico", de Jorge de Lima, tinha um erro.
- Era a história de uma família circense. Lá pelas tantas, um personagem que até então era neto virava sobrinho.
Além de chamar de "estimulante" o trabalho em teatro, Edu diz que, musicalmente, há uma diferença muito grande entre as músicas compostas para "Arena canta Zumbi" e as de "O grande circo místico".
- As minhas músicas melhoraram muito depois que comecei a trabalhar com o Chico por causa do rigor com que ele trabalha as letras. Força o parceiro a ter o mesmo rigor nas músicas. Não se trata de uma competição, e sim de um desejo de não decepcionar - diz Edu, que está negociando o relançamento em CD dos três musicais que fez com Chico.
- "O corsário do rei" foi mal lançado e "A dança da meia-lua" foi pessimamente lançado.
Assim, 2001 parece ser o da retomada da parceria, com direito a relançamentos de discos quase inéditos e a novidade nos palcos e no disco.
Mesmo muito próximos musicalmente, Chico e Edu já tinham 15 anos de carreira quando engataram a parceria. Antes, eles se cruzaram, Chico como compositor e Edu como arranjador, em 1973, no disco com as canções da peça "Calabar" que, mutilado pela censura, virou "Chico canta". Chico lembra por que a parceria musical demorou tanto:
- Nos anos 60, quando nos conhecemos, eu não costumava fazer parceria com ninguém. Fiz umas coisas com o Tom, como "Retrato em branco e preto" e "Sabiá", mas muito pouco - diz Chico, lembrando que Edu mandou-lhe, no fim dos anos 60, dos Estados Unidos, uma música que ele nunca letrou.
- Fui aprendendo aos poucos, e só nos anos 70, quando comecei a compor para valer com o Francis (Hime), é que comecei a pegar o jeito. Quando encontrei o Edu em "O grande circo místico", eu já estava dominando mais essa história.
Chico está exclusivamente dedicado ao musical, enquanto Edu tem outros trabalhos em vista: terminar a trilha de "O Xangô de Baker Street", de Miguel Faria Jr., e depois do musical gravar nos EUA um disco com Dori Caymmi.
"Eu tenho um pouco de dificuldade em distinguir trabalho de ócio. Não posso ficar parado, catatônico. Mas ir ao cinema, para mim, é trabalho. O tempo todo é assim. Esse negócio de hora é estranho. Cada um tem seu tempo, cada um faz a sua parte."
"Meu ascendente é virgem e depois de um tempo você vira o ascendente. Acho que estou virgem há bastante tempo."
CHICO BUARQUE, cantor e compositor.
"Espetáculo terá performance de uma hora e 40 minutos"
João Falcão, um dos autores de "Sonhos" e o diretor da peça, adianta apenas que o musical terá uma hora e 40 minutos de duração e vai ser encenada em um único ato.
Sobre a escolha de atores, não revela quase nada. Segundo ele, uma seleção deve acontecer entre setembro e outubro.
"Podem ser artistas estreantes ou não. Mas, provavelmente, pessoas menos conhecidas terão menos compromissos e poderão se comprometer com o nosso projeto."
Segundo ele, os artistas procurados devem cantar e atuar, ter habilidades corporais e tocar um instrumento.
"Não queremos só transportar as canções, mas retrabalhar cada uma delas de alguma maneira para a ação dramática. É um musical com muitas possibilidades e ainda temos tempo para uma definição."
João disse que o seu "sonho" é, após a seleção dos atores, começar o trabalho. "Eu adoraria que eles ficassem estudando a peça por alguns meses, até dezembro, antes dos ensaios de montagem, que começam em janeiro. E isso talvez seja a parte mais cara do projeto."
A escritora Adriana Falcão ("A Máquina"), mulher de João e com quem divide o texto do musical, disse que, a partir de encontros regulares com o grupo de criadores, a idéia inicial da história cresceu.
"No início, era só uma sinopse. O texto não estava tão formatado. Era apenas uma coisa de sonho. Mas a história está andando, está bem delineada."
Sobre a indefinição da produção, João disse que isso não é motivo para tanta preocupação.
"A gente vai precisar de um patrocínio bom, e tem gente envolvida nisso. Mas, enquanto não chega, estamos trabalhando sem ele, até porque a gente acredita que é impossível que esse projeto não se realize."
"Prefiro não falar de política quando estou com amigos. Tentei acreditar no primeiro governo, do fundo do meu coração. No segundo, eu já não acreditava. Já discordei da reeleição. Há muito tempo que me sinto sozinho em relação a esse governo."
CHICO BUARQUE, cantor e compositor
Chico Buarque reaparece no musical "Sonhos"
O cantor e Edu Lobo se reencontram em peça sobre pop star que quer ficar anônimo.
Espetáculo está previsto para estrear em abril, em São Paulo; texto é de João e Adriana Falcão.
Fernanda Cirenza
Da enviada ao Rio
Chico Buarque está às voltas com um novo projeto para o teatro, retomando a parceria com Edu Lobo depois de 13 anos. O musical vai se chamar "Sonhos" e está previsto para estrear em abril, em algum teatro de São Paulo.
Conta a história de um pop star que sonha ser um sujeito anônimo e desfruta da liberdade para ser verdadeiro e sonhar.
Questionado se o texto da nova história tem relação com sua vida, Chico respondeu: "Nunca pensei sob esse ponto de vista porque esse artista não se parece com nada, ele também é um sonho. Não tem referência a nada que se possa identificar".
O espetáculo tem também a participação de João Falcão, diretor e dramaturgo, que divide com sua mulher, a escritora Adriana Falcão ("A Máquina"), o texto do musical. João é quem vai dirigir a peça.
A última parceria de Chico e Edu aconteceu em 1987, quando compuseram as canções para o balé "Dança da Meia-Lua".
Três anos antes, musicaram a peça "O Corsário do Rei", de Augusto Boal. Para adiantar o que vai ser "Sonhos", os quatro criadores se reuniram no apartamento de cobertura de Chico, no Alto Leblon, Rio de Janeiro, na última quarta-feira.
Foi o próprio Chico quem abriu a porta para receber a reportagem. Foi ele também quem fez café e chá para o grupo. "É o que eu sei fazer. Você quer mais?"
Chico não se poupou também de recolher as xícaras e arrumar alguns copos em uma bandeja quando alguém lhe pediu água.
Cauteloso em seus gestos e palavras, o poeta deixou escapar, em um dado momento, que começa a se interessar por objetos de arte.
Comentou os trabalhos dos artistas plásticos Antônio Dias e Daniel Senise, expostos frente a frente em uma pequena sala de estar. "Esse do Dias ainda não está no lugar certo." Depois, contou que comprou o trabalho de Senise por meio de um catálogo. "Não sabia que era desse tamanho. Foi uma surpresa boa."
Mostrou ainda a sua mais recente aquisição: um trabalho de Nelson Félix, colocado em um corredor que leva os visitantes a uma sala mais ampla. "É, estou gostando. Antes, essa função não era minha", encerrou o assunto.
A conversa durou quase duas horas. Chico, Edu, João e Adriana anteciparam, com reservas, o que vai ser o musical. "É uma produção voluntariosa", disse Chico, referindo-se ao fato de que o projeto ainda precisa de um patrocinador e de um esquema de produção. "Tirar essa pressão do contrato é bacana", afirmou Edu Lobo.
"Esse personagem não se parece com nada, é sonho"
Chico diz que tentou acreditar no primeiro governo FHC e que não gosta mais de falar de política.
Antes da estréia, prevista para abril, compositores querem lançar CD com até 12 faixas.
Da enviada ao rio
"Sonhos", que deve estrear em abril em São Paulo, tem quatro músicas prontas. No total, devem ser 12 para o disco que Chico Buarque e Edu Lobo pretendem lançar antes do espetáculo. "A peça é outra coisa", disse Chico. Edu compõe, e Chico escreve as letras. João e Adriana Falcão desenvolvem a sinopse da história. "Como é um trabalho em gestação simultânea, uma coisa interfere na outra", afirmou Chico.
A seguir, os melhores momentos da entrevista com Chico e Edu.
Folha - Como surgiu a idéia do musical?
Chico Buarque - Eu e o Edu queríamos fazer um musical há muito tempo. Aí apareceram uns produtores querendo pensar um musical ligado aos 500 anos. Isso foi no ano passado. O tema não atraiu a gente. Mas partiu daí a idéia de "Sonhos". Eu perguntei para a Adriana se ela tinha alguma idéia que não fosse sobre os 500 anos. E assim começou.
Folha - Começou do nada?
Chico - Simplesmente.
Edu Lobo - A gente resolveu fazer um negócio que acho bacana, que é começar a trabalhar sem nada.
Chico - Não existe a produção montadinha. É difícil isso.
Folha - Por quê?
Chico - Porque demora e, quando aparece a produção, você já está atrasado. Tem de começar a fazer uma coisa com a produção pressionando. Então, não pode estar tudo em cima.
Folha - Não tem nada definido?
Chico - A produção existe, tem gente envolvida nisso, mas ainda não está nada definido. Tem uma data porque isso nos obriga a trabalhar também (risadas). Deve ser abril e em São Paulo.
Folha - É, então, uma produção independente?
Edu - Não.
Chico - Em princípio é. É uma produção voluntarista.
Folha - E se ninguém quiser patrocinar a peça?
Edu - Então fecha o Brasil e eu vou morar na Guatemala.
Chico - A gente faz uma cooperativa. Agora não vou parar de fazer essas músicas, não... (risos).
Folha - "Sonhos" conta a história de um ídolo pop que sonha ser um sujeito anônimo. Tem a ver com a vida de vocês?
Edu - Para o Chico, isso é mais difícil. Para mim, é tranqüilo.
Folha - É verdade, Chico?
Chico - Nunca pensei sob esse ponto de vista porque esse artista não se parece com nada, ele também é um sonho. Não tem referência a nada que se possa identificar. O grande sucesso musical que o personagem faz não vai fazer sucesso. A música só faz sucesso na peça. Nunca me passou pela cabeça que essa história tinha a ver com a minha vida.
Folha - Como são essas canções?
Chico - Por enquanto, temos quatro, duas prontíssimas e duas cujas letras estou terminando. Esse hit é uma canção de sedução. Há também canção inédita, então é uma música inédita e o nome da canção é "Canção Inédita" e a música tem de ficar inédita. O valor da música é esse. Tem também a canção que existe, que é a dos sonhos. O personagem se apaixona por uma mulher sonhada.
Folha - Quais são os ritmos?
Chico - A "Canção Inédita" é uma valsa. O hit, não sei... Podemos chamar de pop.
Edu - É o pop do Miles Davis do final da vida dele. Tem uma espécie de atmosfera pop, só que é uma música com frases que não existem na chamada música pop tradicional. É um hit idealizado.
Folha - Quantas músicas vão ser?
Chico - Eu tinha falado em 10, 12. Mas o próprio formato, com atores performáticos e tal, significa que, durante a peça, os diálogos vão ser quase raps cantados, ritmados, falados. Não são canções porque são músicas que aparecem ou vinhetas ou pequenas canções. Vai haver um disco, antes da peça, com 10 ou 12 canções. A peça é outra coisa.
Folha - E como isso tudo vai funcionar no palco?
Chico - Tudo ao vivo, mas nada de músico no fosso ou no canto. A idéia é integrar tudo.
Folha - Como vocês se dividem?
Chico - João e Adriana estão desenvolvendo a sinopse já com indicações de situações musicais. O Edu escreve as músicas, e eu, as letras. Como é um trabalho em gestação simultânea, uma coisa vai interferir na outra.
Folha - Vocês não trabalhavam juntos desde 87?
Edu - Isso é uma loucura. Porque não faz 13 anos que a gente fez as canções para "Dança da Meia-Lua". Parece menos.
Folha - A relação com o tempo mudou?
Chico - É a vida. Mais um dia... (ele canta), e, no final, uma letra enorme. Agora é tudo tumtumtum, parapumpumpum. Morreu. Acabou. O próximo.
Folha - E "Estorvo", o filme?
Chico - Gosto muito do filme. Acho que não é apropriado para Cannes. O Ruy concorda com isso. E aqui repercutiu muito pelo fato de ter tido críticas negativas. Por outro lado, o "Le Monde" fez críticas boas, ninguém fala disso aqui no Brasil. Eram críticas pequenas, que faziam ressalvas, mas muito elogiosas.
Folha - Gostaria que vocês comentassem o governo FHC
Chico - Jura? Prefiro não tocar nesse assunto. Há muito tempo que eu me sinto bastante sozinho em relação a esse governo.
Folha - Por que sozinho?
Chico - Porque eu tentei acreditar nesse governo, no primeiro governo. No segundo, eu já não acreditava mais. Já discordei do processo de reeleição. Fico numa situação desagradável, porque o que eu digo é muito pessoal.
Antes era mais fácil porque nós éramos todos contra a censura, contra o regime militar. Todos tínhamos um adversário comum.
Folha - Chico, você trocaria a seleção oficial pela seleção olímpica?
Chico - Ronaldinho fez muita falta, ele estava suspenso, não podia jogar. Desmanchou o time todo. (Chico referia-se ao jogo Brasil e Chile da última terça-feira, em que o adversário goleou a seleção, vencendo por 3 a 0.)
Folha - A ausência do Ronaldinho justifica a lavada de 3 a 0 do Chile contra o Brasil?
Chico - Não, a lavada foi porque aquele cara acertou a perna do chileno. Ali acabou o time. Essas coisas definem a partida.
Villela prepara versão "faroeste" do musical "Ópera do Malandro"
Reportagem local
No país onde cartaz de "procura-se" expõe até ex-juiz, a "Ópera do Malandro" converte-se em metáfora do "estábulo Brasil", nas palavras do diretor mineiro Gabriel Villela, 41.
Sua versão "faroeste" (ou "bangue-bangue") para o musical de Chico Buarque, cuja primeira montagem aconteceu em 1978, vai entrar em cartaz no dia 22 de setembro, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo.
Segundo Villela, a relação de Teresinha, representante da ascensão capitalista, com o malandro Max Overseas "reflete a união de todas as instituições de uma nação absolutamente entregue a falcatruas, à corrupção, ao comércio generalizado do corpo".
Ou seja, um casamento perfeito, conforme os interesses das partes envolvidas. É sob essa perspectiva, a do casamento, que Villela concebe sua trilogia com musicais de Chico.
Depois da "Ópera do Malandro", é a vez de "Gota d"Água" (75), parceria do cantor e compositor com Paulo Pontes (estréia dia 1º de maio). A trilogia fecha com "Calabar" (73), criação de Chico e Ruy Guerra (prevista para 12 de outubro).
"O grande matrimônio da primeira história é abortado na segunda e nem chega a ser consumado na terceira peça", afirma.
A trilogia será interpretada pela Companhia de Repertório do TBC, criada por Villela. Ele recém-assumiu a direção artística do teatro no bairro da Bela Vista.
Da audiência inicial com 600 candidatos, foram selecionados 23 para o elenco estável. Todos os atores da companhia têm contrato para o projeto da trilogia, patrocinado pelo Grupo Chaim.
Responsável pela reforma arquitetônica do TBC, no ano passado, J.C. Serroni também assina a cenografia dos musicais.
CHICO BUARQUE DE HOLLANDA O HOMEM QUE NÃO GOSTA DE OUVIR MÚSICA
Um dia ouvi alguém dizer sobre um artista de grande talento da minha geração: "falta-lhe sofrimento e um pouco de ódio no coração para ser um grande artista". Não estou assim tão certo se estes componentes são necessários para a construção de um grande artista.
Chico Buarque, um dos maiores artistas brasileiros do século XX, construiu uma obra densa - ainda que curta na literatura mas vastíssima na música popular - e não há qualquer sombra de ódio nos seus olhos azuis nem presença de sofrimento no seu vasto sorriso.
Durante as três horas que passamos juntos no seu apartamento - de vista deslumbrante - no Leblon, Chico me pareceu o ser mais pacificado que conheci. Lembro-me de Bruna Lombardi entrevistando Harrison Ford e Marília Gabriela entrevistando Madonna. Que desagradáveis figuras, desumanas, incapazes de descerem de seus pedestais de mito. Chico, para nós, é muito maior do que os dois juntos e, sentado conosco, um marciano jamais descobriria ali a que líder deveria ser levado. Éramos todos mortais da mesma praia.
Além do clima de total descontração, foi uma alegria imensa para nós descobrirmos - Zezé Sacks era a única que sabia - que tanto nossa revista como Chico Buarque faziam aniversário no mesmo dia. Se seu signo for tão dadivoso para Bundas como foi para ele, que grande futuro aguarda esta revista.
Outra coisa: a entrevista foi profundamente alegre, gêmeos nos protegia, o astral era altíssimo e, por um longo tempo, conversamos abobrinhas com Chico. Se você estiver atrás de uma revelação bombástica, não leia esta entrevista pois nenhum de nós - os entrevistadores - estávamos atrás disso. Agora, se você quer conhecer um pouco da alma boa de Chico Buarque, venha conosco, com a Maria Lucia Rangel, com a Zezé Sacks, o Caco, o Miguel Paiva, o Aroeira, o Fred Fotógrafo, o Luís Pimentel, o Poerner, o Ricardo Leite e o locutor que vos fala, os privilegiados. (Ziraldo)
Ziraldo - Chico, a gente tá há um ano aqui tentando uma entrevista com você, e de repente eu pego a revista Sexy e tá lá: "entrevista exclusiva com Chico Buarque de Hollanda"...
Miguel Paiva - O que aconteceu ali, Chico? Você disse aquilo tudo que saiu em seu nome?
Chico Buarque - Disse nada! Eu também levei um susto. Na verdade, não era uma entrevista minha. Inventaram uma história, tiraram várias coisas de outros lugares, outras entrevistas. E a mulher colocou na minha boca, com palavras dela. Não que as informações estejam erradas, mas eu fiquei parecendo um débil mental falando. E olha que coisa de maluco, eu canto no meio da entrevista, respondo perguntas com trechinhos de canções...
Luís Pimentel - Mas o que deu nessa moça?
Chico - Eu vi no expediente, ela é editora-executiva da revista. Mas melhor do que isso foram as explicações que vieram depois, quando eu protestei. O editor dela mandou dizer que sim, que ela fez a entrevista comigo no Aeroporto de Guarulhos, quando estava indo visitar meus netos, em Salvador. Eles tinham tudo isso: a história de como foi feita a entrevista, dia 27 de abril, Aeroporto de Guarulhos, das onze da manhã ao meio-dia... Tudo com uma precisão que eu mesmo comecei a achar que talvez pudesse ter dado a entrevista. Só vi que eu não tinha dado quando a li. Eu não poderia ter falado aquelas coisas, eu nunca falei coisas assim.
Ziraldo - Você chegou a ficar em dúvida?
Chico - Os editores sustentavam a versão da moça e diziam: "Por que ela iria fazer uma coisa dessa? Só se ela fosse louca, porque a gente ia publicar, você ia reclamar e a gente ia ficar nessa situação..." Eles realmente não tinham por que duvidar dela, era uma coisa de maluco. E pra provar que havia feito a entrevista, ela tinha várias coisas: a data, o horário, o local e até uma letra inédita, que eu teria feito e que felizmente não foi publicada.
Pimentel - Ela estava guardando para a suíte.
Caco Xavier - E a letra é boa?
Chico - A letra é um horror! O pior é que o editor me mostrou e disse: "Tá vendo? Essa letra é a sua cara!" Foi aí que eu resolvi processar! Depois dessa eu tive que ligar pro advogado.
Ziraldo - A BUNDAS sai com sua entrevista exatamente no dia do seu aniversário, que é também o aniversário da revista, 19 de junho, quando completa um ano. Que signo é?
Chico - Gêmeos. [Rindo e apalpando uma "bunda" imaginária] E bundas também são "Gêmeas".
Ziraldo - Eu queria falar sobre os teus livros, o Estorvo e o Benjamin. Essa coisa de escrever é uma necessidade? Por que você resolveu virar escritor, depois de já estar consagrado como músico?
Chico - "Por que cismou de escrever depois de velho", você quer dizer, né? Antes mesmo de começar a fazer música eu queria ser escritor, achava que ia ser escritor. Eu tinha uns 17, 18 anos, e tive um conto publicado no suplemento do Estado de S. Paulo. Eu escrevia várias coisas, pra jornalzinho de colégio e tal. Aí veio a coisa da música e...
Ziraldo [citando trecho de Roda Viva] - "...carrega a vida da gente pra lá..." Como é que é a letra, mesmo?
Chico [rindo] -É, vou responder cantando música, boa idéia!
Maria Lucia Rangel - O que seu pai [Sérgio Buarque de Hollanda] indicava pra você ler, já que você queria ser escritor?.
Chico - Não é que ele indicasse, realmente... ele dizia: "Leia mais, leia mais, leia mais". Às vezes ele comentava autores como Guimarães Rosa. Lembro de ter visto o segundo livro do Rubem Fonseca, Coleira do cão, em cima do piano. O livro estava lá, dando sopa. Meu pai ainda não tinha lido, mas falou: "O Antônio Cândido disse que é muito bom". Aí, claro, eu peguei pra ler.
Miguel - O Estorvo é um livro difícil, e me parece que o filme feito a partir dele também é um filme difícil. Você escreveu intencionalmente um livro difícil, pra contrapor à obra popular, da música popular?
Chico - Eu não quis escrever um livro difícil, e nem acredito que seja um livro obscuro. Mas é, evidentemente, uma linguagem inteiramente diferente da linguagem da música popular. É um livro 'literário', se a gente pode chamar assim. Não teria sentido, pra mim, deixar de fazer música pra fazer algo parecido em literatura. É outra linguagem, mesmo, outra forma.
Ziraldo - Em geral, o sujeito quando faz uma obra qualquer, cria uma medida de satisfação, de reconhecimento. E mesmo quando ele atinge essa medida, no nível que você atingiu, normalmente o sujeito quer fazer sempre mais.
Chico - Mas eu não quero fazer "mais": quero fazer diferente. Até pra preencher um vácuo, porque chega um momento em que a música popular não te ocupa tanto tempo quanto te ocupava na juventude. Não é por falta de inspiração nem nada disso, mas porque você não tem mais aquele entusiasmo pela música que você tinha quando estava com 20 anos.
Miguel - Você está compondo menos?
Chico - Componho menos. Todo mundo compõe menos, depois de um certo tempo. Quando você grava o primeiro disco, deixa de fora o dobro das músicas, porque no disco não cabe tudo aquilo que você tem na cabeça. Você acha tudo maravilhoso. Depois você começa a ficar cada vez mais seletivo, demora mais tempo pra fazer uma música. Isso não significa crise de criação, pelo contrário. Você leva mais tempo porque exige mais de você mesmo. E tem uma hora, também, que você se sente um pouco enfastiado...
Quando eu comecei a escrever o Estorvo, estava há seis meses sem compor, sem escrever música.
Ziraldo - Dizem que o Estorvo tem muita identificação com o noveau roman. Você reconhece alguma influência?
Chico - De tudo, menos do noveau roman. Isso foi dito por aquele crítico, o Wilson Martins, do qual eu disse e repito: um sujeito intelectualmente corrupto. Quando saiu o Estorvo, ele disse na revista Veja que o livro era plagiado do Zero, do Inácio de Loyola Brandão. Isso é facilmente desmentível. Quando saiu o Benjamin, ele foi e deu outra entrevista nas páginas amarelas, dizendo que era um plágio do noveau roman. Eu nunca li noveau roman. É claro que meu livro deve ter alguma coisa a ver com o cinema dos anos 60, da nouvelle vague. Os roteiristas da nouvelle vague eram autores do noveau roman, e por isso acho que posso ter muita influência, sim, mas do cinema. O livro é totalmente cinematográfico.
Ziraldo - Fale dessa sua facilidade de criar, que te faz brincar com tua filha e fazer o livro Chapeuzinho Amarelo... Essa coisa de criar já era reconhecida desde a infância?
Chico - Desde garoto eu fazia essas coisas. Eu fazia 'filmes', histórias em quadrinhos onde cada quadro era do tamanho da 'tela' de uma caixa de sapatos. Em pegava dois lápis, ia enrolando e o filme ia passando. Eu fazia os créditos, no começo. Tinha atores que apareciam em vários filmes. Tinha um tal de John Rivers que era um grande caubói, a grande estrela da minha 'produtora'.
Ziraldo - Isso é ótimo, isso é ótimo! Todo menino fez isso, com caixa de sapatos...
Chico - Pôxa, pensei que estava sendo original. E eu fazia cidades enormes, plantas complicadas, grandes. Fazia tudo desenhando (até hoje eu faço), criava estradas, linhas de ônibus, cinemas. A gente pensa que é original. Um dia encontrei Antonio Pedro, e ele disse que tinha um amigo que também fazia assim, igualzinho. E ainda mais: tinha a língua da cidade e dicionário completo dessa língua. Aí eu perguntei pra ele: "E por onde anda esse cara, agora?" "Tá no Pinel!", ele disse.
Ziraldo - Histórias de meninos criativos são muito parecidas, Chico! Ou você vira um gênio ou fica louco.
Miguel - Quando eu morava em Milão, no final dos anos 70, a gente esperava ansiosamente por suas músicas, porque elas simbolizam um oásis na aridez que eram aqueles anos. O que aconteceu daqueles anos pra cá, quando suas músicas continuam significando coisas mas são usadas de maneira imprópria, como nesse episódio da Feira de Hannover? As pessoas estão tendo a mesma intenção em relação às suas músicas? A realidade é outra?
Chico - Aconteceu uma coisa parecida nos anos 60, quando fizeram uma publicidade de televisão usando A Banda. Era uma propaganda militar. Naquela época, falaram exatamente a mesma coisa que falaram agora, com relação a esse episódio da Feira: que eu tinha 'censurado' a minha música, que era antipatriótico.
Maria Lucia - Mas ninguém te pediu autorização pra usar a música em Hannover?
Chico - Eu não queria fazer escarcéu com essa história. Simplesmente chegou um pedido de autorização e eu falei "não, não quero autorizar, não quero ligar meu nome a governo". Na verdade não quero ligar meu nome a governo algum. Eu tenho direito de não gostar e de não permitir que minha música seja usada para um monte de coisas. Comerciais, por exemplo. Esse raciocínio é torto, não é? "Censor das próprias músicas". O que é isso? Agora mesmo eu tô perdendo um processo onde o juiz está dando ganho de causa a uma editora que usou uma versão minha, Sonho Impossível. A editora diz que meu direito é um direito de "autor agregado" (eu nunca tinha ouvido essa expressão), já que nem a música nem a letra são minhas, apenas fiz uma versão. Sendo assim, eu não poderia impedir a veiculação. O estranho é que a versão que vai ao ar, num comercial da Vésper, é a minha versão, minha e do Ruy Guerra. Estamos recorrendo. É bom até que se esclareça isso, que se crie uma jurisprudência. O versionista não tem direito algum?
Pimentel - A companhia telefônica pagou direitos pra quem? Para a editora?
Chico - Pagaram à editora e depositaram uma quantia na minha conta e na do Ruy. O Ruy me ligou, dizendo "ô, que bom, chegou uma grana aqui", e eu disse "espera um pouquinho, Ruy, não vamos mexer nesse dinheiro que eles estipularam". O problema, então, não é que eles não tenham pago. Eles pagaram o que eles estipularam, lá entre eles, o que achavam que valia. O problema é que usaram sem autorização.
Ziraldo - Você nunca autoriza o uso de tuas músicas pra nada?
Chico - Às vezes autorizo pra campanhas eleitorais, partidos. Eles pedem, eu simpatizo e autorizo. Até fizeram uma paródia do Vai Passar pra campanha do Fernando Henrique à Prefeitura de São Paulo, em 1985. Época de eleição é uma loucura. Começam a usar tuas músicas e você começa a receber telefonema de tudo quanto é lugar: "Tão usando uma música sua, lá no Acre, lá em Sergipe..." Mas eu nunca autorizei que usassem música minha em comerciais.
Ziraldo - Por princípio, você jamais vai doar uma canção sua para um produto comercial, definitivamente?
Chico - É, acabou virando uma questão de princípios. Mais de uma vez já fui interpelado pelo pessoal ligado à publicidade: "por que é que você não autoriza?" Parece que é uma ofensa a eles, ao capital, porque você recusa às vezes quantias muito altas Aí fica aquela coisa, quase uma questão de honra. Parece que você tá querendo chegar ao teu preço. E aí você não pode ter preço. Talvez, se eu precisasse desse dinheiro, eu cedesse. Porque estaria passando fome, ou sei lá o quê. Mas sei que, se eu precisasse, ninguém ofereceria tanto dinheiro assim.
Ziraldo - Mas teu grande parceiro Tom Jobim negociou um.
Chico - Ele fazia, ele adorava fazer comercial, gostava inclusive de ser ator. Ele fazia até precinhos baratos, não era nem uma questão de preço. Mas eu não tenho nada com aquilo. Não era uma questão de princípios minha, não estabeleci isso antes. Mas acabou virando, depois de eu dizer várias vezes "não vendo, não vendo, não vendo". Aí ficou sendo assim: "Chico é o sujeito que não vende as músicas". E se eu sou o sujeito que não vende as músicas, não posso mais vender as músicas.
Caco - Embora você tenha sempre pensado em escrever, só com Estorvo é que você deu o passo pra entrar no mercado nacional como romancista. Você sentiu essa sensação de estar realmente começando algo novo? Chegou a pensar no que tudo aquilo que você alcançou no campo da música popular poderia contar para o sucesso do Chico Buarque escritor?
Chico - Não conta nada. "A partir de agora, não conta nada", foi o que eu pensei. E eu fiz questão que não contasse mesmo. Foi uma experiência totalmente à parte, de iniciante. Foi o primeiro romance. Eu não poderia nem mesmo comparar com o Fazenda Modelo, que era uma novela, tinha outra motivação (já que eu a escrevi não por uma necessidade literária, mas política).
Caco - O filme é um produto totalmente novo a partir do livro? É assim que você vê?
Chico - O filme é do Ruy. Gostei muito do filme. Ele me pediu autorização pra filmar Estorvo e me mostrou o primeiro tratamento do roteiro adaptado. Isso já faz muitos anos. Nessa época eu conversei com ele, dei um ou outro palpite, mas depois disso só fui ver o filme em fase de montagem.
Ziraldo - Como é o teu processo de criação? Você fica inquieto, fica escrevendo no elevador, como é que é?
Chico - Quando começa não pára mais, fico escrevendo o tempo todo. Tô conversando com vocês aqui e fico pensando no que tenho que escrever. Com a música é a mesma coisa.
Maria Lucia - Você sofria muito pra compor, antigamente... Eu vi você compondo, você ficava angustiado, tinha uma certa excitação...
Chico - Ah, excitação, sim; sofrimento, não. Às vezes tem aquela coisa, parece que tá tudo na mão mas falta uma coisinha...Mas não tem sofrimento não. Pelo contrário, compor sempre foi um grande prazer.
Pimentel - Ainda é um grande prazer?
Chico - Ainda é, ainda é.
Ziraldo - Você costuma trabalhar junto com o parceiro?
Chico - Não, trabalho separado. Criação é uma coisa muito íntima, você tem que estar sozinho, com suas caretas e esgares, como diz um poema do João Cabral.
Ziraldo - Quer dizer que, mesmo quando você compunha com o Tom, você levava pra casa e ia fazendo a letra em cima do tempo musical dele?
Chico - Em cima de cada nota. A cada nota corresponde uma sílaba. Isso é questão de honra, tem que fazer exatamente em cima da música. Muito raramente você pode pedir uma liberdade, mas eu evito isso. Geralmente os parceiros dizem assim: "Você pode adaptar aí, mudar alguma coisinha", mas eu prefiro fazer exatamente como está.
Ziraldo - É impressionante, porque a música e a letra, nos teus trabalhos em parceria, ficam tão bem encaixadas...
Maria Lucia - E quando a música também é sua, como fica?
Chico - Aí pode nascer junto. Parte da letra pode ir nascendo junto com a música. Geralmente a música tá pronta e a letra ainda não, e tem aquele trabalho de completar. A letra nunca vem antes.
Ricardo Leite - Tem muita música sua que você tenha gravado e nunca lançado? Existem muitos autores que vão lá, gravam quinze músicas e lançam dez... Você tem essas sobras?
Chico - Sabe, eu ia dizer que não, mas lembrei agora de uma história do meu último disco. Eu estava com ele quase pronto e fiquei cismado com uma música, achando que alguma coisa estava errada, que eu não iria conseguir cantar. O disco já estava com o prazo estourado e no limite do número de músicas. Mesmo assim eu tirei essa e compus outra. Aquela ficou guardada, pra ser retomada um dia, aquela coisa. A letra repetia um pouquinho uma letra de uma música minha antiga, chamada Ela Desatinou. Era um 'Ela Desatinou 2'. Aí, olha que engraçado: eu estava em Londres fazendo um show e encontrei Elza Soares. Quando ela me encontrava, cantava [imita] "Elzaaaa desatinooou..." Ela fazia essa graça, e tal... Algum tempo depois, chega aqui uma produtora que queria fazer um musical sobre a vida da Elza Soares. Sentou aqui mesmo, onde a gente está, e me pediu uma música pro show. Eu disse pra ela que eu não tinha música, que eu tinha terminado um show, que não ia dar tempo de compor... aí de repente eu lembrei: "Peraí, eu já fiz essa música pra Elza, sem saber!" Eu tirei ela do meu disco porque não era pra eu cantar, era pra Elza cantar. E ela gravou. O engraçado é que o titulo da música era Dura na Queda, e a Elza tinha acabado de despencar do palco... Parecia realmente feita pra ela, e foi.
Ricardo -O Jealous Guy, por exemplo, que é uma música brilhante do John Lennon, já tinha sido gravada anteriormente com os Beatles, com uma letra diferente. Aí ele desistiu de colocar no Álbum Branco, e quatro ou cinco anos depois gravou solo e foi aquela coisa maravilhosa.
Chico - Aí pode acontecer, isso já aconteceu comigo. Uma música que eu fiz pra peça Calabar, por exemplo. A peça foi proibida, a música também e ficou aquela melodia guardada. Anos depois eu peguei a melodia e fiz outra letra pra Bibi Ferreira cantar, em Gota dÁgua: Basta um Dia. Essa música tinha outra letra, completamente diferente.
Ricardo - De que você gosta de fazer que não seja o seu trabalho? Você gosta de ouvir música...?
Chico - Não. eu não gosto de ouvir música. Eu detesto ouvir música. Ouço muito pouco. Às vezes paro pra ouvir um disco que eu recebo, coisa assim. Mas aquela música que fica lá no fundo, acho isso odioso. Se você está conversando aqui e tem uma música tocando, fica aquele barulho... é desagradável.
Ziraldo - Na mitologia grega, o hermafrodita foi mulher e foi homem. Então quando perguntaram quem gozava mais, se o homem ou a mulher, ele respondeu: "A mulher goza muito mais, eu experimentei os dois e sei". Você faz canção e literatura de muito boa qualidade, é um hermafrodita nesse sentido. O que te dá mais prazer e alegria: acabar um livro ou terminar uma música?
Chico - O livro são vários orgasmos, não é um orgasmo só no final do ano, "aaaahhhhh". Quando você termina o livro, acontece uma coisa interessante: você não quer mais largar dele, quer continuar escrevendo... [Chico interrompe-se e aponta para a mureta de seu terraço. Há um enorme urubu placidamente pousado nela, a uns três metros da mesa onde estamos]
Chico - Olha, olha! [Opiniões diversas entre a 'platéia': "Isso é a Operação Condor, ele tá com uma microcâmera no peito!" "Nada, é o Flamengo que vai ser campeão carioca!"...]
Ziraldo -Que forma de arte mais te exaure, mais te exige?
Chico - Não, nada me exaure. O que me exaure é dar entrevistas. Quando você está fazendo um livro, ou uma música, você não fica exausto. Pelo contrário, você não quer dormir, quer continuar fazendo, aquilo não te cansa. Eu falei que você tem que botar um ponto final no livro porque não quer largar dele. Na música também tem isso, na última hora você quer botar mais uma coisinha, quer retocar. Cês conhecem a história do Bonnard, quando já era um pintor famoso, com quadros expostos? Essa história é do cacete: ele entrava escondido nos museus, com pincéis e tintas, e quando os guardas não estavam olhando, ia lá e retocava os próprios quadros!
Ziraldo - É mesmo, dá sempre vontade de ficar mexendo.
Chico - Eu acompanhei as edições todas do Estorvo, e teve coisas que eu mudei na tradução. Eu lia e dizia: "Ah, acho melhor colocar assim e assim". E o tradutor: "Mas você escreveu dessa maneira aqui". E eu dizia: "Eu sei mas acho que fica melhor assim!"
Pimentel - Você falou que se cansa de dar entrevistas. Tem uma época em que você se fecha, mesmo, né? Tem um período em que você dá entrevista e tens outros em que você não dá? Como é isso?
Chico - Eu tenho que dar entrevistas porque eu sou escalado pra isso, quando tem lançamento de um disco, de uma peça de teatro, principalmente quando envolve outras pessoas. Aí você não pode ficar se fazendo de 'doce'. Agora, tem épocas em que eu não tenho nada pra falar. Hoje, por exemplo: não tenho nada pra Falar. É bom porque estamos aqui batendo um papo e quando um bate-papo é gostoso, e tal. Mas só em saber que vai ser publicado, que o que você disse vai ter conseqüências e que você precisa ficar se policiando, isso é um pouco cansativo.
Zezé Sack - Você não gosta de ficar muito exposto, aparecendo muito... Não é isso, não?
Chico - Não há necessidade de ficar se expondo quando não se tem nada pra falar. Agora está meio excessivo, porque a mídia está em toda parte e precisa preencher os espaços das colunas, da televisão, e às vezes isso é indesejável. Você vai assistir um futebol e vira um artista assistindo futebol: vão lá te entrevistar pra saber o que você tá achando do jogo. Eu parei de ir ao Maracanã porque você precisa ir armado pra dizer coisas. E não é só a mídia. Na época da Copa do Mundo de 98 eu estava na França como correspondente, escrevendo pro Globo, pro Estado de S. Paulo e pro Zero Hora. Tava assim de brasileiro na rua. Você saía e o pessoal te parava em Paris, com câmeras: "Agora fala uma coisinha lá pro pessoal de Botucatu". Nos nossos tempos de Antonio's, a gente ficava lá no bar dizendo besteira a noite toda e não saía em jornal nenhum, ninguém se incomodava...
Miguel - Mas o que aconteceu? Vocês ficaram mais famosos ou a foi a mídia que mudou?
Chico - Eu era até mais famoso estava nos festivais, aparecia em todas os revistas, "o rapaz de alhos verdes... "
Ziraldo - O Chico, teu olho é azul, pó!
Chico - É, azul. Então, não havia tantas revistas, tantos canais de televisão. Há um excesso de espaço pra poucos artistas.
Aroeira - Mas às vezes você tem que vir a público porque é citado. Por exemplo, quando o Fernando Henrique diz que você é repetitivo, necessariamente os jornalistas vão atrás de você pra saber o que você tem a dizer.
Pimentel - É, ele disse que gostava de você antes, mas que agora você está "muito repetitivo".
Ziraldo - Ah, e tem outra frase que ele disse: "Eu preferia o teu pai". Lembra dessa?
Chico [rindo] - Eu ouvi ele falar isso do Luiz Fernando Veríssimo. Ele tá sendo repetitivo! Mas aí tudo bem, ele pode gostar de quem ele quiser, isso realmente não me chateia.
Ziraldo - E o que você acha dele?
Chico - Eu também gostava mais dele antes. O [bispo] Mauro Morelli diz que gostava mais dele quando ele era ateu. Eu perdi o contato com ele. Não acho um bom negócio ter amigo no poder. É incômodo.
Pimentel - Ainda tá meio longe, mas se o Lula sair candidato de novo você reafirma o seu apoio?
Chico - É possível, não sei dizer. Já nas últimas eleições eu achava que o Lula não deveria ter saído candidato. Eu falei de brincadeira: "meu candidato é Sepúlveda Pertence!" porque andaram cogitando o nome dele. O Lula já não ia se eleger, em 98. O Brasil não vai eleger o Lula. O rico não vota no Lula e o pobre não vota no Lula, vai ficar sempre nesses 25% e não vai passar disso. Eu fico muito incomodado com isso, mas é um questão cultural. Ainda mais quando eu leio um negócio como o que saiu uma vez na Folha de S. Paulo, um filósofo amigo do Fernando Henrique, dizendo: "Até os adversários mais ferrenhos sentem no íntimo um grande orgulho por termos um presidente tão refinado Fiquei pensando nisso. Eu nem sou um adversário tão ferrenho assim mas não tenho nenhum orgulho de ter um 'presidente refinado'. Eu teria mais orgulho se fosse o Lula o nosso presidente.
Ziraldo - Você tem noção da importância do papel de um artista como você? Você sabe que tem um compromisso e não foge a esse compromisso. Você poderia ficar na sua, como o Borges, na Argentina...
Chico - Mas eu não sei se o Borges é menos importante por ter ficado, como você diz, numa torre de marfim e ter se dedicado à literatura mais do que a qualquer outra coisa, do que se tivesse feito oposição progressista. O que a Argentina deve a Jorge Luis Borges não tem tamanho. Mesmo se ele jamais tivesse falado nada de política (como falou pouco, aliás) e tivesse feito apenas aquilo que ele fazia, e bem, a importância dele não seria alterada.
Ziraldo - Mas por que, mesmo fazendo bem aquilo que você faz, você sempre se comprometeu?
Chico - Eu me comprometi porque nós vivíamos numa ditadura. Nessa época o artista, quisesse ou não quisesse, estava comprometido, até pela omissão. Aí sim, você querendo ou não querendo corria o risco de ver sua música usada num comercial de um governo militar. Aí você consentia ou não consentia. Não consentindo, passava a ser um opositor do regime. Participando de uma passeata de cem mil, era um opositor do regime. Por um mínimo que você fizesse, tomava posição política. A partir daí, o seu trabalho vivia debaixo do tacão da censura. Você não pode exercer sua profissão porque um governo não permite que você a exerça. Fora toda a indignação de ter amigos presos, amigos exilados, gente que morre, que você conhece... E o artista, num quadro desses onde a imprensa é censurada, os sindicatos estão proibidos, também a organização estudantil, os partidos políticos... Numa hora dessas o artista acaba assumindo um papel acima até do que seria desejável.
Ziraldo - Mas você acha que o momento em que estamos vivendo agora permite que o artista possa ficar completamente alienado, sem se preocupar com o país como naquela época?
Chico - Pode. Pode. Eu não estou me alienando de nada, embora minha ênfase seja muito menor do que era na ditadura. Há uma série de nuances aí: você pode pegar um ovo e jogar na cabeça do ministro, você pode tomar uma outra atitude, você pode escolher não se manifestar. Agora, eu não acredito que o artista seja obrigado a ter um papel político no país. Eu sou contra isso, sou contra essa exigência. Sempre fui. Mesmo quando eu tive a mais marcada atuação política, não exigi isso de ninguém, não cobrei isso de nenhum colega meu. Não acho isso justo, acho até uma violência com um sujeito que tá em casa, pintando seu quadro e por um motivo ou outro, ou porque tem medo, ou porque não se sente à altura, ou porque não se acha afetado por aquilo, ou porque se acha insignificante como ator político, não acredito que esse cara tenha obrigação de sair à rua e assinar um manifesto. Não gosto dessa imposição. E existe também um julgamento político, a favor e contra o artista. Muitas vezes o artista é elogiado, é apreciado porque tem boas posições políticas. Isso não é correto.
Caco - Passam a julgar a obra do artista em função de sua posição política.
Chico - É, a favor e contra. Provavelmente um crítico ultraconservador vai ter um ódio ideológico à minha pessoa. Na minha lista de admiração, na literatura, existem vários autores de direita. O Ezra Pound, um poeta ultraconservador, que grande poeta! Acho que a questão política contamina o julgamento estético e acho isso próprio de quem não gosta de literatura, de que não gosta de música, É próprio de fanáticos e eu não gosto de fanatismo.
Caco - Esse é um pensamento muito temporal, do que acontece aqui e agora. A contribuição que Ezra Pound e Borges deram à poesia americana e mundial, e à cultura argentina, é muito maior do que qualquer...
Miguel - ... do que o suposto mal que eles possam ter causado.
Chico - Muito maior do que o mal real que o Ezra Pound causou fazendo o papel que ele fez lá na Segunda Guerra, na Itália. Uma pena, uma pena que esse grande escritor estivesse `acompanhado' de um sujeito que fosse nazista ou outro caso qualquer, que fosse um mau caráter... Foda-se! Não quero conhecê-lo pessoalmente, não tenho interesse nenhum em saber da vida pessoal de fulano ou sicrano. É um grande escritor? Viva! Eu quero ler os livros dele.
Zezé - Você foi a Cuba pela primeira vez no início dos anos 70, e fez sólidas amizades que duram até hoje. Como andam seus contatos?
Ziraldo - E por que você se encantou com Cuba?
Chico - Eu já não vou a Cuba há uns oito anos, talvez. Em primeiro lugar, todo mundo sabe: Cuba parece muito com o Brasil. Tem aquele povo parecido com o nosso, alegre, e tem (pelo menos tinha) seus problemas básicos resolvidos. Se isso é possível de se fazer em Cuba, que é um país paupérrimo não é possível que não possa ser feito no Brasil. Não é possível que não se possa dar escola, sapato no pé, comida, hospital, atendimento básico, não é possível que não se possa fazer no Brasil alguma coisa parecida. Basicamente, é isso.
Aroeira - O Ziraldo quer que eu faça uma pergunta. Há algumas semanas atrás, nós botamos na revista o Gilberto Gil de 'Bundão da Semana'...
Ziraldo - ...porque ele elogiou o FHC, aquele negócio do salário mínimo. O que você acha dessa atitude do Aroeira, de ter colocado o Gil como Bundão?
Aroeira - Eu? Não fui eu que botei: nós botamos. Eu fiz a ressalva que como artista ele é genial...
Chico - Eu discordo de chamar ele de bundão. Discordo da posição do Gil, mas tenho vários amigos que gostam (ou gostavam) do Fernando Henrique na época da eleição. Eu não vou perder amigo por causa de política. Saio com eles e não falo de política. Eu protesto, acho que Gil não tem nada de bundão, que história é essa?
Ziraldo - Mas, Chico, um artista não pode ficar elogiando o Fernando Henrique, não. Nessa altura, fica calado, não se manifesta. O povo tá sofrendo tanto, é tão nítido...
Chico - Mas, escuta: se eu posso falar mal, por que o Gil não pode falar bem? O artista tem que ser sempre de oposição? Eu não acho isso. Ô Ziraldo, ele deve acreditar nisso. Ele não está sendo desonesto.
Aroeira -Você conheceu algum daqueles artistas do Buena Vista?
Chico - Não, não conheci. O filme é uma delícia. Mas falam que esses músicos estavam sumidos, esquecidos por causa de problemas com Fidel, o que não é verdade. O que acontece é que essa velha geração da música cubana estava fora de moda. Como aqui no Brasil, tem um monte de gente que desaparece. Cartola virou lavador de carro, durante muito tempo sumiu de circulação. Ele, Nelson Cavaquinho... E um dia foram descobertos pela Nara, pelo Vianinha, pelo Grupo Opinião. Eles buscaram esses compositores do morro e os trouxeram para a mídia, novamente. Foi uma coisa parecida.
Zezé - E verdade. E só Ibrahim Ferrer estava realmente afastado da música. Todos os outros continuavam tocando, com sua bandas. Daqueles artistas, você nunca encontrou ninguém, então...
Chico - Uma vez eu estava no festival de Varadero e depois da apresentação fomos assistir a um show da velha guarda cubana. Pablo Milanés é que nos levou. Numa mesa estavam o Harry Belafonte, Gilberto Gil, eu, Pablo e mais algumas pessoas. Era uma espécie de Canecão, um pouco menor. Fazendo o show estavam o Cesar Portillo de La Luz, um grande compositor de oitenta e poucos anos, e uma cantora que pode ser até a Omara Portuondo (eu não sei, eu não conhecia). As pessoas bebiam, e gritavam, e falavam... Os velhinhos cantando lá e ninguém prestava a menor atenção. Uma hora o Pablo se levantou enfurecido, subiu ao palco e pagou pra todo mundo: "Se vocês não querem respeitar esses artistas que estão aqui, respeitem ao menos os meus convidados". E apresentou o Harry Belafonte, todo mundo aplaudiu. Ele voltou pra mesa, silêncio total. Aí começou o show de novo e em cinco minutos tava aquele espooorro, igual como estava antes! Quer dizer, ninguém estava muito interessado em ouvir a velha guarda.
Zezé - Eu queria te perguntar sobre teu lado de ator. Todo mundo diz assim, que "o Chico é uma pessoa supertímida..." Até aqui não pareceu. Você gosta de atuar?
Chico - Tem sempre esse negócio do tímido. Aí no dia seguinte eu leio: "nesse dia, excepcionalmente, não estava tímido..." Sempre assim. Acho que os jornalistas já têm aquele negócio no computador; com o nome de cada um. E deve estar lá: "Chico Buarque, carioca, músico, tímido... " Ficou assim, não sei como começou. E não me considero um bom ator, não. Eu me empenho, eu faço a sério, mas não gosto muito não.
Arthur Poerner - Quando eu voltei pro Brasil, você se tratava com o 'Nero'. Lembra do 'Nero'?
Chico - Lourival. Morreu. Morreu louco.
Ziraldo - E aquilo era misterioso mesmo, Chico?
Chico - Tinha mistérios ali, sim.
Poerner - Eu vi ele operar uma catarata em Londres, com uma colher dessas de cozinha.
Miguel - Era um médium, então?
Chico - Era. Mas era um médium esculhambado, porque ele recebia o Nero, o imperador romano. Então, antes de fazer a operação, começava a dizer um monte de barbaridades, esculhambava todo mundo. Aí de repente o Nero recebia o médico que operava. Sempre passava antes pelo Nero. Às vezes passava pela Messalina, também. Nós éramos 'anestesistas', eu e o Tom. Enquanto a gente tocava, se a gente não desafinasse, não doía. Ele só operava com música. Não tendo música ao vivo, ele usava fita.
Ziraldo - E dava certo?
Chico - Dava certo. Eu desconfio que quando não dava certo ele embromava. Quando não 'baixava' direito, acho que ele fingia, fazia uma embromação lá. Mas eu vi casos de pessoas que não podiam andar e saíam dançando. Sabe o que eu acho? Que tinha também um problema de manutenção. Ele não resolvia, ele fazia um 'gatilho' ali e a coisa funcionava. Daí a quatro, cinco anos, o problema aparecia de novo e a pessoa tinha que voltar lá nele.
Ziraldo - Falando em médium, você tem essa coisa de 'especialidade', um dom. Atualmente, acho que você é um dos artistas mais gratificados, você é o cantor do seu povo. Quando você fica sozinho, reflete sobre isso? Você pensa assim: "Puxa, por que pintou isso pra mim?" Isso te ocorre? Ou você não pensa nisso?
Caco - Rapaz, essa é uma maneira original de fazer aquela velha pergunta: "Como você se sente sendo o Chico Buarque?"
Chico [rindo] - Eu não penso nisso, né Ziraldo! Tenho mais o que pensar!
Ziraldo - Pó, Chico, não há hipótese de não pensar! Não tem uma hora em que você, sozinho em casa, pensa assim: "Puta que pariu, eu sou o Chico Buarque"? Eu lá em Caratinga já pensava nisso...
Chico [se divertindo] - Ah, é? E como é isso, Ziraldo? Eu quero saber. Em casa, sozinho, você chega e fala: "Puta que pariu, eu sou o Ziraldo!" Como é que é isso?
Ricardo - Você é religioso?
Chico - Não sou religioso não, mas sei que tem uns mistérios por aí... Eu tô querendo escapar um pouquinho dessa armadilha em que vocês estão me enfiando. Eu não me considero nenhum iluminado, nem nada parecido com isso. E quando eu falo em mistérios, estou falando da vida, mesmo...
Zezé - Faltou só perguntar o que você acha da revista BUNDAS.
Chico - Eu estava gravando um especial pro Multishow, com José Henrique Fonseca, e ele falou assim: "Saia andando, passe em frente à farmácia, entre numa banca de revistas e compre alguma coisa". Aí eu comprei a revista BUNDAS, dei uma folheada e continuei andando. Depois da gravação, quando cheguei em casa, fui ler a revista que eu tinha comprado. Aí eu abro e leio assim: "Parem de pedir entrevistas com o Chico Buarque! Ele não gosta da gente!" Porra, eu tinha acabado de comprar a revista, mostrei ela na frente das câmeras!
Pimentel - Viu como a nossa provocação funcionou? A entrevista foi boa, Chico?
Chico - Pra mim, foi. Foi bom pra vocês, também?
Fala, Chico Buarque
Se fosse feita uma investigação para identificar os brasileiros que mais produziram na área cultural, desde a década de 1960, o nome de Chico Buarque de Hollanda, certamente, seria um deles. O volume de obras deste Songbook - o maior entre todos os Songbooks - não deixa a menor dúvida. São centenas de músicas, sem contar a sua atividade como escritor de livros, autor teatral e sua presença nos palcos do Brasil. Se a obra musical de Chico impressiona pela quantidade, impressiona muito mais pela qualidade.
Um criador do seu nível também tem muito a dizer, razão pela qual apresentamos a maior das entrevistas já publicadas em Songbooks. Chico Buarque tem muito a dizer.
Almir Chediak: Para começar, gostaria que você falasse dos seus primeiros contatos com a música. Como é que foi isso?
Chico Buarque: A lembrança mais remota é a dos meus pais cantarolando músicas antigas, como Último desejo, por exemplo, na casa em São Paulo, na rua Hadock Lobo, onde morei até os oito anos idade. Em 1952, a família foi toda para Roma, mas me lembro também que, antes da viagem, eu ouvia rádio.
Chediak: Que rádio? A Nacional?
Chico: Possivelmente. O rádio era da minha babá, ou melhor, da babá dos sete filhos dos meus pais e depois virou cozinheira. Acho que era a Nacional mesmo, porque um dos programas que a gente ouvia era aquele do primo pobre e do primo rico, o Balança mas não cai. Mas havia muita música, principalmente os sambas e as marchinhas de carnaval, que eu gostava muito. Me lembro da Linda Batista, do Blecaute, da Marlene, da Zilda do Zé, todos eles cantando músicas de carnaval. Depois, na quaresma, mudava a programação e entrava a música de meio de ano, como era chamada. Era samba-canção, bolero, mas que gostava menos disso.
Chediak: Você não ouvia disco?
Chico: Antes da viagem para Roma, minha irmã Miúcha ganhou um vitrola, ainda daquelas de dar corda. Não era elétrica não. Quando a gente voltou para São Paulo, dois anos depois, apareceu lá em casa um novo móvel, que, na verdade, era um toca-discos da marca Telefunken. Naquele aparelho ouvi Sílvio Caldas, Ataulfo Alves, Elizeth Cardoso, Roberto Luna, Frank Sinatra, Inks Spots, Lucho Gatica, Trio Los Panchos e mais uma porção de gente. Minha mãe adorava Edith Piaf. Tinha também um disco do Jacques Brel.
Chediak: E o primeiro contato com o violão, como foi?
Chico: Foi bem mais tarde. O primeiro violão que apareceu lá em casa era da Miúcha, que tinha um ciúme danado do instrumento. Não deixava nem a gente chegar perto. Depois, minha irmã Ana apareceu com outro violão grená, esquisito, que não produzia som nenhum e não dava a menor vontade de tocar. A gente chamava o violão de "catupiri". Miúcha começou a reunir os irmãos, distribuía as vozes e formava um coral para ela acompanhar no violão. Eu não cantava. Quem participava do coral eram os meus irmãos.
Chediak: E quando foi que você acabou pegando o violão?
Chico: A partir da Bossa Nova. Quando apareceu Chega de saudade, foi um choque tremendo, me lembro perfeitamente. Ficava horas, a tarde inteira ouvindo aquilo, ouvindo, ouvindo, ouvindo... Conhecia o violão de João Gilberto desde o disco da Elizeth Cardoso, Canção do amor demais, um disco que freqüentou muito a Telefunken dos meus pais. João tocou violão em duas faixas, Outra vez e Chega de saudade. Mas a gravação de João Gilberto era diferente. Eu nem sabia que Chega de saudade era do Tom Jobim, tanto que, ao pedir dinheiro aos meus pais para comprar o disco, disse que a música era do Vinicius de Moraes, o autor da letra e amigo do meu pai. Nem me ocorreu que a música era do mesmo autor (com Billy Blanco) de Teresa da praia, um disco que eu havia comprado para dar de presente à Miúcha. Era aquela gravação com Dick Farney e Lúcio Alves.
Chediak: Foi João Gilberto quem detonou tudo.
Chico: Detonou tudo! Ouvia Chega de saudade sem parar. Eu e um amigo meu de rua ficávamos ali, com violão, tentando decifrar a batida e as harmonias de João. Quando saiu o primeiro long-play do João Gilberto, a gente repetia Aos pés da cruz não sei quantas vezes na tentativa de fazer aquela introdução.
Chediak: Também passei por isso, Chico.
Chico: Por morar em São Paulo, eu levava uma desvantagem em relação ao pessoal do Rio. Não havia televisão na minha casa. De vez em quando, chegava um amigo, dizendo: "Vi aquele cara esquisito que você gosta na televisão." João Gilberto apareceu como uma coisa misteriosa. De vez em quando, um amigo perguntava: "É verdade que ele é viado?" "É viado", garantia outro. Ele era diferente de tudo até para um jovem de 18 anos. Eu tinha 14 anos e, na época, ter quatro anos a menos significava uma diferença brutal. Acho que, por isso, João pegou muito o pessoal da minha idade. Aliás, o que estou falando é comum ao pessoal da minha geração. Já vi o Gil, o Caetano, o Edu, todo mundo falando onde estava quando ouviu Chega de saudade pela primeira vez. Foi demais pra todo mundo. Quem não tinha aquela idade não estava na hora certa, no lugar certo, talvez não fosse capaz de perceber. Ou era mais velho, já não estava na idade de ser, vamos dizer, fulminado por um tipo de coisa assim, ou era muito novo para se interessar por aquilo. Conversei com pessoas que tinham, na época, 10 anos de idade e elas disseram que não entenderam nada.
Chediak: João Gilberto revolucionou. Aquele batida no violão...
Chico: Eu criticava minha irmã porque ela tocava violão "bossa velha". Não gostava daquilo, eu só queria saber de bossa nova. Durante alguns anos, fui um seguidor fanático da bossa nova. Reneguei tudo aquilo que havia escutado antes. Engraçado é que, pouco antes disso, gostava muito de Elvis Presley, Little Richards, essa coisa toda. Gostava também de Frank Sinatra, das orquestrações de Nelson Riddle, ouvia discos de jazz na casa de um amigo, Milles Davis, Oscar Peterson, Mingus, mas a bossa nova era uma coisa moderna e era música brasileira.
Chediak: Foi aí que você ganhou seu primeiro violão?
Chico: Não me lembro... Acho que me apropriei do violão da Miúcha.
Chediak: E você se lembra dos primeiros acordes que fez? Para mim, isso foi o máximo. Era uma música de Dolores Duran. Mas é você o entrevistado. Como foi isso?
Chico: A gente começava a procurar acordes. Eram horrorosos, mas a gente achava que estava bom. Talvez por incapacidade de reproduzir os acordes do João Gilberto, comecei a inventar, a compor. Tentava fazer uma música parecida com a que ouvia o João tocar. Mas já sabia que não conseguiria fazer nada igual.
Chediak: Tocava pedaços de música, pedaços de harmonia.
Chico: Pedaços. Pulando uma escala, pulando um degrau, comecei a fazer minhas músicas. Como não conseguia reproduzir, imitava.
Chediak: Já compunha com letra?
Chico: Com letra. Antes disso, já escrevia bastante nos jornais do colégio. Em Roma, na escola americana, escrevia em inglês. Lembro de um bilhete da professora, que guardei até pouco tempo (deve estar guardado em algum lugar), que dizia: "Um dia, ainda vou ler alguma coisa escrita por Francisco Buarque de Hollanda."
Chediak: Você se lembra da sua primeira música?
Chico: Primeira, primeira, não sei, mas me lembro de uma chamada Anjinho de papel e de outra com o nome de Canção dos olhos.
Chediak: Você tinha o quê, 17, 18 anos?
Chico: Por aí. Me lembro de ter cantado essas músicas num showzinho do colégio em que estudava, o Santa Cruz.
Chediak: Tocava violão e cantava?
Chico: Tocava e cantava. Aliás, eu disse que não tocava outras músicas, mas isso era bem no comecinho, mas, na verdade, forçando um pouquinho a memória, me lembro de ter cantado naqueles showzinhos Primavera e Minha namorada. Em São Paulo, um sujeito que soubesse tocar bossa nova numa festa fazia o maior sucesso. Naquela época, eu passava as férias no Rio. Me lembro de uma vez, em Petrópolis, eu via tantas pessoas tocando e me dei conta de quanto eu não sabia de violão. Outra vez, na praia de Ipanema, em frente ao Country, comecei a tocar e apareceu o Nelsinho Mota e tirou o violão da minha mão antes da música acabar: "Espera aí, tem um camarada que toca..." Acho que era ele mesmo ou alguém que tocava melhor do que eu. Ele tinha acesso a essa gente toda. Nunca falei com ele desse episódio. Foi em 1961, por aí.
Chediak: Você tinha um amigo que tocava bem, não tinha?
Chico: Tinha, o Olivier, que aprendeu junto comigo mas era mais aplicado do que eu. A gente trocava informações e ele me passava uns acordes. Dando um pulo no tempo, me lembro de fazer um acorde e João Gilberto me dizer: "Não faz assim. Faz esse aqui."
Chediak: Ele freqüentava a sua casa?
Chico: Freqüentava. Mas foi depois. Por isso, dei um pulo no tempo. Já havia gravado Pedro Pedreiro, meu primeiro disco. Antes disso, não tinha quem me ensinasse. Eu vinha ao Rio, via as pessoas tocando e me dei conta de que estava atrasado. Em São Paulo, dava pra enganar com aqueles acordes, mas no Rio não dava. Aí, fui prestando atenção. Depois, conheci Toquinho, que havia estudado com Paulinho Nogueira e sabia violão. Olhava quando ele tocava e fui aprendendo alguma coisa.
Chediak: Vamos às suas primeiras músicas. Quais foram elas?
Chico: Já falei de Anjinho de papel, da Canção dos olhos e havia também uma marchinha que eu tocava nos shows estudantis em São Paulo, a Marcha para um dia de sol, gravada por uma cantora paulista muito boa, Maricenne Costa. Depois, fiz Sonho de um carnaval, que concorreu no festival da TV Excelsior, em 1965, cantada por Geraldo Vandré, com arranjo do Erlon Chaves. Foi aquele festival que Edu Lobo e Vinicius de Moraes venceram, com Arrastão, cantada por Elis Regina. Minha música não ganhou nada, mas foi classificada para a final, o que recebi como uma vitória. Também me lembro de ter participado de uma novela do Roberto Freire na televisão. Era uma novela com Eva Vilma e John Herbert. Eu era o garoto que aparecia numa festa para tocar bossa nova. Cantei uma daquelas bossas novas que fazia na época, chamada Teresa tristeza, que até Eduardo Conde gravou mais tarde. Mas era uma canção amadora, que fiz antes de Sonho de um carnaval.
Chediak: No seu primeiro disco, você gravou Sonho de um carnaval e Pedro Pedreiro.
Chico: Isso mesmo. Quando fiz Pedro Pedreiro, tive a sensação de que pela primeira vez estava compondo uma música realmente minha, que já não era mais imitação de bossa nova. Daí em diante, as coisas começaram a acontecer.
Chediak: Sonho de um carnaval é uma música original, Chico.
Chico: Mas eu achava Pedro Pedreiro mais original. Cantei essa música num programa de auditório da Rádio América e, quando cheguei naquele trecho, "esperando o sol, esperando o trem", alguém fez uma imitação do apito do trem que quase me derrubou. De qualquer maneira, a música chamou a atenção de alguém e fui convidado para gravar um compacto simples na RGE, ainda uma pequena gravadora de São Paulo. Naquela época, havia muitos shows estudantis e eu era convidado a participar. Havia um radialista em São Paulo, Válter Silva, o Pica-pau, que apadrinhou a gente. A gente era o Toquinho, o Taiguara, eu, uma cantora chamada Ivete, outra chamada Ana Lúcia. Começamos a cantar na primeira parte dos shows de bossa nova. Éramos nós, os amadores de São Paulo. Na segunda parte, era o pessoal do Rio.
Chediak: O disco fez sucesso?
Chico: Fez, principalmente em São Paulo, onde as músicas já eram conhecidas. Daí, fui contratado pelo TV Record e passei a cantar num esquema profissional. Logo depois, fui convidado para cantar num programa de televisão no Rio, num programa, aliás, que eu não tinha a menor idéia do que se tratava. Peguei um ônibus e vim para o Rio. Cantei e o apresentador elogiou a música. Era o Flávio Cavalcanti. Depois, alguém falou: "Fiquei com medo que ele quebrasse seu disco." Ele quebrava os discos com as músicas que não gostava. Eu não sabia disso, pois não via televisão. Na minha casa não se via televisão.
Chediak: Ele quebrou o primeiro disco do Martinho da Vila. Um mês depois, convidou o Martinho para o programa e disse que ele era o maior. Com que idade você passou a ver televisão?
Chico: A primeira pessoa a ter um aparelho de TV lá em casa foi a babá. Ela passou do rádio para a televisão na época dos festivais. A televisão dela passou a ser a televisão da casa.
Chediak: Quer dizer que, quando a televisão chegou à sua casa, você já era o Chico Buarque?
Chico: Estava começando a ser o Chico Buarque. Na Record, havia uma parada de sucessos chamada Astros do disco, que começava com os últimos colocados, os discos colocados em trigésimo lugar, trigésimo não sei quanto. Eu entrava assim: "Em vigésimo primeiro lugar, Pedro Pedreiro." Aos poucos, eu ia entrando nos outros programas, sempre para cantar Pedro Pedreiro. Já não agüentava mais.
Chediak: Depois, veio Vida e morte severina.
Chico: É verdade. Isso aconteceu em 1965. No ano seguinte, a peça venceu o Festival de Nancy.
Chediak: Em 1966, aconteceu muita coisa.
Chico: Logo no início do ano, Nara Leão saiu com três músicas minhas no disco dela. Aquilo foi muito importante pra mim. Ser gravado por Nara Leão era uma marca de qualidade. Ela era muito conhecida e muito prezada pelo repertório, pela descoberta de novos compositores que estavam esquecidos, como Cartola, Nélson Cavaquinho e Zé Kéti, e de gravar músicas de autores novos como Edu Lobo, Sidney Miller e eu. Naquele disco, havia três músicas minhas: Olê, olá, Pedro Pedreiro e Madalena foi pro mar.
Chediak: Eu tinha 16, 17 anos quando comecei a dar aula de violão e pegava as primeiras músicas para tirar a harmonia. Olê, olá me deu um trabalho danado. Há nela uma seqüência harmônica diferente de tudo, uma coisa muito original. Como foi que essa música saiu? Foi uma coisa intuitiva?
Chico: Muito intuitiva. Só podia ser, porque eu não tinha conhecimento teórico nenhum.
Chediak: Em 1966, você estourou com A banda.
Chico: Foi a música do festival da Record. Tirou o primeiro lugar, empatada com Disparada, do Téo de Barros e Vandré. Depois do festival, fui convidado para participar de um show com Odete Lara e MPB-4, na boate Arpège, dirigido por Hugo Carvana e Antônio Carlos Fontoura. E resolvi morar no Rio. Nasci no Rio, mas fui cedo para São Paulo. Meu apelido em São Paulo era Carioca. Antes de ser Chico Buarque, eu era o Carioca.
Chediak: Quando foi que você decidiu estudar música?
Chico: A partir do meu encontro com Tom Jobim, em 1967. Tom foi comigo à Lapa para comprar um piano que ele indicou. Era um piano do tipo armário. Comecei a tomar aulas com Vilma Graça.
Chediak: Eu me lembro disso. Ela dizia que você pegava tudo com muita rapidez.
Chico: Durante um ano estudei com ela e aprendi tudo o que sei sobre teoria. Claro que aprendi também lidando com meus parceiros músicos. Uma vez, fiz uma letra pro Toquinho, Lua cheia. E musiquei a poesia de João Cabral de Melo Neto em Vida e morte severina. Mas, normalmente, fazia letra e música. Achava que não precisava de parceiros. Comecei a fazer letra para o Tom, depois para o Francis Hime, para o Edu Lobo, isso tudo me acrescentou muito na música. Tom tinha a faculdade de ser um mestre sem ser didático. Pegava a sua música, colocava um acorde dele e falava assim: "Você é um craque, hem!" Ele rearmonizava. Se bem que me lembro muito do Tom também me dizer pra eu preservar de certa forma a minha "ignorância", ou seja, o que eu tinha de espontâneo, a minha intuição musical. Mas havia aquelas coisas que eu devia corrigir.
Chediak: Você falou pouco do festival de 1966.
Chico: Eu já cantava A banda para os amigos, nos botequins. Só não podia cantar em público. Nesse tempo, eu cruzava muito com Gilberto Gil, que morava em São Paulo e trabalhava na Gessy-Lever. A gente se encontrava quase sempre num bar na Galeria Metrópole. Gravei A banda antes do festival, mas o disco só saiu depois. Foi o meu primeiro long-play.
Chediak: Quando você ganhou o primeiro cachê imaginou que dava início à sua carreira profissional?
Chico: Era muito pouco para imaginar que poderia me manter com aquilo. Foi num show organizado por Pica-pau, em Campinas, que me rendeu 30 mil cruzeiros e alguma coisa. Era um dinheirinho muito bom para um estudante de arquitetura (na época, eu estudava arquitetura). Bem, bebi o cachê com os meus amigos. Já o meu o primeiro salário, na TV Record, era de 500 cruzeiros novos. Estou bem lembrado dele porque foi inteiramente aplicado no pagamento da primeira prestação de um carro, um fusquinha usado. Foram 10 ou 12 prestações. Era receber o ordenado e pagar as prestações. Continuava estudando arquitetura porque não tinha a veleidade de me tornar um profissional da música. Achava que aquele dinheiro que recebia servia apenas pra comprar um carrinho, um violão, pra pagar a cerveja, pra me divertir. Achava que música seria uma atividade passageira.
Chediak: Mesmo depois de Pedro Pedreiro e A banda?
Chico: Mesmo depois eu duvidava que aquilo fosse uma profissão duradoura.
Chediak: Mas com A banda você ficou superconhecido.
Chico: Foi o maior sucesso. Deu capa de revista, etc. e tal, meu salário aumentou e passei a fazer shows com muita freqüência. Comecei a viajar muito com o violão e o empresário. Geralmente, ia cantar em clubes no Brasil inteiro. O clube parava a dança, eu cantava meia hora com o violão e a dança voltava depois. Ganhava um dinheirinho, mas não era grande coisa.
Chediak: E o direito autoral?
Chico: Custei a receber. Ganhava na vendagem de discos, nos shows, na televisão, o que me permitiu comprar um pequeno apartamento no Leblon, além de um outro fusquinha, mas de primeira mão. Mas na época não existia ECAD [Escritório de Arrecadação e Distribuição Central]. Existiam as sociedades arrecadadoras e distribuidoras de direito autoral, que relutavam em aceitar um sócio novo, porque seria mais um a dividir o bolo. Quase um ano depois do lançamento de A banda é que ingressei na UBC [União Brasileira de Compositores].
Chediak: Quando foi que você decidiu deixar a arquitetura?
Chico: No terceiro ano da faculdade. Eu não sabia o que ia ser. Tinha uma vaga idéia de ser jornalista, porque gostava de escrever. Pensei também em ir para o Itamaraty. Achava que lá as pessoas bebiam e faziam músicas e poesias.
Chediak: Por causa do Vinicius, talvez.
Chico: Por causa do João Cabral também. Mas eu gostava muito de arquitetura, como gosto até hoje. Além do mais, havia todo aquele entusiasmo por Brasília, por Oscar Niemeyer. Só não queria ser arquiteto.
Chediak: Tom Jobim também estudou arquitetura e abandonou a faculdade. Falar nisso, como foi seu encontro com ele?
Chico: Quem me levou na casa dele foi Aloysio de Oliveira, dono da gravadora Elenco. Aliás, o sonho da gente era ser artista da Elenco, mas eu já tinha contrato com a RGE. Na época, Aloysio era casado com a Cyva, do Quarteto em Cy, e foi ele quem produziu o disco delas cantando Pedro Pedreiro. Aloysio gostou das minhas músicas e tinha aquele coisa generosa, gostava de ajudar, e me levou ao Tom Jobim. Isso foi antes da Banda. Cantei Pedro Pedreiro para o Tom. A partir de 1967, a gente ficou parceiro. A primeira letra que fiz para ele foi para uma música já gravada, chamada Zíngara. Com a letra, ganhou o nome de Retrato em branco e preto. Vinicius estimulou muito a parceria. Mas eu achava que era um risco muito grande fazer letra para Tom, até porque a minha única experiência de letrista para música pronta tinha sido para Lua cheia, de Toquinho. Compor com Tom foi uma coisa que me deu trabalho mas muito orgulho também. Era o máximo ser parceiro dele. Para mim, era a glória.
Chediak: Como é que o Tom recebia as suas letras?
Chico: Ele era muito engraçado e muito crítico também. Quando o Quarteto em Cy ia gravar Retrato em branco e preto, tirei do verso "eu tenho o peito tão marcado de lembrança do passado" o "tão marcado" e mudei para "carregado de lembrança". Expliquei ao Tom que o "tão" era uma muleta para completar as sílabas da canção. Ele disse, concordando: "Você é um craque." Depois, ele telefonou, pedindo para deixar como estava: "Esse 'eu tenho o peito carregado' tem outra conotação." "Qual?", perguntei. "É que 'peito carregado' pode ser uma tosse."
Chediak: Imagina foi uma das primeiras melodias que ele criou. Como foi fazer uma letra para ela?
Chico: Foi engraçado porque Tom dizia que não era uma música para ter letra, que era impossível letrá-la. Falei: "Vou topar o desafio, posso?" Ele disse que eu não conseguiria. Mas eu precisava da música porque estava fazendo a trilha de um filme do Miguel Farias, Para viver um grande amor. Fiz a letra sem mudar nada na música. Nota por nota, está tudo ali. Ele nem implicou porque viajou logo para os Estados Unidos. Como eu precisava da aprovação dele para gravar, mandei a letra para ele e fiquei aguardando a resposta, que veio num telegrama com duplo sentido: "Very exquisite". É que, em inglês, exquisite é bom. Aliás, em todas as línguas, menos em português, exquisite é uma coisa boa, rara. Em português, tem um sentido de estranho. Acho que considerou a letra estranha e, realmente, ela é estranha. Mas ele gostou.
Chediak: O que foi que houve com Wave?
Chico: Ele me mandou a música, que adorei, e comecei a fazer a letra. Escrevi logo: "Vou te contar". E o resto não saía. O tempo passou e Tom ia perdendo a paciência: "Ô Chico! Você não sai do 'vou te contar'? Não quer ficar rico?" Ele sabia que a música iria fazer sucesso e foi realmente um grande sucesso internacional. Acabei desistindo e ele fez a letra. Várias músicas dele - como Nuvens douradas, Rancho das nuvens - passaram por mim e as letras não saíram.
Chediak: Depois, você passou a fazer letra também para o Francis Hime.
Chico: Foi em meados dos anos 70. Tom até ficou um pouquinho "mordido". Fiz letra também para o Sivuca.
Chediak: Antes disso, você foi para a Itália.
Chico: Fui lançar um disco. Chegando a Roma, fui aconselhado a não voltar, porque no Brasil as coisas estavam muito difíceis. Nem pensava em ficar, porque minha mulher estava grávida de Silvinha e eu queria que ela nascesse aqui. Aluguei um apartamento e Silvinha nasceu lá. Fui ficando e acabou saindo um outro disco com versões de Sérgio Bardotti para o italiano. Depois, fui eu que fiz as versões das músicas de Bardotti para Os saltimbancos, que Antônio Pedro adaptou para o teatro.
Chediak: E a censura, Chico?
Chico: Às vezes, a censura proibia uma música inteira e o advogado da gravadora corria para Brasília. Muitas vezes, o advogado telefonava de lá para dizer que, se mudasse tal palavra, a música estaria liberada. Quase sempre era uma bobagem, como em Partido alto, em que "titica" virou "coisica", "brasileiro" virou "batuqueiro", coisas assim. Era o preço para o disco sair. Naquele disco que gravei ao vivo com Caetano Veloso, a gravadora teve que botar aplauso para esconder uma palavra proibida. O aplauso ficou evidentemente falso.
Chediak: E Vinicius, Chico? Como você via o Vinicius de Moraes?
Chico: Eu não via o Vinicius. Eu queria ser o Vinicius, que conhecia desde criança, porque ele era amigo do meu pai. Queria ser o Vinicius, com mulheres bonitas, tomando aquele uísque, tocando violão, fazendo poesia. Não queria mais nada. Quando veio a Bossa Nova, aumentou meu fascínio e veio uma admiração muito grande.
Chediak: E você acabou parceiro dele. Como foi que vocês fizeram Valsinha?
Chico: Nós estávamos na Argentina, onde Vinicius fazia muitos shows com Toquinho. Maria Bethânia também estava lá. Vinicius me deu uma fita com a música, que eu trouxe para o Brasil e mandei a letra por carta. Ele queria que a música se chamasse Valsa hippie, mas não gostei e sugeri Valsinha, um nome que tinha mais a ver com ele, que usava tudo no diminutivo. Era "mulherzinha", "uisquinho" etc. Fizemos também Olha, Maria, Gente humilde, Desalento e Samba de Orly.
Chediak: Dos compositores antigos, quais foram os que mais o influenciaram?
Chico: Ouvia muito Noel Rosa, Ary Barroso, Ismael Silva, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi, uma porção deles. Ouvia muito um disco de duetos do Mário Reis com o Francisco Alves. Ouvia também aquelas operetas do cinema, tipo O príncipe estudante. E gostava das músicas americanas com Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, das músicas de Cole Porter.
Chediak: Quando começou sua parceria com Edu Lobo?
Chico: Já nos anos 80. Escrevi pra ele a letra de Moto contínuo e depois fizemos O grande circo místico, com um roteiro do Naum Alves de Souza, baseado num poema de Jorge de Lima, a pedido do corpo de baile do Teatro Guaíba, de Curitiba. Na verdade, a parceria com Edu vinha sendo adiada desde os anos 70. Edu fez os arranjos do disco Chico canta. Depois do Grande circo místico, veio O corsário do rei e outro balé chamado A dança da meia-lua. Foram três projetos. Edu foi o parceiro com quem fiz o maior número de músicas. Prezo muito a nossa parceria.
Chediak: Qual o processo que você adota para compor esta obra maravilhosa?
Chico: Há a criação de parceria e a criação solitária. São processos diferentes. Quando recebo a música do parceiro, faço a letra sem interferir numa nota sequer. Mas quando a música é minha, vou mudando. Muitas vezes, a música já vem anunciando as palavras. Pelo som, pela musicalidade, aparecem palavras que vão puxar o resto da letra e me obrigam a mudar a música. Quando sou eu que faço, a música é sempre maleável.
Chediak: Já aconteceu de "baixar o santo", ou seja, a música ficar meio pronta imediatamente?
Chico: Quando esse "santo" baixa, vem com uma idéia qualquer, um estalo. Depois, vem o trabalho e muitas vezes o trabalho vai até depois da gravação. Um disco meu já estava sendo prensado quando descobri que precisava substituir uma palavra em O futebol. A palavra que entrou foi "anular", mas não me lembro da que saiu. O fato é que tiveram de parar a prensagem e alterar a capa por causa de uma única palavra. Aquela troca era uma coisa muito importante, muito preciosa pra mim. No disco As cidades, aconteceu uma história diferente. Tinha a idéia da letra, mas a música não saía. Me lembrei então de uma música que Dominguinhos havia me mandado em 1983. Saí atrás da fita e ela estava guardada na gaveta. Acabei compondo Xote de navegação. Quer dizer: levamos 15 anos para compor a música. Só Dorival Caymmi seria capaz de levar tanto tempo compondo uma música.
Chediak: Você já compôs dormindo? Não sou compositor, mas me lembro que um dia acordei com uma música que havia criado enquanto dormia.
Chico: Aconteceu, mas nada que prestasse. Há pouco tempo mesmo, contei pro Sérgio Ricardo que havia sonhado com ele. O sonho era o seguinte: eu estava num carro, ligava o rádio e ouvia o Sérgio Ricardo cantando uma música. Acordei do sonho com a música inteira na memória, mas fui esquecendo aos poucos. De manhã, não me lembrava de mais nada. Ficou apenas um verso que dizia assim: "Tem livro muito bom, tem livro muito pau." Com o verso, ficou também uma sugestão de título: Samba da biblioteca.
Chediak: De certa maneira, seria uma parceria com Sérgio Ricardo.
Chico: Quando Ruy Guerra e eu fazíamos as músicas da peça Calabar, saiu uma típica marchinha de carnaval, Boi voador não pode. Por isso, convidamos um cantor especialista em músicas carnavalescas para gravar. Mas ele pediu parceria. "Como assim?", perguntei. Hoje não é mais assim, mas o que ele disse ainda fazia sentido naquele tempo. O compositor fazia a música carnavalesca, mas era o cantor que saía em campo para trabalhar na divulgação, aparecendo nas emissoras de rádios, nos bailes, aonde pudesse ir para divulgar a música. No final das contas, quem ganhava dinheiro era o compositor, que faturava os direitos autorais. Mas não podíamos dar parceria. Era uma música de uma peça de teatro e todas as músicas eram assinadas por mim e pelo Ruy Guerra.
Chediak: Escrever um livro e compor, o que é mais difícil?
Chico: Com toda a certeza, fazer música com 20 anos de idade é mais fácil. Agora, um livro é como se fosse uma canção enorme, longa, que toma cada dia, durante um ano ou um pouco mais. Mas quando estou compondo, fico tomado pela música.
Un profundo observador de la realidad
BRASILIA.- Es sobradamente sabido (y él mismo lo ha dicho cada vez que le fue posible) que Chico Buarque prefiere el lenguaje musical que el de las entrevistas. Pero cualquier conversación mano a mano con el creador de "Teresinha", como la que tuvo La Nación en Brasilia, siempre arroja frases de gran riqueza y testimonios de un profundo observador de la realidad. He aquí algunas de las frases que el artista dejó en el diálogo: "En América latina estamos unidos por lo que tenemos de peor, y separados por lo que tenemos de mejor. Incluso en el fútbol. En las artes creo que Brasil aún está aislado. Tenemos poco contacto con la Argentina y el resto de América."
"Toda mi generación (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo) se formó con la bossa nova. Es probable que muchos de nosotros, que nos sentíamos impulsados a hacer otras cosas (letras, cine), nos volvimos accidentalmente hacia la música. Teníamos 14, 15 años, estábamos allí, vino todo ese movimiento musical revolucionario, irresistible, con João Gilberto, Jobim, Vinicius, y no podíamos hacer otra cosa que entrar en esa explosión musical."
"La mayoría de las canciones testimoniales tienen vigencia. Tanto, que las canto todas las veces que puedo en el escenario. Lo que tal vez no tenga vigencia son cuatro o cinco temas determinados, de los tiempos de la represión. Pero son muy pocos."
"En Brasil, mucha gente me ve como un ciudadano muy comprometido hacia las cuestiones políticas. Es cierto que sigo haciendo canciones que hablan de los problemas sociales de mi país, pero no quiero que me etiqueten como un cantante político. Aun las canciones más citadas como ejemplo de temas comprometidos tienen poesía y música muy alegres."
"En cuestiones literarias soy, sobre todo, un autor de ficciones. Nunca se me dio por escribir ensayos. No creo que llegue a escribir algo parecido a "Verdad tropical", de Caetano Veloso."
"Nuevos talentos"
"Todo el tiempo surge musicalmente algo nuevo. Tal vez no lo escuchamos diariamente por la radio o la televisión, pero siempre aparecen nuevos talentos. En mi país hay nombres muy valiosos como Arnaldo Antunes o Carlinhos Brown, con un talento que supera las posibilidades de difusión."
"En Estados Unidos existen muchas dificultades para localizar e identificar plenamente lo que es la música brasileña. Tal vez se quedaron estancados en los años de la bossa nova, un movimiento que allí prendió muy fuer te."
"Mientras estoy cantando o haciendo giras no me ocupo de ninguna otra cosa. El año próximo tal vez piense en un nuevo libro o nuevas canciones, pero no quiero estar atado al compromiso de hacer un disco o escribir una novela por año. La realidad tiene impulsos que se convierten en canciones, pero esto me ocurre menos que antes. Cuando uno tiene 20 años cualquier cosa es un motivo para escribir una canción y estar todo el tiempo con la guitarra. Con el tiempo uno se vuelve más selectivo, más crítico."
"Que alguien me haya designado como el músico del siglo en Brasil es un despropósito, toda una exageración."
Entrevista a Chico Buarque de Holanda
"Me gustaría que dijeran de mí: fue buen alumno de Tom Jobim" En Brasilia, en una entrevista exclusiva con Página/12, el carioca habló de su relación con Argentina (de Borges y Maradona, por ejemplo), de los ideales del Mayo francés, de la bohemia, del presidente Cardoso y de por qué se cree más literato que músico.
Por Fernando D'Addario
La ciudad donde Chico Buarque está cantando "Construçao" y un millar de fieles salda sus cuentas con el tiempo aplaudiéndolo a rabiar parece ahora la mueca de un viejo sueño colectivo. Brasilia fue construida a principios de la década del 60, condicionada por el slogan "La ciudad del futuro". El futuro llegó. Las fabulosas autopistas que la recorren con el frenesí de este fin de siglo se transforman en venas abiertas cuando llegan a la periferia, y miles de nordestinos marginales ofrecen su versión del progreso. A los 54 años, Chico Buarque encuentra en Brasilia una paradoja de su propia historia. El también soñó con esa "ciudad del futuro", como una suerte de proyección arquitectónica de aquel Brasil que empezaba a seducir al porvenir a través de la bossa nova y el cinema novo. Por eso, el músico que editó recientemente el CD As Cidades, no puede evitar una reflexión escéptica cuando contempla ese espejismo de perfección formal que es Brasilia. "Yo empecé a estudiar arquitectura por el fenómeno Brasilia, que era un símbolo de modernidad, de descentralización", cuenta en la entrevista que concede a Página/12 en una tarde calurosa y seca. "Y hoy esta ciudad es reflejo de lo que ocurre en el mundo. Es todo un síntoma el hecho de que cuando nosotros éramos jóvenes las ciudades con mayor población eran Tokio, Nueva York, Londres, que eran modelos a imitar. Hoy las ciudades más populosas son Bombay, México DF, San Pablo, que sólo atraen pobreza, no bienestar".Chico, el intelectual, el músico de las canciones perfectas, el hombre comprometido, sólo se entusiasma realmente cuando le hablan de fútbol. Volvió a las giras después de un lustro, Brasil cumple 500 años de existencia, los próximos 11 y 12 de octubre actuará en Buenos Aires (este último dato sólo les interesa a los argentinos, que no tuvieron muchas posibilidades de disfrutarlo), pero el orgullo lo delata cuando cuenta que su equipo de fútbol, el que lo acompaña a todos los conciertos y lo tiene como indiscutible número 9 titular, está invicto en 23 partidos. "Y eso que tenemos los árbitros en contra", advierte con una sonrisa irónica que deja entrever exactamente lo contrario. Y dice, con el único síntoma de jactancia que evidenciará a lo largo de la entrevista, que su estilo "se parece más al de Pelé que al de Ronaldo". Y que sus éxitos en la cancha lo ayudan a disimular su amargura por las desventuras del Fluminense, el equipo del que es hincha, y que en contradicción con un pasado de esplendor, compite en el torneo de la tercera división brasileña. "Hoy me vinieron a felicitar porque le ganamos 1 a 0 a Serra, otro equipo de tercera, que es un desastre. Y me enojé: ¡cómo me van a felicitar por un 1 a 0 a Serra!", se queja. Enseguida asegura que él, en realidad, no es fanático de nada, y luego se retracta, y dice que, en realidad, es "fan de Maradona, el último grande de verdad. Ahora están Ronaldo, Ronaldinho, Rivaldo, pero ninguno como Maradona. Y no lo admiro sólo como jugador, sino como persona. Toda la vida fue un rebelde, y su rebeldía es más interesante por su sufrimiento personal". De Maradona a Buenos Aires sólo hay un paso en el improvisado temario del reportaje. "Creo que conozco más Buenos Aires a través de los cuentos de Borges que por haberla caminado. Pero espero que no piensen que mi relación con esa ciudad le debe todo a Ficciones. También tengo muchos amigos reales allí". La arquitectura y el fútbol asoman, entonces, como elementos constitutivos de del fútbol y la planificación metódica de la arquitectura se proyectaron en su obra artística abonaría el terreno de las arbitrariedades, pero él construye sobre la marcha su opinión:
"Nunca había pensado esa mezcla. Con respecto de la arquitectura sí, y no es casualidad. En la historia de la música brasileña hay muchos ex estudiantes de arquitectura. Jobim, por ejemplo. La música tiene unacuestión casi matemática, que la gente no ve ni escucha, pero está presente todo el tiempo en el que compone. Pero por otro lado, no creo que lo intuitivo que pueda tener jugando al fútbol lo haya trasladado al arte. Quizás si hiciera jazz podría ser, por el tema de la improvisación permanente, pero no en mi música. Lo que llaman inspiración no me ha visitado casi nunca. Siempre necesité de la planificación para "construir" mis canciones."
Página/12 - ¿Usted fue más vanguardista en sus novelas y en sus obras de teatro que en sus discos?
Chico - Es verdad, creo que fui y soy más rupturista en la literatura que en la música. La explicación es simple: tengo más conocimiento de escritores y de libros que de música. En lo musical siempre necesité de la ayuda de maestros para ir mejorando. Y los tuve cerca. Crecí bajo la influencia de la bossa nova y durante muchos años sólo traté de escribir letras como Vinicius, cantar como Joao y componer como Jobim. De tanto imitar, aprendí algo. Si alguna vez, dentro de algunos años, a alguien se le ocurriera catalogarme, a mí me gustaría que dijeran de mí: 'Fue un buen alumno de Tom Jobim'. Por eso, mi falta de conocimientos musicales profundos me impiden ser un vanguardista al estilo Caetano o Gismonti. Lo mío es más "tradicional".
P12 - ¿Y en la literatura?
Chico - Allí, como mis referentes son más lejanos en tiempo y lugar, pude hacerme un camino más personal. De todos modos me costó mucho lograrlo. Creo que recién con mi novela Estorvo conseguí un lenguaje próprio
P12 - Usted estuvo cinco años sin hacer shows. ¿Se siente más cómodo con la literatura que con la música?
Chico - No es tan así. Pero sí me siento más cómodo escribiendo -ya sea música o literatura-, que actuando.
P12 - ¿Por qué volvió a actuar, entonces?
Chico - Porque después de tanto tiempo, hay un público que apenas me conoce. Me vienen a ver jóvenes que no vivieron mi anterior etapa y siento que tienen más libertad para escucharme. No me piden que cante "A pesar de voce".
P12 - ¿No le gusta cantar "A pesar de Voce"?
Chico - No, porque es una canción con una mirada muy de los 70.
P12 - "Construcao" también lo es y sin embargo la canta.
Chico - Pero hay una diferencia: una es política y está escrita para el contexto de una época muy determinada. La otra, "Construcao", es una canción con una temática social y, en consecuencia, atemporal. Para cantar un tema necesito no sentirlo viejo. Soy más formalista de lo que la gente piensa.-El público suele tener una reacción curiosa. Quizás no le moleste que hayan cambiado Cardoso, o Lula, pero pretende que su artista favorito diga y haga siempre lo mismo, "lo de antes".
P12 - Esta también es una actitud muy "años 70".
Chico - El hecho de haber participado de una época muy convulsionada y de haber estado muy expuesto nos condiciona para toda la vida. A los que empezaron hace poco no se les exige "coherencia". Lo que en realidad quiere la gente es volver a vivir esa época, y nosotros quedamos en el medio, entre ellos y la realidad.
P12 - En la canción "Assentamento", de su último CD, plantea la situación del movimiento de los "Sin tierra". Ahí está muy clara su postura sobre este fin de milenio.
Chico - Es que yo no me desligo de lo que pasa. Ese tema formó parte del libro Terra, del fotógrafo Sebastiao Salgado, y decidí incluirlo en el disco. El problema que sufren los "Sin tierra" me sensibiliza mucho. Está más que claro que la geografía de Brasil alcanza para darle tierras a todo el mundo, y sin embargo no la tienen. Lo más curioso es que en mi país todos, menos los latifundistas, claro, están de acuerdo con que se debe hacer una reforma agraria. Todos están de acuerdo con que existe una injusta concentración de riqueza en favor de unos pocos. Pero nadie tiene la voluntad política para cambiar eso.
P12 - ¿Cardoso lo decepcionó por haber sido un intelectual progresista que luego se volcó a la derecha?
Chico - En realidad, no me sorprendió. El fue en su momento un sociólogo de izquierda, pero no bien estuvo cerca del poder se notó que ya no era el mismo. Era otro Cardoso. Y resultó lógico que con las alianzas que estaba trazando su gobierno iba a ser lo que es. También hay que ser concientes de algunas cosas: Cardoso no fue elegido por haber sido un sociólogo de izquierda, sino por haber tejido una inteligente alianza conservadora. Además, sería tonto pensar que Cardoso es un caso aislado, de un hombre que en los 60 estuvo en la lucha clandestina y luego, en el poder, hizo todo lo contrario. Hay un grupo de gente que cambió. Si a un hombre cualquiera lo hubiesen tenido durmiendo estos últimos 30 años y le mostraran ahora la foto actual de Cardoso y de su gabinete, diría: ¡Estamos en Cuba! Pero está claro que no estamos en Cuba.
P12 - ¿Es escéptico con respecto del futuro?
Chico - No tengo esperanzas de cambio. Y tampoco veo otro camino posible. Lo que me aburre es que se siga este único camino posible con tanto fervor...
P12 - Da la sensación de que hoy, a diferencia de lo que ocurrió siempre en la historia, es la derecha la que avanza y avanza, mientras que la izquierda sólo puede defender lo poco que le queda...
Chico - Es que se invirtieron los roles de la retórica. Muchas de las consignas de la izquierda fueron tomadas por la derecha. Son ellos los que ahora dicen: "La concentración de la riqueza es terrible, hay que hacer algo". ¡Pero es la derecha la que está en el poder! Me resulta particularmente patético que muchos viejos izquierdistas, ahora en el gobierno, tienen tanta necesidad de "limpiarse" de su pasado, están tan obsesionados por afirmarse en su nuevo rol, que los derechistas históricos parecen más izquierdistas que ellos.
P12 - ¿Usted cree que ante este estado de las cosas el arte puede ser un vehículo de resistencia?
Chico - Sí, porque todo lo que sea imaginación es una forma de resistencia. Esto no lo digo yo. En el Mayo Francés decían: "la imaginación al poder". Está claro que la imaginación todavía no llegó al poder.
P12 - Brasil siempre fue "proteccionista" en materia musical. No es fácil entrar en el mercado brasileño. Sin embargo, los mayores movimientos musicales del país, la bossa nova y el tropicalismo, fueron producto de mixturas, ya fuera con el jazz o con el rock. ¿Cómo se maneja ahora el tema de la penetración cultural y la identidad?
Chico - Es cierto que el jazz y el rock fueron influencia en su momento, pero después aparecieron otros ritmos. Están el rap, que es más crudo porque refleja la vida de gente con una realidad más cruda, el reggae, y el intercambio entre las músicas de las diferentes regiones brasileñas. Hoy se ve una propuesta interesante en artistas de Pernambuco, en Recife. No me parece mal que exista una asimilación constante de música extranjera si se conserva la identidad. Lo interesante es ser regional y al mismo tiempo internacional. Como pasó con el samba-reggae, por ejemplo.
P12 - Pero hacia afuera da la sensación de que no hubo una camada de músicos que pudiera suplantar, con el mismo nivel artístico, a su generación, la de Gil, Caetano, Gal...
Chico - No sé qué es lo que llegará a la Argentina, pero hubo una buena generación de recambio. Carlinhos Brown, Chico César, Marisa Monte, y muchos nombres más. Lo que pasa es que mi generación se manifestó en un momento socio-cultural muy especial y es difícil que se borren nuestros nombres de la memoria de la gente. Pero quizás tengamos en el futuro nuevos movimientos, con nuevas mezclas de estilos, nuevas influencias. Negarse a la asimilación de culturas extranjeras es tan peligroso como conservador. Y si no, miren lo que pasó con Piazzolla. Brasil tuvo capacidad para asimilar todo. Con la buena música extranjera que llegabase hizo y se hace buena música brasileña. Con la mala música extranjera, que también llega en cantidad, se hace mala música brasileña. Esto fue así toda la vida.
P12 - ¿Ve en los músicos jóvenes una actitud diferente de la que tenían ustedes?
Chico - Los noto más aplicados, con un bagaje teórico más desarrollado. Por ejemplo, hay un mercado muy fuerte de "song-books", y los chicos muestran mucho interés por aprender musicalmente.
P12 - ¿Y la bohemia?
Chico - No, ahí no. Ya no hay bohemia. No existe eso de encontrarse a tocar, a cantar, a hablar de la vida, a crear colectivamente. Hoy se está construyendo una sociedad cada vez más aislada y entonces los músicos también viven más aislados. Quizás por eso se dediquen a estudiar más que lo que hacíamos nosotros. En general, la gente está encerrada en sus casas, y sino, se encierra en los shoppings. La mía fue la generación de las jam-sessions, ésta es la de los song-books...
P12 - Antes se refería a Maradona y destacaba su rebeldía. Usted también es exitoso, es famoso, tiene dinero. ¿Dónde ubica la rebeldía en su vida?
Chico - Creo que durante toda mi carrera, mi inconformismo habló a través de los discos y de los libros que hice. Y después de tantos años, sigo siendo rebelde. Lo que ocurre es que ahora soy mansamente rebelde. O delicadamente rebelde, si te gusta más
Aos 55 anos, o autor de grandes clássicos da MPB diz que está mais interessado no prazer do que no sucesso
"Hoje, cobra-se cachê para cantar não importa para quem. Amanhã podem perguntar: 'Quanto você cobrou para cantar no comício do Lula, na Marcha dos 100 Mil?'"
Marcos Fernandes
Às vezes, ele estica a perna e já não consegue alcançar a bola. Mas parece ser esse o único efeito nocivo do tempo sobre o artista. Aos 55 anos, Chico Buarque compõe, grava e faz show quando quer. Cada vez menos, cada vez melhor. Com 300 mil cópias vendidas do último CD, As Cidades, lançado depois de um silêncio de cinco anos, não está muito interessado em fazer sucesso - principalmente se isso incluir aparições nos programas do Faustão e do Gugu. "Caetano (Veloso) fez a opção dele. Eu quero fazer o que me dá vontade, o que eu acho bom", afirma, sem criticar o caminho escolhido pelo intérprete de Sozinho. Ausente da Marcha dos 100 Mil, o autor de clássicos da resistência musical como Apesar de Você e Cálice (cujas metáforas, admite, ele próprio já não compreende) defende mudanças na política econômica e a investigação de alguns negócios do governo, como a privatização das teles. E critica o comércio, que, no lugar da ideologia, hoje envolve a participação dos artistas em campanhas políticas. "Cobra-se cachê para cantar não importa para quem."
Correio Braziliense - Há um intervalo de cinco anos entre Paratodos e As Cidades, seus dois últimos discos. Tempo e Artista, uma das faixas de Paratodos, diz: "Imagino o artista num anfiteatro/ onde o tempo é a grande estrela/ Vejo o tempo obrar a sua arte/ tendo o mesmo artista como tela." Hoje você grava menos discos, faz menos shows, compõe menos do que antes. O que o tempo fez com o artista Chico Buarque?
Chico Buarque - Sou hoje um músico mais completo, um compositor mais exigente que há 30 anos, menos prolixo e mais apurado. Em compensação, com o tempo você perde em fluência, em espontaneidade. Enfim, são vantagens e desvantagens que o tempo traz.
Correio - Mais vantagens ou desvantagens?
Chico - O tempo acrescenta com uma mão e tira com a outra. Mas não tenho queixas.
Correio - Nem do fato de já ter completado 55 anos?
Chico - Não. Quando eu tinha 20 anos, comecei a desconfiar que ia envelhecer (Risos). Mas o tempo vai passando aos poucos, não é assim de uma hora para a outra. Você nem se dá conta. É claro que se aborrece quando estica a perna e não alcança a bola...
Correio - Isso quer dizer que o tempo faz mal ao jogador de futebol Chico Buarque. E ao artista? Por que hoje você compõe tão pouco?
Chico - Por ter me tornado muito mais exigente do que era no início da carreira. Às vezes, quando ouço uma música que fiz aos 20 anos, penso: ''Eu podia ter feito muito melhor.'' No começo, tinha contratos com gravadoras que me obrigavam a lançar um disco por ano. Hoje, só assino contrato por um disco, que posso renovar ou não. E isso me faz muito bem: gravar quando tiver vontade, quando me sentir bem.
Correio - E para compor, você também precisa se sentir bem, ou é a inspiração que manda?
Chico - Pode acontecer de, num relance, eu ter uma idéia, uma inspiração. Mas, cada vez mais, sou eu quem vai buscar a música, e não o contrário. Como tenho muitas parcerias, não costumo partir do nada - parto das melodias dos parceiros. Ou de imagens, como no caso de A Ostra e o Vento, tema do filme do Walter Lima Jr., e de Assentamento, feita a partir do livro (Terra) do fotógrafo Sebastião Salgado. Pode até aparecer uma idéia de repente, mas isso acontece cada vez menos.
Correio - Por quê?
Chico - Porque, com o tempo, você fica cada vez menos disponível para esse tipo de centelha, perde o gesto espontâneo de sentar, tocar violão... Fica mais exigente: depois dos 50, você joga mais coisa fora do que aproveita. Você tem mais conhecimento do que tinha aos 20 anos. E como já conhece bem os caminhos, fica mais difícil encontrar um caminho pelo acaso.
Correio - Conhecendo os caminhos, fica fácil compor?
Chico - Não é bem assim. Eu sei como buscar, mas não necessariamente como encontrar. Às vezes, acontece de buscar, ralar, e não encontrar. Mas sei que mais cedo ou mais tarde vou conseguir. Na verdade, fácil, nenhuma música é. Mas para quem passa um ano escrevendo um romance, ficar uma semana tentando compor uma música não é tanto tempo assim.
Correio - Uma parte importante da sua obra foi composta no feminino. Mas no disco novo, apenas uma, A Ostra e o Vento, se enquadra nessa categoria. E no anterior, não há uma única sequer. O que houve com sua alma feminina?
Chico - Acho que ela anda meio adormecida. (Risos) Na verdade, quase todas as minhas músicas femininas foram feitas para cinema ou teatro, para personagens femininas, que precisavam ser cantadas no feminino. E eu tenho escrito menos para cinema e teatro do que antigamente, até porque, principalmente no caso do cinema, se produz menos no Brasil.
Correio - Mas você podia continuar compondo no feminino independente do teatro e do cinema, como no caso de Com Açúcar, Com Afeto e Olhos nos Olhos, não?
Chico - É. Com Açúcar, Com Afeto foi a primeira. A Nara (Leão) pediu que eu fizesse uma música no feminino para ela, e deu até o tema: ela queria que falasse dessas mulheres que sofrem em casa enquanto os maridos vão para a rua. Olhos nos Olhos eu fiz para a Bethânia cantar. Temos cantoras maravilhosas no Brasil, e acho bom fazer canções para elas.
Correio - Então...?
Chico - Tudo bem. A qualquer hora minha alma feminina sai do armário de novo... (Risos)
Correio - E as músicas de protesto, quando saem do armário de novo?
Chico - De protesto mesmo, fiz poucas, talvez uma meia-dúzia. Sobre a realidade social, continuo fazendo, como Assentamento (sobre os sem-terra). A verdade é que a linguagem muda com o tempo. Se você pegar as canções do tempo da ditadura, vai ver que as tintas são mais fortes, há menos nuances, até os arranjos, o jeito de cantar eram diferentes.
Correio - E tinha que ter muita metáfora para driblar a censura, não?
Chico - Algumas tão obscuras que se tornaram incompreensíveis. Às vezes, eu mesmo não sei o que eu quis dizer com algumas metáforas de músicas como Cálice (parceria com Gilberto Gil), por exemplo.
Correio - Uma vez entrevistamos uma ex-censora que se orgulha de ter contribuído para a liberação de Mulheres de Atenas. Ela disse que bateu o pé, dizendo que a música falava apenas da submissão das mulheres, enquanto alguns colegas censores viam ali uma metáfora do Brasil oprimido pela ditadura militar. Quem tinha razão?
Chico - Mulheres de Atenas foi feita para uma peça do Augusto Boal, que falava de repressão sexual. Não era nenhuma alusão ao momento do país. Acontece que naquela época havia uma forçação de barra muito grande, tanto a favor quanto contra. Ambos os lados liam politicamente o que não era.
Correio - Por exemplo?
Chico - Já disseram que o verso ''de muito gorda a porca já não anda'', de Cálice, era uma crítica ao Delfim Netto, que era ministro. E gordo. (Risos)
Correio - E o que quer dizer ''de muito gorda a porca já não anda''?
Chico - Não faço a mínima idéia. (Risos) Esse verso é do Gil.
Correio - Há quem diga que os versos do samba Injuriado (''Dinheiro não lhe emprestei/ Favores nunca lhe fiz/ Não alimentei o seu gênio ruim/ Você nada está me devendo/ Por isso meu bem não entendo/ Por que anda agora falando de mim'') foram dedicados ao presidente Fernando Henrique, que o chamou de ''repetitivo'', em resposta a uma crítica ao governo dele...
Chico - Faço menos músicas dedicadas às pessoas do que as pessoas pensam. Falaram que Apesar de Você era endereçada ao Médici, quando dizia respeito à situação do país como um todo.
Correio - E aquele famoso verso ''você não gosta de mim, mas sua filha gosta'': há a versão de que você fez em homenagem à filha do Geisel, que comprava discos de Chico Buarque enquanto o pai mandava censurar os discos de Chico Buarque...
Chico - O problema é que quando a versão é mais interessante do que o fato, não adianta você querer desmentir. Aquela música falava de uma situação que eu vivi muito: os caras do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) iam me prender e, enquanto me levavam para depor, pediam para eu autografar discos para as filhas, que gostavam de mim.
Correio - Então Injuriado não foi feita para o Fernando Henrique?
Chico - Claro que não.
Correio - Mas o que você achou de Fernando Henrique ter te chamado de ''repetitivo''?
Chico - Não li essa declaração. Mas às vezes eu sou repetitivo mesmo...
Correio - Como assim?
Chico - No sentido de que as pessoas me fazem as mesmas perguntas e este país muda tão pouco que eu sou obrigado a me repetir.
Correio - Por que você e outros artistas não participaram da Marcha dos 100 Mil?
Chico - Os artistas sempre se manifestaram nos momentos cruciais da história. Mas imagino que não era o caso de estarmos naquele palanque. Os artistas cantam em comício para atrair gente, o que no caso da Marcha não era necessário, porque as pessoas já estavam indo a pé, de ônibus... Foi até bom, porque deixou uma coisa bem clara: quem estava ali estava para protestar contra o governo, e não para ouvir música.
Correio - Então artista não deve participar de comício?
Chico - O problema é que o que antes era adesão voluntária, ideológica, hoje está se tornando um negócio. E esse comércio neutraliza a idéia que existiu nas campanhas pela Anistia, contra a Censura, pelas Diretas, pelo Lula em 1989... Hoje, cobra-se cachê para cantar não importa para quem. Amanhã podem perguntar: ''Quanto você cobrou para cantar no comício do Lula, na Marcha dos 100 Mil?''
Correio - Já tentaram te contratar?
Chico - Nunca! E se tentassem, não existiria a menor possibilidade de eu aceitar. O que já aconteceu foi usarem indevidamente minha obra. Há uns cinco anos, um candidato do Acre usou Vai Passar como jingle. E está sendo processado por isso.
Correio - Só a direita usa indevidamente suas músicas, ou a esquerda também?
Chico - A esquerda também. Mas nunca processei ninguém da esquerda.
Correio - Se o cidadão Chico Buarque tivesse participado da Marcha dos 100 Mil, contra o quê ele estaria protestando? Estaria tão injuriado a ponto de pedir o impeachment?
Chico - O impeachment eu acho um exagero. Mas acho legítimo que os cidadãos protestem contra a política econômica, contra a não transparência de alguns negócios, tipo a privatização das teles, contra tudo que tem que ser esclarecido ou modificado neste país.
Correio - As Cidades vendeu 300 mil cópias, e, embora muito elogiado pela crítica, está longe de ser uma espécie de ''Grandes Sucessos de Chico Buarque''...
Chico - Hoje as pessoas gostam muito de compilações. E o mercado também. Uma amiga minha ouviu uma vendedora de uma loja de discos contando que uma freguesa pegou o meu CD, leu o repertório e comentou: ''Ih, só tem música nova''. E não comprou. O engraçado é eu que sempre imaginei que um disco novo devesse ter música nova... (Risos)
Correio - O que você anda ouvindo?
Chico - Não tenho tido muito tempo para ouvir música, mas tem muita gente boa na nova MPB. Eu acho até chato citar alguns e esquecer outros. Mas gosto de Chico César, Lenine (um craque), Zeca Baleiro, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes (outro craque), o pessoal de Pernambuco, do movimento do Chico Science...
Correio - Caetano Veloso diz que anda ouvindo Tiazinha, e adorando. Você gosta da Tiazinha?
Chico - Não ouvi o disco da Tiazinha. Já vi algumas fotos dela, claro, outro dia nos encontramos no aeroporto...
Correio - Bonita?
Chico - ...muito simpática, veio conversar comigo...
Correio - Ela te pediu autógrafo?
Chico - Não, não. Mas o disco dela não sei se é bom, porque não ouvi.
Correio - Os dois maiores mitos da MPB parecem estar trilhando caminhos opostos. Caetano quer ser cada vez mais popular, vai ao Faustão, canta no Gugu, enquanto Chico praticamente se recolhe, faz poucos shows, fica anos sem gravar...
Chico - O Caetano fez a opção dele. Eu já fiz mais shows, já fui mais à televisão, mas hoje não tenho vontade. Em novembro, encerro a temporada de shows para fazer o trabalho de artista criador: vou compor música, escrever romance... Quero fazer o que me dá vontade, o que eu acho bom. É o que me interessa.
Correio -Em outras palavras: Chico Buarque quer ter prazer.
Chico - Mas com certeza!
Renovação com rigor
Chico Buarque ficou 5 anos sem gravar um disco com músicas novas e 11 anos sem se apresentar em Goiânia (sua última apresentação aqui foi no Ginásio Rio Vermelho em 1988), mas agora todo esse jejum está terminado. Chico volta à cidade com o espetáculo As Cidades, baseado em um CD totalmente inédito, lançado no ano passado. Com direção musical de Luiz Cláudio Ramos, cenários de Gringo Cardia e iluminação de Ney Matogrosso e Manoel Quinderé, As Cidades tem sido apontado como um dos melhores shows de MPB do ano e até o próprio cantor, tradicionalmente avesso a apresentações ao vivo, está gostando da turnê. "Eu realmente estou gostando mais do palco do que antes", confirmou Chico Buarque em entrevista exclusiva a O POPULAR. Dividido em três blocos, o show começa com Paratodos, música que fechava sua última turnê, realizada em 1994. Depois, Chico Buarque vai passando a limpo seus 34 anos de carreira, relembrando canções como Construção, Cotidiano, As Vitrines e Terezinha, e apresentando as novas, como Iracema Voou, Assentamento, Carioca e Chão de Esmeraldas. "Isso (as músicas novas), na verdade, é o que me estimula a fazer show", diz o cantor. Na entrevista a seguir, Chico Buarque fala mais sobre essa nova turnê, o novo disco, envelhecimento, música brasileira, futebol e política.
O Popular - Você ficou cinco anos sem gravar um disco com canções inéditas (o último foi Paratodos, de 1993). Como foi compor e gravar novamente depois dessa longa pausa?
Chico Buarque - É, nesse período eu fiz o show Paratodos, que durou praticamente um ano, e abandonei a música para escrever um romance (Benjamim), que me tomou mais um ano e pouquinho. Então, na verdade, fiquei longe mesmo da música durante três anos. As canções desse disco começaram a ser compostas pelas encomendas do Sebastião Salgado, para o livro Terra, e do filme A Ostra e o Vento, do Walter Lima. Então, fui retomando a música exatamente aí.
OP - A música Iracema Voou também seria de um filme, que é For All...
CB - Exatamente. Eu tomei o nome da personagem do For All e a idéia de ser uma moça que queria ir para os Estados Unidos. Só que a música não ficou pronta a tempo de entrar na trilha do filme. Mas eu gostava do anagrama de Iracema e América e fiz a música assim mesmo. Quer dizer, ela é baseada no filme, mas não está no filme.
OP - Você acha mais difícil compor atualmente?
CB - Olha, cada composição que faço hoje me toma muito mais tempo do que no início da minha carreira. Menos coisas você tem para dizer, mais caminhos você já percorreu... quanto mais você conhece a música, mais arredia ela vai ficando. Você não quer repetir, não quer fazer o que já foi feito... o know-how você tem, a técnica você tem, mas os caminhos vão se estreitando.
OP - Você tem sido mais crítico e rigoroso com seu trabalho, atualmente?
CB - Exatamente. Com o tempo você vai ficando mais rigoroso. É natural.
OP - Isso, de alguma forma, o preocupa?
CB - Não, não me queixo dessas dificuldades. Ela é saudável. Já pensou se ainda tivesse a mesma facilidade para compor de quando era jovem? Alguma coisa estaria errada. E, provavelmente, a música estaria errada (risos).
OP - E como é compor depois de escrever dois romances? Até que ponto a literatura influenciou na sua música e vice-versa?
CB - De certa forma, uma coisa realmente influencia a outra. São dois ofícios diferentes, dois processos de criação diferentes, mas o rigor que a literatura obriga, de certa forma passa para a música. Não só na parte literária da composição, mas também na parte musical, que me requer mais apuro do que antes. O fato de ter trabalhado com literatura me tornou um músico bem mais rigoroso. Isso tem acontecido até porque também trabalhei com grandes parceiros como Tom Jobim e Edu Lobo. Eu aprendi muito de música com eles. Então, eu era um músico intuitivo nos anos 60 e hoje me tornei um músico mais preparado.
OP - Entre os seus parceiros está Guinga, que é considerado um dos maiores compositores da MPB. Em As Cidades você gravou uma música dele, Você, Você, e, no último disco dele, Suíte Leopoldina, você canta em uma faixa...
CB - É, essa música dele que eu gravei estava comigo há uns 8 anos. Aliás, eu tenho uma gaveta cheia de parcerias com Guinga e inconclusas (risos). Ele me mandou muitas músicas novas, mas a idéia de letra que estava vindo não casava com nenhuma delas. Então, lembrei dessa, que era mais antiga e já tinha uns 8 anos (risos). Só que a do Dominguinhos (Xote da Navegação) é mais velha ainda. Ela deve ter uns 15 anos (risos).
OP - Ele nem lembrava que você estava com essa música...
CB - É verdade (risos). Quando eu fiz a letra, fiquei com receio dele ter feito outra coisa com a música. Então, liguei para ele e cantarolei e ele me disse que se eu tivesse gravado e excluído o nome dele, ele nem ia saber que era um dos autores (risos). Nem ia reclamar os direitos autorais (risos).
OP - Você sempre foi um cantor que nunca gostou muito de shows. Isso mudou? Você tem gostado do palco?
CB - Tenho. Eu gosto menos de hotel e avião do que dos shows (risos). Do palco eu realmente estou gostando mais do que gostava antes. Como falei, estou mais aprimorado como músico e isso transparece no palco. Estou tocando violão o tempo todo e, de certa forma, isso me integra à banda. Isso me facilita um pouquinho. Tem sido muito agradável. É um show que me exige muito. Eu não tiro de letra, não. Mas quando eu paro de fazê-lo, às vezes por uma semana, me dá saudades.
'Meu trabalho atual me estimula a fazer show'
Chico Buarque considera agradável lembrar antigos sucessos, mas sente prazer mesmo é em mostrar a um novo público uma produção também nova. Ele evita a facilidade do "já digerido" e diz que às vezes nem reconhece canções que fez.
OP - Nos períodos de pausa, você aproveita para compor alguma coisa?
CB - Não. É um show que realmente me consome bastante. Então, quando tenho um tempo de folga eu não me envolvo com música. Estou esperando terminar essa temporada para aí sim me dedicar a alguma coisa nova. Um novo livro, novas canções... não sei.
OP - Então, você não sabe se vai continuar alternando um livro e um disco. Você não tem nada, nada em mente?
CB - Infelizmente não (risos).
OP - O que você tem ouvido atualmente?
CB - Olha, é como eu lhe disse. Quando tenho uma folga da turnê, eu realmente não me envolvo com música. Nem para compor nem para ouvir.
OP - Mas você vê que a música brasileira está sofrendo um certo empobrecimento. Os jovens hoje ouvem Só pra Contrariar e não Chico Buarque. Isso é perigoso para as próximas gerações?
CB - Olha, sempre existe uma geração que não se forma através do rádio e da televisão. Há público para esses autores em evidência, mas há também para outros tantos que não aparecem na mídia. Quando comecei a ouvir música havia sim uma variedade muito maior de opções. Você ligava o rádio e ouvia de tudo. Não era só esse negócio de tocar o sucesso. Isso foi bom para mim porque me acostumou a ouvir os sons mais distintos, a ter uma visão mais aberta. Agora, hoje existe essa massificação em rádio e TV, mas há mais facilidade de informação. Você pode ter acesso a músicas variadas por outros meios e até pela Internet. Eu acho que essa massificação de rádio e TV, na verdade, não fecha a cabeça da garotada.
OP - Você ganhou dois prêmios da MTV (melhor videoclipe de MPB e melhor fotografia de videoclipe), e a MTV é uma emissora praticamente assistida só por jovens. Isso tem refletido nos seus shows? Há muitos jovens na platéia?
CB - Tem. Ao mesmo tempo que existem aquelas pessoas que me acompanham há mais tempo, sempre tem uma presença grande de pessoas que estão me conhecendo agora. São pessoas que estão me conhecendo hoje, pelo meu trabalho de hoje. Isso, na verdade, é o que me estimula a fazer show. Claro que é agradável cantar as músicas que as pessoas já conhecem, mas isso corre o risco de virar uma coisa viciada. De sempre fazer a coisa fácil, de fazer o que já está digerido.
OP - O Almir Chediak está fazendo o seu songbook e você tem ajudado corrigindo as partituras. Como está sendo olhar as antigas canções com o rigor de hoje?
CB - É, tem um preço. Tem coisas que fiz e nem me lembrava. Às vezes ele me traz uma música para eu revisar e, na primeira vez que escuto, nem reconheço como minha. Isso é bem surpreendente. Às vezes a surpresa é melhor do que eu esperava (risos), mas às vezes eu vejo que a música poderia ter sido melhor, que eu poderia ter trabalhado mais nela. É engraçado porque, normalmente, eu não me detenho para ouvir meus discos, mas tem sido prazeroso.
OP - Você fez a música Assentamento para o livro do Sebastião Salgado sobre o Movimento dos Sem-Terra e, agora, o Brasil assistiu à absolvição dos policiais envolvidos no massacre em Eldorado dos Carajás...
CB - Isso foi vergonhoso. Não por causa da impressão que passa para fora, mas para nós mesmos. Parece ficar claro que no Brasil tudo é feito às escondidas. É vergonhoso saber que a violência policial é uma rotina com os sem-terra e saber que os interesses políticos falam mais alto que a justiça.
OP - E o governo FHC? Você, em algum momento, chegou a acreditar que Fernando Henrique Cardoso seria uma boa opção para o Brasil? Qual é a saída para o País?
CB - A saída é esperar mudar o governo. Não estou insatisfeito com o Fernando Henrique porque nunca acreditei nele. Nunca tive esperanças nele. Não votei nele e realmente nunca esperei alguma coisa de seu governo.
OP - Deixando a política de lado, vamos falar sobre futebol. Você pediu um campo para que pudesse jogar em Goiânia. Você não abre mão de uma pelada nem mesmo quando viaja?
CB - Não. Normalmente nos dias de show eu não jogo, mas no dia anterior eu sempre jogo.
OP - E como é ser tão viciado em futebol e torcer para o Fluminense?
CB - Isso eu já esqueci absolutamente (risos). Eu gosto é de jogar bola e só (risos).
OP - Para terminar, como está o lado avô? Você se incomodou ao perceber que estava envelhecendo?
CB - Não. Eu sempre soube que ia ficar velho (risos). Agora, é ótimo ser avô. Meu neto está com 3 anos e minha netinha com quase 1 ano. É uma felicidade muito grande. Eu realmente adoro ser avô.
Esta entrevista, foi concedida pelo cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda, a Assuero Gomes, integrante do Grupo de Leigos católicos Igreja Nova, quando de sua visita a Dom Helder, no dia 16 de julho.
Igreja Nova - Chico, qual a lembrança mais interessante que você tem, em relação a Dom Helder Câmara?
Chico Buarque - Todo mundo sabia que não se podia falar em Dom Helder. Eu não era muito querido também não, mas podia fazer meus shows. Eu vim aqui fazer um show no Geraldão, o show estava indo e tinham me falado que Dom Helder estava lá assistindo. O show estava indo mais ou menos morno, uma música e outra, aí eu falei: "eu queria anunciar e agradecer a presença de Dom Helder Câmara. Eu nunca fui tão aplaudido na minha vida. Aquele ginásio veio abaixo. Foi uma coisa linda. Isso foi em setenta e pouquinhos... setenta e dois, setenta três.
Zezita - Sempre que você fez shows aqui, Dom Helder foi aos seus shows.
C.B. - Sempre. Das outras vezes eram shows mais tranqüilos. Desse, eu me lembro especialmente por causa disso. O nome dele estava inteiramente vetado, me disseram que ele estava lá, mas era segredo. E quando eu falei, o ginásio inteiro, todo mundo levantou, aplaudiu. Foi o meu maior sucesso. (risos)
I.N. - O que Dom Helder representa para você?
C.B. - Bom, para mim e para o Brasil inteiro , Dom Helder é um símbolo de luta pela justiça social. Se a gente se lembra dele no Rio de Janeiro, ainda no tempo da Favela do Pinto, nos anos sessenta, a atividade dele lá, deixou marcas até hoje. E mais adiante um símbolo de luta também, pela liberdade, pela democracia na época da ditadura, onde ele era uma das pessoas mais visadas, mais cerceadas, mais vigiadas e mais perseguidas. Eu conheço Dom Helder pessoalmente, desta época e tenho uma admiração profunda por ele. Eu e todos os brasileiros temos uma dívida muito grande para com ele.
I.N. - Você que sempre foi o nosso ícone de luta por uma situação melhor para o país, falando em linguagem de igreja, da "denúncia profética", o que é que você espera do Brasil para o futuro, já que, em nossa opinião, Fernando Henrique foi um grande fiasco?
C.B. - Bom. já que estamos falando a linguagem de igreja, vou citar Dom Mauro Morelli que diz que preferia Fernando Henrique quando ele era ateu. (risos)
Eu acho isso ótimo. Enfim, eu já não tinha grandes esperanças desde o primeiro governo de Fernando Henrique. Achava que essa aliança que o PSDB estabeleceu com o PFL, era perigosa e no fim das contas, se revelou mais perigosa do que eu imaginava, porque no governo, numa aliança de liberais e social-democratas, não sobrou para a social-democracia. E parece que a necessidade de afirmar essa aliança e de renegar o passado, falou mais alto. Enfim, nós temos aí mais três anos de espera, não sei bem do quê. Vamos pensar em 2002
I.N. - Arrisca uma profecia para 2002?
C.B. - Não, eu não sou profeta.
I.N. - Chico muito obrigado e um abraço.
Diario de Pernambuco - Quando acabar a turnê, o senhor já tem algum projeto engatilhado, como um livro?
Chico - A turnê vai até outubro. Não estou pensando em escrever, fazer novas músicas, porque esse show consome muito. É um show baseado no disco, é um show que exige bastante.
DP - Atualmente, como acontece a sua motivação para compor? A motivação é diferente de 20 ou 30 anos atrás?
Chico - Assentamento teve a motivação do livro de Sebastião Salgado. A música para o cinema em cima das imagens. Já na parceria, procuro diversificar.
DP - Por que canções como Apesar de Você e Deus lhe Pague são consideradas datadas pelo senhor? Daqui a 15 anos, corre o risco de achar Assentamento datada?
Chico - Algumas músicas - não muitas, uma meia dúzia, entre as quais as que você citou - estão diretamente ligadas a um período de exceção, de ditadura, então são canções políticas. Assentamento é uma canção social sobre um problema que não é de hoje e nem vai se resolver amanhã.
DP - Cansa o fato de as pessoas ainda vincularem o Chico artista com o político, o cidadão?
Chico - Não, não me cansa. As pessoas perguntam as mesmas coisas porque estou fazendo a mesma coisa há muito tempo, as perguntas sobre política e o papel da mulher na minha música se repetem por minha culpa.
DP - Sendo assim, qual a avaliação que o senhor faz do governo Fernando Henrique?
Chico - Eu não votei no Fernando Henrique nem na primeira nem na segunda vez. No início do primeiro mandato, esperei ver desmentidos os meus receios, as alianças com o PFL. Não tinha grandes esperanças, mas sempre torcendo para estar enganado. O que eu temia se concretizou. Não sei se a reeleição foi um bom negócio, até para o próprio.
DP - Já que estamos falando nisto: como o senhor se sente sabendo que o preço do ingresso para o seu show custa quase a metade do salário mínimo?
Chico - Estou surpreso, nem sabia qual era o preço do show, você está me informando agora. Quem resolve estas questões é o empresário, deve ser este o preço que se cobra para um show, não sei. Deve ter mais caro.
DP - O senhor foi considerado um gênio, um fenômeno já na estréia, quando tinha 20 anos de idade. E agora, qual o paralelo que faz daquela juventude dos anos 60 com a dos anos 90?
Chico - O que diferencia mais acentuadamente minha geração desta talvez seja uma falta de maiores perspectivas, de um maior estusiasmo. Nos anos 60, havia no Brasil, bem mais do que hoje, a vontade de se construir uma nação. Culturalmente havia uma efervescência. Às vezes, tenho a impressão de que há uma apatia geral. Fazendo relação entre o início dos anos 60 e a ditadura militar, o que pesa mais é a falta de perspectivas.
DP - Qual futuro que o senhor visualiza para a MPB com a ascensão do pagodejo?
Chico - Não muda muito. Sempre houve música comercial, a canção em voga.
DP - Mas a mídia está bem mais poderosa.
Chico - Hoje, mais do que há trinta anos, esse tipo de música não impede que se crie música consistente e duradoura. Há uma variedade muito grande. Além disso, volta e meia, como aí mesmo em Pernambuco, surgiu o manguebeat, extremamente interessante, que não tem uma mídia por trás. São músicas pouco comercializadas, mas que têm influência no País, como a música baiana, que esteve em voga. Chico Science nós todos conhecemos e o que ele fez teve repercussão até hoje, como o Mestre Ambrósio.
DP - O Cascabulho participou do disco em homenagem a Jackson do Pandeiro, que o senhor também participou. Gostou do resultado?
Chico - Não escutei ainda, porque estou de mudança para outra casa aqui no Rio mesmo.
DP - O senhor ainda torce pelo Fluminense?
Chico - Há muito tempo não vejo um jogo do Fluminense. Prefiro jogar futebol. Mas de vez em quando assisto, como os jogos da seleção Brasileira.
Un carioca que se escucha desde el cielo
Chico nació Francisco, en una familia de intelectuales. Su padre, Sergio Buarque de Hollanda, fue uno de los historiadores clave en la reflexión sobre la formación de la cultura y el pueblo brasileños. A los ocho años el niño Chico Buarque se mudaba con sus padres y hermanas para Italia y le dejaba a la abuela Heloisa una cartita: "Abuelita, ya estás vieja y sé que no te veré más, pero seré cantor para que cuando tengas saudades prendas la radio y me escuches desde el cielo". Antes de cumplir 20, Chico dejó la Facultad de Arquitectura en San Pablo y abrazó definitivamente la guitarra, participando en festivales universitarios. Era 1964 y la democracia brasileña sufría un duro golpe (militar). Al año siguiente Chico grabó su primer disco, Pedro Pedreiro y en el 66 lanzó "A Banda", canción con la que fue premiado en un festival de televisión y que lo proyectó en la constelación de estrellas de la música popular brasileña. Hoy, con 35 años de carrera, Chico es considerado uno de los más grandes músicos brasileños del siglo, al lado de su "maestro soberano" Tom Jobim, João Gilberto, Vinícius de Moraes y Caetano Veloso. Después de cinco años de silencio, lanza su disco As cidades, que ya vendió más de 400 mil copias y que retoma su diálogo cariñoso con la identidad y la cultura brasileñas, tema central también en su disco anterior, Paratodos. Las marcas del tiempo están presentes en su nuevo trabajo, como en la canción "Xote de navegação", en que parece hablar de sí: "veo aquel río deslizar/ el tiempo atravesar mi pueblo (...) con el nombre Paciencia/ va mi embarcación...". Con 54 años y un nieto, Chico desmiente su mitológica timidez. En la entrevista que brindó a BRECHA, horas antes del penúltimo show de lanzamiento de "As cidades" en San Pablo, habla larga y alegremente sobre algunas de sus pasiones: la música, la literatura, el fútbol y la "verde y rosa", la escuela de samba Mangueira.
- Probablemente, As cidades sea tu último disco antes del fin de siglo. ¿Qué lugar ocupa en el conjunto de tu obra?
Chico - No veo grandes quiebres en mi carrera, creo que sigo una línea más o menos continua en el sentido del perfeccionamiento formal; ahora soy más riguroso en la creación de las canciones que al comienzo. Este disco nuevo y el show llegan a ser casi una continuación del disco y show anteriores, Paratodos; los músicos son prácticamente los mismos. Ahora, me gusta más este trabajo nuevo porque lo encuentro más riguroso, más maduro.
- ¿Hay un hilo conductor que le da coherencia al disco y al espectáculo, o las canciones van surgiendo en forma independiente?
Chico - El show tiene como base las canciones del disco, y las demás canciones del repertorio surgieron naturalmente, las elegí por su afinidad temática o mismo por una relación puramente musical entre ellas. No hay una explicación lógica. Me gusta la fluidez que tienen, la relación entre las canciones dramáticas, como las escritas para teatro o cine, y también las canciones que escribo "en femenino". Pero en general la relación es musical, una canción pide la siguiente por algún tipo de recuerdo musical.
- Por ejemplo, en el espectáculo, la canción que habla de los Sin Tierra ("Assentamento") viene antes de la de Pablo Milanés sobre un poema de Nicolás Guillén, "Como si fuera la primavera", seguida de un drama urbano, que es "Cotidiano", con arreglos más coloreados, más caribeños... ¿Cuál fue el motivo de esa elección?
Chico - No fue por una razón política, como se podría imaginar. Una canción pidió la otra y además yo tenía ganas de cantar la canción de Pablo Milanés, la grabé hace unos 15 años y nunca más la había cantado. Y "Cotidiano" estaba dando para un arreglo rítmico, que la hiciera refrescarse para que sonara más cercana a la canción de Pablo. Es así, a veces el hilo es puramente musical, parece que una canción te está pidiendo aquella otra, tal vez por que hay alguna memoria musical allí.
- En "Carioca" por primera vez afirmás tu ciudadanía con relación a Rio de Janeiro y cantás a una ciudad que no es aquella turística o "maravillosa". La letra habla de "El poniente en la espina de tus montañas/ Casi ciega la retina de quien ve, de noche/ Meninas, pechitos de pitonga/ vendiendo por Copacabana sus baratijas".
Chico - Tiene la expresión "ciudad maravillosa" en su letra, y yo dudé en ponerla porque es un lugar común, un cliché. Pero digo "ciudad maravillosa, sos mía...", ésa es la novedad para mí, poder atribuirme la condición de carioca, que nunca antes había osado porque no me consideraba un típico carioca, nací en Rio pero fui criado en San Pablo... Ahora, después de que Mangueira me hizo un homenaje y dijo que yo era un "carioca da gema", o sea, un auténtico ciudadano, entonces ya puedo creer en esta ciudadanía. La canción obviamente no es una tarjeta postal, hasta tiene elementos así, pero también hablo de los problemas de la ciudad. Es como un rápido videoclip de Rio, un dibujo "chiaro oscuro".
- Que también tiene algo de trágico...
Chico - No diría trágico, yo diría más bien dramático... En el videoclip pusimos los morros cayendo sobre el mar, quisimos que se dramatizara una historia, una idea. Cuando visualizamos el tema no buscamos colores de postal, elegimos el diseño del clip en blanco y negro, por donde el tiempo va corriendo y corriendo bajo esa atmósfera. Esa paradoja que parece tan natural.
- Tu padre, el historiador Sergio Buarque de Hollanda, en "Raízes do Brasil" hablaba del "brasileño cordial", pese a la herencia esclavista y los abismos sociales. En un documental de Walter Salles, el director de Estación Central, sobre tu carrera, hablás del "país de la delicadeza perdida", alertando sobre la creciente exclusión que amenaza romper el tejido social.
Chico - Somos el país con la peor distribución de renta en el mundo. Vivimos en ciudades fragmentadas. La clase media sale de sus casas en condominios cerrados y va al teatro o al cine dentro de shopping centers. En Rio ya la gente no va a lugares públicos porque teme por su seguridad. Vive en casas cerradas, anda en autos cerrados y el espacio público ya no existe. Yo me pregunto en ese documental qué puede llegar a pasar cuando la gente descienda de los morros para exigir su lugar en la ciudad. Algo que a veces ya acontece. Porque esa distancia social está, geográficamente, muy cerca.
- ¿Podemos hablar de ciudades inviables?
Chico - Realmente las megaciudades se están transformando en inviables. En mi trabajo anterior, que fue la participación en el libro Terra, de Sebastião Salgado, ya me refería a ese fenómeno de hinchazón de las ciudades, que es consecuencia de la migración rural, de la falta de condiciones para que la gente pueda permanecer trabajando en el campo. Esa situación lleva a muchos de los problemas urbanos que vemos en las grandes ciudades, como el desempleo, que en una metrópolis como San Pablo llega al 20 por ciento de la población económicamente activa. Esto es una barbaridad. En Rio tenemos la proximidad geográfica entre la miseria y la riqueza, la periferia está en el centro de la ciudad y en todas partes. Eso hace el encanto pero también la desgracia de Rio, su violencia. Lo que en mi juventud era su gran encanto, la convivencia más o menos pacífica y democrática en las pla! ! yas, por ejemplo, ya no existe más.
- San Pablo y Rio de Janeiro están impregnadas en tu biografía...
Chico - Soy carioca de nacimiento, paulistano de crianza, fui paulistano durante el tiempo de la Facultad de Arquitectura, donde me decían "el carioca"... Pero luego volví a Rio. Siempre viví entre las dos ciudades, nunca era de una en especial. En la canción "Paratodos", del disco anterior, digo que mi padre era paulista, mi abuelo pernambucano, mi bisabuelo bahiano... no me nombro como carioca. Al final de la canción digo: "soy un artista brasileño".
- En As cidades hay una numerosa población femenina.
Chico - Hay un tema de siempre en mis canciones que es la femineidad, que puede ser o no una mujer. La femineidad puede estar en los adjetivos que le dedicas a una ciudad, como sucede en "Carioca" cuando hablo de Rio. Y por supuesto hay femineidad en las mujeres de mi música, mujeres concebidas por mí, imaginadas, fatales...
- En tus tiempos de estudiante de arquitectura hacías proyectos de ciudades virtuales, las dibujabas con meticulosidad. En el libreto del disco nuevo hay algunos dibujos tuyos de ciudades imaginarias. ¿Seguís haciéndolo?
Chico - Me gustaba diseñar una ciudad completa, hasta con líneas de subterráneo, paradas de taxis, avenidas y todo. Ahora ya no dibujo, las escribo tomando alguna existente, las imagino y a veces las invento completamente.
- Mangueira, una de las escuelas de samba más populares de Rio te homenajeó en el Carnaval pasado, como tema del desfile en el sambódromo. En As cidades cierra el disco "Chão de esmeraldas", un samba de exaltación a la "verde y rosa" en que retribuís el homenaje.
Chico - Quería terminar el disco con un recuerdo de Mangueira. "Chão de esmeraldas" es atípica dentro del disco, pero para los que participamos en su producción quedó claro que ella debería ser el cierre. En el disco Chico Buarque da Mangueira canto músicas de Cartola, uno de los símbolos de Mangueira y de la vieja guardia de sambistas de la escuela. En este disco nuevo quería algo así, un samba de exaltación, que todos tuvieran ganas de salir cantando. Por eso incluí "Chão de esmeraldas".
- Otra canción atípica en el disco es "Sonhos, sonhos são". Además de la referencia a Calderón de la Barca en el título, el arreglo musical tiene un bandoneón, algo raro en la música brasileña.
Chico - Allí hay una cita a América Latina y casi fue grabada como un tango, pero no quise que se acentuara demasiado este parentesco. Los arreglos no son míos, son de Luis Carlos Ramos, pero pasan por mi supervisión. Busqué un aire de tango sin que se tratara abiertamente de un tango, pues allí hablo del continente: "incomodado estoy, en un cuerpo extraño/ con gobernantes de América Latina/ notando mi mirar ardiente en lejana dirección/ creen todos que avisto alguna salvación".
- ¿Cantarías un tango?
Chico - Sí, ya canté. Hay una canción de Caetano Veloso, "Janelas abertas nº 2", que transformé en tango y en la Opera do Malandro hay un cliché de tango. También hice algo parecido con Edu Lobo...
- ¿Alguna vez pensaste en escribir la letra para un tango?
Chico - No me atrevería a escribir, pero si pudiera volver en el tiempo habría concluido la letra para un tango que Astor Piazzola me envió en los años setenta. Sería coautor de un tango auténtico... ¡y un tango de Piazzola!
- ¿Cómo fue esa historia?
Chico - La última vez que vi a Piazzola fue durante la grabación del programa de tevé que teníamos con Caetano en la Globo en los ochenta, creo que en el 86. El llegó para grabar y yo le pregunté: "Astor, ¿te acordás de aquella música que me dejaste en los setenta?". El se había olvidado, entonces le llevé la cinta y preparó un arreglo para que yo le pusiera la letra de una vez. Ya había demorado más de diez años y tenía cinco días para hacerlo; puse todo de mí pero sucede que yo no hago las letras cuando quiero, a veces ellas no vienen, y no conseguí hacer una letra a la altura de aquella música. Piazzola se enojó muchísimo conmigo. Aún recuerdo que cuando llegué al estudio Tom Jobim trataba de aplacarlo diciéndole: "Chico es así, a veces va a jugar al fútbol y olvida las cosas, ya me ha hecho eso a mí otras veces", algo que era cierto. Pero no hubo caso, Piazzola quedó furioso. Después de ese episodio nos encontramos otras veces en Brasil y en Buenos Aires. Cuandó él se enfermó yo estaba en París, allá supe de su muerte.
- ¿El tango quedará inconcluso?
Chico - Sí, yo sólo hago las letras estando con mis coautores. Todavía guardo la cinta que Piazzola me grabó, pero no conseguí terminar la letra cuando estaba vivo y ahora él me hace falta. También tengo canciones con Tom Jobim que no haré porque sin él no hay gracia. Me gusta hacer las letras con mis coautores, me da placer retribuirles algo. Me entregan una fruta y yo les devuelvo la compota.
- La música popular brasileña es admirada en toda América Latina, sobre todo en los países del Mercosur. Pero la música de esos países parece que no tiene llegada acá. Es una historia de amor no correspondido...
Chico - ¿Por qué los pueblos de habla hispana no entienden el portugués y nosotros entendemos el español? (se ríe). Eso también pasa entre Portugal y España. La literatura de lengua española viaja mejor que la de lengua portuguesa, llega a Brasil más que la nuestra afuera; pero nuestra música, yo creo que viaja mejor que la literatura. En algo nos merecíamos una compensación, y afortunadamente es en la música... es nuestra revancha (riendo). Creo que esto pasa porque la música brasileña puede prescindir de la comprensión de las palabras, tiene una riqueza y una diversidad muy grandes.
- Entre los dos últimos discos, Paratodos y As cidades vino tu segunda novela, Benjamin. ¿Cómo hacés para separar literatura y música?
Chico - Durante el período en que estoy trabajando en un libro, no toco la guitarra, no hago música, y viceversa. Después, la vuelta a la música es un esfuerzo grande, tengo que desvestirme de la literatura y eso me cuesta tiempo. Es penoso, pero también muy saludable porque cuando vuelvo estoy renovado. No hay una pérdida de continuidad, porque este último disco es en gran medida una continuación del anterior, Paratodos. Lo que sí es cierto es que para hacer este nuevo disco desaprendí las canciones del anterior, me olvidé completamente porque este trabajo es una cosecha nueva.
-¿El premio Nobel de literatura para José Saramago puede ser un incentivo para que la literatura de lengua portuguesa sea más conocida?
Chico - El Nobel está en muy buenas manos. Como brasileño también me siento premiado por Saramago, aunque sea portugués, pero es justo que los portugueses reciban ese premio antes que los brasileños. Ahora, confieso que me gustaría también un Nobel para la poesía en lengua portuguesa y que fuera para el brasileño João Cabral de Melo. La literatura en lengua española ya tiene varios, como Gabriela Mistral, Neruda, García Márquez, Octavio Paz... Borges no recibió ninguno, lo que es una gran injusticia. Nosotros también tenemos autores que lo merecían, como Guimarães Rosa y Carlos Drummond, y no ganaron.
- La música popular brasileña de los años sesenta y setenta incluía las canciones de protesta contra la dictadura. Hoy la protesta musical viene de las periferias de las grandes ciudades y una de las corrientes más prolíficas es la del rap...
Chico - Hoy tenemos los muchachos del rap que hacen música de protesta en forma más cruda y directa que lo que se hacía hace 20 o 30 años. La ausencia de censura hoy, felizmente, lo permite. Durante la dictadura, las canciones tenían que ser en lenguaje más metafórico para escapar de la censura. Hoy las canciones de protesta ya no son de gente del ambiente universitario, como era mi caso, sino de chicos que viven la realidad cruda y violenta que cantan, y que hoy tienen más posibilidades de manifestarse que hace 20 años, incluso más facilidades para grabar un disco. Lo que no quiere decir que el acceso a los medios de comunicación sea más democrático, porque todavía es muy restringido.
-Ustedes retomaron la línea evolutiva rescatada con la bossa nova y la ampliaron. ¿La nueva generación musical es la continuidad o la quiebra?
Chico - No veo muy claramente cómo identificar una influencia directa de mi generación musical sobre la nueva. A veces leo entrevistas y la gente joven dice que me escucha, lo que me alegra mucho. Lo que verdaderamente me sorprende es que mi generación todavía esté activa y tengamos espacio para presentar nuestro trabajo. Eso realmente me sorprende, la bossa nova ya tiene más de 40 años y todavía está muy cercana al oído de la gente; tiene su campo restringido pero está presente. La misma bossa nova que me formó como músico... Hoy tenemos una diversidad de músicos jóvenes que están mezclando los ritmos tradicionales y regionales, hay gente buena surgiendo a toda hora, instrumentistas de la mejor calidad, compositores interesantes, eso es muy positivo.
- La temática social siempre estuvo presente en tus canciones. Dos muestras recientes son las que hiciste como parte del libro Terra, sobre los Sin Tierra.
Chico - El reconocido fotógrafo documental brasileño Sebastião Salgado me invitó a participar del proyecto del libro, con él y con Saramago. Me mostró las fotos y a partir de ellas hice las dos canciones del dc que acompaña al libro, "Assentamento" y "Levantados do chão". Tanto Saramago como yo aceptamos de buena gana participar porque la finalidad del libro fue destinar los fondos enteramente al Movimiento de los Sin Tierra.
- ¿La política todavía te inspira música?
Chico - Hago una distinción entre las canciones que tratan de política y aquellas de temática social, que sigo escribiendo como antes. Canciones con letras de protesta política escribí unas cinco o seis, durante la dictadura militar, porque estaba vivamente interesado en contestar al poder político, que interfería en la creación artística. Los versos que escribía podían ser censurados. La convivencia con lo político era diaria; vivíamos bajo una dictadura y sin perspectiva de salida, la llamada luz al fin del túnel. Algunas canciones de esa época permanecieron porque todavía tienen un peso histórico, más que su valor musical. Prefiero escribir sobre algo que está en el aire y viene de la política, pero no de este hombre o de aquel.
- ¿Qué canciones sobre temas políticos se pueden escribir hoy?
Chico - Puedo escribir canciones sobre la corrupción, por ejemplo, sobre el carácter de los políticos. Lo que me preocupa es que canciones así quedarían marcadas por el tiempo, porque la corrupción se renueva con una velocidad alucinante. Cuando el disco salga, la corrupción del día ya será otra. Pero sí se puede escribir genéricamente sobre la corrupción, es una buena idea para una próxima canción...
- El presidente brasileño criticó tu opción por el candidato del Partido de los Trabajadores, Lula, que apoyaste en las últimas tres elecciones (89, 94 y 98). En "Injuriado" cantás versos como "Dinero no le presté/ favores nunca le di/ no alimenté su genio ruin/ usted nada me está debiendo/ por eso no entiendo, por qué anda ahora hablando de mí". Todo el mundo dice que este samba estaría dedicado al presidente. ¿Fue una respuesta musical?
Chico - No hice ese samba para Fernando Henrique... que se interprete lo que cada uno quiera con esa letra. Tengo otras fuentes de inspiración.
- Sos del Fluminense, un gran equipo de fútbol carioca que vive una crisis tremenda y descendió a la tercera división... Chico - Eso fue una tragedia para mí. Ahora no, últimamente prefiero jugar al fútbol con mis amigos en el Politheama, el equipo que tenemos. No voy a la cancha ni veo los partidos del Fluminense para no sufrir más.
- ¿Y si hablamos de Romario, de tu archienemigo Flamengo, que está jugando espectacularmente y volvió a la selección brasileña?
Chico - ¿Será que Fluminense compró a Romario (riendo)? ¡Si es así, ordeno ya al mozo que traiga whisky para todos! La verdad es que me encanta el fútbol. Aunque yo sea del Fluminense, reconozco que Romario es un crack, siempre jugó un fútbol espectacular, pero la crítica es muy injusta con él. Si pasa tres semanas sin hacer un gol, ya dicen que está terminado, que tiene que retirarse. Es un caso de tolerancia cero con Romario. Nunca vi un jugador "acabar" tantas veces y volver cada vez mejor. Para mí, sigue siendo un crack y está jugando un bolão (la está "rompiendo").
- Desde 1997 no actuás en ningún otro país latinoamericano. ¿Hay alguna gira programada?
Chico - La última vez fue en aquel recital de homenaje al Che, en Argentina. Mi ruta inmediata es hacer otras capitales brasileñas y Portugal, y luego, quién sabe... Es un ritmo muy cansador ése de los recitales, por eso no me gusta planear cosas con mucha anticipación. Estamos estudiando ir a Buenos Aires y Montevideo, pero sería en el segundo semestre.
- Durante las dictaduras, la cultura latinoamericana se encontraba en los espacios de resistencia y solidaridad, en la música por ejemplo.
Chico - Parece contradictorio, pero las dictaduras latinoamericanas en cierto modo nos acercaron, unieron al continente por lo que había de peor, el totalitarismo, la violencia contra los ciudadanos. La respuesta a eso vino en forma de la solidaridad. Enfrentábamos problemas comunes y muchas veces nos encontrábamos en el campo del arte, la música en particular. Durante la dictadura hubo un conocimiento mayor de músicos de otros países latinoamericanos por parte del público brasileño, artistas argentinos, chilenos, cubanos, uruguayos. Piazzola y Mercedes Sosa venían seguido a Brasil, igual que Pablo Milanés. El público descubrió la música de Violeta Parra, Víctor Jara, Inti-Illimani, Daniel Viglietti... Estoy hablando de los circuitos más politizados, donde había una identificación mayor y un intercambio con sabor ideológico. Con la redemocratización del! ! continente, de nuevo hubo una separación.
- ¿Hoy es menos frecuente ese encuentro?
Chico - En Brasil tenemos un problema serio en aceptar nuestra identidad latinoamericana. Que Caetano Veloso haya grabado su disco en castellano, "Fina estampa", es algo muy positivo. Eso ayuda a eliminar un poco esa restricción a la lengua española, que es casi subliminal. En los años cincuenta se escuchaba mucha música latinoamericana en las radios brasileñas, sobre todo boleros mexicanos y cubanos, canciones de Agustín Lara, Los Panchos, Lucho Gatica. Eran muy populares. Ojalá ahora pueda volver ese intercambio cultural.
O eterno mistério
De compositor engajado a muso de garotas dos 30 aos 60 anos, Chico Buarque vem se renovando e ao mesmo tempo mantendo as características que fazem dele o sucesso que é: a timidez, a discrição e a capacidade de entender a alma feminina sem nunca ter levado a psicanálise a sério.
Duas décadas atrás, as aparições de Chico Buarque em manifestações políticas, somadas às sua canções mais contundentes, renderam a ele a imagem-clichê de compositor engajado. Algo diferente tem acontecido nos últimos anos; suspirando frente aos olhos verdes do autor de "Carolina", "Beatriz", e "Cecília", garotas de 20 a 60 anos têm lotado seus shows, elegendo-o como o mais sensível porta-voz da alma feminina.
Ver e ouvir Chico Buarque ao vivo, aliás, tomou-se um prazer bissexto, na última década. Desde o show "Paratodos", em 1994, ele andava ausente dos palcos, por estar se dedicando mais à literatura. Para alegria do imenso fã-clube, Chico vem reservando todo este ano à turnê do show "As Cidades", pelo Brasil e Europa. Essa maratona inclui uma nova temporada em São Paulo, em novembro e dezembro que marcará o lançamento do CD "As Cidades ao Vivo".
"Não me considero um homem especialmente bonito", diz Chico, refutando a freqüente imagem de "deus de olhos verdes" que lhe é atribuída pelas fãs mais delirantes. "O que pode encantar as moças está nas minhas músicas e não na minha presença física."
Marie Claire - Há cinco anos, você se mostrou surpreso com a garotada que freqüentava seu show "Paratodos". Isso acontece na temporada de "As Cidades"?
Chico Buarque - Sim. Gente que ainda não tinha idade para assistir ao "Paratodos" está me vendo pela primeira vez.
MC - E esses jovens vão ao seu camarim? Fazem perguntas?
Chico - Vão. Geralmente, falam comigo atraídos pelo disco, o que é engraçado. É gente com muita curiosidade musical. Também procuram muito o maestro Luis Cláudio Ramos, que fez o arranjos. Notamos isso também na minha home-page, que recebe uma quantidade grande de gente muito moça, procurando informações sobre o disco, sobre arranjos, sobre o fazer musical mesmo. Pra eles, sou um artista que estão conhecendo agora. Pra mim, de certa forma, esse tipo de abordagem é uma novidade, por ser mais musical do que política ou poética, como acontecia antes.
MC - Reencontrar o público, cinco anos após seu último show, é mais fácil hoje?
Chico - É sempre custoso. Montar um espetáculo depois de tanto tempo afastado do palco significa ensaiar muito mais, reaprender uma série de coisas. Os shows exigem bastante também pelo lado musical. Hoje eu me sinto mais músico que cinco anos atrás e muito mais do que no início da carreira, mas ainda não tiro de letra, nem uma noite. Fazer o show é prazeroso no final das contas, mas eu . ainda fico tenso. Tanto é que, desde a temporada no Rio, eu passei meus jogos de futebol para a noite, após o espetáculo. Assim o show não fica prejudicado.
MC - Por que? Prejudica a concentração?
Chico - Porque cansa mesmo, fisicamente. E a voz também se ressente um pouco.
MC - Num depoimento à revista "Época", logo depois de ter assistido ao seu show, Caetano Veloso disse que acha você "muito paulista", por você ter crescido e se educado em São Paulo, além de ter feito nessa cidade suas canções mais populares. Você sente que sua porção paulista é maior do que a carioca?
Chico - Acho que esse comentário dele deve ter a ver com a época em que a gente se conheceu, quando eu morava em São Paulo. Na verdade, eu me sinto bastante dividido. Não me sinto paulista, mas também não me sinto carioca. Já aconteceu até um caso engraçado. Uns dez anos atrás, eu assinei um manifesto político em apoio ao ex-deputado Fernando Morais. Um jornalista da "Folha de S. Paulo", tentando me atingir, escreveu três coisas. Primeiro, botou minha idade no jornal, aumentando uns quatro anos (risos). Depois botou "comunista histórico". Até aí ele já tinha me ofendido um pouquinho, mas quando me chamou de "carioca" é que eu fiquei ofendido mesmo. Com isso ele sugeria que eu não teria direito de opinar numa eleição paulista. Nesse dia, eu, que tinha o apelido de Carioca em São Paulo, percebi o quanto valorizo minha cidadania paulista.
MC - Seu pai (o historiador Sérgio Buarque de Hollanda) foi uma espécie de orientador de seus primeiros passos na literatura, sugerindo leituras e fazendo críticas a seus primeiros textos. E quanto à música?
Chico - Ele gostava muito de cantar, especialmente quando bebia um pouquinho e ficava alegre. Ele cantava em italiano, em alemão e também muitos sambas antigos. Apesar de ser muito amigo do Vinícius (de Moraes), ele não era chegado em bossa nova.
MC - Você aprendeu sambas com ele?
Chico - Muitos. Lembro dele e de minha mãe, em casa, cantando Noel Rosa. Conheci o samba "Último Desejo" (de Noel) e essas coisas todas através dos meus pais. Numa lembrança mais remota, mais do que rádio ou vitrola, é esse cantarolar constante dos dois que vem à minha memória. Eles também gostavam muito de Ismael Silva, de sambas dos anos 30, da época em que namoraram.
MC - Algum dos dois estimulou você a seguir a carreira musical?
Chico - Ao contrário, jamais houve algum empurrão. Minha mãe, que tinha uma visão da vida mais prática do que meu pai, ficou muito satisfeita quando entrei para a faculdade de Arquitetura. Eu era meio indisciplinado, quase um vagabundo. Eu já bebia bastante, e ela tinha um pouco de medo. Quando comecei a abandonar a Arquitetura para fazer música, ela até foi à faculdade trancar a matrícula por mim. Eu já sabia que não ia voltar nunca, mas ela guardou por um bom tempo a esperança de que eu voltasse ao bom caminho. Até porque, a música não era uma opção profissional pra mim, no início. Era uma farra, uma brincadeira.
MC - E por que você escolheu Arquitetura para estudar?
Chico - Por exclusão. Eu precisava entrar numa faculdade e gostava muito de Arquitetura. Aliás, ainda gosto. Tinha o hábito de ficar imaginando e desenhando cidades, e lembro de minha avó dizendo: "Chico, você vai ser urbanista, quando crescer". Tinha também aquela coisa de Brasília e de Oscar Niemeyer, que era uma figura mítica par mim, apesar de eu tê-lo conhecido, por ele ser amigo de meu pai. Na minha geração havia um interesse grande por Arquitetura. Na verdade, quando entrei para a faculdade, eu me esforcei para acreditar que eu seria arquiteto um dia, mas não tinha muita convicção. Precisava de uma profissão e tentei. Naquela época, não se podia levar a sério uma faculdade de Letras, muito menos pensar na música como profissão.
MC - Hoje você dedica a maior parte de seu tempo a dois ofícios essencialmente solitários: a composição musical e a literatura. Você era uma criança solitária?
Chico - Não, eu fui um moleque de rua normal, de jogar bola e ter muitos amigos, além de muitos irmãos (seis). Nunca fui uma criança fechada, nem mesmo introvertida. Pelo contrário, eu era até extrovertido em demasia, mas eu tinha todo um mundo particular e imaginário, que preenchia meu tempo livre. Eu gostava de narrar jogos de futebol de botão. Inventava e desenhava cidades que tinham tudo: os cinemas, os nomes das ruas, os bairros, tudo inventado por mim. Eu também desenhava filmes, numa tira de papel, que exibia numa caixa de sapato, com dois lápis. Acreditava que era cinema e persuadia minhas irmãs menores de que era mesmo cinema. Fiz várias películas, com nomes de atores americanos imaginários, como Robert River. Eu passava horas sozinho ocupado com essas brincadeiras que têm a ver com o que eu faço até hoje (risos).
MC - E a literatura? Também era um prazer solitário, ou você chegava a compartilhá-la com os amigos?
Chico - Antes de entrar na FAU, comecei a cismar de ler livros em francês. Tinha dois amigos com quem eu conversava sobre literatura, em francês. Um era filho de franceses, o outro de alemães. Nós três freqüentávamos muito o bar Riviera (na esquina da rua da Consolação com a avenida Paulista, em São Paulo), antes que ele ficasse conhecido como reduto da esquerda. Nós éramos adolescentes, tínhamos 16 ou 17 anos, e ficávamos horas ali, trocando idéias sobre os poetas e romancistas franceses. Nessa época, também comecei a ler os russos, em francês, nas edições da Gallimard, tiradas da biblioteca de meu pai. Com 18 anos, eu ostentava um pouco isso, e costumava levar esses livros para a faculdade. Um dia, um colega mais velho veio caçoar de mim: "Você não lê nem um livro brasileiro?" (risos). A partir daí comecei a ler literatura brasileira, que eu conhecia pouco.
MC - Nessa época, você lia tanto quanto jogava futebol?
Chico - Eu lia mais. Joguei muita bola, no tempo do ginásio e do Científico, mas quando entrei na faculdade, parei de jogar bola por um bom tempo.
MC - Parece que uma das suas primeiras músicas, feita ainda na adolescência, chamava-se "Canção dos Olhos". É verdade que ela tinha uma insinuação a respeito de seus próprios olhos?
Chico - (risos) Nessa canção eu falava dos olhos de um a moça mas as amigas da minha irmã, a Miúcha, diziam que eu cantava essa música, piscando os olhos (risos). Devia ser uma vaidade inconsciente. Eu não seria tão cabotino assim. Logo depois resolvi virar intelectual e já não estava mais preocupado com isso. Esse negócio de ter olhos claros, no Brasil, chama atenção mesmo. Lembro de, ainda bem pequeno, ser parado na nua por senhoras, que pediam: "Deixe eu ver seus olhos, menino".
MC - Desde cedo já tinha consciência de seu poder de sedução?
Chico - Eu era bastante namorador e tal, mas depois que entrei para a faculdade estava sinceramente interessado em literatura e, mais tarde, em música. Eu não fazia disso, de forma nenhuma, um instrumento de sedução. A música pode ser um ofício sedutor e alguns amigos meus até exercitavam isso, como o Toquinho, que eu conheci ainda quando éramos garotos. Ele via a música como um fator de sedução, de aproximação das meninas, mas eu não. Quando veio aquela paixão pela bossa nova, eu só pensava nisso o dia inteiro. Foi uma coisa de louco. Fiquei sinceramente interessado pela música.
MC - Quando você sentiu que poderia seguir carreira na música?
Chico - Foi acontecendo aos poucos. Eu era novo quando comecei a ganhar dinheiro com música, de uma forma até um pouco irresponsável. Tomei consciência de que era um profissional de música, de uma forma até dolorosa, na época em que fui morar na Itália. De repente, eu estava em um país estrangeiro e vi que não havia outra saída mesmo. Aos 24 anos, desempregado e passando dificuldades, quando nasceu a minha filha, percebi que eu era um músico profissional. Ao voltar ao Brasil, a música já tinha deixado de ser aquela farra, aquele dinheiro fácil que se ganhava, que se gastava, que se bebia. Minha relação com a profissão mudou a partir desse momento.
MC - Você ficava muito indignado, quando suas músicas eram cortadas ou mesmo proibidas, na década de 70? A idéia de usar o pseudônimo de Julinho da Adelaide, para driblar a censura, sugere que, pelo menos naquele momento, você enfrentou o problema com humor...
Chico - Na época mais difícil, eu ficava ofendido e indignado, mas não era tanto pela censura e sim por tudo que a cercava. Teve um período em que eu era intimado a depor no DOPS quase semanalmente. Eu fazia aquele circuito universitário de shows e sempre acontecia alguma coisa. Às vezes eu cantava alguma música proibida, em outras vezes nem tinha cantado, mas por causa disso eu era periodicamente chamado ao DOPS. Um dia, virei para o inspetor, que sempre me tratava mal, e gritei: "Eu não agüento mais essa situação". Manifestei minha indignação de uma forma que até deixou o sujeito meio balançado (risos).
MC - Você explodiu...
Chico - Sim, porque aquela coisa era constante. Além das músicas censuradas, havia os shows proibidos, os shows com censores na platéia e no camarim. Não era brincadeira. Esse período foi da minha volta da Itália (1970) até por volta de 1974. Quando eu inventei o Julinho da Adelaide, o clima já estava um pouquinho mais brando. Há que se distinguir um pouco a época do Médici da época do Geisel. Era ditadura sim, a tortura continuava, mataram o Vladimir Herzog, mas a gente já se sentia um pouquinho menos sufocado do que no tempo do Médici. Para que eu criasse o Julinho da Adelaide, para brincar com isso, certamente já havia um clima menos sufocante do que antes. No começo dos anos 70, não havia graça nenhuma.
MC - Em entrevistas, você parece ficar incomodado quando perguntam sobre sua "alma feminina", sua capacidade de falar no feminino. O que incomoda? A repetição freqüente desse lugar-comum ou o fato de que essa é uma habilidade de importância menor na sua obra?
Chico - As duas coisas. Isso tem uma importância menor, inclusive porque está na tradição da música popular brasileira. Antes de fazer minhas canções, eu já conhecia músicas de Assis Valente, ou de Ary Barroso, cantadas no feminino. Isso não é nenhuma novidade.
MC - Mas por que então as mulheres indicam você como o grande porta-voz da "alma feminina"? Por que elas não escolheram, por exemplo, Tom Jobim? Será que o fato de elas verem você como um "deus de olhos verdes", como dizem algumas, não influencia essa escolha?
Chico - (risos) Olha, em primeiro lugar, o Tom Jobim era um homem muito mais bonito do que eu. Ele era um homem belíssimo...
MC - Sim, até o início dos anos 70, antes de engordar...
Chico - A minha vantagem é que eu ainda jogo bole e mantenho uma certa forma. Não me considero um homem especialmente bonito, apesar de ter estes olhos verdes que já chamavam atenção quando eu era criança. Mas eu quero acreditar, ao contrário do que dizem as colunas cariocas que brincam muito com isso, que as pessoas vão ao show para ouvir as músicas. Há até um marketing involuntário, em cima dessa coisa, mas as pessoas que vão ao show para ver um "deus de olhos verdes" devem sair decepcionadas.
MC - E os gritinhos das tietes na platéia? Te incomodam?
Chico - Não. Tem gente que grita aquelas coisas, mas isso também acontece no show de outros artistas. Eu não me sinto desrespeitado por isso, porque eu não sou besta, mas acredito que o que interessa e o que pode encantar as moças é o que está nas minhas músicas e não na minha presença física. Acho que eu tenho canções que falam de amor, com propriedade, não só porque falam no feminino. Às vezes são canções feitas para as mulheres, cantadas no masculino. Forçar a barra nesse sentido, pra mim, equivale à tendência oposta de forçar demais a barra do cantor de protesto, do cantor político. Eu passei a vida inteira tentando nuançar esses clichês. Meus discos e shows têm canções de amor e de temática social. Para um determinado tipo de público e de imprensa, até bem pouco tempo atrás, eu era um cantor engajado, mas eu dizia: "Espera aí, não sou tão político assim. Escrevo músicas falando de amor, sou um cantor lírico". Talvez eu tenha exagerado e feito o barco pender demais para outro lado. Acho que está na hora de todo mundo sentar do outro lado do barco (risos).
MC - Você já disse que, na condição de escritor, o melhor da literatura está no prazer de ler o que se escreveu. Você vê a música dessa maneira? Você também compõe para si mesmo?
Chico - Eu nunca tinha pensado nisso. É claro que a música é refeita, reescrita, mas o meu prazer não é o de ouvir. Na verdade, eu gosto mais de ler do que de ouvir música. Ouço minha música durante o período em que está sendo gravada, mas desconfio que tenho mais prazer no ato de criar a música, do que no ato de escrever. Há momentos de prazer ao escrever, mas você vai refazendo e o prazer só é completo quando você lê e está satisfeito. Na música não, o prazer acontece a cada momento em que ela vai aparecendo. O fazer musical, pra mim, é mais intuitivo do que a literatura. O prazer está ali, na mágica das coisas que aparecem sem que você saiba exatamente como.
MC - Ao terminar uma canção muito especial, você já chegou a sentir a sensação de que jamais poderia fazer outra melhor?
Chico - O Tom Jobim brincava com isso. Quando alguém dizia a ele "depois dessa canção você não precisa fazer mais nada", ele tomava isso como uma provocação. "Não preciso fazer mais nada? Vocês querem que eu morra?" (risos). No momento mesmo em que você está terminando uma música, às vezes atinge um grau de prazer e satisfação, que você chega a dizer: "Ainda bem que eu não morri ontem, porque eu ainda tinha que fazer essa música". Mas isso já me aconteceu várias vezes, não com uma música em especial.
MC - O sucesso de alguma canção sua já chegou a surpreendê-lo?
Chico - Na verdade, a minha relação com o sucesso popular mudou muito. Hoje, se eu fosse ficar preocupado com isso, estaria frustrado. Quando comecei, minhas músicas tocavam muito mais no rádio do que hoje, havia os festivais. Dentro de um mesmo disco, três ou quatro músicas podiam estourar. Às vezes eu ficava surpreso com o sucesso de algumas delas, como "Carolina", que era uma música despretensiosa. Eu estava na Bahia, quando a Cynara e a Cybele cantaram "Carolina", no Festival Internacional da Canção. Lembro de ter sido procurado pelo Ruy, do MPB-4, que era casado com a Cynara. Ele me pediu uma canção para a dupla. Aí eu disse a ele: "Olha, eu tenho uma música aqui, mas não é muito boa" (risos). Eu estava em Salvador, e não estava nem ligado no festival. Mas tinha uma rádio de ondas curtas e pegou uma emissora do Rio, que estava transmitindo o festival. Eu ouvi as duas cantando, surpreso. Quando terminou foi uma ovação enorme, no mesmo Maracanãzinho que, um ano mais tarde, vaiou "Sabiá".
MC - Você já sofreu a chamada angústia da influência? Precisou superar a influência de alguém que marcou sua música?
Chico - Não. Eu comecei a fazer música sob a influência da bossa nova e fazia imitações escrachadas da bossa nova. Como eu não tinha nenhuma veleidade de compositor, naquele época, eu queria ser um sub-João Gilberto, fazendo música como um sub-Tom Jobim. Eu me assumia como um imitador de João Gilberto e não queria ser melhor do que isso. Na minha ingenuidade de amador, eu achava que conseguia fazer uma música parecida com a bossa nova e achava que isso já estava bom. Quando comecei a escrever, também tentei ser várias coisas: fui Céline, quis ser Zola por um tempo e, mais tarde, queria ser Guimarães Rosa. Na ingenuidade dos 18 ou 19 anos, eu achava que já estava escrevendo quase tão bem quanto o Guimarães Rosa (risos). Mas não era nada, apenas cacoetes e neologismos. Tem até um resquício disso, que aparece na canção "Pedro Pedreiro" o verso "Pedro pedreiro penseiro" ainda era aquela coisa de achar que eu podia ser Guimarães Rosa. Foi preciso um tempo, alguns anos para a música, e décadas para a literatura, para que eu pudesse me reconhecer como um autor com uma linguagem pessoal. Hoje, tenho consciência de que o que escrevo é meu. E a música que faço também é minha. Devo a outros autores, com certeza, mas tenho a minha marca pessoal. Nunca passei por esse tipo de angústia.
MC - E verdade que você costuma se aborrecer nas férias? Você se considera um "workaholic"?
Chico - Sim, mas o engraçado é que eu tenho fama de vagabundo. Tem o cara do Bar Jóia, lá perto de casa, onde eu vou tomar água de coco, que me provoca: "Continua vagabundo, hein?". O que eu digo é o seguinte: eu preciso de algum tempo de vagabundagem, para fazer o que eu faço. Mas se eu estiver de férias, sem nada em mente, nenhum trabalho, eu não me divirto. Lá pelo terceiro ou quarto dia, já fico meio inquieto. Isso acontece bastante. Quando eu termino um trabalho muito longo, digo: "Agora eu mereço férias". Faço planos maravilhosos de viagem, mas eles sempre são melhores do que as viagens. Como os projetos de vida, que sempre são muito melhores do que a vida. Eu me divirto pensando em como vão ser minhas férias, mas quando elas chegam não têm tanta graça.
MC - Você já fez psicanálise?
Chico - Tentei três vezes, mas não posso dizer que tenha feito mesmo. Quando começava, era porque estava sem conseguir escrever música. Daí, um mês ou dois depois, quando eu voltava a trabalhar, começava a faltar nas sessões e acabava desistindo. Então eu nunca desenvolvi um tratamento psicanalítico. Essa angústia que me levava à psicanálise estava quase sempre ligada ao vazio criativo. Toda a vez que isso acontece, a gente sabe que vai passar, mas pode ser bastante angustiante.
MC - Uma sensação de que você não tem mais nada de novo a dizer?
Chico - É, exatamente isso. Eu achava que nunca mais iria compor nada. Passavam-se quatro ou cinco meses e não saía nada, como se eu estivesse de férias. Só que essas férias acabavam no divã (risos). Já de uns dez anos pra cá, eu tenho isso mais ou menos resolvido na minha cabeça. A partir do momento em que, depois de um largo tempo sem compor, eu comecei a escrever um livro, eu tive a impressão de que posso preencher o vazio da música com outra atividade. Não sei se isso é mesmo verdade, mas de uns dez anos pra cá eu não procurei mais a psicanálise.
MC - É verdade que, apesar de sua home-page existir há meses, você nem tem conexão com a Internet em casa? Isso é desinteresse ou aversão por esse tipo de tecnologia?
Chico - Não é aversão, não. Tenho a impressão de que, se instalara Internet em casa, vou ficar sentado ali horas a fio.
MC - Então é medo de ficar viciado?
Chico - É, medo de viciar e de perder muito tempo com isso. Já perco muito tempo com coisas inúteis, até jogando paciência no computador. Para começar a escrever alguma coisa, tenho que jogar um pouco de paciência. Isso já virou uma lei na minha cabeça. Depois de uma hora jogando, eu me pergunto: "O que é mesmo que eu ia fazer?". Aí jogo mais um pouco e, quando percebo, já perdi quase uma tarde inteira.
MC - Hoje, não bastasse o impacto da TV, a atenção das crianças também se divide bastante entre a Internet e jogos eletrônicos. Você se preocupa com isso, já na condição de avô?
Chico - Avô não tem que ter obrigação, nem preocupação nenhuma. Eu fico preocupado apenas por tabela. Penso que a minha filha deve ficar atenta a isso. Vejo isso na casa de amigos, que têm filhos menores.
MC - Você se vê no papel de incentivar seus netos a ler?
Chico - Convencer o Chiquinho a ler? Como se diz por aí, é ruim, hein? (risos). Não acredito muito nesse tipo de indução, mesmo que sutil. Tenho a impressão de que talvez algum neto meu venha a se interessar por livros, ao ver que alguém da família tem prazer nisso. Ver o amor que o meu pai tinha pelos livros, o fato de a casa dele ser aquela biblioteca, me marcou bastante. Mas acho que se o meu pai ficasse me empurrando livros para ler, eu talvez rejeitasse. Aliás, para mim, essa coisa de leitura obrigatória era um aborrecimento muito grande. Eu só fui ler Eça de Queirós e coisas assim mais tarde. O que eu lia na escola era tudo de mentira. Quando tinha de escrever algo a respeito, eu lia apenas a orelha dos livros. Desconfio um pouco desses programas de incentivo à leitura.
MC - Você foi um pai menos ocupado do que o seu?
Chico - Há uma diferença grande entre a minha geração e a de meus pais, no trato com crianças. A preocupação pedagógica com a criação dos filhos praticamente não existia na geração deles. Diziam que crianças eram feitas para serem vistas e não ouvidas. E isso não acontecia apenas na minha casa. Mais tarde, nos anos 60, começou essa história de os pais ficarem preocupados com os filhos. Eu procurei ser mais atento. Ao mesmo tempo, na época em que minhas filhas nasceram, eu era mais ausente do que gostaria, porque viajava muito fazendo shows.
MC - Você se vê fazendo música e literatura até o fim da vida?
Chico - Já está de bom tamanho. Não tenho outras ambições.
Chico Buarque
"Para los jóvenes soy una novedad"
En Río de Janeiro, La Nación dialogó en forma exclusiva con el genial artista brasileño, que a los 54 años, y tras una ausencia discográfica de cinco, grabó un nuevo álbum, "As cidades", y regresó a los escenarios para presentarlo
RIO DE JANEIRO.- "Lo que me estimula para hacer música popular es que hay muchos jóvenes interesados en mi trabajo. Si dependiera de la gente de mi edad, ya no compondría: estaría repitiendo las canciones de hace treinta años", se ríe Chico Buarque.
La luz del atardecer caliente presagia lluvia y acentúa los colores del imponente panorama que se abre frente a la terraza de su departamento: la abrupta pendiente del Corcovado enorme e increíblemente próxima, la espesa fronda del Jardín Botánico que se prolonga por las laderas, las tejas allá abajo, el mar azul al fondo; más lejos, la silueta inconfundible del Pan de Azúcar. Se comprende que a Chico la música le entre por los ojos; sin embargo, cuesta imaginar que sea capaz de concentrarse en el trabajo teniendo a la vista semejante espectáculo.
-El público de mi generación -retoma la idea cuando regresa trayendo dos vasos de jugo de açaí- se relaciona más con las canciones de la época en que yo era joven... y ellos también. Siempre reclaman ¿Por qué no hacés más aquellas canciones de cuando tenías veinte años? y creo que en realidad lo que están preguntándose es: ¿Por qué no tengo más veinte años?
Vuelve a reír y parece que él sí los tuviera otra vez. En la charla mano a mano esa expresión juvenil y risueña asoma a menudo. Por ejemplo, cuando se asombra de que haya tantos espectadores en su show cantando "canciones que son mucho más viejas que ellos" o cuando recuerda que "Partido alto" llegó a ser uno de sus más grandes éxitos en Francia, pero con una letra tan alejada del original que hasta habla de un ET.
A los 54, después de una ausencia que se prolongó cinco años, y con el pretexto de "As cidades", el nuevo CD que ya circula en la Argentina, Chico ha vuelto al escenario. La literatura --que le dio no hace mucho el gran éxito de "Benjamín", su segunda novela- le ha cedido el paso a la música popular. Por ahora, Chico no piensa abandonar ni una ni otra. Sólo que emprende una actividad por vez, y siempre se las arregla para no complicarse con compromisos a largo plazo. Por eso, no se atreve a asegurar que este nuevo show lo llevará de regreso a la Argentina, aunque admite que siempre es una perspectiva posible.
No tiene planes ni proyectos. Supone -sólo eso: supone- que a este período musical seguirá otro literario. "Cuando uno termina un disco como éste tiene la sensación de que puso todo, de que se agotó; ahora no tengo ganas de tomar una guitarra para hacer una canción. Al mismo tiempo, el otro lado -el literario- quedó adormecido. Cuando tenga que hacer literatura, voy a tener que reaprender, no habrá una continuidad con el trabajo anterior".
Sí, hay algo de doloroso en este ejercicio de olvidos y reaprendizajes sucesivos. Pero también -confiesa- tiene su lado bueno: "Cuando se reemprende el viejo oficio se lo hace de una manera más fresca".
De esos vaivenes, del origen de las canciones, del público de antes y el de ahora, del disco y el show se habló durante la charla. Conviene seguir su rumbo y sus derivaciones porque a lo largo de ellas Chico fue intercalando opiniones y reflexiones que suelen ser, como todas sus obras, muy sabrosas.
Letra y música
"Mantengo la relación con la misma compañía grabadora -dice- porque trabajo allí con comodidad, pero no hay un contrato que me obligue a grabar un disco por año. El contrato es por cada álbum."
-Hay menos presión.
-Es que no tengo ni interés ni material para grabar un disco por año. Produzco menos porque hago otras cosas. Cuando uno comienza -siendo como yo autor y compositor-, graba el primer disco y le sobra material. Cuando yo grabé el primero, tenía canciones para dos más. Ni siquiera necesité hacer mucha música nueva para completar los tres primeros discos, uno por uno. Después, la producción empieza a escasear, el entusiasmo va disminuyendo; además, uno se pone más crítico, más riguroso.
-Y hay otras ocupaciones.
-Claro. Yo estuve un año viajando con el show de "Paratodos". Después, un año y pico escribiendo "Benjamín". Y antes de volver a hacer música hace falta un tiempo de silencio. Uno queda completamente vacío de ideas, lo que no es malo. Después de un año y pico, retomar la composición de canciones es más difícil y al mismo tiempo más estimulante. Como empezar de nuevo.
-¿Hacen falta esos desafíos?
-Sucede que uno busca otros caminos. Alternativas. Es un fenómeno visible también en otros autores. Tengo la impresión de que la música popular es menos longeva que otras artes. Hay pintores que continúan pintando hasta los 90 años; un creador de música popular no dura tanto. Tal vez porque tiene una relación directa con la juventud -el público es en su mayoría joven-, y con el paso de los años uno empieza a alejarse del mundo de los jóvenes. Llega un momento en que uno se da cuenta de que ya no habla más la misma lengua que los jóvenes, y al mismo tiempo sus contemporáneos -que formaban el público de años atrás- ya no compran más discos. La mayor parte de la gente que consume música es menor de 30. Los de mi edad siguen pidiéndome las canciones viejas. Si fuera por ellos, no compondría.
-¿De dónde vienen las canciones?
-De las imágenes. De un film, de fotos, de lo que veo. La imagen es para mí muy estimulante. Primero viene la melodía, siempre. A veces las primeras palabras llegan mezcladas con la música, pero nunca las palabras solas; yo no escribo poemas.
-¿Y cómo llegás a la letra?
-Por su sonoridad. Son palabras que surgen desprovistas de sentido, puro sonido. Para mí es un camino natural. Imagino que es como un pintor que comienza a trabajar y hasta un defecto, una mancha en la tela le sugieren ideas que va siguiendo y completando. Cuando escribo literatura, domino las palabras, es otro tipo de trabajo, no me dejo llevar por la sonoridad. Por supuesto que también existe un ritmo, una cadencia, pero en la literatura elijo las palabras por su sentido preciso.
-¿Influyó la experiencia literaria en la creación de música?
-Sin duda. Como compositor, yo siempre fui muy intuitivo. Claro que con la frecuentación de grandes músicos -Tom Jobim, Milton Nascimento, tantos otros- me fui educando. Pero pienso que es el trabajo con la literatura el que me ha vuelto más riguroso. No es que me proponga aplicar mi conocimiento literario: lo que procuro es usar en la elección de las notas el mismo rigor que empleo en la elección de las palabras.Y me intereso ahora técnicamente en la música mucho más que 30 años atrás.
-¿Tenés canciones inéditas?
-No. Tengo algunas músicas que comencé y que dejé abandonadas; algunas ideas sin desarrollar. Y mucha música enviada por otros compositores que sigue guardada en un cajón.
-Suelen encargarte letras.
-Aquí hay muchos compositores y pocos letristas. Me gusta mucho escribir letras para músicas de otros, pero se trata de un trabajo bien distinto. Cuando me dan una música me siento en la obligación de escribir una letra que tenga la cara de su compositor, lo que ensancha mi horizonte. En este disco hay canciones con música de Guinga y de Dominguinhos, dos personajes tan diferentes que me obligan a mí a ser diferente al escribir. En realidad, mi trabajo sería algo así como descubrir una letra que está oculta en la música.
-¿Por qué "Las ciudades"?
-En realidad el disco no empezó con la idea de las ciudades, sino que ésta llegó al final. No había un concepto ni un título. Y no lo hubo hasta muy recientemente, porque es el resultado de un trabajo disperso. Las canciones fueron creadas con fines diversos: un film, un libro. Cuando comenzó la grabación, tenía la mitad de las canciones. Y apenas tuve conciencia de alguna unidad, si es que el disco la tiene, con las últimas, cuando empecé a componer pensando en las necesidades del disco. El título vino al final. Un poco soñé con ese título, tal vez porque hay muchas ciudades en el repertorio: está Río, está la ciudad abandonada por los sin tierra ("Assentamento"), las del sueño ("Sonhos..."), la de los que imaginan el viaje mirando correr el río ("Xote...") Son ciudades soñadas, un tema recurrente en mi repertorio.
-Hablando de Río, "Carioca" trae otra visión bien distinta del Río de tus comienzos.
-Es que en aquella época había pobreza, había favelas, pero también había una posibilidad de convivencia natural. La playa, por ejemplo, era un espacio democrático. Hoy en día la playa está toda compartimentada. Está la playa de los gays, la de los surfistas, la de la marihuana, la de favela tal o cual, la de las pandillas de luchadores de jiu jitsu. Hacer una larga caminata por la playa es como ir atravesando tribus. Todo ha cambiado mucho en Río. Crecieron las favelas y las desigualdades, el desempleo, la violencia, la droga. También hay mayor hostilidad. Por eso Río resulta más bonita desde lejos, desde lo alto. Aun así es una ciudad maravillosa, como digo en "Carioca". Pero es maravillosa porque la naturaleza la hizo así. La ciudad más fea construida en el lugar más lindo...
-Pero este cambio no es privilegio exclusivo de Río.
-Claro que no; en San Pablo sucede lo mismo. Lo que pasa es que la proximidad entre el muy rico y el muy pobre ayuda. En las ciudades normales, la pobreza es empujada hacia la periferia. En Río la periferia no está en la periferia: está en el centro, en los morros. Y la tensión se agudiza.
-¿Se refleja en la música ese quiebre de la convivencia?
-Los espacios se reducen. Dentro de la ciudad periférica hay una música legítima creada allí y que expresa esa violencia. En ese sentido, hay cierta ventaja en la pulverización de los medios de comunicación, cierta democracia en esta realidad de radios segmentadas. Ahora es más fácil que un músico de la favela grabe su CD. No quiere decir que llegue a la grabadora -ése siempre es un camino tortuoso-, pero tiene la posibilidad de hacer un CD independiente. Los raps de la periferia de San Pablo, por ejemplo, contienen una violencia, una contundencia muy fuerte y muy auténtica. Pueden entrar en el circuito comercial o no, pero no dejan de conformar un fenómeno interesante. Cuando yo empecé, esos autores populares a los que me refiero y que hoy en día tienen más voz sólo contaban con el carnaval y la escola de samba para poder divulgar su música.
-¿Qué te dejó la experiencia carnavalesca? (Chico fue el tema de la escola de Mangueira en el carnaval de 1998 y desfiló con ella.)
-Un acercamiento muy interesante, tanto por el carnaval como por el disco "Chico Buarque da Mangueira". Hay gente que me reconoce por eso. Entablé así relación con un público que normalmente no compraría mis discos.
-Pero los compraba antes.
-En la época de "Meus caros amigos", por ejemplo, la gran diferencia era que mi música se pasaba por radio. Ahora no hay espacio. Las emisoras están muy encasilladas. Y las que se dedican a la música popular hecha en Brasil atienden al pagode, a la axé music, a la música sertaneja. Sin embargo -es misterioso- eso no impide que yo, como otros artistas de mi generación, tengamos acceso a una gran sala de shows, como el Canecao, y podamos hacer temporadas de un mes o dos con las localidades agotadas. La radio no incide.
-Pagode, axé, música sertaneja, ¿cómo ves esas modas?
-No tengo nada contra ningún género. Me parece simpática la idea de la gente de cantar pagode. Lo que no me parece tan simpático es la masificación, la monotonía que imponen la industria del disco y los medios.
-Hablemos del show. ¿Es una necesidad o una concesión?
-Yo me formulo la misma pregunta y me quedo en la duda. No me gusta especialmente hacer shows. Sólo me gustan al final: cuando termina el show estoy feliz. Pero por otra parte no hacer shows me parecía una perspectiva desagradable. Y además, estar con los músicos es bueno; los ensayos me gustan, el estudio también. Lo que me gusta menos es entrar en el escenario y ese compromiso del que no se puede uno sustraer aunque esté engripado, o desanimado. Tengo ahora esta pausa impuesta por el carnaval (la temporada carioca empezó el 6 de enero) y en marzo voy para San Pablo a hacer siete semanas.
-¿La gira continúa?
-Continúa. Pero la voy arreglando de a poco. No quiero tener que pensar que voy a estar un año haciendo un show.
-¿Llegarás a la Argentina?
-Es posible. Siempre hay una perspectiva. También está Europa a la vista. Pero para hacer este show fuera del Brasil tendría que modificar un poco el repertorio.
-Da la impresión de que en la Argentina tu imagen está un poco limitada a la del cantante comprometido, de protesta.
-También en Brasil hay quien me ve así. Y yo tengo que explicar siempre que los tiempos son otros y recordar que aun en la época de la dictadura no fui exclusivamente un cantor de protesta. Compuse y canté canciones sobre muchos otros temas; escribí teatro, novelas. En realidad, mi relación con la política fue más como ciudadano que como artista. Sucede que algunas canciones mías fueron creadas en tiempos de la dictadura y utilizadas en momentos cruciales, por ejemplo en la época de la lucha por las elecciones presidenciales directas. También queda esa relación de mi figura con la lucha contra la dictadura. No me arrepiento de esa identificación, pero está claro que como artista es una visión limitada, que ignora realmente buena parte de mi trabajo. Tal vez procede de quien piensa la música de una forma utilitaria: esa música sirve para esto, aquélla para lo de más allá. Pero la música no tiene que servir para nada. El arte no sirve para nada.
Padres e hijos
"As cidades" tiene una asistencia juvenil muy notoria. A Chico le llama la atención que muchos chicos y chicas conozcan y canten canciones nacidas mucho antes que ellos. Es un fenómeno que ya se verificó con "Paratodos" (el CD y el show), comenta. "Y ahora, con estos cinco años de pausa, ya podemos hablar de otro público nuevo", exagera entre risas: "Tal vez piensen que soy un artista nuevo; un poco envejecido, pero nuevo". Y ahí nomás saca a relucir una anécdota graciosa:
"Un día en una estación de servicio, se me acerca una chica y me pregunta: ¿Usted es Chico Buarque?
"-Sí.
"-¿El padre o el hijo?"
Se ríe otra vez, y dice que lo afecta poco el paso del tiempo porque siempre sospechó que era viejo y porque se lleva bien con la idea de tener 54 años y encontrar alternativas aunque carezca del ímpetu de los 20. Sabe que llegará la hora en que le dirán: "Chico Buarque, no molestes, andate a casa". "Entonces -dice-, me iré."
Pero no oculta la satisfacción por el eco que encuentra en los jóvenes.
"Muchas veces vienen a hablar conmigo. Músicos jóvenes o gente que parece estar descubriendo mi música ahora porque compró el CD. Chicos que se me acercan en la calle y me hacen preguntas. Para ellos soy una novedad. Conocían mi nombre pero no sabían bien quién era. Sin embargo, conocen las canciones, las cantan. Quién sabe si siquiera saben que son mías. Las reciben como si fueran de dominio público..."
Lo son. ¿Qué menos podía esperarse de joyas como "Terezinha", "Construcción", "Vai passar", "Samba do grande amor", "Futuros amantes"?
¿Y a qué otra gloria más alta podría aspirar un trovador?
Não, o intervalo de meia década entre dois discos de músicas inéditas nada tem a ver com preguiça, garante Chico Buarque. Se Paratodos saiu em 1993 e o novo As Cidades só chegou às lojas cinco anos depois, isso se deve a outras atividades do dono do par de olhos - verdes, azuis, ninguém sabe - mais cobiçado da MPB. "É tanta coisa que nem tenho tempo de ir a lojas de discos, só ouço os CDs que recebo", diz ele. Desde 1992, além de lançar Paratodos, Chico escreveu dois livros, Estorvo e Benjamim, teve dois netos, Chiquinho e Clara, frutos do casamento da filha do meio, Helena, com o baiano Carlinhos Brown, subiu ao palco algumas vezes (não muitas), lançou um CD de regravações, Uma Palavra, e foi enredo da Mangueira. A associação com a mais tradicional escola de samba carioca - que acabou campeã de 1998, empatada com a Beija-Flor - tomou o tempo do compositor tricolor, que acabou adiando por um ano o lançamento de As Cidades. Rendeu também um belo CD, Chico Buarque Da Mangueira, em que o homenageado cantou ao lado de nobres figuras da verde-e-rosa, como Beth Carvalho, Alcione e Nélson Sargento. Animado para falar do disco novo, da vida e nem um pouco do tri-rebaixado Fluminense, Chico recebeu SHOWBIZZ no Hotel Rio Palace, no Rio.
ShowBizz: Das onze músicas do disco, quatro ("A Ostra E O Vento", "Chão De Esmeraldas", "Assentamento" e "Aquela Mulher") já haviam sido lançadas em outros CDs. Por que repeti-las? Você só compôs essas sete?
Chico: Sim, praticamente só compus essas. Havia outra, um samba chamado "Duro Na Queda", mas o disco demorou tanto a sair que acabei enjoando dele e o deixei de fora. Das quatro que já existiam - e que, aliás, formaram o embrião do disco -, só "Chão De Esmeraldas" está disponível em um CD fácil de encontrar. Mesmo assim achei que deviam entrar no disco e regravei tudo, com novos arranjos.
ShowBizz: Está mais difícil compor hoje em dia?
Chico: Muito mais. Hoje sou muito mais exigente do que quando era jovem. Para cada música que sai são muitas palavras, sons e acordes que vão para o lixo. Calculo que uma música que faço hoje dá o mesmo trabalho de dez que compunha antigamente. E, curioso, revendo músicas antigas para colocar na minha homepage (www.chicobuarque.com.br) e no songbook (a ser lançado no ano que vem), vi muitas letras que gostaria de ter revisado, que poderiam ter ficado mais bem-feitas. Quando era jovem eu tinha um baú cheio de músicas, mais ou menos como o Carlinhos Brown, que tirou as quinze do disco dele de uma coleção de 120. Mas com o tempo você vai esquecendo, vai jogando fora, sobra pouca coisa. Para ter uma idéia meu terceiro disco tem canções que poderiam ter entrado no primeiro.
ShowBizz: Houve pressão para terminar as músicas e finalmente gravar o disco?
Chico: Claro, sem a pressão o disco jamais ficaria pronto. As próprias músicas que já estavam prontas exercem uma pressão, elas querem ser soltas, existir para o mundo. Eu já tinha umas seis músicas prontas, o que não dá para lançar o disco. Então chega a hora de me empenhar, passar o dia com o violão - o que às vezes é infrutífero - e a caneta, ou mesmo canalizar outras atividades, como ouvir música e ir ao cinema, no sentido de buscar sons que vão virar músicas. Tem uma hora que você diz: "Agora vai", aí tudo acontece, é uma coisa até meio mágica. Nesse disco aconteceu de tudo, em dois casos eu tinha idéias de letras, penei, penei e não conseguia vir com a melodia adequada. Então lembrei de fitas que eu tinha em casa com melodias do Dominguinhos e do Guinga que se adaptavam perfeitamente às idéias. (N. do E.: A parceria com Dominguinhos se transformou no "Xote De Navegação", e a música composta com Guinga virou "Você, Você - Uma Canção Edipiana".)
ShowBizz: A canção-título de seu CD anterior, "Paratodos", é um baião, e desta vez você gravou um xote. Qual a sua relação com a música do Nordeste?
Chico: Na minha infância, na casa de meus pais, se ouvia tudo da música brasileira, nordestina inclusive. É claro que o samba era o que mais tocava - ao lado da bossa nova, foi o que me fez querer ser músico -, mas volta e meia rolava um xote ou um baião. Um dos meus primeiros trabalhos semiprofissionais foi a trilha sonora da peça Morte E Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Para compor aquilo eu fui apresentado pelo escritor Roberto Freire, à época diretor do teatro, a um pesquisador (cujo nome esqueci) especializado em cultura nordestina. Ele me passou um monte de fitas, daquelas grandes, antes que existisse o cassete, com tudo da música nordestina. Um pouco daquilo que aprendi deve estar aflorando agora.
ShowBizz: É verdade que você ficou quinze anos com a música do Dominguinhos na gaveta e dez com a do Guinga?
Chico: É, por acaso me lembrei delas tanto tempo depois. A do Dominguinhos tem uma história curiosa. Na fita, ele dizia, como quem fala ao telefone: "Chico, acabei de viajar não sei quantos quilômetros e estou em um hotel em São Luís. Aqui vai um xote russo em tom menor". E, acompanhado pelo acordeão, cantarolava a melodia, que tinha realmente uma relação com a Europa do Leste. Quando resolvi gravar, procurei o Dominguinhos para perguntar se por acaso a música já havia sido gravada por alguém. Contei a história, cantarolei para ele ao telefone e ele me disse: "Chico, se você gravasse essa música dizendo que era sua eu não desconfiaria nada". Depois, ouvindo mais a fita, percebi que um trecho da melodia não estava bem resolvido e o recompus. Aí percebi que Dominguinhos havia feito tudo na hora, por isso ele não se lembrava. Quando ele veio gravar comigo e ouviu a música seus olhos brilharam como quem reencontra um filho, gerado e perdido quinze anos atrás. Foi um momento muito bonito. O curioso do Guinga é que eu tenho diversas músicas mais recentes dele, mas acabei usando essa de 1988. As outras ficam para daqui a uns dez anos...
ShowBizz: Depois de dois livros bem-sucedidos você encara a literatura como profissão ou apenas como uma atividade?
Chico: Não posso ver a literatura como uma profissão como é a música, pois o que me permite ser um escritor é exatamente o fato de a minha profissão ser a música. O músico é o sponsor (patrocinador) do escritor. Eu posso me permitir ficar um ano, ano e pouco só escrevendo um livro, sabendo que, por mais que ele vá vender, jamais vai me sustentar. O meu sustento financeiro vem da música.
ShowBizz: E o desafio de escrever um livro é maior do que o de compor?
Chico: Não, é tão grande quanto; são atividades da mesma família, a da criação. Quando começo a escrever tenho muita dificuldade, porque, por exemplo, se eu começar um livro daqui a uns meses, já terão se passado três ou quatro anos desde o último, Benjamim. Então eu praticamente já terei esquecido como se faz aquilo. Quando eu começar a fazer novas músicas vai acontecer a mesma coisa, já terá se passado um tempo enorme, então eu não vou mais saber. Cada vez que eu escolho uma atividade abandono a outra, o que é mau, porque eu perco a mão, mas por outro lado é bom, porque essa mão quando volta para aquilo está fresca, ela vem do zero e eu vou reaprendendo. Foi assim com os meus dois últimos discos.
ShowBizz: Existem planos para uma turnê?
Chico: Ainda não sei. Com o Paratodos fiquei uns oito meses em turnê pelo Brasil e já tinha uma excursão agendada pela Europa. Mas comecei a ocupar minha cabeça com o Benjamim e falei: "Pelo amor de Deus, vamos desmarcar isso!" Tenho receio de ficar amarrando muito a minha vida e depois resolver fazer outra coisa. (N. do E.: Pelo sim, pelo não, Chico já reservou o Canecão, no Rio, para uma temporada no mês de janeiro.)
"Dos grandes medalhões da MPB, Chico é o que está melhor, cada vez melhor. Não paro de ouvir o disco novo, sou até suspeito pra falar. Aliás, achei desagradáveis algumas críticas que só falavam das letras. As pessoas observam muito o trabalho dele pelo prisma da letra. Felizmente, ele é um dos maiores letristas do mundo, mas é também um dos maiores compositores. Em qualquer canção dele você bota uma flauta, um clarinete, um celo... Todas elas ficariam lindas em versões instrumentais, porque são musicalmente brilhantes. Ele, o Edu Lobo e o Guinga são os maiores compositores da MPB no momento, fazem jus ao legado do Tom. Tenho todos os discos dele em CD, gosto de ouvir ele cantando, além de adorar o repertório. Dos trabalhos recentes, Paratodos é, para mim, um dos vinte maiores discos de música brasileira de todos os tempos. Devo gravar duas músicas no songbook dele."
Ed Motta
"Nos anos 70, eu era muito fã do Chico, me lembro que comprei e curti muito o Meus Caros Amigos. Sempre me impressionou muito nele a facilidade da palavra, do verso, e aquela sensibilidade que o fazia entender tão bem a alma feminina. Também admirava nele a crítica contra o discurso oficial, ele tinha uma posição diferente dos tropicalistas, sempre manteve uma independência em relação à elite poderosa. Com essa história de o presidente ter dito que ele estava repetitivo, achei que ele fosse tomar uma atitude mais ousada, foi meio ambíguo o fato de ele ter ido falar no Fantástico. Do Paratodos só ouvi a faixa-título, gostei da música e do clipe. Estou procurando em lojas o disco novo, quero muito ouvi-lo".
Fred04, do mundo livre S/A
Entrevistadores - Ana Miranda, Regina Echeverria, Plínio Marcos, José Arbex Jr., Carlos Tranjan, Marco Frenette, Jhonny, Walter Firmo, Sérgio de Souza.
Nunca se deu tanta risada em nossas entrevistas. Para quem foi ao Rio pensando encontrar um Chico meio caído, como quiseram certas matérias saídas na imprensa, foi uma alegre surpresa. E houve emoção, não explosão, se bem que ele não deixou de chutar certas fulgurantes canelas.
Sérgio de Souza - Abriria os trabalhos dando a palavra, a primeira pergunta, às damas...
Ana Miranda - Uma das preocupações que tenho é a respeito da função social da literatura. Estive conversando com o Raduan Nassar e ele disse o seguinte: literatura não serve para nada, só serve para divertir o escritor na hora em que está escrevendo e chatear depois que termina, porque se publicar... (risos) Você acha que a literatura tem uma função social?
Chico Buarque - Tendo a concordar com o Raduan, prezo bastante a inutilidade da literatura como das artes em geral, e concordo também que a função principal é divertir quem escreve. Quando estou escrevendo me divirto à beça, quando estou compondo também, quando estou criando encontro o prazer que não encontro nas férias. As férias, pra mim, são um grande aborrecimento, fico aflito, ou porque acabei de concluir um trabalho, ou porque estou procurando o que fazer em seguida - é um intervalo inócuo.
Regina Echeverria - O Raduan diz que a coisa melhor do mundo é dormir...
Ana Miranda - Perguntei pra ele e pergunto pra você: você seria a mesma pessoa se não tivesse lido os livros que leu?
Chico Buarque - Não.
Ana Miranda - Então a literatura tem uma função?
Chico Buarque - Tem a função de alimentar novos escritores, que terão, por sua vez, o prazer em escrever e o prazer em ler. As duas coisas se misturam; na verdade, quando disse escrever, errei: meu maior prazer é ler o que escrevi, além do prazer da leitura, alimenta a sua vaidade - "fui eu que escrevi isso" -, escrevo para ler. O momento mesmo de escrever não é tão prazeroso assim, é um antegosto, você sabe que está escrevendo para ler depois, "quando ficar bom, vai ficar ótimo de ler".
Carlos Tranjan - Como você faz? Reescreve muito, parte de um roteiro, faz planos?
Chico Buarque - Quando começo um livro, não tenho um roteiro, aliás, começo várias vezes até encontrar um caminho que pareça o caminho de um futuro romance ou o que seja, mas só vou definir mais ou menos o que será esse livro, esse roteiro, depois já de alguns passos dados, algumas páginas escritas. Por exemplo, falando dos meus romances, o Estorvo e Benjamim - eles partiram de uma idéia abstrata, não partiram de nenhum planejamento. É claro que chega o momento: "Parece que vou embarcar nesse livro. Aí você traça um roteiro, que muitas vezes no curso da escrita vai se modificando.
Sérgio de Souza - Você tem um método, uma disciplina, xis horas por dia?
Chico Buarque - Não precisa, porque fico vivendo em função daquilo, trabalho o dia inteiro, o dia todo.
José Arbex Jr. - Quando você radicaliza a noção de que arte é o prazer lúdico e só isso, não está criando uma linha de ruptura muito dramática na tua própria história, um "muro de Berlim" entre o Chico artista e o Chico engajado? Você não está criando um conflito aí?
Chico Buarque - Não estou criando conflito nenhum, a não ser que você considere algumas músicas compostas em plena ditadura, onde a noção de arte e de serventia política se misturavam. Mas eu já disse: essas canções mais marcadamente políticas são circunstanciais, canções que eu não incluiria entre as minhas melhores, e não são tão numerosas assim, como às vezes parece. O que há e sempre houve é uma participação do cidadão que se fez conhecido pela sua arte, mas não sei se é o "muro de Berlim" - na minha cabeça, consigo dividir tranqüilamente o artista e o cidadão. O cidadão, na verdade, está usurpando de certa forma o prestígio do artista, aí sim tirando algum proveito disso e se colocando a serviço de alguma coisa. Está sendo de certa forma útil, no seu ponto de vista, para determinados candidatos, mas não necessariamente no momento da criação; até preferia que não houvesse havido a necessidade de misturar política com criação artística, preferia que não tivesse existido a censura, que era uma interferência direta na criação do artista. A música, mesmo a imprensa, quando você está escrevendo um artigo debaixo de censura, ela está interferindo na tua escrita, na tua criação, isso acontecia no começo dos anos 70, principalmente. Não foi uma escolha minha.
José Arbex Jr. - No disco lançado agora, Cidades, você coloca o tema cidades e ao mesmo tempo faz todo um trabalho com a tua cara, como índio, como negro, com etnias, e no mundo contemporâneo a cidade é o local onde se dá o conflito das etnias, é o que está acontecendo na Bósnia, os conflitos raciais na Europa, os neonazistas etc. De uma forma ou de outra, a tua concepção de mundo acaba interferindo, conscientemente ou não, na tua produção estética. Por isso acho estranho você separar o Chico artista e o Chico cidadão.
Ana Miranda - Que é uma pessoa só.
Chico Buarque - Quem disse que é uma pessoa só? (risos) Você está citando um caso que para mim é exemplar; a capa do disco, aliás não foi feita por mim, foi feita pelo Gringo Cardia, e que se presta a esse tipo de interpretação, mas ela foi criada depois do disco, não fiz nenhuma dessas canções pensando no conflito de etnias, isso é uma possível interpretação do Gringo Cardia e a sua já é uma outra possível interpretação do que o Gringo possa ter imaginado, que não sei se foi isso. Não vi um conflito étnico na capa do disco. Vi uma conjunção étnica com a minha cara, mas não pensei na Bósnia. Há uma infinidade de interpretações possíveis, só que todas posteriores à criação, inclusive a minha. A música Assentamento, por exemplo, as fotos do livro do Salgado (Terra) me serviram de motivação, de inspiração, ou o que você quiser, para escrever aquela música, mas ela foi criada dentro do meu universo estético. A partir daí fiquei satisfeito porque a música, enquanto música, entrou no livro do Salgado, e o livro tinha uma finalidade prática mesmo, até pecuniária, os direitos do livro foram cedidos para os sem-terra, aí é outra coisa. "A música já está criada e vamos ver o que a gente faz com ela." A gente cria um objeto de arte, a gente pode criar a partir dessa música uma utilidade prática, mas criar uma música pensando na sua finalidade objetiva me parece perigoso, empobrecedor mesmo.
Plínio Marcos - Na minha opinião, você é o poeta que mais interpreta a alma feminina, isso passa pra todo mundo - quando vai trabalhar com essas músicas, principalmente, você usa a intuição partindo da sua vivência ou deixa fluir na hora?
Chico Buarque - Me surpreende que você faça essa pergunta. (ri) Navalha na carne...
Plínio Marcos - Navalha na carne eram três monstros, e as suas não, são mulheres ricas de delicadeza.
Chico Buarque - Pois é, você, para criar a Neusa Sueli, de certa forma teve de intuir. Monstro ou não monstro, era uma personagem feminina que você criou.
Plínio Marcos - A minha sensibilidade estava violenta, eu estava rebelde, e você não. É sempre meigo e doce com as mulheres.
Chico Buarque - Não, nem sempre, em textos como Gota d'água, por exemplo, que escrevi junto com o Paulo Pontes, aquela mulher também era uma monstra, aquela Medéia do subúrbio. Agora, a canção, de certa forma adocica um pouco essa monstruosidade, então a canção que ela canta, que é a Gota d'água, e a outra, Bem querer, não são canções monstruosas. A melodia, de certa forma, adocica o que poderia haver de literatura em uma letra de música. Tanto é que escrevo livros sem música, quer dizer, é uma literatura desprovida de música, muito mais seca que a letra das canções que são escritas em função daquelas melodias.
Marco Frenette - Existe uma preocupação com o trabalho do seu pai, o grande Sérgio Buarque de Hollanda, principalmente agora, que está fazendo mais literatura, você criou alguma relação com o ofício dele de escritor, de historiador? O trabalho do seu pai lhe vem à mente?
Chico Buarque - Sempre houve isso, como já falei outras vezes. Quando comecei a escrever literatura, antes mesmo de fazer música, era com meu pai que eu dialogava. Tive acesso ao escritório do meu pai através da senha da literatura. Quer dizer o meu ingresso, porque o escritóno dele era fechado, ele ficava lá e crianças eram indesejadas, a não ser a filha preferida - meu pai tinha a filha preferida, ela podia entrar...
Ana Miranda - Quem era a filha preferida?
Chico Buarque - A Ana, tua xará. Todo mundo morria de ciúme dela, porque só ela podia ir lá, na cadeira dele, sentava no colo dele, mexia nos papéis dele, o resto não entrava. Então, só houve acesso ao escritório do meu pai quando levei os meus primeiros escritos, e ele, apesar de eu ser um garoto de quinze anos, levou a sério, me estimulou a escrever. É claro, pichando aquilo que estava escrito ali, dizendo: "Você tem de ler mais." Mas levando a sério, observando, lendo, né? O primeiro conto que publiquei no suplemento do Estado de S. Paulo foi o meu pai que encaminhou ao Décio de Almeida Prado. É um conto de juventude, enfim, isso permanece ainda hoje, aquela história do poema do João Cabral, aquela pessoa que ele imagina olhando seu texto por cima do seu ombro, não é sempre, mas muitas vezes é meu pai. Quando escrevi Fazenda modelo, meu pai ainda era vivo e eu mostrava para ele os primeiros capítulos, ele leu, até gostou. Enfim, eu gostaria, entre outros motivos, de ter o meu pai vivo, sinto falta dele. Quando termino um livro, seria a primeira pessoa a quem eu mostraria o original.
José Arbex Jr. - Quando você teve neto pela primeira vez, pensei o que seria ser filho do Chico Buarque e neto do Sérgio Buarque. É um peso, hem! O teu pai nunca foi um peso nesse sentido, uma coisa de competição?
Chico Buarque - Não, engraçado, só fui tomar conhecimento da importância intelectual do meu pai já homem feito. Quando eu era criança, não sabia exatamente o que meu pai tanto fazia naquele escritório, (risos) aquele cléc, cléc, cléc, o barulho da máquina. Eu não tinha muito essa idéia do meu pai, mesmo porque até professores raramente se referiam a ele como alguém importante. Muitas vezes, durante a minha infância toda, me perguntavam se eu era filho do Aurélio, e muitas vezes diziam: "Olha o sobrinho do Aurélio", (risos) e eu fiquei com uma certa aversão ao Aurélio Buarque de Holanda. Eu dizia: "Não sou filho, não sou sobrinho, ele é um primo muito distante do meu pai. (risos) Porque aquilo me chateava um pouco, não queria ser filho do Aurélio. Poucas vezes, um professor de história dizia: "Ah, filho do Sérgio Buarque de Hollanda. Mas não era uma referência forte como intelectual.
Plínio Marcos - E na bola, teu pai te influenciou?
Chico Buarque - Nada, meu pai não gostava de futebol, dizia que torcia pelo Bonsucesso. (risos)
Regina Echeverria - É verdade que você está mais ligado em literatura do que na música?
Chico Buarque - Não, acho que a entrevista se encaminhou um pouco para esse lado, não sei se estou mais interessado em literatura, tento alternar as duas coisas. No momento, não, acabei de gravar um disco!
José Arbex Jr. - Numa entrevista, você falou que não tinha mais vitalidade para fazer MPB, disse que pra fazer MPB tem de ser jovem.
Chico Buarque - Não, é porque isso aí tem sido muito cobrado, "tanto tempo entre um disco e outro, cinco anos" - tento dizer que não sou um caso isolado, e é até surpreendente que, aos 54 anos, esteja lançando um disco de música popular. Não é natural, natural num compositor de música popular é que ele vá produzindo cada vez menos. Você vai olhar em volta, no Brasil e fora do Brasil, o sujeito faz muita música aos vinte, trinta, quarenta anos. Uma interpretação minha é que isso tem a ver até com o público que consome música popular - não ouço mais música popular como ouvia quando tinha vinte anos, por exemplo. Não gosto mais tanto de música popular como gostava, então acho que é uma arte de juventude.
Plínio Marcos - Impressionante é aos 54 anos ele ser tarado por futebol. (risos)
Chico Buarque - Pois é.
Ana Miranda - Ser tarado, não, ser craque do futebol.
Chico Buarque - Mas, aos 54 anos, "você não corre mais como corria aos 20 anos"... (risos). Acho que correr o que corro já está de bom tamanho. (risos)
Ana Miranda - E você faz outras coisas, nesse intervalo de cinco anos tem um milhão de coisas, não é?
Chico Buarque - Pois é, mas como agora estou falando de música, lançando um disco, as pessoas que vão falar do disco ignoram absolutamente o resto, é como se não existisse, aí são dois departamentos estanques. Quando eu lançar meu próximo livro, as pessoas vão me perguntar: "Mas por que cinco anos entre esse romance e o anterior?" E vou ter de falar, quase que com vergonha: "Porque eu estava fazendo música, e depois de música eu fiz shows, (risos) e essas coisas ocupam muito tempo da gente." E não é esse cansaço que se atribui, porque gosto, como falei antes, meu grande prazer é estar trabalhando. Agora, o ritmo é outro. É normal que seja outro. É menos espontâneo do que era aos vinte anos. Você procura mais, burila mais.
José Arbex Jr. - E qual tua avaliação em relação ao que os jovens estão produzindo hoje de MPB?
Chico Buarque - Ouço muito menos do que ouvia antes.
José Arbex Jr. - Você ouve o que hoje?
Chico Buarque - Quase nada. (risos)
José Arbex Jr. - Por quê?
Chico Buarque- Porque durante meses, agora nos últimos três quatro meses, estive simplesmente dedicado a gravar meu disco. Quando estou compondo e gravando, não tenho espaço para ficar assimilando músicas alheias, a cabeça está toda voltada para a criação, e é assim também quando estou escrevendo um livro. Aí não leio outros livros, a não ser que esteja ligado àquilo que estou escrevendo, uma pesquisa ou coisa assim, mas não leio ficção quando estou escrevendo ficção.
Plínio Marcos - Fale pra mim, entre as tragédias da sua vida, o que você tem a dizer do Fluminense? (ri)
Chico Buarque - Não é tragédia nenhuma, Plínio, é igual à sua com o Jabaquara. (risos)
Plínio Marcos - Aliás, o Djalma, presidente, vai te mandar um emblema do Jabaquara. Provavelmente você será torcedor honorário do Jabaquara.
Sérgio de Souza - Por falar em futebol, o seu time de botão era o Politheama, era isso?
Chico Buarque- O meu time de botão era Politheama, não tenho mais.
Sérgio de Souza - Tinha até um hino, não é, quando você entrava em campo? Você lembra do hino?
Chico Buarque - Lembro.
Sérgio de Souza - Como era?
Chico Buarque - (cantarola) Politheama, Politheama, o povo clama por você/ Politheama, Politheama, cultiva a fama de não perder. (risos)
Plínio Marcos - E quem eram os seus adversários nisso aí?
Chico Buarque - Sabe que eu jogava muito sozinho, não é? (risos). Eu contra eu. (risos) Aí, no tempo do Jabaquara, eu fazia campeonatos. Campeonatos paulistas, campeonatos cariocas, juntava aqueles doze times, que eram doze na época aqui no Rio, e doze em São Paulo. Fazia o campeonato paulista, fazia o campeonato carioca e depois fazia o Rio/São Paulo. (risos)
Plínio Marcos - Sozinho?
Chico Buarque - Sozinho, eu contra eu mesmo, e roubava um pouquinho também.
Ana Miranda - Pra quem você roubava?
Chico Buarque - Pro Fluminense. (risos) Ele era sempre campeão.
Johnny - Você nunca teve um rival de botão?
Chico Buarque - Sim, todo mundo tinha time de botão, eu jogava com outras pessoas também. Mas fazia a seleção, e pra fazer a seleção tinha de fazer o campeonato interno, e esse aí eu ficava horas (risos), e era no chão de madeira, na casa dos meus pais, e pá, pá, pá, horas jogando botão.
Plínio Marcos - E implicava solidão esse jogar botão sozinho?
Chico Buarque - Claro, o que eu mais jogava era sozinho. E ficava narrando.
Plínio Marcos - Narrava o jogo?
Chico Buarque - Narrava, claro. (risos)
José Arbex Jr. - Você compõe, joga campeonatos, planeja cidades sozinho, você mergulha na tua solidão e daí surge um mundão de personagens, no caso, cidades, ruas, vias, e quase tudo?
Chico Buarque - Não, cidades tenho feito menos. Antigamente fazia cidades completas, tinha tudo ali, tinha linha de ônibus, os cinemas, com nome, tudo certo.
Carlos Tranjan - Você falou que preferia não ter composto sob aquela censura toda. Você acha que hoje a gente não está num período menos criativo de MPB, o que vende hoje é axé, pagode, não tem mais a dimensão que tinha naquela época. Você vê isso como uma coisa geral brasileira? Você acha que aquele seria um período tão criativo se não tivesse essa censura?
Chico Buarque - Esse período, o período mais fértil da música e o período que deu início a tudo o que a gente conhece hoje como moderno cinema brasileiro, como moderno teatro, isso antecede a censura. Há um equívoco muito grande. Falam em época dos festivais, mas foi a partir da bossa nova que se desencadeou isso tudo. Foram os finais dos anos 50, ali que a coisa explodiu. E, quando comecei a gravar, a segunda geração da bossa nova e tal foi nos anos 60, até meados dos anos 60 não havia censura. Volta e meia ouço falar: "Não, porque a censura não sei o que..." A censura só passou a existir institucionalizada a partir do AI-5, fim de 68. A partir de 69 é que existe censura. Tive nessa época, antes de 68, um problema com uma música, Tamandaré, que aí a Marinha implicou e proibiu. Mas a censura como censura não existia. Então, entre 64 e 68 - já tínhamos uma ditadura militar -, as artes praticamente não foram incomodadas. A chamada música de protesto, teatro de resistência, tudo floresceu entre 64 e 68. Então, esse período a que as pessoas se referem tanto, "ah, os festivais, hã, hã, hã" não, não havia censura.
Sérgio de Souza - Na própria imprensa, antes de 68, não havia.
Chico Buarque - Não havia. Leio, às vezes, barbaridades sobre isso. A censura começou a existir em 69, e foi abrandando em 75/76. O período Médici foi o de pior censura, e não ajudou em nada. Se você for olhar o que se produziu em música e em cinema, em teatro, vai haver um buraco. Isso são fatos. São fatos. Constatei isso com o meu trabalho, quando fui olhar o primeiro livro compilando as minhas músicas, edição dupla da Companhia das Letras. Você vai ver lá, 61/62 eu vinha produzindo em quantidade razoável, ali aquilo foi esvaziando, e em 75/76 começa a crescer de novo. E vai ver o que é que se produziu em cinema, tudo, nesse período. Não é verdade. Volta e meia surge esse argumento: "Não, porque a censura de certa forma estimulava" - não estimulava nada. Pelo contrário.
Regina Echeverria - É que isso ficou mesmo meio no ar.
Chico Buarque - Mas as pessoas misturam muito 64 com 68. O Plínio Marcos sabe disso. Quando veio aquela coisa, aí sim houve todo um movimento muito grande em torno do teatro e...
Plínio Marcos - Porque queríamos, se você me permite, combater com a nossa arte.
Chico Buarque - E combatíamos, por quê? E a arte tinha uma importância maior, por quê? Porque, a partir de 64, partidos políticos foram banidos, sindicatos, movimento estudantil, tudo isso foi muito afetado em 64. A arte, a cultura, não foi. Deixaram esse espaço livre. Diziam que Castelo Branco gostava muito de teatro. Havia um espaço para produzir. E esse espaço até ficou supervalorizado por causa disso. Pela carência de discussão política onde deveria acontecer, no Congresso, nas universidades, nos sindicatos.
José Arbex Jr. - Mas hoje em dia não está acontecendo uma coisa inversa? Qualquer atitude que um artista toma hoje em dia se torna um fato político, pelo poder da mídia. Porque justamente existe uma crise na ideologia, as pessoas não sabem em quem acreditar; existe uma crise do discurso, crise da narrativa de mundo, o socialismo desabou. Então, se um artista toma uma postura, se o Caetano fala que foi legal o Antônio Carlos Magalhães ter feito o Pelourinho porque restaurou o centro de Salvador, isso se transforma num fato político, querendo ou não. Que dizer, o gesto do artista, querendo ou não, se transforma num fato político, predominantemente por causa do poder da mídia e do mecanismo de identificação que existe entre a população e o artista. Você não acha isso?
Chico Buarque - Mas acho que isso é uma remanescência do papel político que o artista desempenhou no período de exceção.
José Arbex Jr. - Será? O John Lennon, por exemplo, não viveu período de exceção nenhum, mas o gesto dele era um gesto...
Chico Buarque - Estou falando do Brasil. Agora, se você quiser estender para o resto do mundo, vai ver que os artistas tiveram uma função também extraordinária nos Estados Unidos na mesma época e havia a Guerra do Vietnã. Então, a gente via a Jane Fonda, via a Joan Baez cantando, o Bob Dylan que tinha uma importância política, os Beatles estavam nesse negócio também. E havia também toda uma revolução comportamental na época, aí entra todo o movimento de contracultura, e o Paz e Amor, e está tudo ligado àquele momento. E a importância dos artistas daquela geração, você falou de Caetano, falou do John Lennon, mas, antes de tudo, a reação permaneceu porque aquele período foi um período de exceção. Hoje em dia, um artista que não tem esse passado, um artista que está surgindo agora, ele não tem essa expressão política, não se vai dar destaque maior a uma opinião política que ele venha a ter. E porque, outra coisa, hoje em dia, aqui no Brasil, voltando à vaca fria, o artista jovem já encara o período de eleição, por exemplo, como mais um fato do show business. É uma época em que ele vai fazer shows para candidatos, vai cantar nos chamados showmícios, porque é pago para isso. Faz parte da agenda comercial. O empresário deve agendar o artista, chega essa época, ali vamos ter eleição, então o preço do artista sobe.
Carlos Tranjan - E você acha que isso contribui de certa forma para piorar um pouco a música popular que se faz hoje?
Chico Buarque - Mas uma música marcadamente comercial sempre existiu, como existe hoje, e não estou aqui para julgar se tal música é boa ou não é boa, não é meu papel. Agora, sempre existiu uma música mais comercial do que a minha própria música, que é uma música que ganhou, com o tempo, um certo prestígio e destaque na mídia e tal, no seu tempo não foi tão comercial assim. Havia outras coisas que vendiam muito mais, que tocavam muito mais no rádio.
Plínio Marcos - Com a sua música ou com a sua literatura, você continua assustando os poderosos. Eles ficam arrepiados.
Chico Buarque - Bondade sua.
Plínio Marcos - Por que que veio esse Fernando Henrique falar? Porque você assusta ele.
Chico Buarque - Assustar eu não assusto, não, não, não...
Plínio Marcos - Aquele ali tem medo da sombra. (risos) E você é perigoso, por isso você foi subversivo. Foi, não, é.
Ana Miranda - Eu tenho observado uma coisa ainda, voltando à música. Outro dia entrei num restaurante muito elegante, estava tocando um bolerão daqueles que antigamente a gente ouvia em rodoviária.
Plínio Marcos - E na zona (risos)
Ana Miranda - E na zona. Na zona, nunca fui, mas enfim pode ser também. E, no Festival de Montreux, foi a Carla Perez representar a música brasileira, está acontecendo um fenômeno que algumas pessoas chamam de mediocrização da cultura, quer dizer, como é uma cultura de massa, então sempre o nível é muito por baixo. Mas existe uma outra interpretação, que talvez seja apenas minha, não sei se alguém concorda: é que talvez isso seja, efêmera ou não, uma vitória da cultura popular sobre a cultura erudita. Você veria dessa maneira também?
Chico Buarque - Mas você está me colocando onde, na cultura popular ou na erudita?
Ana Miranda - Nas duas, você é completo. Mas você é uma coisa mais elevada, só que...
Regina Echeverria - Faz música popular...
Chico Buarque - Faço música popular.
Sérgio de Souza - Mas não tão popular assim.
Chico Buarque - Isso que eu tô falando, porque há uma tendência de imaginar que nos anos 60 a música era mais popular do que na verdade era. A bossa nova não era popular. Ela tinha um trânsito, assim, no meio universitário, e tal.
Plínio Marcos - Mas você era um curtidor das músicas do Noel. Se bem me lembro...
Chico Buarque - Era e sou.
Plínio Marcos - ...uma vez vi você disputando, nem me lembro quem era a outra figura, quem sabia mais músicas do Noel. Permanece esse gosto?
Chico Buarque - Permanece, mas tudo foi filtrado pela bossa nova. Comecei a fazer música a partir da bossa nova, tocava violão a partir da bossa nova. Depois de um certo tempo, não só eu como muitos bossa-novistas começamos a procurar na música dos anos 30, dos anos 40, um alimento novo para a bossa nova. Quer dizer, a bossa nova de meados dos anos 60 não se parece mais com a bossa nova inaugural. Agora, aqueles elementos harmônicos, tudo o que o Tom Jobim e o João Gilberto trouxeram para a música, eles continuaram valendo. Quer dizer, a minha leitura de Noel Rosa, hoje, passa pela bossa nova. Mas eu insisto, ela não era uma música popular. No tempo em que eu fazia sucesso na televisão, na TV Record e outras, quem fazia sucesso mesmo era Roberto Carlos, era Wanderléia, era Jerry Adriani, eu estava no segundo time, eles vendiam muito mais, tocavam muito mais, levantavam auditório. Não muda muito.
Sérgio de Souza - Em termos mais amplos, de imprensa mesmo, de arte em geral, você acha que hoje a tendência é de decadência ou marasmo e não de ascendência, como teria sido na sua época?
Chico Buarque - O que acho talvez mais significativo tem a ver com o que a Ana Miranda falou, de ela ter entrado num restaurante e ter ouvido uma música que alguns anos atrás ela ouviria numa rodoviária. O que acho é que as pessoas que têm dinheiro hoje são culturalmente muito mais desinteressadas do que trinta anos atrás. Quer dizer, de certa forma, nos anos 60, os ricos se interessavam por cultura muito mais do que hoje. A classe dominante economicamente tinha uma preocupação cultural que hoje a classe dominante, ou emergente, não tem. Muitas vezes também entro num restaurante desses, sento, estou escrevendo um livro, olho em volta e pergunto: "Quem é que vai se interessar por este livro?" Olho em volta e penso: "Ninguém que esteja sentado neste restaurante." (risos) E você se lembra de que nos anos 60 era chique estar bem informado, e assistir a uma peça de Plínio Marcos - desculpe, em nome da verdade -, e ouvir jazz, e colecionar obras de arte, e se interessar, não em comprar, não pelo comércio de obras de arte, mas você se interessar por obras de arte.
Carlos Tranjan - Você liga a TV e não tem mais festivais, tudo bem, mas não tem MPB. Tem o axé, tem o pagode, tem o sertanejo. Então, aconteceu alguma coisa.
Chico Buarque - O que muda muito com relação aos anos dos festivais é que o que se valoriza hoje é a imagem sobre o som. Quer dizer, temos a televisão o tempo todo. Por que não tem MPB? Por que o sujeito sentado no banquinho tocando violão, como era nos anos 60, não só o João Gilberto como nós todos quando começamos, está mostrando uma musica que não tem interesse mais nenhum a para a televisão. Você tem de mostrar alguma coisa, você tem de dançar, você tem de... Já participei de shows e não só no Brasil, na Itália, por exemplo, um show que fiz na televisão lá, o que você está cantando não tem importância nenhuma. O som que você está ouvindo naquele palco não tem importância nenhuma, você não tem ali retorno, não tem nada. Agora, tem uma grua que vai mostrar a imagem daquele estádio lotado, porque o público também faz parte da mise-en-scène toda, do impacto visual, aquilo tudo é mais importante do que a música em si. Então, a televisão não tem interesse porque provavelmente o público que está sentado em casa não tem interesse em ficar vendo o sujeito cantando. Para isso tem o disco, então o sujeito ouve o disco. Não tenho a menor pretensão de fazer sucesso na televisão. A gente grava o clipe porque tem de gravar, enfim, você vê que aquilo, de uma forma ou de outra vai chamar a atenção para o disco. Então estou dando entrevista, batalhando, para chamar a atenção para um disco. Esse disco vai ser ouvido, espero, o sujeito ouve no carro, no meio do trânsito, ouve em casa, agora, não tenho a menor ilusão de fazer sucesso na televisão.
Plínio Marcos - Mas, você que é um dos mais brilhantes letristas da música brasileira, não acha que a tua letra é importante, que os caras vão ouvir e vão curtir? Aquelas tuas letras maravilhosas a juventude curtia, você acha que não há mais possibilidade de eles curtirem?
Chico Buarque - Ah, mas há. Não estou me queixando. Não sei quem compra o disco, mas, de certa forma, o grande comprador de disco é jovem. Claro que carrego uma geração, imagino a minha geração, que parcialmente é responsável por parte da vendagem. Agora, se eu for contar só com o público cinqüentão, a gravadora vai ficar decepcionada. Os shows que dei, a última temporada que fiz também davam uma idéia disso, porque havia o público que é mais cinqüentão sentado nas mesas e havia uma quantidade, acho que até maior, de filhos, e netos talvez, cantando juntos canções de trinta anos atrás.
Regina Echeverria - Você não gosta mesmo de fazer shows ou isso é uma lenda?
Chico Buarque - Não gosto especialmente de fazer show. Entendeu, não gosto muito da idéia de, se tiver de fazer show significa alguns meses do ano já comprometidos. Vou ter que ensaiar muito, porque a cada vez que paro são anos de falta de prática, então vou ter de ensaiar muito para ficar seguro. Tenho de tomar coragem para começar. Depois que começa, vai mais ou menos sem maiores sofrimentos.
Johnny - Quando pego um CD como o teu, fico ouvindo duas, três, quatro, cinco vezes até a compreensão da totalidade de uma letra. Daí dou uma releitura daquilo, e é um tesão. Você tem consciência desse processo, do quanto incomoda a elaboração até pegar na totalidade da gente toda a sua mensagem?
Chico Buarque - Gosto que seja assim. Se eu pudesse acreditar que o disco não vai ser ouvido uma vez, mas diversas vezes por cada um, aí a música vai ter cumprido o seu papel. Tenho absoluta certeza de que uma primeira audição não vai dar a idéia toda. Porque corresponde à criação, a criação também demandou um tempo largo. Há detalhes que são resultado de um grande trabalho, aí parece até com a reescritura dos textos literários.
José Arbex Jr. - Desde que me conheco por gente ouço você, que me provoca uma raiva, às vezes, muito grande...
Sérgio de Souza - InVeja.
José Arbex Jr. - InVeja. Primeiro é o plano dos achados lingüísticos. Onde você achou "gelosia" pra botar no meio da letra, como você foi caçar essa palavra? Isso, uma vertente, a dos achados lingüísticos. A outra vertente é a que o Plínio já abordou e a Ana Miranda também. Você incorpora um personagem feminino, dá vida para aquele personagem que é de uma densidade absurda. Não tem nenhum artificialismo, Ana de Amsterdã, a Geny. Eu queria saber um pouco como ocorrem essas coisas com você? Você se fecha num quarto e começa a pensar e aí desce o Espírito Santo?
Regina Echeverria - Você quer também perguntar se ele usa o Aurélio?
José Arbex Jr. - Você usa o Aurélio?
Chico Buarque - O Aurélio eu não uso. (risos) O meu dicionário é o Caldas Aulete, cinco volumes. (risos) E tem um outro dicionário, aliás, por falar nisso, que é herança do meu pai. Meu pai me deu, e disse: "Isso vai te ser útil." E é tão útil que já comprei três em sebo, porque ele vai se desmilingüindo todo, que manuseio muito, é um dicionário analógico, aquilo é fundamental. Outro dia, li uma entrevista do João Ubaldo, perguntaram qual era o livro de cabeceira dele, ele disse que é esse. (risos) Que é uma leitura maravilhosa. Não lembro de gelosia, por exemplo, pode ser que tenha chegado através disso, quero botar janela mas não quero botar janela aí vai lá janela, persiana, brararanranran gelosia!, é maravilhoso, gelosia, porque a gente sabe que é fácil imaginar outro significado...
Ana Miranda - O significado também do ciúme, né?
José Arbex Jr. - E os pássaros da música Os homens vão chegar, você vai falando um monte de pássaros um atrás do outro, aqueles nomes todos. Aí você foi pesquisar no dicionário nomes de pássaros todos?
Chico Buarque - Ali fui, claro, na velha e boa enciclopédia.
José Arbex Jr. - E as mulheres, como desce o espírito das mulheres?
Chico Buarque - Mas foi o que falei pro Plínio, muitas dessas mulheres são personagens de teatro. Agora mesmo, nesse disco, tem uma canção no feminino, porque é uma personagem de um filme, e me foi encomendada uma música.
José Arbex Jr. - Mas, se alguém me encomendar "faça um personagem x, y, z" vou ficar olhando para a cara do sujeito e dizer. "Tá bom, me procura daqui a um ano".
Chico Buarque - Sou compositor, é a minha profissão, não é?
Plínio Marcos - Você, que é um bom contador de história, qual foi o mais ridículo censor que você encontrou na sua carreira de censurado, perseguido? Tem histórias?
Chico Buarque - Na verdade, não tinha muito contato com o censor. Os poucos contatos que tive com censor foram durante temporadas de shows, aí o censor aparecia, e às vezes se apresentava, ia lá atrás. Nunca tive contato com censor de texto, de música. No caso das músicas, quando iam pra Brasília, tinha um advogado da gravadora que ia tratar disso. Às vezes, por exemplo, havia proibições parciais: "Tal letra só passa se você mudar esse verso." Ele ligava de Brasília, aí eu: "Me liga daqui a dez minutos." Não pode "nasci brasileiro", aí daqui a dez minutos - essa deve ter sido dois minutos, porque eu podia ter pensado um pouquinho mais: "Põe batuqueiro." (risos). Eu estava com pressa, porque podia ter pensado uma coisa melhor. (risos) Mas havia essa pressa, o cara tinha de voltar naquele mesmo dia, a música seria liberada para ser gravada no dia seguinte. Havia toda uma pressa industrial em gravar o disco, e aquilo atrapalhava a mim, sim, mas atrapalhava a indústria do disco também, era uma complicação danada.
Carlos Tranjan - Eles faziam sugestões?
Chico Buarque - Sugestões como "põe essa palavra no lugar de outra" não, não chegaram a esse ponto. Mas era assim: "Muda tal palavra." Aí você mudava, para dar o prazer, eles queriam sentir a satisfação de ser acatados enquanto autoridade. Havia uma exercício de poder. Muitas vezes alterei, aí tive mais de dez minutos, com versos melhores. Mas estava alterado, eles ficavam satisfeitos: "Bom, o sujeito obedeceu." Aconteceu várias vezes, em muitas músicas. Outras, não: proíbem "Teus pêlos atrás da porta", bota o "teu peito", empobrece. Mas aquela outra, até era do Vinícius, eu gostei da minha solução: "Pede perdão pela omissão um tanto forçada", aí eu pus "pela duração dessa temporada", achei que ficou melhor. (risos) A outra, O meu amor, tinha uma coisa assim também (cantarola): "Me deixar em brasa...", não lembro o que era, também foi proibida, aí botei (cantarola): "Desfruta do meu corpo, como se o meu corpo fosse a sua casa" - vem cá, ficou melhor. (risos)
Jhonny - Quando você consegue atingir o feminino com essa propriedade toda, é um estado de paixão, você está vivendo uma paixão, é você viver nesse estado constantemente?
Chico Buarque - Não, a paixão você inventa.
Jhonny - Mas é a paixão pelo feminino, por uma mulher, você está apaixonado por essa mulher. É essa paixão assim ou não é?
Chico Buarque - Não necessariamente. Há uma coisa parecida com isso, mas não precisa ser real. São paixões que você inventa também. Você entra em um estado de paixão, como você falou, essa paixão não precisa estar aí.
José Arbex Jr. - Mas você decide, "vou inventar uma paixão"?
Chico Buarque - É, faço certo esforço... (risos)
José Arbex Jr. - Como você inventa uma paixão?
Chico Buarque - Mas inventa, ué. Se você falar a prática, você não fala nada.
Plínio Marcos - Entre um jogo de botão e outro, você batia uma punhetinha. Porque aí entrou essa riqueza.
Chico Buarque - É possível, sabia que tem um certo tesão em jogar botão sozinho? (risos) Um certo vício solitário, aos catorze anos, acho que no intervalo...
José Arbex Jr. - Esse negócio de inventar paixão é meio contraditório, porque a paixão, por definição, é um sentimento que te assalta, te possui. Ela te joga para determinadas atitudes extremadas, eventualmente. Quando você diz "eu invento a paixão", numa certa forma você está dizendo "eu controlo o meu estado apaixonado". Mas a paixão é a antítese do controle. Como você pode exercer esse controle sobre estar apaixonado?
Chico Buarque - Mas eu não disse que controlo essa paixão. Disse que invento uma paixão e me envolvo, fico apaixonado.
José Arbex Jr. - Então você controla...
Chico Buarque - Não, não, não. Puxo por ela, é diferente. E ela às vezes vem, às vezes não vem. Não preciso estar voltado para uma pessoa, é isso. A paixão começa a existir dentro da tua imaginação. Às vezes é a paixão pela coisa que você está fazendo.
José Arbex Jr. - Quando você compõe Ana de Amsterdã, ou Bárbara, te vem uma figura concreta de personagem feminina, ou é uma coisa abstrata?
Chico Buarque - Aí vinha porque eram personagens de uma peça de teatro. Ana de Amsterdã e Bárbara existiam enquanto personagens na dramaturgia. As músicas surgiram depois.
Sérgio de Souza - Você tem agora a Cecília. Também é fruto da imaginação?
Chico Buarque - Cecília é mais simples ainda. Cecília é simplesmente o nome que corresponde ao que ele está falando. É um nome que não se diz, é um nome que se sussurra, é um nome que se cicia. Cecília é isso. Então ele está falando de uma paixão de um nome que não pode ser pronunciado ou que não deve ser pronunciado, um nome que é soprado, que é sussurrado. A música já estava quase toda pronta e não tinha esse nome. Eu queria um nome para essa canção. A música é feita de parceria com o Luís Cláudio Ramos. Aí eu perguntei para o Luís Cláudio: "Qual é o nome da tua namorada?" - para ver se cabia, mas não cabia na coisa. Aí falei, não, tem de ser um nome assim, só isso. Simplesmente.
Plínio Marcos - É um truque.
Chico Buarque - É, às vezes é um truque.
Ana Miranda -Tem aquela também da mulher que é abandonada pelo cara e, de repente, fica felicíssima. Isso, para as mulheres, é a coisa mais maravilhosa que tem.
José Arbex Jr. - Olhos nos olhos.
Ana Miranda - É. (cantarola) "E sentir que sem você eu passo bem demais." Acho que aí você conquistou uns oito milhões de mulheres.
Chico Buarque - Eu me apunhalando em praça pública. (risos)
Ana Miranda- Exatamente.
Chico Buarque - Quando fiz aquilo, tudo bem, mas quando ouvi... aí me assustei. (risos)
José Arbex Jr. - Quando você compunha com o Tom, vocês discutiam sobre a letra da música? Você lia, ele propunha alterações?
Chico Buarque - É, porque o Tom tinha muito isso de ficar cantando, e ficava mudando a letra depois de pronta. E eu tinha de ficar brigando com ele: "Não, é assim." "E se fosse assim e tal..." Havia umas briguinhas ótimas com o Tom. Mas, quando chegava a letra pronta, já estava pronta para mim, porque eu não fazia ali no calor da hora. Ele me dava a música... e assim é com todos os parceiros. Levo aquela música pra casa, burilo, burilo, quando entrego, não entrego rascunho. Tenho horror de mostrar rascunho. Então, quando tá pronto, estou convencido de que vai ser aquilo. Vai ser difícil o sujeito mudar. Se tiver alguma coisinha, até aceito, mas com o Tom consegui segurar direitinho. Às vezes acontecia isso, depois de pronta a letra, aí ele mudava a música. Eu dizia: "Mas, ô Tom, eu fiz a letra para aquela música." (risos) Mas aí eu não podia fincar pé, porque a música era dele.
Plínio Marcos - Vem cá, você se ligou tanto em Noel Rosa, não se ligou em Wilson Batista?
Chico Buarque - Também. Noel, Wilson Batista, Geraldo Pereira. Naquela época, antes da bossa nova, eu ouvia isso tudo. Ouvia muito Ataulfo Alves, eu reconheço alguma coisa desses autores todos nas minhas músicas.
Regina Echeverria - O que você achou de a Veja ter pedido para você pendurar a chuteira?
Chico Buarque - A Veja pediu para eu pendurar a chuteira?
Regina Echeverria - Você não leu a crítica da Veja?
Chico Buarque - Eu li.
Regina Echeverria - Que está na hora de pendurar a chuteira. Você não viu isso?
Chico Buarque - Não lembro exatamente disso, mas é simpático. (risos) Li a entrevista uma vez só, não entrevista, era uma matéria. Li as matérias todas, então posso estar misturando uma coisa com outra. A da Veja era um pouquinho precipitada. (risos).
Regina Echeverria - Eles foram para o lado pessoal.
Chico Buarque - É, e o trabalho de pesquisa não foi muito feliz, eu soube que eles estavam procurando muita gente. Mas as pessoas acho que têm dificuldade de falar com a Veja. Muita gente me falou: "Ah, não, me procuraram pela Veja, mas preferi não falar." Por algum motivo não quiseram falar com a Veja, então aí o trabalho de pesquisa deles ficou meio prejudicado, porque li que falava do maitre de um restaurante que dizia que eu tomava isso, que tomava aquilo, se preocuparam muito que eu beba ou não beba nessa matéria. E o maitre falava isso... Só que é o maitre de um restaurante que não freqüento, um tal de Dom Camilo, lá em Copacabana. Fui uma vez porque era perto da casa da minha mãe, há muito tempo. Aí ele falou que fiz seis anos de análise para largar a bebida. Nunca fiz seis anos de análise, (ri) e não larguei a bebida. (risos)
Jhonny - Mudando de pato pra ganso: como é a sua ligação com Deus, com Cristo? Porque, de repente, em algumas músicas vejo uma oração, uma coisa assim contemplando a vida...
Chico Buarque - Não, não tenho preocupação religiosa maior. Não vejo isso... Talvez haja algum lado de contemplação. Músicas que falam mais diretamente da natureza, há alguma coisa contemplativa aí. Mas Cristo, não sei.
Ana Miranda - Frei Betto faz a intermediação. (risos)
Chico Buarque - Frei Betto cuida desse pedaço.
Sérgio de Souza - Voltando a essa coisa de imprensa, deve ter havido um estremecimento, que você ficou desagradado, parece, por matérias que publicaram há anos, e ficou meio na defensiva, evitando a imprensa?
Chico Buarque - Já me aborreci bastante com imprensa, mas o que me levou a ficar afastado ultimamente não era isso, era porque eu estava gravando, não tinha nada pra falar. Estou no meio de um disco, no meio de um livro, não tenho o que dizer. É a mesma coisa que mostrar um rascunho, não mostro rascunho nem para os meus parceiros. Então estou numa fase de rascunho, a minha vida é um rascunho. Falar o quê? Dar uma entrevista para a imprensa falando o quê? Aqui estamos conversando sobre diversos assuntos, mas o que está na ordem do dia é o disco que acabei de gravar, então tenho do que falar, principalmente se me perguntarem do meu último disco, que é o que está mais vivo aqui na minha cabeça, que talvez possa interessar ao leitor, de resto...
Plínio Marcos - Você atingiu um nível que tudo que você fala interessa. Eu, por exemplo, fiquei muito interessado quando na França, no meio de uma solenidade, te vejo com uma chuteirinha embrulhada na mão. Isso eu contei e as pessoas: "A chuteira! Numa solenidade." Eles ficam abismados, isso interessa. E isso se tem de descobrir perguntando ou vendo. Acho que tem de ter um jeito de falar quando se está escrevendo.
Regina Echeverria - Você dava muito mais entrevistas, não dava? Uma época você parou de dar, não é isso?
Chico Buarque - Pode ser.
Regina Echeverria - Numa outra época, você se prestava a falar, dar opiniões sobre outras coisas fora a música ou os livros que você estivesse fazendo, não é? As pessoas se acostumaram a ler, a ver, a ouvir as suas opiniões, extra o seu trabalho. Você se pronunciava mais. Era um tempo que exigia isso?
Chico Buarque - Talvez você se refira à época da censura, imagino que seja isso, anos 70. De fato, nessa época eu falava mais freqüentemente com a imprensa do que hoje. Havia assuntos pontuais aos quais eu era chamado a me manifestar, e eu respondia. Havia, talvez, na época, interesse comum, porque de certa forma eu representava alguma coisa contra a censura, e a imprensa era vítima da censura também. Tínhamos um adversário comum, então, de certa forma poderia haver um interesse da imprensa em me procurar. Depois disso, assim como pode haver uma simpatia por parte de jornalistas, ou órgãos de imprensa, há também uma antipatia muito grande. É uma balança, natural que exista. E comecei a ficar um pouco mais precavido em relação à imprensa. Um pouco mais cuidadoso, um pouco mais reservado. Muita coisa foi publicada desde então, era um pouco como essa matéria que a gente estava falando agora da Veja, né? Muitas notícias improcedentes, muitas matérias que me desagradaram.
José Arbex Jr. - Vamos pegar o teu último disco, então. Você retoma o tema cidades, e disse que foi por acaso que surgiu o título. Um nome não surge por acaso. Você estava inventando esse tipo de fruição, quer dizer, o poeta fruindo a cidade, onde ele vai encontrar mitologias, histórias de amor, segredos, é essa a tua relação com a cidade hoje?
Chico Buarque - A presença do Rio é notável no disco. Ele abre com uma canção que se chama Carioca, e fecha com uma canção que fala da Mangueira. Quer dizer, tenho a impressão de que a minha relação com o Rio...
José Arbex Jr. - Mas com qual Rio? Você já disse que o Rio de que fala tua canção não existe.
Chico Buarque - É o Rio visto por um sonhador, é um pouco o Rio que é a geografia do Benjamim ou mesmo do Estorvo. Que são cidades de sonho essas do meu disco, cidades que aparecem, cidades sonhadas, e o Rio não deixa de ser. Agora, é a cidade onde vivo. Durante muito tempo resisti à idéia de ser carioca, morei muito tempo em São Paulo. Agora parece que estou me estabelecendo no Rio, depois de muito tempo. Tenho, sim, claramente, mais tempo de Rio do que de qualquer outra cidade. Me chamavam de "Carioca" quando eu morava em São Paulo.
Sérgio de Souza - Na FAU?
Chico Buarque - Antes da FAU, na rua era Carioca, mais até no colégio, lá no Santa Cruz. Eu era o Carioca quando comecei a tocar violão, o Carioca que dava showzinho, o meu nome artístico era Carioca.
Plínio Marcos - E Paris? Você tem campo lá, joga bola lá, tem time lá, está ficando parisiense?
Chico Buarque - Mas nem um pouco. Gosto muito de viajar porque dá vontade de voltar. (risos) Mas, quando estou escrevendo, por exemplo, estar fora do Rio é um bom negócio. Então, muitas vezes vou para Petrópolis, e, parece esnobe, mas ir para Paris não é muito diferente do que ir para Petrópolis quando estou trabalhando. Porque fico num lugar tranqüilo, o telefone toca pouco, os jornais não chegam, e ando na rua naturalmente. E ando muito, quando estou trabalhando ando, caminho muito. A revista Veja diz que ando para vencer a depressão. (risos) Nunca pensei que andar acaba com a depressão. Não sou dado a depressão, mas, quando estou um pouquinho caidaço, não dá vontade de sair da cama, não dá vontade de sair do quarto, não dá para andar na rua. Não imagino um sujeito deprimido andando. Pelo contrário, quando estou muito bem me dá mais vontade de andar, ando até debaixo de chuva. Faz parte do meu processo criativo poder andar. Não é exagero, quando quebrei a perna, fiquei três meses de cama, não conseguia escrever nada. Falei: "Bom, agora vou aproveitar, vou fazer músicas, agora que vou ficar deitado." Não conseguia! E só sonhava que andava. Isso faz falta.
Marco Frenette - Por falar em processo criativo, acontece de você começar uma composição com música sua e achar que aquilo serve mais numa frase do seu livro? Existe esse intercâmbio, de começar pensando em alguma coisa para o disco e virar um parágrafo de um livro, ou você divide isso perfeitamente?
Chico Buarque - Preciso de estar inteiramente dividido. Quando estou escrevendo, estou escrevendo...
Marco Frenette - Uma frase que você achou interessante, ficar anotada e depois fica para a música ....
Chico Buarque - Não, porque, se estou voltado para a música e me aparecer uma frase que parece apropriada para a literatura, vou transformá-la em música. Vou desliteraturizar, porque não gosto de fazer literatura em música. Às vezes pode até acontecer isso, surgir uma idéia que daria um bom tema, não lembro, mas pode acontecer, daria um bom começo de romance, mas na hora estou querendo fazer música, destruo aquilo, desconstruo de certa forma, e aproveito a idéia pra música. Não guardo num escaninho para aproveitar mais tarde. Não há tempo, há uma certa urgência quando você está querendo fazer música, todas as idéias você vai canalizar para aquilo.
José Arbex Jr. - Quando escreve, você imagina um leitor, dialoga com um leitor imaginário?
Chico Buarque - Não. O que tem é aquilo que falei no começo um pouco, o meu pai, outras pessoas que às vezes eu digo: "Isso tem a ver com fulano." De certa forma, alguma coisa que escrevo estabelece uma ponte com algum autor que eu gostaria de ter ao lado naquele momento. Não dialogar, como quem diz "fulano gostaria disso, meu pai gostaria disso", nunca no sentido de eu achar que estou fazendo uma coisa parecida com esse autor, isso não acontece comigo em literatura, é engraçado. Por mais que eu admire quinhentos autores, se disserem "esse trecho parece com Shakespeare", não vou ficar contente. É evidente que não me acho superior a nenhum desses autores, mas um elogio desses não me satisfaz. É engraçado isso, porque com música, se você disser "essa coisa lembra Debussy, isso lembra Tom Jobim, isso lembra Vila Lobos", fico altamente lisonjeado. Com literatura, isso não acontece. Parece que me sinto mais dono do que escrevo em literatura do que no caso da música.
José Arbex Jr.- Você se considera um perfeccionista?
Chico Buarque - Sim.
José Arbex Jr. - Isso não briga com o prazer de escrever?
Chico Buarque - Não, por que você acha que a busca da perfeição exclui o prazer? Pelo contrário, o prazer está exatamente nisso, nessa procura. Não estou entendendo qual é o conflito.
José Arbex Jr. - A hipótese de um conflito reside no fato de que, se você faz uma imagem de perfeição e vai depois medir aquilo que escreveu, de acordo com os parâmetros dessa imagem de perfeição pode ser uma experiência frustrante, não?
Chico Buarque - Bom, aí, sim, você, quando termina um livro, naquele momento acha que não há nada mais a ser mexido. Você já mexeu ou acrescentou a última vírgula e tal... Você tem consciência do teu limite! Você sabe que dentro da tua capacidade naquele momento não há nada melhor a ser feito. A minha perfeição, quer dizer, a perfeição é uma meta. Defendida pelo goleiro...
Regina Echeverria - ...da selecão.
Chico Buarque - Da seleção. (risos) Naquele momento eu não posso melhorar mais. Mas esse sentimento é altamente favorável a você mesmo. Você acha que está pertíssimo da perfeição. (risos) Agora, se você colocar na gaveta e daqui a dois anos for mexer naquilo, evidentemente você vai mudar mas, se for assim, você não termina nada. Não termina nem uma música, nada. Terminei o disco há nem um mês e já tem coisas ali que, agora, olhando "pô, gostaria de ter feito diferente". E coisas que mexi que não deveria ter mexido, antes estava melhor. Acontece isso.
Plínio Marcos - Já que estamos falando em imaginação, você, quando está sozinho, lembra os gols que fez?
Chico Buarque - Mas sem parar. (risos) Na hora de dormir passam esses videoteipes todos.
Plínio Marcos - E no meio aparecem umas mentiras, né? (rindo)
Chico Buarque - Mas muitas, porque às vezes tem teipe mesmo. Outro dia, lá no estúdio mostraram o teipe de uma pelada que a gente fez, os músicos contra os técnicos do estúdio. Eu falei "Mas está em camara lenta? Porque eu não jogo assim!" (risos) Nos meus "videoteipes" particulares, a coisa é mais rápida. (risos)
Marco Frenette - Que destino foi dado à biblioteca do seu pai? Continua com a família?
Chico Buarque - Não, está na Unicamp. Ficou até muito bom. Eles reconstituíram o escritório do meu pai, esse ao qual eu não tinha acesso, (risos) com a poltrona, a máquina de escrever, os livros. Nesse posso entrar sem bater na porta... (risos)
Carlos Tranjan - Até uma certa idade você não pôde entrar na biblioteca. Quando foi que conseguiu entrar mesmo?
Chico Buarque - Eu entrava e saía de fininho. Entregava coisas para ele ler, ia pro quarto, ficava lá, paralisado, duro, e depois voltava. E aí meu pai dizia: "Tem de trabalhar mais, tem de ler mais, lê isso, lê aquilo e tal."
José Arbex Jr. - Por isso, um texto teu não pode parecer com o de mais ninguém, e a música pode. Fazendo uma interpretação psicanalítica no "caso Chico Buarque de Holanda" - já virou um caso clínico - (risos), é mais ou menos como se um texto teu fosse um passaporte para a tua relação com o teu pai. Não pode se confundir com o texto de mais ninguém, nem de Shakespeare.
Chico Buarque- Gostei disso. (risos)
Marco Frenette - Li uma história que um dia você pegou um livro raro da biblioteca do seu pai e ficou andando com ele pelos corredores da faculdade...
Chico Buarque -Tomei um esporro do Flávio Motta (professor de História da Arte na FAU, e pintor), porque era o Macunaíma, autografado pelo Mário de Andrade para o meu pai, primeira edição. Eu estava lendo e, aquela coisa, vida de faculdade, você ia para o grêmio, bebia e tal. E o Flávio Motta: "O que você está fazendo com esse livro, rapaz?" E esses livros alguns não estão na Unicamp, ficaram com a família. Tenho O grande sertão, primeira edição autografada, dedicada ao meu pai, tenho Vidas secas, História da música brasileira, do Mário de Andrade, tenho Oswald de Andrade, algumas primeiras edições com autógrafo para o meu pai. Tenho O estrangeiro, do Camus, dedicado à minha mãe, quando ele esteve no Brasil. Esse eu roubei da minha irmã. (risos)
Carlos Tranjan - Quais são suas paixões literárias brasileiras, são muitas? Machado, Guimarães Rosa?
Chico Buarque - Se for enumerar agora o que li, o que gostei, o que me marcou, vai ser um catálogo sem fim. O que acontece é que, periodicamente, ou episodicamente, retomo alguma leitura dessas. A última que retomei, não faço sempre, mas foi porque estava procurando alguma coisa para a canção dos sem-terra, foi o Guimarães Rosa, que não lia havia muito tempo. E aí comecei a ler como se não tivesse lido, porque eu não lembrava. Lembro de coisas assim vagas, soltas, uma aqui, outra ali, uma imagem, uma coisa assim. Mas é um horror isso, porque tem tanta coisa para ler, principalmente o que você já leu, não tem fim. Então, não sei, Machado de Assis não leio há muito tempo. De repente, amanhã posso entrar nessa viagem, começar a reler tudo. Vou reler como se estivesse virgem de Machado de Assis.
José Arbex Jr. - Você tem saudade da FAU? Qual é a tua relação com São Paulo hoje? O que você sente por São Paulo?
Chico Buarque - Já não sei mais andar muito em São Paulo. A São Paulo que conheci era pequena. Na verdade, a minha geografia de São Paulo se restringia a Pacaembu, Higienópolis e Rua Haddock Lobo, onde passei minha infância, os Jardins. Era muito andar, e o que eu andava aquilo a pé, antes de ser um homem deprimido (risos), andava muito ali do Pacaembu, onde eu morava, pra qualquer canto desses. Tinha uma namorada que morava lá perto de onde hoje é o MASP, não existia o MASP...
Plínio Marcos - Você pegou o bonde ainda?
Chico Buarque - Peguei. Do Santa Cruz (colégio), no Alto de Pinheiros, ia de bicicleta e subia a Rebouças "chocando caminhão", como se diz. Subia a Rebouças agarrado num caminhão. Muita bicicleta. Eu me lembro de ter ido ao Morumbi, que estava em obras, conhecer o Morumbi, que ainda não estava pronto, de bicicleta. E o pneu estourou naquela ladeira que desce pro Morumbi e voltei a pé carregando aquela bicicleta. (risos) Quilômetros e quilômetros. Hoje, quando vou a São Paulo, já fico em hotel, já sou visita, não é?
José Arbex Jr. - Você nunca mais voltou para a USP, a FAU, visitar, não te dá saudade?
Chico Buarque - Olha, não sou muito de curtir passado, não. Isso me dá até uma certa aflição. A FAU minha era a da Rua Maranhão, a da Cidade Universitária não conheci. Mas, dizer que gostaria de ir lá hoje, não tenho a menor vontade de ver como está aquilo.
Regina Echeverria - A tua casa continua à venda. Passo todo dia e vejo a placa. Alguém devia comprar aquela casa, montar alguma coisa ali. Mas não é mais de vocês, não é?
Chico Buarque - Ainda é da família, sim. Tinha uma idéia do Fernando Morais, que era secretário da Cultura, de fazer uma casa que servisse como local de pesquisa para historiadores. Instalar lá alguma coisa assim. Mas depois não deu em nada.
Sérgio de Souza - Você não gosta de voltar ao passado, mas o passado não tem escapatória. Você falou de uma namorada, você teve quantas paixões, se posso perguntar isso, dessas arrasadoras?
Chico Buarque - Não sei... (risos)
José Arbex Jr. - Não inventadas, bem entendido, inventada não vale.
Chico Buarque - De repente você não sabe o que é inventado e o que não é, né?
Ana Miranda - Tenho conversado muito com a garotada e eles reclamam muito que são "os herdeiros do vazio". Quer dizer, na nossa geração a gente teve a luta política, até citam você: "Vocês tiveram Chico Buarque, tiveram a luta política, tiveram Che Guevara, tiveram um Darcy Ribeiro." E realmente foi uma época fabulosa em termos de produtividade, criatividade, revolução no mundo ocidental inteiro, e o oriental um pouco também. Mas agora parece que está muito fechado para os jovens. Você tem essa sensação também quando conversa com o jovem?
Chico Buarque - Muito. E esse tipo de emigrante vejo muito por lá, em congressos, por exemplo, garotos brasileiros de Minas Gerais, em Paris, fazendo serviço de pedreiro. De repente, o cara é brasileiro, começo a conversar: "O que você está fazendo aqui, e tal." E é um emigrante sui generis o brasileiro, é classe média. Esses eram de uma família de comerciantes bem instalada no interior de Minas, e de repente não têm nenhuma perspectiva profissional ou pessoal. De repente, aquilo é uma aventura. Foram para a Espanha, depois para a Itália, e acabaram se estabelecendo em Paris, e fazem esses serviços, às vezes clandestinos. Garotada assim, amigos de filhas minhas, está a mesma coisa. Vão para lá ou para os Estados Unidos, e vão pegar no serviço pesado. Lavar chão, como essa Iracema que voou pra América, ou são garçons, coisas que não fariam aqui no Brasil vão fazer lá fora. É curioso, porque o brasileiro pobre mesmo não emigra. Não existe isso, eles não sabem o que é um passaporte.
Ana Miranda - Você acha que isso tem uma conotação muito íntima com a situação política, a situação econômica, com a política econômica dos últimos governos?
Chico Buarque - Tem a ver com isso tudo. Com a falta de perspectiva de emprego em relação a um tempo atrás, a facilidade até com que você consegue um diploma, mais a péssima qualidade de ensino. Você está diplomado mas não está habilitado a exercer a profissão, a triagem, que existia antigamente no vestibular, hoje foi adiada para depois da faculdade. E daí? O sujeito está formado numa faculdade qualquer aí, e vai fazer o quê? Nada. Mas não é só isso. Também é a falta de perspectiva pessoal.
José ArbexJr. -Você vai ter ou já tem o site oficial na Internet?
Chico Buarque - Já tem.
José Arbex Jr. - Você navega na lnternet?
Chico Buarque - Não.
José Arbex Jr. - (ri) Eu estava desconfiado. Você sabe entrar na Internet, sabe consultar o teu site, por exemplo?
Chico Buarque - Não, não tenho Internet em casa.
Regina Echeverria - Você escreve em computador ou máquina?
Chico Buarque - Escrevo em computador, uso aquele básico para texto.
Ana Miranda - Você tem um modem para e-mails, essas coisas, ou não?
Chico Buarque - Não.
Ana Miranda - Nem e-mail você usa, é um sortudo. (risos)
José Arbex Jr. - Você não tem curiosidade de entrar na Internet, saber o que está rolando?
Chico Buarque - Tenho muita, mas vou ficar horas naquilo. (risos) Esses joguinhos aí, fico brincando antes de entrar no redator, fico jogando paciência, e perco um tempão. Aí, se eu começar a brincar de Internet... Sei que é útil para pesquisa, mas prefiro não ter. Vou lá na minha enciclopédia, porque tenho certeza de que iria ficar preso e viciado mesmo.
Sérgio de Souza - Você participou da última campanha do PT de alguma forma?
Chico Buarque - Participei apoiando o Lula, o Cristóvão Buarque, o Olívio Dutra.
Sérgio de Souza - Mas fez algum trabalho ou simplesmente apoiou?
Chico Buarque - Como, trabalho?
Sérgio de Souza - Participando de algum comício ou...?
Chico Buarque - Não, não cheguei a esse ponto. Gravei mensagem para a televisão, fui a um evento lá em São Paulo do PT, enfim. E votei não só no PT, aliás, meu voto foi amplo, aqui no Rio de Janeiro foi no PT, PDT, PSB e PV. (risos) Porque é isso o que vejo. Está se anunciando aí de novo, como possível, e acho que é o que interessa, uma aliança suprapartidária. Não me interessa muito o discurso partidário. Sempre fui um pouco avesso a isso. Com o próprio PT sempre tive problemas muito grandes. Já falei isso, o PT é o partido onde estão os melhores quadros do Brasil e os maiores chatos. (risos) E é uma coisa que tem de ser contornada. Fico com uma pena do Lula, e do trabalho que ele tem. Os adversários de fora e os adversários de dentro. O trabalho que essa gente dá ao PT! Um dia, conversando com um pessoal do Espírito Santo, falávamos do trabalho que dá eleger um governador como o Buaiz e daqui a pouco ser impossível governar com o PT. Isso tem que ser resolvido através de uma aliança.
José Arbex Jr. - E o que está acontecendo com o Pinochet, o que você acha do pedido de prisão dele?
Chico Buarque - Acho que o julgamento de certa forma já aconteceu. Eu estava em Paris quando ele foi preso.
José Arbex Jr. - E a comparação que fazem dele com o Fidel Castro?
Chico Buarque - É uma comparação engraçada, porque são trajetórias absolutamente opostas, não é? A começar pela origem. Tem que comparar primeiro o Batista com o Allende. Como é que o Batista ascendeu ao poder, como o Allende ascendeu ao poder, como um caiu, como o outro caiu. Qual era a função do Pinochet quando era ministro do Exército, quer dizer, o homem de confiança do Allende, e o que era o Fidel. Outro tipo de argumentação que leio bastante é "que, apesar de tudo, o Pinochet abriu o Chile para a economia mundial e foi um sucesso a política econômica do Pinochet, e Fidel Castro fechou o país e a economia de Cuba é um grande desastre". Você não pode comparar a economia de Cuba com o Chile. Você pode comparar a economia de Cuba com a Nicarágua, Honduras, países que estão lá próximos, mas não há possível correlação de riquezas naturais, potencial. Depois, pode também tentar não falar apenas em sucesso econômico, e tentar enxergar um pouco o que foi conseguido em Cuba, um país muito pobre, em outros termos. Em termos do que todo mundo já sabe, de medicina, de saúde pública, de educação, de pesquisa científica, é um fenômeno.
Sérgio de Souza- Sem contar o bloqueio.
Chico Buarque - Pois é, aí entra na história quem são os adversários que o Fidel teve de enfrentar esse tempo todo, desde o começo, principalmente a partir de 61. E, ao contrário, com que facilidade Pinochet subiu ao poder, com o apoio de quem ele subiu ao poder, entende?
Plínio Marcos - Mas me deixa um pouco triste a gente ver o Fidel abraçando Antônio Carlos Magalhães, Fernando Henrique...
Chico Buarque - Tem de tentar romper de alguma forma o isolamento em que ele se encontra, não é?
Ana Miranda - Ele foi visitar o Lula também.
Chico Buarque - Foi visitar o Lula também. Tem de ter boas relações com o governo brasileiro, senão, meu bem...
José Arbex Jr. - Por outro lado, é impressionante a paralisia da esquerda brasileira. Pinochet preso lá e não houve nenhuma manifestação exigindo que o Fernando Henrique Cardoso peça a punição dele.
Chico Buarque - Esse tempo todo, quando ele foi preso, eu, lá em Paris, perguntava no telefone: "E aí, o que esta dando aí no Brasil?" E o governo brasileiro parece que pelo menos não assinou um documento do Frei para o Brasil falando de imunidade etc.
Sérgio de Souza - E o que a gente pode esperar nos próximos dois anos ou no próximo ano, com esse governo reeleito? Que tipo de expectativas você tem em relação ao governo brasileiro, diante do quadro atual?
Chico Buarque - Realmente não sei. Não sei porque agora começa um novo governo não só porque houve uma reeleição, mas começa um novo governo porque não há mais a preocupação com a reeleição, que foi o que praticamente conduziu o governo nos últimos meses. Agora caiu na real, veio esse pacote de restrição. Os efeitos sociais e políticos desse pacote a gente vai sentir daqui a pouco. Não sei até que ponto vai permanecer esse alinhamento do PSDB com o PFL, não sei o que vai acontecer... não sei.
José Arbex Jr. - Como rolou a história do MST? Quem te procurou, o Sebastião Salgado?
Chico Buarque - Foi o Tião Salgado.
José Arbex Jr. - Aí vocês contrataram o Saramago, e rolou a coisa?
Chico Buarque - Foi tudo o Tião, o Salgado. Já me trouxe mais ou menos um esboço do que seria o livro (Terra), algumas fotos, não estava ainda todo montado, e me fez a proposta, e depois ele falou com o Saramago.
José Arbex Jr. - É impressionante que você pode quase fazer uma justaposição de discurso - se você pegar o que os generais falavam dos estudantes, dos que faziam manifestação durante a ditadura, "comunistas, subversivos, estão querendo bagunçar o país etc.", e pegar o que o Femando Henrique fala dos sem-terra, dá uma justaposição perfeita. Aquilo que o FHC falou dos sem-terra é o que os generais falavam de quem fazia greve ou passeata nos anos 60/70, o mesmo discurso: "Os sem-terra são desordeiros, querem bagunçar o país..."
Sérgio de Souza - Plantam maconha...
Chico Buarque - Plantam maconha, acho que foi um general que falou, né?
Sérgio de Souza - Você não gosta de fazer crítica ao governo, né? Ou ao Fernando Henrique diretamente?
Chico Buarque - Não, ao Fernando Henrique diretamente não me interessa estar fazendo crítica...
Sérgio de Souza - Como governante, como presidente.
Chico Buarque - Porque acontece o seguinte: como tive uma relação mais ou menos próxima com o Fernando Henrique, tudo o que eu disser sempre pode ser conduzido para uma questão pessoal, e isso estou sempre procurando evitar. Porque essa coisa, aqui no Brasil é muito... não porque é no Brasil, acho que é porque tivemos durante muitos anos ditadura e generais que viviam naquele mundo fechado. Como havia pouco acesso, ninguém sabia o que pensava um general tal, general qual. Depois do Sarney, do Collor, do Itamar, finalmente aparece um cidadão conhecido da mídia, conhecido do mundo acadêmico, conhecido de artistas, de intelectuais, onde parece que há uma intimidade. Todo mundo conhece Fernando Henrique. Outro dia chegou um paulista pra mim: "Ué, por que é que você se afastou do Fernando?" Perguntei: "Que Fernando?" Porque eu conheci Fernando Henrique e nunca chamei de Fernando. Meu pai, professor dele, nunca vi meu pai falar "Fernando". Agora, as pessoas já estão daqui a pouco "Fernandinho", "Fê", e fica uma promiscuidade aí, e um julgamento muitas vezes favorável também, em que entram em consideração as virtudes pessoais, a simpatia, o charme, não sei o que do Fernando Henrique - isso não interessa, não interessa se gosto, não gosto, se gostava, deixei de gostar, e sempre há uma certa tendência de colocar em termos pessoais uma divergência que eu possa ter com o governo, e não é. Não é! Uma pessoa que nunca mais vi, o Fernando Henrique. Vi a última vez um pouco antes da eleição, minha divergência com ele não é, de forma alguma, pessoal.
Regina Echeverria - Mas é pessoal dele quando fala mal da sua música. Bem pessoal quando fala do seu trabalho.
Chico Buarque - Sim, mas ele não tem resposta minha.
Sérgio de Souza - Eu estava perguntando para saber se você tem uma crítica ao governo, ao modelo.
Chico Buarque - Só estou falando isso porque há uma insistência, Fernando Henrique, Fernando Henrique, Fernando Henrique, Fernando Henrique...
Sérgio de Souza - Eu não estava ligando as pessoas, não uma coisa pessoal, acho isso uma coisa muito fechada para o leitor.
Chico Buarque - Você perguntou se eu não gostava de falar mal...
Sérgio de Souza - Se é uma decepção, se é uma coisa que você pode ter acreditado no começo que seria a solução para o país, e o encaminhamento todo te decepcionou, se você está esperando um Brasil pior ou melhor...
Chico Buarque - Nunca fui muito otimista em relação ao Fernando Henrique, desde as eleições de 94, falei isso na época, acontece que, quando ele foi eleito, aí desejei boa sorte, me perguntaram, eu falei: "Não, vamos dar um tempo, vamos ver o que vai ser isso." Mas já desde aquela primeira greve dos petroleiros falei: "Epa! Não é o que eu estava torcendo para que fosse, é mais o que eu estava temendo que acontecesse."
Sérgio de Souza - E agora você vê saídas para o Brasil? Estou imaginando um desastre nacional, breve, estou sentindo isso até dentro da própria editora, desse tamanico. O Brasil mesmo, como você está vendo?
Chico Buarque - Estou assustado com essa coisa toda, a gente vê nas notícias que a gente tem, que invocam gente próxima e tal... a TV Globo demitiu não sei quantos, a TV Globo! Altos funcionários. Para onde é que vai? E estou falando aqui perto de mim, do ambiente que tenho freqüentado ultimamente, pessoal de gravadora, está todo mundo assustado, não é?
José Arbex Jr. - A gente estava querendo que você desse uma declaração explosiva.
Chico Buarque - Sabe o que é? Não vou explodir. O que me dá um certo fastio na questão da política é que parece que qualquer coisa que eu diga já me ouvi dizendo, não tenho nada de novo a dizer.
Sérgio de Souza - Então não tem nada que esteja te enchendo o saco na questão da política?
Chico Buarque - O que acho mais chato em entrevista é quando leio e me vejo repetindo, porque as perguntas às vezes são as mesmas, e em relação ao governo vou repetir o que falei na primeira campanha. Me perguntaram porque que eu votei no Lula, e respondi: "Voto no Lula porque prezo muito o Fernando Henrique Cardoso, prezo muito diversos quadros do PSDB e acho que no governo do Lula eles teriam lugar. O PT não vai governar sozinho, enquanto que, se voto no Fernando Henrique, estaria votando no governo do PFL." Falei em 94 e na época ele disse: "O Chico está equivocado." Disse que o meu voto era sentimental, mas acho que eu não estava equivocado, não.
Marco Frenette - Voltando à produção musical, tem algum disco que você considere mais feliz em termos de música?
Chico Buarque - Não, gosto desse. Normalmente, a gente gosta do que está fazendo, não é?
José Arbex Jr. - A Clarice Lispector declarou várias vezes a paixão dela por você.
Chico Buarque - Isso é com a Ana Miranda. (risos)
José Arbex Jr. - Por que com a Ana Miranda?
Chico Buarque - Ela sabe disso mais do que eu, ela sabe de coisas que não sei...
José Arbex Jr. - Isso ela declarou na imprensa, publicamente, nas crônicas etc. Vejo muito ponto de contato entre as tuas personagens principalmente femininas e o universo da Clarice. Você vê isso?
Chico Buarque - Pode ser, adoro a Clarice Lispector, não sei se os meus personagens femininos têm a ver com ela, isso eu nunca tinha pensado. Mas, naquela lista que não fiz de autores que me marcaram e marcam até hoje, a Clarice está. Há pouco tempo, inclusive, reli e notei algumas coisas, porque é o seguinte: tenho a impressão de ter lido a Clarice antes da hora, quando conheci a Clarice não entendia direito o que que era a Clarice, nem a literatura dela, e outro dia comecei a ler e li e anotei várias coisas do Água Viva. Notei coisas que esse livro que já estava manuseado, eu mesmo já tinha lido aquele exemplar com o autógrafo dela, reli e falei: "Mas que coisa! Nunca tinha percebido isso!" Que coisa maravilhosa, as observações dela sobre a escrita inclusive, coisas que anotei, tinha uma de pescar as palavras, não lembro exatamente como é que era. Aquilo anotei. E é isso, tive um contato com ela pessoal sem na verdade... se tivesse a dimensão da Clarice Lispector naquela época, teria mais pânico do que tive, porque ela era uma pessoa que me deixava um pouco assustado, gozado isso.
Ana Miranda - Você contaria publicamente aquela história que contou pra mim, Chico?
Chico Buarque - Eu conto! A minha versão é a versão real, a sua é que eu...
José Arbex Jr. - Que versão é essa?
Chico Buarque- Um dia, ela me convidou para jantar. Eu já tinha estado com ela algumas vezes, e ela me dizia algumas coisas meio desconcertantes, saía da sala e dizia: "Escreve aí um poema." Ia para a cozinha e voltava, e eu que não escrevo poema tinha de escrever, ficava um pouco assustado (os versos: Como Clarice pedisse/ Um versinho que eu não disse/ me dei mal/ Ficou lá dentro esperando/ Mas deixou seu olho olhando/ Com cara de Juízo Final). Aí ela me convidou para jantar e perguntei: "Clarice, posso levar uns amigos"? (para me cercar) "Pode, mas aqui na minha casa não tem bebida." Eu estava no Antonio's e falei com o Vinícius e com o Carlinhos de Oliveira: "Vamos na casa da Clarice?" "Vamos." "Só que lá não tem bebida, então vamos beber aqui." E a gente já foi bebido, chegamos e ficamos lá, os quatro, conversando, conversando, quando deu 1 hora da manhã, a gente: "Então, Clarice, boa noite." (ri) Não houve jantar, saímos de lá e voltamos pro Antonio's pra comer.
José Arbex Jr. - E qual é a versão da Ana Miranda?
Ana Miranda - Ficcionalizei essa história deles: que tinha uma mesa já posta, e ela esperando o homem que está esperando há anos, para jantar, os olhos, aquela coisa bem ficcional, aí ele chega trazendo uma outra pessoa, então eles sentam e ela fala umas loucuras, invento coisas que a Clarice teria dito, o tempo vai passando, as horas e a conversa, e fica alternando entre o discurso interior dela e as coisas que as pessoas estão falando, até que eles vão embora e no final ela diz assim: "Esqueci de dizer que o jantar era eu!" (risos) Mas fiquei com uma dor de consciência, fiquei noites e noites sem dormir por causa disso. (risos)
José Arbex Jr. - Por que abriu o segredo?
Ana Miranda - Fiquei pensando: será que o Chico está bem nessa história? Uma coisa de consciência.
Sérgio de Souza - Fiquei surpreso quando olhei a tua idade no jornal, eles põem lá, "fulano de tal, 54". Francamente falando, tomei um susto, não sei se todo mundo tomou. Você se vê com 54 anos, internamente, ou não?
Chico Buarque - Eu me vejo, mas tendo a achar que 54 anos não é nada. Não tenho sensação nenhuma de estar envelhecido. Estou com a minha idade. Uma geração que está com 54 anos hoje é uma adolescência, quase. (ri) Falar nisso, tenho uma foto lá em casa, onde tem uma porção de autores de música, no apartamento do Vinícius de Moraes, todos nós garotos e o Vinícius, um senhor. Aí fiz as contas, ele tinha 54 anos! (risos) Isso foi em 67.
Plínio Marcos - Com toda sinceridade, com que idade você vai encerrar a sua participação como jogador de futebol? Vai dar a volta olímpica, vai ter festa de despedida, como vai ser?
Chico Buarque - Rapaz, outro dia fui jogar aqui no Monte Líbano, e tinha um jogador de 78 anos, e se mexia, ficava na frente assim...
José Arbex Jr. - Quando você vai jogar nesses lugares aqui no Rio é assediado pelo pessoal?
Plínio Marcos - O beque marca ele. (risos)
José Arbex Jr. - Fora o beque, quando você anda na rua aqui no Rio, ou quando vai jogar, pessoal te pede autógrafo?
Chico Buarque - No Rio está combinado que ninguém pede autógrafo pra ninguém. Nas férias, aí começa esse negócio de autógrafo. Estranho quando estou dando autógrafo aqui no Rio, mas é o pessoal que vem de fora.
José Arbex Jr. - Você nunca fez uma música para o futebol?
Chico Buarque - Fiz, uma música chamada O futebol. Dedicada a Mané, Didi, Pagão, Pelé e Canhoteiro.
Sérgio de Souza - Você tem assistido muito a futebol?
Chico Buarque - Não, nem gosto tanto assim de futebol. Gosto de jogar.
Carlos Tranjan - Teu melhor fundamento qual é, o lançamento?
Chico Buarque - Posso dizer que sou um jogador completo! (risos) Passe, profundidade, passe em velocidade, drible em velocidade, chicote, se bobear, drible do elástico. (risos) E menos um pouquinho finalização, gosto mais de servir.
Regina Echeverria - Você gostou da experiência de escrever para jornal sobre os jogos, na Copa?
Chico Buarque - Gostei. Mas deu trabalho.
José Arbex Jr. - Como é parir um texto jornalístico, foi tranqüilo pra você, ter horário pra fechar e mandar...
Chico Buarque - Na verdade, já fui meio calçado, levei um artigo pronto, que publiquei antes da primeira partida, e o resto usei alguma coisa que já tinha escrito, mas não foi como tinha pensado. Começou a soar falso, porque estava preparado e na hora não acontecia. (risos) As coisas cismavam de não acontecer como eu tinha previsto. (risos)
José Arbex Jr. - Você sentiu pânico em algum momento, tem de fechar, escrever o texto, tem de mandar...
Chico Buarque - Pânico, não. Me senti um pouquinho preso. Achei que ia passar um mês, quarenta dias, me divertindo, vendo futebol, jogando bola, comendo, mas na verdade ficava quatro dias mais ou menos da semana preso, e assistindo, também tinha isso, assistindo um pouquinho preocupado com o que eu ia escrever depois. Então existia uma tensão a mais, não é?
Plínio Marcos - Você não quer escrever uma coluna pra Caros Amigos?
Chico Buarque - Eu não gostaria mais de ter compromisso em periódicos. Foi só essa vez da Copa.
Plínio Marcos - Seria um recurso grande. Você venderia mais revista, e a gente aumentaria o nosso ordenado.
José Arbex Jr. - Você está precisando de prestígio, está pendurando a chuteira...
Chico Buarque - Obrigado, sinceramente.
Sérgio de Souza- Muitissimo obrigado dizemos nós, foi ótimo.
Chico Buarque - Não teve a explosão...
Finalmente as respostas.
E, assim mesmo, somente parte delas. A demora tem seus motivos. Em primeiro lugar, de 6 a 9 de novembro recebemos algo em torno de 200 perguntas. Obviamente, muitas delas repetidas, o que nos obrigou a um trabalho de agrupá-las em temas antes de passá-las ao Chico. Em segundo lugar, nessa época o Chico ainda estava muito ocupado com o lançamento do CD, além do trabalho normal. E, finalmente, a ansiedade de ser avô pela segunda vez, o que acabou acontecendo no dia 23, quando nasceu Clara Buarque de Freitas.
Esta é a primeira parte. Ainda há mais respostas que brevemente estarão aqui.
O Editor
A respeito da capa do CD Paratodos: por que o índio está encoberto?
Porque estava se guardando para a contracapa de As cidades, onde ele aparece enorme e com olhos azuis.
Acabei de ler o livro do Caetano, no qual ele conta o início do Tropicalismo, a época dos festivais e, para minha surpresa, da rivalidade produzida e estimulada pela imprensa entre a turma "alienada" da Tropicália (Caetano, Gil, ...) e a turma dos engajados (você, Vandré...). Como é que você sentia isso na época? Você acreditava no confronto ou, como Caetano, sabia que no fundo tudo era armação e que simplesmente eram artistas com visões e estilos diferentes? Teve mágoa? Queria muito saber do teu lado na história porque fica claro que pro Caetano isso tudo pesou, incomodou.
Também achava - e acho - que havia muita hostilidade nas redações, mais que entre nós, artistas.
Quero saber se há algum novo musical em seus planos de escritor, nos moldes de Gota d'água, Calabar e Ópera do malandro. Na literatura, você vai caminhar mais pelo romance? Se for pelo romance, o que parece uma temática existencialista em Estorvo e Benjamim, será talvez seu norte em futuras obras? Porque não mais um livro infantil, agora que és um vovô dedicado?
Penso, às vezes, num novo musical para teatro, penso em livros infantis, penso num romance, mas não um tenho projeto definido.
Por que você não canta em programas de televisão?
Porque os entrevistadores ficam fazendo perguntas e não me deixam cantar.
Sobre o seu novo CD, você não acha que esse projeto mais elaborado, do ponto de vista melódico, fica menos popular?
É possível, infelizmente. Mas, por favor, não me acuse de fazer música impopular brasileira.
A obra de seu pai lhe deu alguma contribuição na construção de seu repertório de letras de musicas e em alguns livros?
Existe um rigor formal na escrita do meu pai que procuro não desmerecer, quando faço literatura.
Como você encara a perseguição da imprensa e a insistência dos críticos em te denominarem um "mito"? Você se considera um "mito", fica irritado com o título...? Em relação às mulheres, qual a sua posição (é sério!): você as encara apenas como o sexo oposto ou algo com uma grandeza sem parâmetros?
Não me irrito assim com tanta facilidade. Quanto às mulheres, tenho falado bastante delas em minhas músicas. Está clara a minha posição?
Porque você parou por tanto tempo de gravar discos? Acabou a fonte de inspiração?
A fonte de inspiração não seca, mas vai ficando cada dia mais longe. Até chegar à fonte, leva-se mais tempo. Mas, no caminho a gente se diverte.
Como você recebe, letras/músicas de poetas e músicos anônimos, pedindo para que você as analise e emita um parecer, ou as grave? Você se chateia com isso ou não?
Sou muito procurado por autores iniciantes, mas não me sinto à vontade para julgar suas composições. Costumo lhes sugerir que enviem suas fitas à direção artística das gravadoras, ou a produtores e cantores, que estão sempre carentes de repertório.
Como funcionam suas parcerias...você contribui com a letra ou há uma participação efetiva dentro da construção da harmonia e melodia?
Em minhas parcerias habituais com músicos, participo somente como letrista. Levo a música para casa e procuro descobrir a letra que ela está pedindo, sem alterar coisa alguma.
Fora o João Gilberto, quem te influenciou na juventude? Monsueto, Joubert, Assis Valente... Concordas com a comparação de seu estilo com o de Noel Rosa?
De Noel a João Gilberto, fui influenciado por todos esses sambistas e outros mais, e pelas marchinhas de carnaval, e pelos boleros cubanos e mexicanos, pelo tango, pela música italiana, pelos letristas franceses, por Jacques Brel, pelo jazz, pela música clássica, pelas operetas de cinema, por Cole Porter, Gershwin, Sinatra, Ray Charles. Também fui bom imitador de Nat King Cole, Johnny Ray, The Platters (o solista), Elvis Presley, Little Richard, Lucho Gatica, Charles Aznavour, Jorge Veiga e Linda Batista.
Como conseguiu gravar quando começou? Mandou uma fita? Fez uma audição? Já tocava em outros lugares por isso chamou a atenção?
Quando fui convidado a gravar meu primeiro disco, em 65, já era vagamente conhecido no meio musical de São Paulo, porque me apresentava em shows amadores, ou na preliminar de shows profissionais.
Por que você resolveu criar seu próprio site?
A idéia de criar um site não foi minha, mas de um sujeito chamado Cachorrão. A criação é dele e da Casa Paulistana. Ainda não tive tempo de olhar direito o site, porque estou respondendo a este questionário.
Em que você está trabalhando atualmente? Na música, quem você está ouvindo atualmente? Em BH qual o seu time preferido?
Atualmente estou trabalhando nesta sabatina. Em Minas, torço pelo América. Sou um homem de sorte.
Em primeiro lugar, obrigado por você existir - vida longa, com saúde e paz. Como professor de Língua Portuguesa (e Literatura), sempre tive a curiosidade de saber que dicionários e gramáticas fazem parte de sua consulta habitual quando você precisa esclarecer alguma questão de vocabulário ou de gramática? Que outras formas de lidar com estas questões práticas da linguagem você adota?
Consulto habitualmente o Caldas Aulete. Meu livro de estimação é o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa de F.F. dos Santos Azevedo, herança de meu pai. Também recorro a uma gramática do Celso Nunes e a dois dicionários de Francisco Fernandes: o de verbos e regimes e o de regimes de substantivos e adjetivos. Dicionários etimológicos são outra grande curtição.
Você acha também que Vinícius de Moraes era habilíssimo em fazer letras com muitos verbos e poucos substantivos - e insuperável nisso?
Nunca havia reparado nisso. Mas lhe garanto que Vinícius é o único poeta capaz de usar o diminutivo de um verbo no gerúndio.
O que você seria se não fosse cantor e compositor?
Seria topógrafo. Aliás, sou topógrafo.
O que você está lendo?
Estou lendo Da pintura antiga - diálogos de Roma, de Francisco de Holanda, Livraria Sá da Costa, Lisboa.
Você ainda gosta de jogar futebol de botões?
Parei de jogar botão há 28 anos. Outro dia encontrei minha caixa de Catupiry, abri, não havia mais nada. Acho que os jogadores fugiram da concentração.
Você nunca pensou em ser presidente do nosso Flu? Só você e o seu talento para dar um jeito lá!
Não tenho talento para presidir coisa alguma. Sinto muito.
Por que "ser" Fluminense?
Sou Fluminense por culpa de minha mãe.
O que você faz para permanecer jovem? Dieta? ginástica?
Bondade sua. Não faço dieta, nem ginástica. Mas jogo bola, passeio, ando de bicicleta, bebo algum vinho e gosto de pão com manteiga.
Você está feliz? Acha que alguma coisa mudou ou estamos apenas anestesiados demais para reagir?
A gente vai levando.
Você usa a Internet, qual o seu site predileto? Que discos tem ouvido atualmente? O que você gosta mais no Rio e em Paris.
Ainda não uso a Internet. Atualmente tenho ouvido meu próprio disco. No Rio, gosto de andar, de olhar o mar e as montanhas e de planejar viagens. Em Paris, gosto de andar, de jantar fora e de voltar para o Rio.
Gostaria de saber da sua consciência sobre a importância que tem para centenas de pessoas que te admiram e apreciam o seu trabalho, ou esta consciência não te afeta em nada?
Se eu me desse muita importância, certamente meu trabalho seria afetado.
Ao ouvir Xote de navegação, pensei: se o tempo existe, Deus também envelhece. Chico, você se importa com a idade?
Para quem anda naquele barco, o tempo não passa. Quem anda naquele barco não envelhece, é velho e moço ao mesmo tempo. Claro, porque o barco vai com o tempo, o barco é o tempo. Foi o que eu quis dizer no xote.
Como você se enxerga emocionalmente? Você tem fases de depressão e o quanto elas prejudicam sua produção criativa?
Mesmo sem ser o homem mais feliz do mundo, nunca estive deprimido. Já conheci pessoas em estado de depressão e é coisa séria. Não é doença que se combata com bebida alcoólica ou caminhadas na Lagoa, como sugeriu a revista Veja, recentemente. Essa mesma revista, aliás, anunciou em setembro o lançamento de uma nova droga, tipo Prozac. Parecia matéria publicitária, parecia encomenda de algum laboratório, mas vinha em forma de reportagem, assinada. Minha foto aparecia ao pé da página, declarações que nunca dei à revista apareciam entre aspas e o texto insinuava que eu era usuário daquele treco. Acho isso tudo muito estranho.
Ler poesia é fundamental para escrever um bom romance?
Para se escrever o que eu entendo como um bom romance, o conhecimento de boa poesia é fundamental.
Gostaria que você falasse um pouco de Clarice Lispector. No livro A descoberta do mundo eu li uns textos que ela escreveu a propósito de uma visita sua, ou de uma conversa. Gostaria só de saber como você a lembra, como lembra essas visitas. Lembro que ela falou da sua candura. Fale um pouquinho dela, é só o que peço. (Já agora, quando vem a Portugal? Você é sempre bem-vindo aqui.)
Estive com Clarice Lispector algumas vezes. Ela era muito carinhosa comigo e eu ainda não era o seu leitor embasbacado que me tornei mais tarde. Devo dizer que ela me intimidava um pouco. Certa vez, convidado para jantar em sua casa, perguntei-lhe se podia levar dois amigos. Fomos ao seu apartamento no Leme, Vinicius de Moraes, Carlinhos de Oliveira e eu e ali ficamos até duas da manhã, numa conversa de que me lembro pouco. Só me lembro que saímos os três encantados com ela. Quanto ao jantar, não houve. Fomos os três comer no Antonio's.
Porque você, como escritor, não se dedicou ainda a escrever, digamos assim, suas memórias, já que vivenciou um período muito rico de nossa história e teria muito o que contar?
Não sei se gostaria de escrever um livro de memórias. Pode ser que algum dia me venha a vontade, ou a necessidade de escrever um livro assim. Não sei...
Você se considera poeta, quando falamos de suas canções?
Nunca publiquei, nem creio que venha a publicar um livro de poemas. Não escrevo poemas.
Aqui em minha terra há informações de que você teria estudado por seis meses no Colégio Cataguases que à época era particular e funcionava em regime de internato e semi-internato. Todos afirmam ser verdade, mas até hoje não conseguiram provar. Acho que somente você pode nos dar uma palavra final sobre o assunto.
Fui aluno interno do Colégio de Cataguases, no segundo semestre de 59. Com o codinome Bananal, escrevia crônicas para o jornal O pirilampo e para um programa da rádio do colégio, com o título Coisas da vida... Nos fins de semana, praticava o footing na praça da cidade, freqüentava o cinema na mesma praça (era a única), ou ia ao estádio torcer pelo meu colega Napoleão, centroavante do Flamenguinho, nos clássicos contra o Operário.
Quais são as recordações mais bonitas que você tem da Itália, meu país de origem?
Da bambino, mi ricordo del tramonto romano, stupendo. Da giovane, il mio più bello ricordo è la nascita di Silvia, anche lei romana e stupenda.
Você aprovou o casamento da sua filha com o Carlinhos Brown?
É claro que aprovei.
Por que, na letra de Paratodos, faltou citar a eterna Elis Regina, ainda que você não gostasse dela? Adoro você e tenho toda a sua obra, mas esta não entendi.
Quem disse que não gosto da Elis? Ou da Elizeth? Ou do Ciro Monteiro? Artistas que admiro, fazendo as contas, há mais do lado de fora que dentro de Paratodos. Mas a música foi escrita para todos.
Foi publicado, num jornal daqui de Porto Alegre, que o Chico tem "uma gaveta cheia de músicas, arranjos e partituras nunca gravados, incluindo peças de Astor Piazzolla". Coleciono a obra de Piazzolla e forneço material para uma home-page sobre ele. Pergunto: Chico, tem alguma música inédita de Piazzolla? Algum arranjo especial que Piazzolla tenha feito para você? Você pretende gravar alguma coisa de Piazzolla?
O Piazzolla me mandou uma música nos anos 70. Era belíssima, algo dramática, mas a letra não saiu. Mostrei-lhe a fita nos anos 80 e ele reaprendeu a música que já havia esquecido. Escreveu um arranjo para que eu gravasse a música naquele especial da Globo, o Chico & Caetano. Mais uma vez, a letra não saiu. Piazzolla se aborreceu, ficou meio emburrado ali no Teatro Fênix. O Tom Jobim, que participava do mesmo programa, saiu em minha defesa: disse que eu era assim mesmo, que vivia jogando bola e tampouco escrevia as letras que devia a ele, Tom. No ano passado encaminhei a canção e o arranjo ao editor de Piazzolla.
De alguma maneira, as personagens "Beatriz" e a "bailarina" têm a mesma fonte de inspiração? (Sei que as duas pertencem à mesma obra - O circo místico-, mas, independente disso, toda vez que escuto uma das músicas, lembro-me da outra. Às vezes me parecem a mesma pessoa. Pode ser até mesmo "viagem" minha. Mas perguntei a outras pessoas se tinham essa sensação e elas ficaram com a mesma curiosidade).
Acho que você tem razão. No Grande circo Místico, pelo que me lembro, Beatriz e a bailarina da ciranda são a mesma personagem.
Qual foi a sua primeira música censurada? E como se sentiu? Isso de alguma forma fortaleceu a sua obra? (Se sim, como?)
Minha primeira música proibida foi Tamandaré, em 65. A censura partiu de algum almirante. Fiquei assustado.
Por quê, embora ninguém conteste o talento de Luíz Claudio Ramos, nos seus discos recentes você abandonou outros arranjadores que sempre lhe acompanharam, tais como Francis Hime, Edu Lobo ou Chiquinho de Moraes?
Qual foi a importância do seu encontro com o Luíz Claudio Ramos?
Mais que em meus primeiros discos, tenho acompanhado a feitura dos arranjos. O violão é meu instrumento. O fato de Luíz Claudio Ramos ser um violonista facilita o nosso diálogo. Ele é um músico talentosíssimo, muito sensível e afinado comigo.
Como surgiu a idéia da letra espelhada de As vitrines? Uma vez você me disse haver influência da psicologia. Como é isso?
Psicologia? Não me lembro. Patologia, talvez. Acho que me referi a um distúrbio da fala, em que ocorre essa inversão de letras ou de sílabas e a que se dá o nome de espelhismo, ou palavras no espelho. E as palavras no espelho na contracapa de Almanaque produzem anagramas para cada verso de As vitrines. É um jogo de palavras, um passatempo, uma bobagem da família dos palíndromos. Vou lhe mandar um palíndromo que fiz para o Milton Nascimento, em italiano: "Acuti belli, mille, Bituca!" Gostou?
A quem é dirigida a música Meu caro amigo?
Meu Caro Amigo foi dirigida ao Boal, o teatrólogo Augusto Boal, que na época estava exilado em Lisboa.
Gostaria de mostrar minha revolta com você... Minha INDIGNAÇÃO é por conta das entrevistas que você deu à GLOBO e GLOBONEWS, onde concordou com o repórter, que a sua criatividade está se esgotando com o tempo! É revoltante que, no meio de tantas "Carlas Perez" e "Rodolfos e ETs", uma figura como Chico Buarque venha dizer que sua criatividade esteja se esgotando. Chico, você é como um bom uisque, quanto mais o tempo passa, mais raro e precioso ele se torna!
Você me interpretou muito bem, obrigado. Também acho que estou ficando mais velho, mais raro e mais saboroso.
Quando você compõe, escreve a letra antes ou depois das melodias?
A letra vem durante ou depois da melodia.
Até que ponto a vivência dos "anos de chumbo" no Brasil foi um entrave ou um estímulo à sua criatividade.
Esses anos de chumbo foram um entrave em todos os sentidos.
Você considera suas personagens femininas realmente femininas, ou são apenas rebatimentos, espelhos da visão masculina do mundo feminino? Um amigo meu um dia, num debate, afirmou que achava "suas mulheres" muito travestis para o gosto dele. O que você acha desse comentário?
O comentário é original. Que eu seja gay, tudo bem, mas que as minhas mulheres fossem travecas, isso eu nunca tinha ouvido.
De onde vem este seu conhecimento e/ou inspiração sobre a alma feminina? Em suas canções, você consegue desnudar a alma de uma mulher em sua totalidade.
Bem, essa questão de alma feminina vai me dar trabalho, vai me tomar um bom tempo, acho que vai ficar para outra vez. O pessoal está me esperando. Eu vou chegando, me desculpe. Um abraço!
Tesouros do baú de Chico Buarque
O compositor lança um CD com sete canções novas e revela guardar músicas inéditas de Tom Jobim, Astor Piazzola e Caetano Veloso.
Época: Seu disco novo, As cidades, chega cinco anos depois de Paratodos e, das 11 faixas, apenas sete são inéditas. Você está com preguiça de compor?
Chico Buarque: Quem dera... Não tenho preguiça. Se eu ficar com fama de preguiçoso, não vou me incomodar, mas não é isso. Não tenho preguiça de trabalhar. Na verdade, gosto muito de compor, de lançar disco, tudo isso. Não faço mais porque não consigo mesmo, porque hoje me custa muito mais tempo. Cada vez me custa mais tempo escrever uma canção. Isso não é preguiça. Talvez seja mais paciência do que preguiça. Aliás, ao contrário, a impaciência é que é resultado da preguiça.
Época: Como assim?
Chico: Agora mesmo, fazendo a revisão das minhas músicas para um songbook, algumas letras escritas 20 anos atrás me deixaram pensando: "Isto aqui podia ser melhor, aquilo ali também..." Se tivesse tido um pouco mais de paciência, teria dado um acabamento melhor.
Época: Você fica tentado a rever algumas letras?
Chico: Não, porque é impossível. Porque já está gravado. Não teria cabimento fazer uma segunda edição melhorada. Até já fiz isso com harmonias. Em "Pivete", por exemplo, que regravei no último disco, acrescentei uma introduçãozinha e mexi no andamento. Mas mais do que isso não dá para fazer.
Época: As rádios já estão tocando "Carioca", a chamada "música de trabalho" do CD novo. Há alguma que você gostaria que tocassem e teme que não toquem?
Chico: Gostaria que houvesse uma variedade maior. Não gosto desse negócio de "música de trabalho". Depois ainda me chamam de preguiçoso... Adianta gravar um disco com mais de 11 músicas se só uma ou no máximo duas tocam? Antigamente, havia uma variedade maior.
Época: Alguma música que você tenha feito para o disco ficou de fora?
Chico: Ficou. É um samba chamado "Dura na queda". Um samba com harmonia rebuscada. Até gosto dele. Mas o disco demorou tanto que deu tempo de enjoar dele. Alguma coisa na música começou a me incomodar. Precisa de reforma. E reforma de música é que nem de casa: às vezes dá mais trabalho reformar do que construir uma nova.
Época: Há pressão da gravadora para você gravar com mais freqüência?
Chico: Não tenho contrato com gravadora. E não faço contrato para não ficar devendo. Passei minha vida toda devendo. Desde 1966, eu tinha contrato com gravadora. Aí, quando gravei Paratodos e a BMG me chamou para fazer um novo contrato, porque aquele tinha acabado, eu falei: "Ah, não. Agora deixa eu ficar livre um pouco." Então, hoje, para cada disco é um contrato.
Época: Você já andou dizendo que a faixa "Injuriado", um samba, foi feita de última hora para inteirar as 11 do CD. Foi para sua irmã Cristina, que participa da faixa? É verdade que, desde criança, vocês vivem brigando?
Chico: Não... (Rindo.) Imagina... Já li nos jornais que fiz para o Fernando Henrique, olha só! Não há nada disso. Queria que fosse um samba que desse vontade de cantar em roda de botequim, tomando cerveja. É um samba que fala de maledicência.
Época: Pelas recentes declarações que deu sobre você, o presidente Fernando Henrique não gosta tanto do Chico Buarque de hoje em relação ao Chico de 20 anos atrás. E você, o que pensa do Fernando Henrique de hoje?
Chico: Não gostaria que minha questão em relação ao governo se transformasse num caso pessoal. Porque seria uma maneira de banalizar uma posição política minha, que é de oposição há bastante tempo. Já li na imprensa que eu teria gravado um depoimento para o Lula que seria uma resposta ao Fernando Henrique. Isso não existiu.
Época: Que avaliação você faz do governo dele?
Chico: Foram quatro anos de um governo do PFL. E isso não é divergência pessoal com Fernando Henrique. A linha desse governo não é a minha.
Época: Há aspectos positivos?
Chico: Olha, na época da ditadura, observei que os presidentes não eleitos eram tratados com certa distância pela sociedade. Eles eram conhecidos pelo sobrenome, e não pelo nome. Enumerei os presidentes desde que me dou por gente: Getúlio, Juscelino, Jânio, Jango... Aí vieram Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, Figueiredo... Depois veio Sarney, que foi eleito indiretamente, Collor, que foi uma exceção, e Itamar. E pronto! Voltaram os primeiros nomes. Fernando Henrique é chamado pelo primeiro nome, isso é bom.
Época: Como está a vida de solteiro? Você tem sido muito assediado?
Chico: Hummm... Não gostaria de falar sobre isso. Gostaria de falar sobre meu trabalho. Estou lançando um disco, não estou me lançando. (Rindo.)
Época: Mas é uma pergunta que fatalmente vão fazer. As mulheres vivem se perguntando...
Chico: Não... (Rindo.) Só você está me fazendo essa pergunta. Ninguém me faz essa pergunta, não...
Época: No disco novo, você põe letra em duas melodias que dormiam em sua gaveta havia muito tempo: uma, de Guinga, "Você, você", tinha dez anos; outra, de Dominguinhos, "Xote de navegação", esperava letra desde 1983. Que outros tesouros você guarda na gaveta?
Chico: Tenho duas do Tom. Uma, "Bate boca", foi gravada sem letra por MPB 4 e Quarteto em Cy. Para outra, que se chama "Que horas são?", comecei a fazer a letra em 1970 e ficou incompleta.
Época: Você pretende completá-la?
Chico: Não. Gostava da parceria com o Tom porque a gente discutia tudo. A presença do parceiro é fundamental. Eu quero fazer a letra para agradar aquele parceiro. Quero que ele ouça, que interfira se for o caso. O Tom é quem mais interferia nas parcerias. Isso me faz muita falta. Então, fazer uma letra para ele, sem ele estar mais aí, perdeu o sentido para mim.
Época: O que mais você guarda?
Chico: Tenho música do Piazzolla, do Baden, do Caetano, do Gil...
Época: Você espera pôr letra nisso?
Chico: Eu teria de viver uns 200 anos...
Época: Você está sofrendo muito com o Fluminense, agora na terceira divisão?
Chico: Já não sofro com o Fluminense há muito tempo. O único vínculo que tenho com o Fluminense é que não consigo torcer por outro time.
Época: O que vem agora, um livro novo ou um CD novo?
Chico: Não sei. Acabei de terminar o CD e ainda estou incerto em relação a projetos. Mas vou escrever um novo romance. Não sei quando, mas vou.
Triste é minha voz
Chico Buarque, 54, volta às canções inéditas em "As cidades", após cinco anos calado como compositor de álbuns. Na volta, volta disposto a falar e se vê às voltas, mais uma vez, com tema recorrente em sua obra artística: a política.
Desta vez, comenta críticas feitas por Fernando Henrique Cardoso e Mário Soares no recém-lançado livro "O mundo em Português - um diálogo", de que seria "mais convencional" que Caetano Veloso e Gilberto Gil (segundo FHC) e "um pouco subordinado ainda a um certo esquema ideológico do passado" (segundo Soares).
Chico recebeu a Folha em seu apartamento, no Jardim Botânico, para falar de música e política. Leia trechos da entrevista a seguir.
Folha - Você é capaz de definir "As cidades" em palavras?
Chico Buarque - Não sou, não. Mesmo porque foi difícil escolher o título. Nem o próprio título define o disco, só dá idéia de algumas imagens que estão freqüentes nas canções.
Folha - É um disco triste?
Chico - Não. Já me falaram de ser um disco não triste, mas menos solar, mais nublado. Acho que o que é triste é minha voz. Canto canções que são engraçadas, cheias de humor. Vários comentários são irônicos. Na abundância de cordas em "Cecília" há uma ironia com toda a letra, que fala da inveja que este cantor sente dos grandes cantores que cantam em grandes orquestras. Que a voz é triste, é, mas foi uma opção estética que me pareceu adequada.
Folha - Uma opção estética, não ideológica?
Chico - Simplesmente estética.
Folha - O que você pretendia nesse disco? Existe unidade nele?
Chico - Não, no começo não havia unidade nenhuma. Partiu de canções dispersas, que não faziam parte de uma idéia de disco. A idéia surgiu com a entrada das últimas seis músicas. Mas é difícil de definir. É estética, não é ideologia.
Folha - A unidade não pode estar em ser um disco geográfico?
Chico - Daí o título "As cidades". Quando veio o título, vi que era claro que era. São cidades sonhadas, imaginárias. Várias canções falam disso.
Folha - Você está à procura de um lugar?
Chico - É um personagem misto, não sou eu. Ele está viajando aparentemente sem rumo, sobrevoando cidades.
Folha - Você está sem rumo?
Chico - Como não sou eu esse personagem, como "eu" é um outro, posso falar na terceira pessoa. Esse sujeito, esse protagonista está navegando sem rumo.
Folha - Você sempre foi tão atuante na música quanto politicamente, e a despolitização do Brasil é acompanhada por sua despolitização. A falta de rumo vem daí?
Chico - Vou discordar frontalmente, porque se a política interferiu na minha criação, foi de forma nociva. Não me arrependo, mas em termos artísticos não me acrescentou grande coisa. Minhas músicas mais marcadamente políticas são as que tem menor qualidade estética, no meu ponto de vista.
Folha - Não é simbólico você ter sido um dos artistas mais censurados do Brasil?
Chico - Fui atuante, falava muito. Mas foi chegando a hora de ser mais artista e menos político. O fim das ditaduras e a queda do Muro de Berlim já eram sinais de que se encerrava esse conflito e se despolitizava o mundo. A função política do artista se enfraqueceu. Antes nós, artistas, nos reuníamos para lutar pelos direitos autorais, pela numeração dos discos. Talvez hoje quem esteja mais em evidência na indústria tenha menos preocupação social. É normal, o mundo está despolitizado.
Folha - As pessoas mais em evidência hoje são as da axé music e do pagode. O que isso significa?
Chico - Não tenho nada contra, só estou constatando que são pessoas que estão num tipo de roda viva muito mais violento que aquele de que eu falava em 1968. Absolutamente não há como sentar com esse pessoal para conversar. Hoje, até a participação política faz parte do show business. As últimas eleições deram uma idéia de que essa apatia está para se resolver. Até houve um certo rebuliço nesse marasmo político que estava existindo desde a derrota de 89.
Folha - Que derrota?
Chico - A última grande movimentação política nacional foi a eleição de 89, quando a sociedade inteira se dividiu e houve a possibilidade de haver uma mudança significativa com a eleição do Lula. Ali acho que foi a grande porrada.
Folha - Queira ou não, você ainda vai ao noticiário político, quando o presidente do Brasil o chama num livro de artista "da elite tradicional", "que quer ser crítico, mas é mais convencional" que Caetano e Gil. Como você recebe isso?
Chico - Com indiferença, sinceramente. Não estou dando trela para esse assunto. Acho um comentário desimportante, é conversa de cozinha, não sei por que saiu em livro. Não acho que seja surpreendente que ele diga isso, nem que haja motivos para eu me chatear. É um comentário pessoal. Minha divergência com Fernando Henrique não é de ordem pessoal.
Folha - Ele está transferindo uma crítica política ao plano artístico?
Chico - Parece que sim. Não me parece uma crítica musical. Seria estranho que dois chefes de Estado estivessem conversando sobre música popular e se pusessem a fazer considerações críticas. É mais lógico que seja uma crítica política. Não concordo com 90% do que Fernando Henrique tem falado. Já não concordava antes da primeira eleição. Na época, ele falou que eu estava equivocado, porque disse que gostaria que Lula vencesse e formasse um amplo quadro de apoio com lugar para ilustres tucanos. Preferia ver Fernando Henrique num governo do Lula a vê-lo no PFL. Mantenho o que eu disse.
É difícil, no Brasil, o homem público assumir a posição da direita. Em qualquer lugar, quem pratica ideário da direita se diz de direita. Talvez aqui, por causa da ditadura, a direita tenha ficado estigmatizada. Mas não é ofensa para ninguém, na França o Chirac, um político de centro, se diz de direita.
Folha - É verdade que "Injuriado" é dirigida a FHC?
Chico - Isso é uma piada, só rindo. Primeiro porque não fiquei injuriado com nada, segundo porque nunca vou chamar Fernando Henrique de meu bem.
Folha - Você ficou parado no tempo?
Chico - Não acredito. Quando gravo um disco, intimamente tenho a convicção de estar dando um passo adiante em relação ao que fiz antes. Esse passo é talvez mais lento, mais custoso, mais penoso. Estou andando mais devagar, mas acho que estou andando.
Folha - Você acha que compositores deveriam se aposentar?
Chico - Acredito que naturalmente, na canção popular, a tendência seja ir ficando mais lento até deixar de existir. Acho que uma hora vá me desinteressar por fazer música. Talvez esteja me preparando para isso me dedicando à literatura. Acredito mesmo que música popular seja uma arte de juventude. O que componho é com o que me resta de juventude, que já não é tanto. E vai acabar. Vou ficar velho, caduco e vou morrer.
Chico no canto da serenidade
"As cidades", novo disco do compositor que passou a conviver com outra arte, a de escrever livros, traz à tona a introspecção de quem devota cuidado ainda maior às letras e à harmonia das canções
Tarde fria de novembro no Rio. Inacreditável esse tempo em novembro. Chico Buarque posa para fotos no terraço do primeiro andar do Hotel Rio Palace, perto da piscina, tiritando de frio. Atrás, a paisagem cinzenta da praia de Copacabana, a chuva fina, um clima que guarda alguma coisa do disco novo de Chico, As cidades. Triste? Não, ele garante que não é de tristeza o tom que percorre muitas das faixas do CD - "minha voz é que é triste" -, mas quase concorda em que existe uma atmosfera semelhante à do dia lá fora, cinzento, chuvoso. "Tanto que tinha um sambinha chamado Ensolarada que tirei do disco, não combinava com o resto." Tampouco é melancólico, concordamos. A conversa segue na tentativa de achar um termo para definir o clima do disco. Tem um quê de introspecção, quem sabe? Talvez serenidade, completa. "Acho que estamos encontrando a palavra", diz Chico.
Não é de estranhar que a busca da palavra exata seja uma obsessão hoje em dia para o compositor que de um tempo para cá passou a conviver com o ato de escrever livros. Essa atividade, revela, trouxe um cuidado maior com as letras e até com a harmonia das canções. O que no começo da carreira era pura intuição, letras escritas em guardanapo de papel, hoje se derrama de forma mais trabalhada, mais elaborada. E o processo de criação ficou mais demorado. Dias, às vezes, se passam antes que ele encontre a palavra certa, o acorde necessário.
Chico está feliz com o trabalho concluído, anda dizendo a amigos que é seu melhor disco. Enfrentou com galhardia a batelada de entrevistas, que abomina. "Preferia que as pessoas ouvissem o disco, que eu não precisasse falar por ele. Mas não falar na hora de lançar o CD seria uma atitude." Bem magro, sereno, ar de missão cumprida, diz que está vazio de projetos, mas se continuar valendo a alternância disco/livro dos últimos anos, o passo seguinte vai ser outro livro. Então será hora de recomeçar, reaprender a escrever, para depois reaprender a compor. "Cada vez que eu volto, não sei mais onde estava, é um recomeço."
Avesso a falar de sua vida pessoal, Chico expõe seus sentimentos através dos personagens de suas músicas, como se tivesse criado um alter-ego para ingressar protegido no mundo da emoção e do onirismo. Sem precisar expor seu verdadeiro eu. "Muitas vezes o objeto da música é impreciso porque o próprio sujeito é impreciso, porque eu não sou eu." Coisa de poeta
JB - Como se sente quando finalmente termina um disco? Como um pai orgulhoso que quer lamber a cria, ou lidou tanto com aquilo que quer passar logo para outro projeto?
Chico - Não, ainda dura um certo tempo. O disco resiste. Tem um período de lambeção, você volta a ouvir o disco. Mas aí tem uma hora que passa.
JB - Aí quer olhar para frente?
Chico - É. As pessoas começam a ouvir o disco quando você não está ouvindo mais (risos).
JB - Você já disse que esse disco é mais trabalhado, mais elaborado, tanto letra, quanto harmonia. Isso é resultado da sua experiência como escritor?
Chico - Eu elaboro mais tudo. O fato de eu estar me dedicando também à literatura me faz um músico mais exigente. Não só a parte literária, mas também a musical. Quando você volta para a música depois de muito tempo - porque eu largo a música -, volta como se não soubesse mais fazer. É todo um reaprendizado, uma dedicação muito maior do que se viesse fazendo aquilo o tempo inteiro. Você quer equilibrar aquele rigor que dedica à literatura exercendo a música com rigor semelhante.
JB - Esse rigor é então uma conseqüência dessa sua outra atividade e não do passar do tempo, da experiência de compositor? Você elabora mais porque agora exerce uma atividade que o obriga a pensar cada palavra, cada frase?
Chico - É tudo isso. Tem também a noção que vai se ganhando com o tempo de que cada coisa que você faz é uma coisa mais duradoura do que quando se começa. Quando comecei a fazer música não tinha a menor idéia de que 30 anos mais tarde fosse estar fazendo a revisão das minhas músicas para a home page ou o songbook, e tivesse que reler aquelas coisas que foram escritas ali. Escrevia num pedaço de papel e gravava. Era mais inconsciente. Aos 20 anos, aquilo não era sequer ainda uma opção profissional. Era estudante de arquitetura, não era um músico profissional. Hoje você começa a medir mais as palavras, as notas, você está sabendo que aquilo é um legado.
JB - Você sente prazer quando está criando ou é uma atividade sofrida, que o deixa sem dormir, tenso?
Chico - Me deixa sem dormir, mas não por ser sofrido. Não durmo porque não quero dormir. A insônia é muito isso. Enfrento insônias brabas. Mas descobri que você não dorme porque não quer dormir. Quer ficar trabalhando, fica excitado. Fica com um pé no sonho e aparece alguma coisa, pensa que aquela palavra não é bem essa, então dorme com o violão e a caneta ali do lado. É muito prazeroso. Desgastante, mas prazeroso.
JB - O mesmo acontece quando você escreve?
Chico - Mesma coisa.
JB - Você fala de sonho e tem uma canção no disco que fala de sonhos. Você sonha muito? Dormindo e acordado? Você é um sonhador?
Chico - Acho que sou mais pé no chão do que se costuma esperar de um artista (risos). Mas eu sonho muito.
JB - E anota seus sonhos?
Chico - (Risos) Não sou tão organizado, nem tão pé no chão assim.
JB - O seu disco, nas melodias sobretudo, tem um tom um pouco triste, com exceção de duas ou três canções. Isso é só impressão?
Chico - Acho que minha voz é que é triste. A pessoa escuta e diz: "mas que coisa triste!"(risos). É um engano. Para mim tem muito humor. O humor perpassa as letras todas. As letras aparentemente tristes, elas têm um certo distanciamento dessa tristeza. Agora, a voz é que faz tudo parecer meio triste.
JB - Mas tem um tom pelo menos emocionado. Por exemplo, Você, você, da parceria com Guinga, onde um filho pequeno quer saber a que horas a mãe volta, é muito comovente...
Chico - Ah, mas é uma letra muito emocionada. As pessoas às vezes dizem "ah, você fez uma música assim", mas o eu da canção não sou eu. A minha emoção está passando pelo sujeito da emoção, que é, no caso, um filho absolutamente apaixonado pela mãe, enciumado, possessivo. Essa letra é barra pesada. Ela pode ser desesperada, mas não é triste.
JB - E a parceria com Guinga, abre novas possibilidades?
Chico - Tem várias canções do Guinga na minha gaveta.
JB - Como é essa gaveta? Tem muita coisa guardada lá? E de vez em quando você abre a gaveta?
Chico - Tem gavetas cheias, abarrotadas de fitas, inclusive essa do Guinga estava na gaveta. Essa canção está comigo há mais ou menos dez anos. Ela estava lá esperando o momento certo. A idéia da letra nasceu de um episódio que eu vi de uma mãe deixar a blusa no berço do filho...
JB - Para que ele não sentisse falta dela...
Chico - Para enganar (ri). Esse filho é meu neto. Aí pensei: tenho que fazer uma música para isso. Aí lembrei da música do Guinga e falei: é aí que vai entrar essa letra.
JB - Quer dizer que você lembrava de uma melodia guardada há dez anos?
Chico - Um exemplo mais claro é a canção do Dominguinhos (Xote da navegação). Queria fazer uma música que falasse sobre o tempo, sobre a paciência e comecei a tentar fazer essa música e não aparecia nada que prestasse. Aí falei, tem uma canção que o Dominguinhos me entregou há um tempo que é um xote russo, que é mais ou menos o que estou procurando. Fui na gaveta, encontrei a fita e a música. Não lembrava totalmente dela, mas lembrava do clima que eu queria. Aí ouvi e disse, "claro, é aqui que vou realizar essa letra".
JB - De vez em quando então você vai chafurdar nas gavetas?
Chico - É. Quando não consigo fazer a música tenho esse recurso. Com o Guinga foi mais ou menos parecido. Ele me entregou uma fita com músicas novas. Aí apareceu essa idéia para fazer essa letra, que não casava com nenhuma das músicas novas. Mas eu já estava com a idéia de fazer uma música para o Guinga. Lembrava: tem uma antiga dele, lembrava que era uma canção lenta.
JB - É mais fácil ou mais difícil fazer música por encomenda? Em A ostra e o vento, por exemplo, que você fez para o filme do Walter Lima, tinha as imagens na sua frente. Uma página em branco é pior?
Chico - São várias etapas. Cada vez mais escrevo as letras como se fosse um parceiro de mim mesmo. Antigamente, quando começava a fazer uma música, quase sempre a idéia da letra ia surgindo ao mesmo tempo. Hoje, estou terminando canções inteiras sem uma palavra. Então vou escrever as palavras para aquela música como se eu fosse um parceiro. Então não é um papel em branco. Aquelas notas vão sugerindo imagens e sons. A letra entra assim porque a música pediu. Em Carioca (cantarola), aquilo é um vôo, a música está pedindo para botar ali uma gaivota. Eu não sabia por que tinha botado uma gaivota. É como se fosse uma tela onde pintei uma gaivota e depois vou pintar o resto. Para aproveitar essa palavra. O resto da letra geralmente vem puxado por um primeiro verso, uma primeira palavra.
JB - Você tem inspiração?
Chico - Existe um momento em que acontece uma coisa inexplicável. Em que você cria uma imagem ou uma melodia quase independentemente da sua vontade. Isso se pode chamar de inspiração. Alguma coisa que você não sabe explicar como surgiu. É um primeiro momento que depois vai além. O resto aí é trabalho. Você tem que fazer uma coisa que esteja à altura daquele primeiro momento. Conscientemente. Não é tudo um sonho, uma coisa em que se fica esperando baixar um santo.
JB - Acontece de acordar no meio da noite com uma idéia?
Chico - Pode acontecer. Mas tem que estar um pouco disponível para essa idéia. Por isso é que é difícil acontecer no meio da noite. Pode acontecer, mas não é tão fácil assim. Muitas vezes você se predispõe a receber essa idéia tocando violão ou buscando o ambiente e o tempo que proporcionem a chegada de alguma idéia.
JB - Uma característica sua é a capacidade de traduzir com fidelidade absoluta o sentimento de outra pessoa, entrar na pele de uma mulher abandonada, da mãe de um guri marginal, de um filho que espera a volta da mãe, de mulheres que disputam o mesmo homem. Isso é fruto de muita observação do ser humano, de muita leitura ou de muita sensibilidade?
Chico - (Longo silêncio) Não sei se isso vem mais da leitura do que da observação. Não sei. Muitas vezes o objeto da música é impreciso porque o próprio sujeito é impreciso, porque eu não sou eu. Como diria o poeta, eu é um outro. A criação musical é muito isso, é sair de você, do seu mundo. Muitas vezes aconteceu isso. Na época da ditadura, quando você estava centrado em você mesmo, era a pior fase da criação para mim, como compositor. Porque você está muito eu, eu, eu. Aquilo invade e perturba a sua criação. Isso vai existindo cada vez menos. Você sai de você. Não só a musa dessa canção é a mãe, como o autor é o filho. Nessa música nem o você é você, nem o eu é o eu.
JB - Qualquer mãe que tenha um filho se identifica com essa canção...
Chico - No caso dessa música, foi uma observação exata. Exatamente isso. Nasceu de uma observação concreta. Outras são observações mais misteriosas.
JB - Você é também um cronista da cidade, das coisas do seu tempo. Você se sente completamente carioca ou observa a cidade de um ângulo distanciado?
Chico - Nunca me senti inteiramente carioca. Até para batizar essa música de Carioca precisei fazer um certo esforço. Essa música nasceu um pouco da história da música da Mangueira, que me chamou de carioca da gema. Depois lembrei que quem fez a música foram os paulistas, risos, então os paulistas é que acham que eu sou carioca da gema. Até os 40 anos, eu pensava, nem sou carioca, nem paulista. Passei a metade da minha vida em São Paulo. Hoje já posso me dar ao direito de me sentir carioca. É claro que é até um certo arroubo dizer "cidade maravilhosa, és minha", é uma licença poética. Não tenho essa intimidade toda. Mas naquele entusiasmo isso saiu da boca. Eu tenho essa dificuldade de me assumir como carioca. Não sou dado a carioquices, nem a paulistices, ou mineirices ou baianices. Convivo com essa gente toda. Lembro do Paratodos.
JB - Lá ninguém é carioca...
Chico - E nem eu sou carioca. Aí veio essa coisa com a cidade. Não sei se tenho estado mais observador da minha cidade ultimamente. Da natureza também. Tem muito a ver com meu último livro (Benjamim). Essa coisa da montanha que me impressiona muito, do Morro Dois Irmãos. A montanha me impressiona muito, sempre. Mais do que o mar. É a presença da montanha dentro da cidade. E mais a pedra do que a floresta. Isso me fascina muito no Rio e explica um pouco a cara do carioca, em contraponto com o paulista. Essa coisa do paulista de se levar um pouco mais a sério do que o carioca. Tem uma vantagem e uma desvantagem. Aquela cidade foi toda ele que fez, aqueles prédios. E o carioca não fez nada, isso está aqui. O que sou diante dessas pedras?
A seleção não é a pátria de chuteiras
O escritor e compositor torce mais pelos jogadores brasileiros do que pela equipe nacional
Chico Buarque não concorda com a famosa frase de Nélson Rodrigues - "A seleção é a pátria de chuteiras" - e critica Zagallo por confundir a seleção com o Brasil e o técnico da seleção com o Brasil. "A gente ainda vê isso como um ranço que Zagallo traz dos anos 70, uma certa agressividade contra os seus críticos." O compositor, que durante a Copa vai escrever uma crônica por semana para o Estado, fala nesta entrevista sobre sua paixão pelo futebol.
Estado - Você terá uma experiência diferente na Copa do Mundo na França, agora como colunista esportivo. Qual é a expectativa para esse novo trabalho?
Chico - É a primeira vez que vou escrever sobre esporte. A minha única experiência com jornal foi do tempo em que eu morava em Roma e era correspondente do Pasquim. Escrevia algumas crônicas, acho até que falei sobre futebol, mas nem me lembro direito. Na verdade, é a primeira copa a que eu vou assistir assim, direto, do começo ao fim. Cheguei a assistir a uma partida da Copa de 50, quando era criança, e a uma partida do Brasil na Copa da Itália. Fui a Turim e vi Brasil e Suécia. Aliás, faz parte também do trabalho na França jogar futebol. Alguns jogos estão marcados com jornalistas e músicos que jogam lá. A minha expectativa em relação à seleção brasileira acho que é a de todo mundo, é ainda de incerteza, porque a gente não conhece o time que vai jogar, apesar de que a qualidade de jogadores que a gente está levando para mim é superior à das últimas copas. O que vai ser esse time e como é que vai sair no campeonato... Não sei nem exatamente sobre o que vou escrever durante a copa, porque não vou fazer trabalho de jornalista, não sou jornalista, não vou cobrir as partidas do Brasil. É evidente que, conforme as coisas forem acontecendo, eu vou comentar a seleção brasileira, como posso tratar de outros assuntos que chamem a atenção. Não sei se é o jogo em si, se vai ser o ambiente na copa em Paris e na França, se vai ser uma surpresa. Estou muito curioso, especialmente pelo desempenho dos times africanos. Eu gosto muito deles.
Estado - Você acompanha o trabalho de colunistas esportivos e da crônica esportiva?
Chico - Não, muito pouco. Dou aquela olhada por alto, às vezes leio a coluna do Tostão. Também não sou um grande leitor de páginas esportivas. Gosto muito de futebol, mas também não sou maluco por futebol. E gosto de escrever. Então, acho que é um bom pretexto para me exercitar escrevendo. Na verdade, quando convidado, relutei um pouco, mas depois, a título de experiência, comecei a esboçar alguma coisa e comecei a tomar gosto pelo assunto e pela possibilidade de escrever. Eu até tenho uma ou outra coisa mais ou menos entabulada. O primeiro texto vai ser publicado antes do início da copa e está bastante adiantado. Tinha um pouco de receio de chegar lá de mãos vazias e, por não ter essa prática, na hora não saber bem. Jamais seria capaz de aceitar um convite para escrever diariamente. É um artigo por semana. E vai me dar tempo de curtir um pouco. Para quem não está habituado, é muito difícil. Imagino que sim. Aliás, eu não entendo como um colunista como o Verissimo escreve com aquela qualidade toda. Tenho impressão de que terei credencial que me permite até entrar nos treinos, não sei; nunca fui de assistir a treino. A não ser quando era garoto. Vou tentar recuperar aquele meu entusiasmo de garoto. Lembro de ter ido a treino da seleção em 58; lembro da seleção concentrada no Pacaembu. Tinha 14 anos, aí sim eu era maluco por futebol. Eu lembro de ficar vendo aqueles jogadores entrando e era estranho porque você quase não via futebol na televisão. Eu não tinha televisão em casa e a imagem da televisão também não ajudava muito, você via de longe e tal, então você não sabia muito bem a cara dos jogadores, a não ser pelas figurinhas. De repente eu via aquelas pessoas ali que eu conhecia de figurinhas e ficava olhando para a cara delas tentando identificar um ou outro. Ficava no portão principal do Pacaembu, os jogadores entrando no ônibus e uma dúzia de babacas ali olhando a cara dos jogadores. Eu devia estar com cara de bobo mesmo. Lembro do Almir Pernambuquinho. Ele entrou no ônibus, olhou para a minha cara, apontou e fez uma careta. Ele riu da minha cara porque devia ser uma cara de idiota completo vendo aquelas figurinhas se mexendo.
Estado - Naquela época não havia transmissão de jogos e era mais difícil identificar os jogadores...
Chico - Não tinha transmissão. Até vi pela televisão a Copa de 54, porque na época estava morando na Itália e passava na televisão direto da Suíça. Eu lembro muito de Brasil e Hungria. Também não tinha televisão na minha casa em Roma. Tinha uma televisão numa loja e aí ficava aquele bando de italianos assistindo, e eu, aquele garoto brasileiro, no meio. Eles perguntavam coisas, queriam saber se o Nílton Santos era irmão do Djalma Santos e um era branco e outro preto, os dois eram Santos. Nílton Santos era elegantíssimo e, de certa forma, um precursor dessa ala. Era um lateral que avançava e criava.
Estado - Essa paixão pelo futebol nasceu mais ou menos em que período da sua vida?
Chico - Eu me lembro muito disso assim, na minha infância mais remota, em São Paulo. Eu lembro porque a casa onde eu morava era na Rua Haddock Lobo, então isso foi antes de eu viajar para a Itália, antes dos meus 8 anos. Lembro muito de jogar futebol na rua, de colecionar aqueles álbuns de figurinhas que a gente nunca completava, tinha figurinhas carimbadas e umas balas, as balas eram horrorosas, ninguém chupava aquelas balas. A coisa mais emocionante do mundo era quando eu conseguia algum dinheiro para comprar não as figurinhas, mas a caixa. Se não me engano, custava 50 cruzeiros. Era muito dinheiro para uma criança, mas não sei se era aniversário. Eu abri aquela caixa, acho que tinha umas cem balas, se alguém chupasse aquelas balas ia ficar doente. E ia abrindo aquelas balas e tirando aquelas figurinhas, repetidas, repetidas, até que aparecia uma carimbada. Joguei muito botão. A minha infância é cheia de futebol. De 8 a 10 anos morei na Itália e senti essa diferença. Mesmo o italiano que gosta muito de futebol não joga pelada como o brasileiro joga. Tinha dificuldades para arranjar campo de pelada. Jogava um pouco na escola, e ali era difícil porque era escola americana. Na verdade nessa escola jogava beisebol. Durante dois anos fui jogador de beisebol.
Estado - E gostou de jogar beisebol?
Chico - Gostava. É um jogo que eu não assisto nem pago, acho chato de assistir. Mas qualquer esporte que você conheça é bom de praticar. Então durante dois anos joguei mais beisebol do que futebol, o que prejudicou inclusive a minha atuação como jogador de futebol. Eu era um garoto muito habilidoso com a bola. Joguei até como goleiro. Ficava no gol, às vezes, não sei se por gosto ou rodízio. E ficava sempre com o joelho ralado.
Estado - É possível fazer uma comparação entre a antiga geração de jogadores do Brasil e a atual?
Chico - Eu acho impossível. O futebol mudou tanto e essas seleções de todos os tempos que as pessoas gostam de fazer para mim são uma brincadeira. Você não pode imaginar o Garrincha e o Ronaldinho no mesmo time. Mesmo num esforço de imaginação é uma brincadeira. O futebol está muito ligado à infância da gente, então é natural que as pessoas que gostam de futebol quando se encontram e começam a conversar sejam saudosistas, e são. Eu, ao contrário, não sou muito. É claro que lembro daqueles jogos, para mim é uma lembrança formidável, porque eu era criança. Agora, pensando com uma certa distância, eu não acho que o futebol de hoje seja inferior ao que se jogava naquele tempo. Há outro tipo de jogo. Superar a marcação de hoje como o Ronaldinho supera, conseguir o que ele consegue é milagroso.
Estado - Como você analisa a relação da mídia com o astro de futebol? Hoje já não há nem mais adjetivos para o Ronaldinho. Na Espanha, ele era o ET. Na Itália, é o Fenômeno.
Chico - A diferença é que na mesma medida em que eles têm dificuldades de inventar novos adjetivos, esse jogador, um jogador como Ronaldinho, está se pondo à prova a cada domingo. Qualquer craque desses tem o sucesso instável. Dependendo de quem é, então, a cobrança é mais exagerada. Eu fico às vezes impressionado com um jogador como o Romário, por exemplo, a respeito de quem parece que existe uma tolerância zero. E o Romário é um craque, deu a Copa de 94 para a gente e, se ele passa duas partidas sem fazer gol, acabou. E eu já vi o Romário acabar muitas vezes. Aí entra muita coisa, a simpatia, a maneira como lida com a mídia... Gosto muito do Romário e também acho que ele cria uma imagem antipática exatamente por uma grande virtude dele, que é o orgulho, é um sujeito que não se deixa passar a mão na cabeça. E dá a impressão de fidelidade aos amigos.
Estado - Você gosta dessa dupla de ataque? São dois jogadores com características muito parecidas.
Chico - Mas eu já vi os dois fazerem grandes jogadas. Se não me engano foi na primeira partida que jogaram juntos. Vi os dois juntos infernizando a zaga italiana.
Estado - E essa seleção do Zagallo, o que você acha dela?
Chico - Eu não conheço o time do Zagallo. O time que ele escalou outro dia, se não me engano, é um time que nunca jogou junto. Então vamos começar. Mas os jogadores são muito bons, esse time é muito bom, como poderia ser muito bom com metade do time alterado.
Estado - Teve o caso do Raí, que jogou aquela partida, foi queimado, voltou para o São Paulo e tem sido decisivo para o time...
Chico - O caso do Raí foi cruel, incompreensível. Eu me lembro da outra partida, contra a Alemanha, por acaso eu estava em Paris e foi noticiada a volta do Raí à seleção. E ninguém entendeu chamar o Raí e deixá-lo no banco. Nem o colocaram para jogar no segundo tempo. Em determinado momento o Dunga foi expulso, mas aí já era tarde.
Estado - O futebol brasileiro elegeu a Era Dunga desde 1990. Você, que é um defensor do futebol ofensivo, concorda com isso?
Chico - O futebol todo mudou. Eu não entendo muito por que o Brasil, tendo a vantagem natural dos craques, não possa impor o seu estilo de jogo. Jogar com dois Dungas porque essa é a regra geral e todos os países jogam assim? Acho que, ao menos no futebol, o Brasil poderia estar ditando as regras. Imagino que o modelo de jogo possa estar a serviço dos jogadores que a gente tem. Até na Copa de 70, quando foi escalado aquele time, o Rivelino foi jogar na esquerda porque era um craque e não podia ficar fora do time.
Estado - A seleção brasileira entra em campo de mãos dadas desde 94...
Chico - Será que ela vai entrar de mãos dadas de novo?
Estado - Sempre entra, até em amistoso.
Chico - Quando o time entra de mãos dadas eu fico com um pouco de vergonha. Aliás, geralmente quando ligo a televisão eles já entraram para eu não ter de ver aquela cena. Aquilo não quer dizer nada.
Estado - Você acha que o talento do jogador brasileiro tem muito a ver com a miscigenação de raças, com essa cultura brasileira?
Chico - Tem a ver, mas eu não vou me adiantar muito sobre isso senão vou roubar de mim mesmo o assunto da minha coluna. Mas é claro que essa ginga está muito no jogador africano e alguns países europeus. Alguns jogadores italianos têm a habilidade muito grande, os iugoslavos...
Estado - O presidente da Fifa, João Havelange, condena o uso da TV para resolver os erros no futebol. Acredita que isso decretaria a morte do futebol. Você acha que a TV seria importante para arbitrar jogo?
Chico - Não acho que seja o erro que dê graça ao futebol. Só acho que o futebol tem esse grande sucesso em países pobres, como é o Brasil, como são os países africanos, porque é um esporte que dispensa tecnologia. Se aparecer a televisão como tira-teima em jogos oficiais, vai ter de se criar uma coisa parecida no interior do Maranhão. Serão duas categorias. Um futebol de tecnologia, dos ricos, para eventos especiais, e o resto do futebol que se joga quase de forma amadora. Esse futebol será um futebol de segunda classe.
Estado - Há quem diga que, das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante. O que você acha disso?
Chico - É bom isso, bom... O futebol é importante para nós, brasileiros, não porque a seleção seja a pátria de chuteiras, como se diz. Isso é uma besteira. Eu acho o contrário disso. Acho importante o futebol como valorização de um brasileiro que, em sua grande maioria, é alguém por quem a pátria não fez nada. Você vai lá fora e não há nada como o futebol que nos represente tão bem, e o Brasil, como pátria, tira uma casquinha e vai de carona no sucesso desses jogadores, que são, nesse sentido, heróis. Estava lendo uma entrevista do Denílson, que foi criado em Diadema, ele falando dos colegas dele, que muitos morreram, outros estão na droga. Ele vem de um ambiente inteiramente desassistido. E esses jogadores representam o Brasil, apesar do Brasil. O homem brasileiro é capaz disso e fico sempre comovido com isso. Eu torço muito pelos jogadores brasileiros, mais até do que pela seleção brasileira. Acompanho o futebol italiano para ver o Ronaldinho na Inter de Milão, o Edmundo na Fiorentina, para ver esses craques todos. Sobre essa tentativa de exploração, de falar esse tipo de coisa, a seleção é a pátria de chuteiras, a gente ainda vê isso como um ranço que Zagallo traz dos anos 70, uma certa agressividade contra os seus críticos e dizendo que quem está contra o trabalho dele está contra o Brasil, confundindo a seleção com o Brasil e o técnico da seleção com o Brasil. Isso é típico dos anos 70 e não tem mais cabimento hoje.
Estado - Como surgiu a idéia de criar o Politheama, o seu time de futebol?
Chico - O Politheama, na verdade, era meu time de botão, com as cores verde e azul. Há 20 anos, eu e amigos começamos a jogar no Recreio de Bandeirantes. E havia torneios, o Politheama começou a disputar esses torneios e está aí até hoje.
Estado - Além da convivência com Garrincha, na Itália, você teve contatos com outros grandes jogadores de futebol?
Chico - Conheci outros jogadores, como o Pagão, que era meu ídolo de infância. Fui apresentado ao Pagão durante o programa especial que a Bandeirantes fez, depois disso estive com ele algumas vezes, conheci a família dele, estive na casa dele, joguei no clube portuário, onde ele jogava tamborete. Agora, com o Garrincha foi uma relação mais próxima no sentido de que nós estávamos um pouco desamparados em Roma, porque, quando estive com ele, eu não estava trabalhando muito, estava vivendo um pouco de expectativa de voltar para o Brasil, e ele estava lá fazendo alguns bicos como jogador, participava de algumas peladas porque ele gostava e ao mesmo tempo porque ele precisava, era um dinheirinho que entrava. Ele estava duro e eu também estava duro, então foi uma convivência muito especial, diferente de qualquer outra que possa ter. Ele era um sucesso formidável, íamos em lugares com arquibancadas improvisadas e tal, porque os jogadores não eram exatamente o Jordan e outros marcadores que teve, eram times amadores. Fazia umas três a quatro jogadas e saía aclamado de campo.
Estado - A sensação de desfilar pela Mangueira na Marquês de Sapucaí lotada e com o público emocionado seria semelhante ao prazer de marcar um gol?
Chico - Daria para comparar se eu estivesse na seleção brasileira, porque a Mangueira é um pouco isso. Estava lendo outro dia, acho que era o Vavá, dizendo que ele sentia saudade até das vaias. Imagina a falta que não deve fazer isso, é a tragédia de muitos jogadores quando param.
Estado - A seleção brasileira vive uma fase de contusões. Você, como jogador de futebol, já sofreu alguma contusão mais séria?
Chico - Já. Há pouco tempo eu arrebentei tudo, o pé, o tornozelo, o perônio, os ligamentos, tudo. Foi muito tempo de cama, até para voltar a jogar comecei jogando com times femininos. Na época, lembro que a minha mãe ficou preocupada e falou: "Filho, você vai voltar a jogar? Já está com cabelos brancos." Disse: "Mas o Júnior também está, mãe."
A paixão eterna de Chico Buarque
Maior compositor da MPB, cantor, escritor, ator de cinema, autor de teatro, enredo (vitorioso) de escola de samba - de tudo Chico Buarque já fez um pouco. Agora, enquanto grava um novo disco, ele prepara uma surpresa para seus fãs: vai ser cronista esportivo. Durante a Copa da França, Chico será colunista do GLOBO e, em seus textos, poderá mostrar toda a paixão que tem pelo futebol. Nesta entrevista exclusiva, ele fala da infância de peladeiro, da admiração pelo futebol ofensivo, de seus ídolos, da tentativa de ser jogador profissional e da frustração de não ter feito um gol no Maracanã. O prazer que tem de jogar é tão grande que os contratos de show no exterior têm que incluir uma pelada. "Já joguei em Paris, Portugal, Angola e até em Cuba."
RF - Você está indo para a Copa dentro de poucos dias. Qual a sua opinião sobre o time do Brasil: é um timaço ou está com cara de ser um novo 1966?
Chico - Eu não lembro o time de 1966. Engraçado, foi uma Copa que eu não acompanhei muito, estava meio desligado de futebol. Eu acompanhei até 1962 e depois pulei 1966. Agora, comparando com a última Copa - e o futebol mudou tanto - acho que a gente tem mais time, tem mais jogadores, tem mais opções.
RF - A espinha dorsal do time, com Aldair, Dunga e Romário, está mais velha. Isso pode influenciar?
Chico - Eu não entendo de futebol... Eu vou a essa Copa, que é a primeira que eu pretendo assistir do começo até o fim, mas a minha idéia de escrever é um pouco de escrever sobre futebol também para quem não entende de futebol que nem eu. Porque eu acho que a Copa é um acontecimento que interessa até a pessoas que não se interessam por futebol, que não gostam de futebol ou que não acompanham futebol. Eu gosto de futebol, o que não quer dizer que eu entenda de futebol. Geralmente a gente gosta das coisas que não entende exatamente. Eu não entendo nada de música e gosto de música e trabalho com isso.
RF - Eu ouvi bem? Você está dizendo que não entende nada de música nem de futebol?
Chico - A gente gosta das coisas que não entende; as coisas que entende a gente não gosta. Eu entendo de quê? De gramática, de trigonometria! Mas eu não gosto dessas coisas... Futebol eu sou um apreciador, mas eu nem acompanho muito bem uma partida. Estou prevenindo sobre isso porque eu vou escrever sobre futebol e quero que as pessoas saibam que vão ler textos de quem não observa talvez muito objetivamente um jogo de futebol. Eu gosto tanto de futebol que, muitas vezes, assistindo a uma partida, eu me desligo inteiramente do que está acontecendo. Uma jogada bonita, por exemplo, que é interrompida, eu fico imaginando o que é que poderia acontecer e fico ainda um tempo parado naquilo. E aí a bola já está no outro lado do campo, e se me perguntarem o que aconteceu eu não sei reproduzir, porque estava pensando em outras possibilidades. Então é isso: eu não quero que esperem de mim uma análise muito objetiva. Mas, sobre a seleção, vamos lá: a gente tem um time um pouco envelhecido e até entre os jogadores que não vão acho que a gente tem um time de jogadores aptos a jogar pela seleção mais do que há quatro anos. Acho mesmo. Sem falar do Ronaldinho, que já deveria ter jogado nos EUA - até para nos dar o gosto de ver um Ronaldinho jogar uma Copa com 17 anos.
RF - Nesta discussão sobre maior ou menor número de atacantes, como você fica?
Chico - Eu só gosto de futebol ofensivo, só gosto de ataque. Aliás eu não entendo nada de jogador de defesa. E gostaria que tivesse mais jogadores na frente. O Denílson, por exemplo, só é convocado pelo que ele joga no São Paulo, não como marcador. Mas aí o Roberto Carlos, como ala, joga na função que é do Denílson. Eu não vejo por que não possa jogar na função de número 1 o Muller, por exemplo, que faz isso no Santos também. O que eu estou vendo é que as pessoas reclamam que os atacantes estão muito isolados e ao mesmo tempo atrás também falta jogador. Quer dizer: eu não sei onde estão esses jogadores... Estão todos embolados no meio de campo e estão marcando no meio de campo, e todos não atacando no meio de campo e deixando os atacantes isolados e a defesa muitas vezes também desguarnecida, em situação de desvantagem.
RF - Rivaldo e Giovanni, que não vinham jogando, poderiam ser mais bem trabalhados?
Chico - O Rivaldo, pelo que a gente vê pela TV no Barcelona, está jogando muita bola. Na seleção ainda não vi ele jogar o que está jogando no Barcelona. Então, deve ser um problema tático.
RF - Qual a sua opinião sobre o Zagallo?
Chico - Tenho dificuldade de entender o que ele pensa. Eu não me lembro muito do Zagallo se definindo em relação ao futebol. Eu lembro muito do Telê falando, ele tinha uma opção clara pelo futebol bonito, é um sujeito preocupado com a violência no futebol. O Zagallo eu vejo opinar muito pouco. Ele fala muito de vitória, "nós ganhamos, nós perdemos, nós jogamos muito mal", sempre essas coisas. Inclusive aquela coisa meio desagradável de que quando ganha ele fica um pouco enfurecido. Mas ele não é nada bobo: joga muito com essa coisa do resultado e com a superstição, repetindo que é um homem de sorte. E de certa forma as pessoas acreditam muito nisso. As pessoas acreditam que futebol é sorte - e um pouco é mesmo. O Brasil ganhou a última Copa por causa de um pênalti, aquilo foi sorte. Mas realmente não sei o que o Zagallo pensa sobre futebol.
RF - Qual a primeira Copa que você se lembra?
Chico - A de 1950. Na Copa de 50 eu até assisti a uma partida entre Brasil e Suíça. Eu morava em São Paulo na época. Depois, em 54, eu morava na Itália e vi pela televisão, passava direto da Suíça. Me lembro de Brasil e Hungria. E 58 e 62 eu ouvi pelo rádio.
RF - E você se desligou do futebol depois disso por quê?
Chico - Em 1966 eu estava começando com música, estava estudando arquitetura. Engraçado isso, porque eu jogava muito futebol na escola e depois que eu fui para a faculdade parei de jogar e de acompanhar um pouco. Eu gosto mais de jogar bola do que de assistir. Em 1970 eu tinha voltado para o Brasil e em 1974 eu estava aqui também.
RF - Em 1970, depois em 1994, houve muita acusação de uso político das vitórias do Brasil pelos governos. Você acha possível isso acontecer agora?
Chico - Eu acho difícil o Fernando Henrique convencer alguém de que ele gosta de futebol... Em 1970 a gente percebia claramente que havia um uso da seleção. Aí era violento e a gente não pode nunca comparar com 1994 e nem com uma possível exploração política em 1998. Em 1970 era evidente, toda a propaganda era voltada para isso. Inclusive o próprio Médici era supostamente uma pessoa que entendia de futebol e ia ao campo com aquele radinho de pilha. Uma vez eu estava no Maracanã e quase fui atropelado por aqueles batedores chegando com o Médici. Foi a única vez que eu vi o Médici, de longe. Mas quem gosta de futebol, como eu gosto, era incapaz de reagir politicamente ao uso político da Copa a ponto de torcer contra o Brasil. Talvez por causa desse uso político feito durante a ditadura militar, eu fiquei um pouco avesso a essas patriotadas, que são recorrentes. Não é nem por imposição de governo hoje em dia. É uma coisa que ficou impregnada no tipo de uma opção de transmissão, essa propaganda toda que se faz em volta: "Brasileiro gosta de futebol, brasileiro gosta de mulher." Como se os outros povos não gostassem... Fica muito Brasil, Brasil, Brasil, que é uma coisa meio desagradável e lembra um pouco esse período aí. Mas eu torcia pelo time brasileiro sem torcer pelo Governo.
RF - Tem que ter muita frieza para conseguir não torcer pela seleção.
Chico - Principalmente porque o time era bom, o futebol era bonito. Eu não sou patriota a ponto de torcer pelo Brasil quando ele joga mal. Pelo contrário: se estiver jogando mal, se estiver jogando contra um time que está jogando muito bonito, eu sou capaz de torcer para o Brasil tomar um gol. Se tiver uma jogada de ataque de Camarões contra o Brasil e a jogada for maravilhosa, eu vou torcer para aquela bola entrar. Eu gosto de futebol bonito. Essa Copa de 1994... Não me interessa esse tipo de vitória.
RF - A seleção de 1982 marcou muito mais do que a de 1994.
Chico - Mas muito mais! Para mim e para todo mundo. Quando as pessoas conversam comigo de futebol no exterior, na Europa, elas vêm falar toda hora no time de 82. Ninguém fala do de 94... E falam do Falcão, do Zico, do Sócrates. O tempo todo. Ninguém esquece. Então eu me pergunto: para que ser campeão do mundo? Ser campeão e fazer o que com essa taça? Guardar para ser roubada? Não interessa o troféu.
RF - Você jogava muita pelada quando era garoto?
Chico - Eu jogava muito na rua, em São Paulo, onde passei toda minha a infância. Quando eu vinha ao Rio jogava um pouco na praia, mas nunca me dei bem com futebol na areia, não estava acostumado. Mas jogava futebol na rua mesmo, de parar quando vinha carro. É claro que vinha carro muito de vez em quando. Hoje isso seria impossível, a rua que eu jogava é movimentadíssima, cheia de restaurantes, a Rua Haddock Lobo. E era assim: quando vinha um carro lá em cima o pessoal gritava: "Olha a morte!" Parava o jogo, passava a morte, e continuava depois. O futebol que eu jogava era praticamente só esse. Fui jogar em campo só na escola. E joguei algumas vezes em campo de várzea lá em São Paulo.
RF - E como é que você, criado em São Paulo, virou torcedor do Fluminense?
Chico - Porque eu morava em São Paulo mas era carioca, vinha sempre ao Rio, minha família era daqui. Quem me levava para futebol era minha mãe, meu pai não dava bola para futebol. E minha mãe era torcedora do Fluminense, sabia o time tricampeão de 1917/18/19. Até hoje ela sabe de cor esse time. Eu lembro de um Palmeiras e Fluminense até hoje. Lembro bem que o Castilho defendeu um pênalti e o juiz mandou cobrar de novo... Eu fiquei revoltadíssimo. Era aquele time de Castilho, Píndaro e Pinheiro.
RF - Tirando aquela breve interrupção, você nunca mais parou de jogar peladas.
Chico - Depois dessa interrupção, voltei a jogar. Quando eu morei na Itália, em 1969, jogava futebol lá. Cheguei a jogar num time semi-amador, uma vez chegaram a me dar ajuda de custo num treino. Na volta joguei muito futebol de salão, aqui perto, no Clube Carioca, e depois comecei a jogar lá no Recreio dos Bandeirantes.
RF - E hoje você joga em qualquer lugar do mundo...
Chico - Em qualquer lugar. Faz parte do meu contrato, quando tem shows, temporada lá fora, faz parte do contrato uma pelada. E tenho jogado por aí: Paris, jogo bastante em Portugal, em Angola, em toda parte. Até em Cuba consegui jogar futebol... Não jogam nada!
RF - É verdade que você saiu de uma reunião de escritores em Paris para jogar uma pelada nessa última viagem?
Chico - Lá em Paris tem um campinho que eu jogo sempre, aqueles campinhos da Prefeitura na periferia, com grama sintética. Sempre tem uma pelada, com latino-americanos e africanos - o francês de uma forma geral não gosta muito de pelada. Eu não cheguei a largar nenhuma reunião para jogar futebol, mas deixei de ir a algumas...
RF - Você não é um torcedor desses que fica nervoso, nem quando o Fluminense perde?
Chico - Eu não posso ficar nervoso quando o Fluminense perde, senão eu viveria nervoso... Tinha um tempo que eu ia mais ao Maracanã, quando o Fluminense era um time mais de competição, e aí eu torcia. Eu já não esquento com isso. Nem posso... O Fluminense não me anima mais.
RF - Reza a lenda que o seu time, o Politheama, nunca perdeu uma partida...
Chico - Partida oficial o Politheama nunca perdeu. Impressionante esse número. Vinte anos!
RF - Como começou o Politheama?
Chico - O Politheama era o meu time de botão que foi promovido a gente... O time surgiu quando a gente começou a jogar nesse campo do Recreio. Tinha um pessoal de música, um pessoal que jogava salão no Clube Carioca, tinha a turma de cinema também. O difícil é conseguir adversário na mesma faixa etária: não dá para manter essa invencibilidade jogando contra garotos. Agora quem está indo muito ao campo são os filhos dos artistas. Então vão os filhos do Djavan, do Novelli. Lá fora, quando a gente chega, quer adversários de mais de 40 anos. E é difícil conseguir onze jogadores com mais de 40 anos...
O que é mais emocionante: ganhar uma Copa do Mundo ou um desfile de escola de samba?
Chico - Eu nunca ganhei uma Copa do Mundo, nunca fui convocado... Mas imagino que seja uma coisa parecida. É claro que ganhar uma pelada, ganhar uma partida pelo Politheama, não é a mesma coisa que desfilar pela Mangueira. É claro que não! E a platéia é maior...
RF - Embora você tenha dito que não entende nada de futebol, várias músicas suas falam de futebol.
Chico - Tem menos do que eu gostaria. Tem uma música chamada "O futebol", e fora isso o futebol é citado aqui e ali em meia dúzia de músicas.
RF - A primeira foi aquela que você fez para o Ciro Monteiro.
Chico - Essa do Ciro é a transformação da camisa do Flamengo que ele mandou para a Silvinha, quando eu morava em Roma, numa camisa do Fluminense.
RF - Você tem uma música que fala até num jogo Flamengo e River Plate. Onde você foi arranjar esse jogo?
Chico - Acho que foi só por causa da rima. River Plate era para rimar com leite... "O futebol" é a homenagem aos meus cinco atacantes preferidos: Garrincha, Didi, Pagão, Pelé e Canhoteiro. É a dedicatória que vira uma linha de passe.
RF - Nessa música você compara o trabalho do compositor ao dos craques.
Chico - O do compositor, do pintor... Eu coloco o futebol acima dessas artes todas. Não que eu considere o futebol uma arte superior a estas. Mas há certos momentos de genialidade do futebol, daquela capacidade de improviso, alguns relances que acontecem no futebol, que artista nenhum consegue produzir.
RF - Tirando Pelé e Garrincha, esses são os melhores jogadores que você viu em atuação?
Chico - Isso tem muito a ver com o futebol que eu assistia nessa época, na década de 50. Normalmente é nessa idade que você gosta de futebol, entre 10 e 20 anos. Depois você começa a se interessar por outras coisas, começa a namorar, vai trabalhar. Eu era como essa garotada de hoje que adora futebol. Quando eu morava perto do Pacaembu, em São Paulo, eu assitia a tudo o que acontecia lá. Na verdade, o que eu queria era ser jogador de futebol. Isso era por volta de 58. O Pelé, o Garrincha e o Didi todo mundo viu jogar, mas o Pagão e o Canhoteiro pouca gente viu. Só quem morava em São Paulo ou esporadicamente em jogo de seleção. Essa linha nunca jogou junta. Esse ataque dos meus sonhos nunca chegou a se juntar. Pagão era um cracaço, mas não jogou muito tempo. Ele foi um dos grandes parceiros do Pelé. Eu vi a dupla Pelé-Pagão acontecer ali no Pacaembu: era uma dupla infernal. E quando via ele jogar eu queria ser o Pagão. Aliás eu sou o Pagão: na súmula do Politheama assino Pagão, e a minha camisa é a 9 em homenagem a ele.
RF - Você joga mais tabelando e servindo...
Chico - ...para o Vinícius (França, produtor de Chico) fazer os gols... Ele é produtor, mas no futebol eu é que trabalho para ele. Mas eu gosto. Eu tenho prazer em servir o centroavante. Estava conversando com o Tostão outro dia e ele falou daquele time famoso do Cruzeiro, que tinha o Natal, o próprio Tostão e o Evaldo, que era um centroavante que não gostava de fazer gol. Eu gosto de fazer gol, mas essa coisa que chamam de assistência é formidável. Entregar uma bola de bandeja e fingir que não foi você que fez o gol. Foi você que fez o gol, claro.
RF - E o Canhoteiro, seu outro ídolo? Esse quase ninguém sabe quem é hoje em dia.
Chico - Canhoteiro era um gênio. As pessoas o comparam ao Garrincha. Ele jogava na ponta esquerda, era um driblador, só que tinha um drible na corrida, mais veloz, não parava como o Garrincha. Ele tinha essa coisa lúdica igual ao Garrincha: você ria vendo o Canhoteiro jogar. O ataque do São Paulo era Maurinho, Dino Sani, Gino, Zizinho e Canhoteiro. Naquele ataque dos meus sonhos falta o Zizinho, que só não está porque não sobrou espaço. Ele é o técnico desse meu ataque. O Pelé me disse uma vez que o ídolo dele era o Zizinho.
RF - O sonho de todo peladeiro, que é jogar no Maracanã, você já realizou. Mas o segundo sonho de todo peladeiro, que é fazer um gol no Maracanã, você não conseguiu. Como foi isso?
Chico - Eu joguei algumas vezes no Maracanã. Na chance mais evidente que eu tive, estava na frente do gol, o gol livre, pela esquerda vinha Vinícius, o goleiro fechou o gol - quer dizer, cabia ao Vinícius simplesmente tocar para a direita que eu estava ali para marcar - e o Vinícius tocou em cima do goleiro. No futebol, é dando que não se recebe.
RF - A sua vontade de ter sido jogador de futebol às vezes lhe faz até se apresentar como se fosse. É verdade isso?
Chico - É verdade. A última vez eu estava no Marrocos. O que o pessoal lá gosta de futebol é impressionante. Essa coisa de que brasileiro gosta de futebol, brasileiro gosta de mulher, brasileiro gosta de carro... No Marrocos, pelo menos de futebol eles gostam mais do que brasileiro. Só falam de futebol. A última vez que eu falei que era jogador de futebol no Brasil foi no táxi. Aí o motorista olhou para minha cara e disse: "Ex-jogador, né?" Mas eu menti bastante. Falei até que tinha ido para a Copa de 82. Só que o cara sabia todos os jogadores. Aí eu falei: "Não, eu fiquei no banco, estava machucado. Eu era reserva do Sócrates." Se bobeasse, ele ia saber quem era reserva do Sócrates, pois sabia o time inteiro. Impressionante o Marrocos: você vai naquelas lojas comprar tapete e só tem figurinha nos balcões, dos times do mundo inteiro. Fiquei procurando a minha...
RF - Do jeito que você fala, parece que você é um jogador frustrado que compõe, e não um compositor que joga bola.
Chico - Mas eu queria mesmo ser jogador. Cheguei a tentar fazer um teste no Juventus lá em São Paulo. Fui à Rua Javari, levei chuteira, fiquei na arquibancada horas e horas e não me chamaram. Acho que o "physique du rôle" não convenceu o técnico. Passou o tempo todo e ele mandou eu voltar outro dia. Eu não voltei. Não cheguei a colocar à prova o meu talento...
RF - Uma passagem que quase ninguém sabe na sua vida é quando você serviu de motorista para o Garrincha na Itália.
Chico - Quando o Garrincha chegou a Roma, foi um pouco como marido da Elza, que tinha ido lá fazer uns shows. Na época, em 1969, ele jogava umas peladas remuneradas, e gostava muito daquilo. Geralmente eram jogos em campinhos perto de Roma. Mas era impressionante a popularidade do Garrincha. Ele foi lá em casa umas três vezes, e eu só sei que ganhei um prestígio imenso com o sujeito do bar que ficava no térreo do meu prédio quando ele soube que eu conhecia o Garrincha. Ganhei um prestígio imenso lá. A gente saía de carro e eu levava ele para essas peladas. Era impressionante como, sete anos depois da Copa de 62, todo mundo ficava atrás: "Garrincha, Garrincha." E eu era o chofer dele.
RF - Nessa época ele bebia muito?
Chico - O Garrincha bebia, e eu não posso falar nada porque eu bebia com ele, na época. Mas ele estava muito bem de espírito, nunca vi ele bêbado. Bebia bastante mas estava sempre alegre, não tinha aquela coisa depressiva do alcoolismo. Eu via nele um sujeito muito sensível, a gente falava muito de música. Fiquei muito impressionado que ele pudesse gostar de João Gilberto. E ele adorava João Gilberto. Nós falávamos de tudo, não era só de futebol. E falávamos tomando cerveja, tomando grapa.
RF - Antes de ir para Paris você ainda termina de gravar o seu novo disco?
Chico - Estou terminando. Ainda falta escrever mais uma ou duas músicas, o resto já está bem adiantado, gravado. Estou dividindo meu tempo entre isso e a idéia de escrever para o jornal sobre a Copa do Mundo. Esse disco, mesmo que fique pronto antes da Copa, não sai antes de agosto. Durante a Copa não se lança nada no Brasil, pára tudo.
RF - E esse disco representa o que no conjunto da sua obra?
Chico - Eu não sei bem ainda. É sempre assim: quando o repertório estiver completo é que eu vou saber a cara do disco, o nome do disco, a capa. O disco não tem cara ainda. Tem oito músicas já gravadas com arranjo pronto e ainda não sei o que é esse disco. É um disco gravado com bastante tempo, tem canções que foram escritas ano passado, como a música do filme "A ostra e o vento". São canções que foram sendo acumuladas esse tempo todo. No último disco que eu lancei com músicas novas, o "Paratodos", as músicas vieram todas de enxurrada. Nesse agora não, elas estão vindo a conta-gotas. Isso dá uma outra cara ao disco, que eu não sei ainda qual é, mas é uma cara diferente das outras.
Rapt generation «Ecrivain potentiel» depuis tout petit, Chico Buarque explique comment il a été kidnappé par la chanson populaire et comme il serait ravi de ne pas écrire de best-sellers.
RECUEILLI PAR MATHIEU LINDON, le 19/3/98
Rio de Janeiro, envoyé spécial.
Chico Buarque a 54 ans et les yeux particulièrement bleus. Il habite à Rio, près du Jardin botanique, un appartement calme avec vue sur le Pain de sucre, le Christ du Corcovado et le lac. Des tableaux s'exposent sur un canapé. C'est qu'une «catastrophe» s'est produite la veille, les pluies diluviennes ayant transpercé le plafond. Célèbre comme chanteur depuis plus de trente ans (l'école de samba de Mangueira lui a rendu hommage durant le carnaval de 1998), Chico Buarque a publié deux romans: Embrouille et Court-circuit, traduits chez Gallimard, le premier en 1992 et le second l'automne dernier. L'ambiance y est lourde, riche cependant d'«humour un peu noir», différente de celle sa musique. Le héros de Court-circuit, devant le peloton d'exécution, tâche de relier tout ce qui l'a mené là. C'est une histoire d'amour, certes, mais c'est aussi toute l'organisation d'une société où il est difficile de tenir tous les fils en main.
Chico Buarque a lu le livre de Caetano Veloso, Verdade tropical. Les deux hommes sont proches depuis trente ans, même si, comme le raconte Caetano, ils se sont séparés quelques mois durant dans la période de l'éclosion du tropicalisme ou du coup d'Etat de 1968 (qui a surenchéri sur celui de 1964). «J'ai aimé ce livre, même s'il y a beaucoup de choses avec lesquelles je ne suis pas d'accord, mais je comprends le point de vue de Caetano. Je n'envisage pas d'écrire un texte biographique. Ecrire, pour moi, c'est être en proie à l'imagination.»
Que vous apporte la littérature que vous ne trouvez pas dans la musique?
J'ai toujours écrit. Dans mon adolescence, j'étais un écrivain potentiel. Après, j'ai été presque enlevé par la chanson populaire. J'avais publié un petit récit dans le journal Estado de Sao Paulo en 1961 ou 1962. Mon père était écrivain, pas un romancier mais un critique littéraire, un sociologue. Je vivais entouré de livres. Mon premier roman est paru en 1989, je pense qu'il a fallu attendre tout ce temps le moment juste pour écrire vraiment de la littérature, même si j'avais déjà fait des nouvelles et des textes pour le théâtre. Le feedback, la réponse extérieure qu'on reçoit en littérature est nulle par rapport à celle de la musique populaire. Mais une des limites terribles de la chanson est que c'est un art de jeunesse. Arrivé à un certain âge, on fait autre chose. Des compositeurs deviennent peintres ou tout simplement ne font plus rien. Qui va au concert, qui achète les disques? C'est la jeunesse. Tout le rapport avec ma génération est un rapport qui reste aux années 60 ou 70. «Et cette chanson de 1970?», me dit-on. On n'est pas au courant de celles que j'écris actuellement. Il y a des jeunes à mes concerts, mais ils ne sont pas ma génération.
On commence à perdre le rapport avec le public et on cherche autre chose, le contraire de ce que la musique m'a donné, l'anonymat, presque l'impopularité. La littérature ne m'apporte rien que du plaisir et des angoisses dans le temps où je suis là à écrire le livre. Embrouille a eu un succès par équivoque, à cause de la confusion entre auteur de musique et écrivain. Des gens m'ont abordé dans la rue pour me dire: «J'ai acheté ton livre en pensant à tes chansons. Je n'ai pas aimé du tout.» Le deuxième livre s'est vendu la moitié du premier, 60 000 exemplaires. C'est encore trop. Le troisième livre sera peut-être la mesure de ce que doit être le public qui s'intéresse à ma littérature: 30 000 exemplaires seraient bien. Mon éditeur ne serait pas très content, mais moi si. Je n'ai aucune intention de devenir best-seller. Je l'ai été en musique populaire. Ce que je cherche est un autre chemin, pas de faire la compétition avec le musicien.
Comment avez-vous été «enlevé» à la littérature par la musique dans un pays où la frontière est lâche entre cultures populaire et érudite?
J'étais adolescent, j'avais 16-17 ans quand est né chez nous un mouvement de musique populaire très très fort qui a enlevé toute notre génération. Le plus important, à la fin des années 50, c'était Tom Jobim, João Gilberto, la bossa nova. C'était un moment très particulier avec la construction de Brasilia, des expériences théâtrales, Glauber Rocha et le cinema novo, et la littérature était hors de ça. Tous les adolescents, les jeunes de 20-22 ans disponibles pour l'art sont devenus cinéastes, hommes de théâtre, musiciens. La littérature, c'était la génération précédente, celle de mon père. Vinicius de Morães était un poète culte. Quand il a abandonné la poésie pour se mêler de la chanson populaire, il a baissé de statut [c'est lui qui a fait les paroles d'A Garota da Ipanema, la Fille d'Ipanéma, dont Tom Jobim a fait la musique, ndlr]. Pour ses anciens admirateurs, c'était une trahison. Il s'est exilé de sa génération pour aller vers la nôtre.
Votre fille est mariée au musicien Carlinhos Brown et votre petit-fils a été insulté dans la presse. Comment expliquez-vous qu'on parle si peu du racisme brésilien?
J'ai reçu un jour un journal de l'intérieur du pays avec un article honteux qui faisait en outre un peu comme si la mère de ma fille et moi étions fâchés contre elle pour avoir épousé un Noir et nous avoir donné un petit-fils métis. C'était deux fois diffamatoire. Ce qui est pire est que, quand on a mis un avocat sur l'affaire, car j'ai fait un procès, on a appris que l'auteur de l'article était noir. Il peut y avoir un racisme des mulâtres envers les plus noirs, des plus noirs envers les moins noirs dans un pays où le métissage est présent partout. Le racisme est dans les entrailles du métissage. Si un ami noir vient me visiter, s'il n'est pas reconnu comme musicien ou joueur de football, le portier ne le laissera pas monter par l'ascenseur principal, même et peut-être surtout si le portier est noir. C'est très difficile pour un Noir d'être médecin, universitaire, même comédien: à part musicien et footballeur, tout est difficile pour grimper l'échelle sociale. Dans les restaurants, les compagnies aériennes, il n'y a pas de Noirs.
Je ne m'en étais pas rendu compte, je l'ai remarqué pour la première fois au début des années 70. Dans ma loge, j'avais une serveuse noire, pour moi seul. Je lui ai demandé si elle travaillait toujours avec les artistes et elle m'a répondu que oui, qu'elle ne faisait jamais le service en salle. On suppose que les clients ne seraient pas à l'aise d'avoir des boissons ou des nourritures apportées par des Noirs. Et ce sont des choses acceptées sans contestation, donc irrécupérables.
Chico Buarque vira Chico da Mangueira
Chico Buarque assistiu sozinho, em seu apartamento no Jardim Botânico (zona sul do Rio), a apuração que apontou a Mangueira e a Beija-Flor como vencedoras do Carnaval.
Depois do resultado oficial, acenou para fãs que o parabenizavam na rua e deu um autógrafo para o menino Pedro Henrique Hasselmann, de 10 anos, em que assinou: "Um abraço de Chico da Mangueira". Leia trechos da entrevista.
Pergunta - O sr. acompanhou a apuração pela televisão?
Chico - Assisti a tudo sozinho. Quando vi o pessoal da Mangueira se abraçando e chorando, confesso que me deu um aperto no coração. Estou muito feliz por mim, mas principalmente pela Mangueira. Foi um ano de convívio e eu sei a importância que tem esse título, ainda mais no aniversário de 70 anos. Mais tarde vou à quadra dar um abraço no pessoal, curtir um pouco.
Pergunta - Chico Buarque foi o pé quente que a Mangueira precisava para vencer?
Chico - Acho que dei sorte, mas não sou muito de superstição. A Mangueira não ganhou por mim. O clima na escola estava muito bom e eles afirmavam que em 1998 viriam para ganhar.
Pergunta - As pesquisas estavam apontando Mangueira e Viradouro como preferidas. Ficou surpreso com a Beija-Flor?
Chico - Foi uma surpresa. Não sou um grande entendido em escola de samba. Acho que chegar empatado também é bacana.
Pergunta - Gostou da sua atuação no desfile?
Chico - Vi pela TV e gostei. Sábado vou estar na avenida, só que dessa vez é mais relaxado, é só alegria. Hoje de manhã, um rapaz da Mangueira veio buscar meu terno para passar. Acredito que eles já estavam esperando o desfile das campeãs.
Pergunta - Vai desfilar em 99?
Chico - Ainda não sei. Minha história com a Mangueira infelizmente termina agora no sábado. Semana que vem vou trabalhar e a Mangueira vai escolher outro enredo.
Chico Buarque canta e fala pela Mangueira
Normalmente arredio ao assédio da imprensa, Chico Buarque quebra o silêncio ao participar de "Chico Buarque de Mangueira", CD e show compostos quase só de reinterpretações de sambas clássicos da escola de samba carioca - que elegeu o artista como homenageado de seu enredo de 1998.
Destinado a angariar fundos para a escola - inclusive para a constituição de um Centro de Memória da Mangueira -, o projeto é produzido por Hermínio Bello de Carvalho (leia texto nesta página).
A única canção inédita é "Chão de esmeraldas", parceria - também inédita - entre Chico e Hermínio. O poema apresentado pelo segundo levou o primeiro ao incomum ato de colocar melodia numa letra já pronta.
Chico falou à Folha no último sábado, no Rio, sobre Mangueira, criatividade, política e o livro de Caetano Veloso.
Folha - Em que medida um projeto como esse da Mangueira retarda o lançamento de um próximo disco de Chico Buarque?
Chico Buarque - Não posso nem botar a culpa nesse disco, não seria honesto. Eu estaria lançando agora também um disco meu. Não vou por incompetência. Não foi nem tempo que faltou, foi assunto.
Folha - Você parece cada vez ter menos pressa de lançar novos trabalhos. Por quê?
Chico Buarque - Pressa eu não tenho. Desejo, sim. Gostaria de lançar, mas com pressa não vale a pena.
Folha - Isso implica um distanciamento seu em relação à música?
Chico Buarque - Implica. À medida que você vai compondo, não quer repetir o que já está feito. Parece que já fez tudo, cada vez é mais custoso. Há sempre uma pressão interior. Se me cansar da música, escrevo um livro, mas preciso estar criando. Senão não vou ser feliz.
Folha - Com que intensidade você é mangueirense?
Chico Buarque - Sou mangueirense desde criancinha, como dizem os torcedores. Garoto, já cantava: "Mangueira, teu cenário é uma beleza..." Achava que era "teu senado é uma beleza".
Folha - Desde sua geração, houve uma queda de qualidade de compositores na MPB?
Chico Buarque - Gente nova há, a permanência é que é difícil de prejulgar. Os compositores hoje parecem mais próximos da letra, é engraçado. Acho, como dizia o Nelson Cavaquinho, a música mais importante que a letra.
Folha - Mesmo os bons letristas não são raros hoje?
Chico Buarque - Tenho lido letras muito boas. Li uma do Chico César que é uma maravilha, falando dos olhinhos do gravador, da cigana lendo a mão do Paulo Freire. Só li a letra. É de alta qualidade.
Folha - Aquela necessidade de ruptura que acompanhava sua geração deixou de existir?
Chico Buarque - Uma ruptura no momento, não vejo. Mas é claro que vai chegar um momento em que aparecerá alguma coisa que - tomara - me enterre de vez (ri).
Folha - Parece haver uma desaceleração nesse processo de superação. Isso não faz com que os artistas de sua geração se tornem mitos cada vez maiores e passem a criar menos, a ficar mais preguiçosos, desacelerando junto com eles seus sucessores?
Chico Buarque - Não vejo preguiça nisso. Poderia até ser, mas me sinto tão criativo quanto há 30 anos. Hoje escrever uma canção me custa mais que fazer dez há 30 anos, mas o resultado, para mim, é positivo.
Folha - Questões políticas e sociais se tornaram menos importantes na sua música com o tempo?
Chico Buarque - Músicas diretamente políticas hoje não estou sentindo necessidade de fazer. As com temática social sempre são feitas.
Folha - Com menos impacto...
Chico Buarque - Sem dúvida. O papel do artista na ditadura é superdimensionado. Não tenho a menor nostalgia disso.
Folha - O governo FHC pode estimulá-lo a criar canções políticas?
Chico Buarque - Uma canção frontalmente de oposição, não. Não é o caso. Na época do Médici, eu queria o fim da ditadura. Hoje não quero derrubar governo nenhum.
Folha - Você leu o livro de Caetano? Qual a sua impressão?
Chico Buarque - Estou lendo. Estou gostando muito, até discordando de algumas coisas. A forma como ele vê Augusto Boal me pareceu um pouco injusta. Ele vê um sectarismo do Boal, eu vejo só uma surdez musical brutal. Páreo para o Boal, só o Zé Celso (ri).
Folha - Chico Buarque escreveria um livro como esse de Caetano?
Chico Buarque - Acho difícil. Normalmente, quando sento para escrever, me sinto um ficcionista. Quem sabe, quando chegar ao final do livro, fale: "Ah, não. Vou contar o lado B dessa história."
"Vou arrepiar no desfile" O DESFILE "Eu preferia desfilar no chão, mas sou disciplinado e aceito o que a Mangueira decidir. Estou contente em ser enredo, é a maior homenagem que um sambista como eu pode merecer. Eu sabia que era trabalhoso ser enredo, acompanhei de perto quando o Tom Jobim também foi e até compusemos um samba em homenagem (Piano na Mangueira, regravado no CD em lançamento). Mas eu sabia que seria também bonito e emocionante. Durante o ano todo aquelas pessoas estão pensando, cuidando da gente. A costureira, os passistas, a bateria, os compositores, a velha guarda. É claro que tenho que aparecer muito, mas é difícil ser Mangueira low profile."
UM MUSICAL, TALVEZ
"Como artista, como criador, sou exibicionista. Gostaria de lançar um disco anual. Não lanço porque já não faço mais 12, 15 músicas por ano. Com o passar do tempo a gente vai ficando mais exigente, mais cauteloso, não quer se repetir. Mas é engano pensar que não faço discos ou shows por timidez ou para me resguardar. Não quero expor a minha pessoa, tenho realmente muito cuidado com a minha privacidade, mas quero escrever música, lançar discos, fazer shows muito mais do que tenho feito. Quando terminar meu novo disco penso em escrever outro livro (já há cinco músicas gravadas para o CD que será lançado após o carnaval, entre elas a parceria Você, você, com Ginga, o tema de A ostra e o vento, com participação especial de Branca Lima, e a canção Assentamento, que está no livro de Sebastião Salgado e José Saramago.) Fui sondado para participar da feitura de um musical, achei interessante, mas a proposta ainda é embrionária."
SER BRASILEIRO HOJE
"Como brasileiro, hoje me sinto um pouco preocupado, mas torcendo muito pelo país, querendo que dê certo. Isso até tem a ver com o musical que eu falei, estou preocupado com o pacote que vai ser anunciado na segunda-feira (hoje), porque espetáculos, shows, todas essas coisas dependem de incentivo. Talvez os patrocínios que incentivam tanto nosso cinema, nosso teatro, estejam correndo riscos."
O DISCO E AS FESTAS
"O disco Chico Buarque de Mangueira foi idéia do Hermínio (Bello de Carvalho), que escolheu o repertório, chamou os cantores, fez tudo. Até a nossa parceria (em Chão de esmeralda) foi idéia dele. O disco tem a ver com o Centro de Memória da Mangueira, um projeto do Hermínio. Reúne um pessoal muito bom. Tem o Jamelão, o João (Nogueira), a Alcione, a velha guarda. Acho que tudo está muito bonito. Já sei que na hora do desfile vou arrepiar. Sou eu que vou estar lá, e não um personagem, uma máscara. Então já sei que vai dar aquele friozinho na barriga, porque, naturalidade, isso eu não tenho mesmo".
"O JORNALISTA, QUEIRA OU NÃO, EXERCE UM PODER"
RELAÇÕES PERIGOSAS
"Eu não gosto de intimidade com jornal e são poucos os jornalistas com quem mantenho amizade. Não gosto da idéia de estar conversando com uma pessoa, porque a tenho como uma amiga, e essa pessoa, por sua vez, possa estar interessada profissionalmente na conversa, tornando depois público o que era particular. Isso me inibe e faz deteriorar qualquer amizade. Há muitos jornalistas que sobrepõem a profissão à amizade. Já houve quem se utilizasse da minha amizade para obter informações usadas depois indevidamente. Então você é obrigado a conversar com um pé atrás e isso não é conversa de amigos. Se um amigo que é jornalista está me entrevistando, eu me comporto como um artista falando para um órgão de imprensa. O jornalista, queira ou não, exerce um poder e eu não quero ser simpático a poderoso nenhum."
CORPORATIVISMO
"Escrevi em jornais alternativos como O Pasquim, fui do conselho editorial do jornal Opinião e de outros que a censura perseguiu e esmagou. Por isso mesmo, não sou simpático a nenhuma medida restritiva à liberdade de imprensa e muito menos à idéia de uma lei que ameace economicamente a existência dos jornais. Por outro lado, acho que deveria haver menos espírito de corpo por parte dos jornalistas. Na ação que estou movendo contra o jornal de Goiás eu acabo aparecendo como racista, já que os jornais dizem que eu estou processando porque alguém falou que meu neto é mulato. E não foi isso (o juiz Itaney Francisco Campos, de Goiânia, considerou justificada a ação, fixando uma indenização de 100 salários mínimos em favor do compositor). Eu também observo que, embora exponham sem cerimônia a vida das outras pessoas, os jornalistas permanecem, por sua vez, a salvo. Há alguns muito conhecidos, pois têm suas fotos estampadas nas colunas, dão entrevistas na televisão, lançam livros, o público poderia estar interessado na vida deles também. Mas um jornalista não toca na vida pessoal de outro jornalista."
MANGUEIRA
"Sou Mangueira como sou Fluminense. Sinto uma vibração pela Mangueira que vem desde criança e chegou através das músicas que falam sobre a escola, aquelas pessoas, aquele lugar. É uma coisa mitológica para mim. Mas eu não conheço a fundo escola de samba, não tenho intimidade com samba-enredo. Vai passar é um samba-enredo estilizado, uma coisa longínqua, de ouvido desatento. Não sei dizer se um samba-enredo é bom ou não. Mas estranho esse comportamento inseguro, temeroso de se criticar o samba vencedor da Mangueira porque os autores são paulistas. Isso não combina com o espírito e o jeito do Rio. Grandes cariocas como João Saldanha, Antônio Maria e Rubens Fonseca não nasceram no Rio. O que é que tem se os autores são paulistas? Comentaram que alguns versos sugerem que eu morri. Quando a gente é homenageado já está um pouquinho morto mesmo (diz isso em tom de brincadeira). O samba mais carioca que conheço é Conversa de botequim, de Noel Rosa, em parceria com o Vadico, que era paulista. No disco que a gente está lançando eu canto Sala de recepção, do Cartola. Alguém comentou sobre a participação de portelenses (entre eles, João Nogueira). Mas o sentido da música é esse mesmo, de conciliação e encontro. Na sala de recepção da Mangueira até o Clinton foi bem recebido."
Chico quebra silêncio e admite devolver cachê
Ao falar sobre show para Tom Jobim, compositor confessou-se abatido por Paulinho da Viola
RIO - O cantor e compositor Chico Buarque resolveu romper o silêncio e falar sobre as polêmicas criadas em torno do show Tributo a Tom Jobim, realizado na passagem do ano na praia de Copacabana, no Rio. "Eu achei o espetáculo belíssimo mas, dois dias depois, fizeram dele uma meleca", afirmou. Na última quinta-feira, o juiz Ademir Paulo Pimentel, da 4º Vara de Fazenda Pública, concedeu uma liminar suspendendo o pagamento dos cachês aos artistas, músicos e empresas de serviço que participaram do show. De acordo com a liminar, os cheques da prefeitura dados aos artistas não poderão ser descontados. "Se prevalecer a denúncia de que o show foi imoral, ilegal e desnecessário, devolverei o dinheiro disse Chico, em entrevista por fax.
A liminar atendeu à ação popular contra a Riotur e a prefeitura proposta pelo advogado Agnelo Maia Borges de Medeiros, que considerou superfaturados os cachês. Na ação, ele afirma ainda que o evento não foi licitado, como determina a lei. "Não entendo como se faria uma licitação para a escolha de cantores e orquestra", pondera Chico, que garantiu nunca mais participar de shows promovidos pela prefeitura do Rio.
Chico falou ainda sobre a polêmica em torno do cachê pago a Paulinho da Viola. Enquanto Chico, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Milton Nascimento receberam R$ 100 mil cada um, o sambista embolsou R$ 35 mil. "Compreendo que Paulinho esteja abatido", afirmou.
Estado - Como você encarou a liminar que pede a devolução dos cachês pagos a artistas e técnicos que participaram do show?
Chico Buarque - Vi a notícia no Jornal do Brasil, com uma foto do show, e fiquei com a impressão de que nós, os artistas ali no palco, somos apresentados como seis estelionatários.
Estado - Você pretende devolver o dinheiro ou recorrer? É verdade que você, Caetano, Gil, Milton, Gal e Paulinho pensam em entrar com uma ação conjunta para reverter a situação?
Chico - Pelo que li, o show não poderia ser realizado porque faltou uma licitação. Não entendo como se faria uma licitação para a escolha de cantores e orquestra. Mas se prevalecer a denúncia de que o show foi ilegal, imoral e desnecessário, devolverei o dinheiro à Riotur, que talvez tenha de repassá-lo aos patrocinadores.
Estado - Durante a polêmica sobre o cachê de Paulinho da Viola você preferiu não falar. Gostaria de dizer algo sobre o assunto agora?
Chico - Compreendo que o Paulinho da Viola esteja abatido, e também é natural a mágoa de outros artistas que, tendo convivido e trabalhado com o Tom, não foram convidados para o espetáculo.
Estado - Chegaram a interpretar seu silêncio (e o dos outros cantores) como falta de solidariedade a Paulinho. Você chegou a conversar com ele depois do episódio?
Chico - Se o Paulinho estivesse em conflito com a prefeitura, ou com os patrocinadores, teria em princípio o meu apoio. A questão é mais delicada porque a culpa pela discrepância de cachês recaiu sobre a produtora executiva do show, que é uma pessoa próxima de todos nós, artistas. Um apoio público ao Paulinho significaria uma condenação a essa profissional. Seria uma atitude grave, e não sei se justa.
Estado - Como foi negociado o valor dos cachês?
Chico - Com os outros, não faço idéia. Comigo não houve negociação. Fizeram-me uma proposta e eu a aceitei.
Estado - Você se apresentaria no show por um cachê de R$ 35 mil?
Chico - Posso garantir que em nenhum outro país do mundo artistas de música popular têm-se apresentado de graça, com tanta frequência, em benefício de tantas causas, como os músicos brasileiros de minha geração. Acontece que este show era patrocinado pela Pepsi-Cola. A imagem dos artistas, para efeitos comerciais, era vinculada não a Tom Jobim, mas à Pepsi-Cola. Para fazer propaganda de refrigerante, alguns de nós têm recusado propostas bastante superiores ao cachê recebido. Para cantar em homenagem ao Tom, num teatro em Bruxelas e sem patrocinador, aceitei muito menos de R$ 35 mil.
Estado - O show foi idealizado para ser uma grande homenagem a Tom Jobim. Você acha que as polêmicas tiraram o brilho da festa?
Chico - Eu achei o espetáculo belíssimo. Dois dias depois, fizeram dele uma meleca.
Estado - Você pensaria duas vezes antes de aceitar um novo convite da prefeitura para shows?
Chico - Eu nunca pensei em convites da prefeitura para shows. Este seria e foi o único.
Chico Buarque canta sobre a terra
Cerca de quinze minutos depois de terminado o evento de lançamento do livro "O espírito e a letra", de seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, na última sexta-feira no Masp, o cantor e compositor Chico Buarque foi embora para sua casa em São Paulo caminhando pelas ruas.
Dispensou seguranças e seguiu a passos acelerados: "Adquiri sotaque paulista nos pés."
Foi apenas interrompido por um guardador de carro: "Oi, estou guardando vosso motor." Cumprimentou-o: "Mas você não me guardou, não, estou a pé." Em uma conversa rápida nesse trecho, Chico falou sobre o projeto que vem fazendo com Sebastião Salgado para o livro "Terra."
Folha - Você prepara um CD para ser lançado com o livro "Terra", do fotógrafo Sebastião Salgado?
Chico Buarque - É um projeto em conjunto com o Salgado e a Companhia das Letras. Na capa do livro vai ter um encarte com o CD, que é um compacto pequeno, com umas quatro músicas, uma coisa simples... Tenho uma música e meia pronta. A que está feita chama "Levantadas do chão", e a outra é um baião, que estou querendo terminar agora.
Folha - Mas você e Salgado trabalharam juntos?
Chico Buarque - Tivemos uma conversa, e ele deixou as fotos que vão constituir o livro. Isso foi do que eu dispus para compor. O tema é a terra, o trabalhador sem terra, o sem-terra na cidade e no campo.
Folha - Tem pesquisa de ritmos?
Chico Buarque - Não, não existe uma fidelidade ao folclore. São canções que me apareceram. Na verdade, a letra que já escrevi foi sobre uma música que Milton Nascimento me mandou para fazer. Falei: "Opa, essa música tem tudo a ver com as fotos do Salgado." Aí fiz a letra em cima das fotos e da música do Milton.
Folha - Você está viajando ao exterior para escrever um livro?
Chico Buarque - Não, tenho um show em San Remo (Itália) e vou terminar o acompanhamento da tradução do livro "Benjamim" para o francês e inglês.
Folha - Você pretende um dia transformar o hobby futebol em um projeto para livro ou disco?
Chico Buarque - Não, futebol eu só gosto de jogar. Aliás, vou perder amanhã porque não vou acordar cedo.
Folha - Você caminha tão rápido para não ser assediado?
Chico Buarque - Não, aprendi a andar rápido morando em São Paulo. Costumo dizer que meu apelido aqui era Carioca porque sempre mantive o sotaque do Rio. Mas adquiri sotaque paulista nos pés, que me faz andar depressa. No Rio, parece que estou fugindo das pessoas, mas não é, é um hábito. É o sotaque que me restou.
Conversa de camarim
Estamos com Chico Buarque, em seu apartamento no Jardim Botânico. Eu estou tomando um uisquezinho, meio sem jeito, e acho que o Chico também está um pouco sem jeito, mas...
Chico Buarque - Sem jeito e sem uísque.
Luiz Roberto - Mas por que sem uísque?
Chico Buarque - Porque eu não bebo!
Luiz Roberto - Você não bebe nada?
Chico Buarque - Eu bebo um vinho, à noite... Aliás, eu parei de beber não por força de vontade, mas por culpa do Tom. Houve uma época em que ele parou de beber, e ele conhecia um feiticeiro. Eu bebia bem, e pedi ao feiticeiro umas ervas para ficar um mês sem beber, eu queria dar uma enxugada. O feiticeiro disse: "Você não vai beber nunca mais." E eu disse: "Nunca mais, não, eu quero beber, mas só quero dar um tempo." Eu só queria dar um tempo, parar um mês, geralmente fevereiro que é o mês mais curto. E você sabe que eu enjoei ? Enjoei de uísque, de bebidas fortes, só tomo uma cervejinha ou um vinho. E o Tom, depois, voltou a beber.
Luiz Roberto - Pois é, o feiticeiro foi-se, e ele voltou a beber... Mas nunca bebeu muito, depois disso.
Chico Buarque - O Tom gostava mesmo é de cerveja.
Luiz Roberto - Mas foi o Vinícius que botou ele no uísque.
Chico Buarque - Pois é, Vinícius era diplomata, viajava muito, mas o Tom era um cidadão carioca. No Brasil, até os anos cinqüenta e sessenta, bebia-se muito pouco uísque. Os nacionais eram muito ruins, e os importados muito caros. O Tom tinha capacidade para tomar muita cerveja e chopp.
Mais tarde, a Brahma até chegou a instalar em casa dele uma choperia, sempre reabastecida.
Luiz Roberto - A Brahma deu isso a ele?
Chico Buarque - Pois é, ele fazia muita propaganda de graça. Na Plataforma, falava de Brahma o tempo todo.
Luiz Roberto - Sem dúvida, a cerveja dele era a Brahma. E ele fala nela até na letra de "Chansong".
Um violão chamado Vinicius
Luiz Roberto - Chico, quantos anos você tem?
Chico Buarque - Cinquenta e dois.
Luiz Roberto - Qual foi a primeira vez em que você ouviu falar do Tom, ou ouviu alguma música dele?
Chico Buarque - Foi num disco em 78 rotações, talvez o primeiro disco que eu comprei, para dar para minha irmã. Eu gostava da música: Teresa da Praia.
Luiz Roberto - Qual irmã?
Chico Buarque - A Miucha.
Luiz Roberto - Que naquele tempo tinha o apelido de Bubu (risos). Aí você deu a ela Teresa da Praia.
Chico Buarque - Com Dick Farney e Lúcio Alves cantando. Mas eu me ligava na música e talvez não soubesse ainda quem era Tom Jobim. Não sabia quem era o compositor, nem que a letra era do Billy Blanco. Não lembro desta época do nome de Tom Jobim. Quem eu conhecia já algum tempo era o Vinicius, amigo do meu pai, Sérgio Buarque de Holanda, historiador e crítico literário. Ambos pertenciam ao mundo da literatura.
Luiz Roberto - Você conhecia o Vinicius desde criança?
Chico Buarque - Desde criança. Durante dois anos, entre 52 e 54, minha família morou em Roma. Meu pai foi dar aulas na universidade de Roma e nesta época o Vinicius era consul em Roma. Morando em São Paulo, a gente não via o Vinicius, mas em Roma, ele como consul volta e meia aparecia lá em casa.
Luiz Roberto - Quantos anos você tinha nesse tempo?
Chico Buarque - Fui com oito anos e voltei com dez. E quando Vinicius aparecia era uma festa lá em casa, festa para a qual nós crianças não eramos convidados, é claro, ficávamos assim de longe, ouvindo.
Luiz Roberto - E você já tinha interesse naquela época, já se ligava no Vinicius, quem era aquele cara e tal?
Chico Buarque - Muito, muito. Tinha fascínio por ele, tinha fascínio porque eu era criança e via a Miucha, minha irmã mais velha , que tinha um violão que se chamava Vinicius. E através também dos meus pais que gostavam muito dele. O meu pai era fascinado pelo Vinicius. Vinicius tinha esse poder de fascinar as pessoas que, no bom sentido, tinham um pouco de inveja da maneira como ele levava a vida. O meu pai de certa forma gostaria de ser como ele. Drummond disse uma vez que o Vinicius era o grande poeta que vivia a própria poesia. Um poeta em vida. E meu pai também volta e meia contava histórias do Vinicius. Por que o Vinicius era um mito. O Vinicius tocava no violão da Miucha aquelas canções dele em parceria com Antonio Maria, outras dele mesmo, aquela "Cem por cento", "Quando tu passas por mim". Quando começou a parceria de Vinicius e Tom, pra mim o Tom não era ninguém, era parceiro de Vinicius. Eu lembro bastante do LP que tocou muito lá em casa, a Elizete Cardoso em "Canção do amor demais".
Luiz Roberto - Em que época você morou em São Paulo?
Chico Buarque - Eu fui com dois anos de idade para São Paulo, e morei lá até os vinte e dois. Morei vinte anos em São Paulo, com esse intervalo no meio de dois anos em Roma
A ruptura
Chico Buarque - Então aí tem um ponto de ruptura, que foi quando realmente aconteceu a música na minha vida. Foi com "Chega de saudade", no compacto de João Gilberto.
O João tocou violão na música "Outra vez", no disco "Canção do amor demais", que já era uma coisa estranha pra mim, mas a estranheza mesmo veio com "Chega de saudade". E era uma estranheza geral, tanto é que houve uma ruptura mesmo de gerações, de pessoas que não gostavam daquilo, pessoas mais velhas que difìcilmente engoliram no primeiro momento a Bossa Nova, aí incluindo a música do Tom e a voz, o violão, e a maneira de cantar de João Gilberto.
Luiz Roberto - O que seu pai achava disso?
Chico Buarque - Meu pai resistiu um bocado, engraçado.
Na época eu tinha uns 14 anos e me pegou em cheio. E eu percebi que com todo mundo foi a mesma coisa. Na Bahia, com Gilberto Gil, Caetano Veloso. Quem ouviu, lembra de quando ouviu e em que circunstâncias... Eu me lembro: "Nossa, tem uma música do Vinicius tocando no rádio..." E eu pedi a meu pai um adiantamento da mesada, para comprar o disco. "Chega de saudade" foi o marco histórico.
Tom ou João?
Luiz Roberto - O Tom já no inicio já fascinou você? As músicas?...
Chico Buarque - A partir daí eu comecei a descobrir que as músicas não eram do Vinicius, eram do Tom Jobim, e eu comecei a me ligar - e cada novo disco do João tinha um punhado de músicas do Tom. Mas o Tom mesmo, quer dizer ele cantando, ele gravando, foi mais tarde...
Luiz Roberto - Naquela época ele era tímido, profissionalmente muito retraído, não queria cantar nem nada, e ganhava a vida como pianista e arranjador. Mas neste começo o Tom já fascinava você ou era apenas um bom compositor - tão bom quanto outros, como Pixinguinha, como Noel Rosa?
Chico Buarque - Não. Ele pra mim desbancou todo mundo, porque eu conhecia bastante música brasileira, essa música dos anos 30, anos 40, porque lá em casa sempre houve muita música, meus pais cantavam muito Noel Rosa, tinha histórias de Ismael Silva, Ataulfo Alves. Chegou a Bossa Nova eu rompi com esse passado todo. Houve um tempo em que eu não podia nem ouvir falar. A não ser que fosse alguma coisa recriada por João Gilberto, por exemplo, João cantando Ari Barroso. Pra mim foi assim... mudou. Mais tarde eu recuperei inclusive essa formação toda, bastante forte, de música popular, música de carnaval - eu ouvia muito rádio na época de carnaval.
Quando chegava no meio do ano, gostava muito de bolero, de sambas, de marchinhas de carnaval, sabia de cor todas as músicas. Mas quando chegou Tom... Mas agora eu não sei te dizer na medida exata até onde era Tom e até onde era João Gilberto, porque a inovação também era João cantando.
CAPÍTULO II - Ciúmes
Luiz Roberto - Quando é que você conheceu o Tom pessoalmente?
Chico Buarque - Foi bem depois. Eu fui levado à casa dele pelo Aloisio de Oliveira. A casa lá em Ipanema, na rua Nascimento Silva. O Aloisio me fez cantar o Pedro Pedreiro, que foi a primeira música que eu gravei . Eu não tinha gravado ainda, então foi entre 64 e 65, uma coisa assim. O Tom muito simpático, muito receptivo, e tal...
Luiz Roberto - E o Tom conhecia você?
Chico Buarque - Não, ficou conhecendo ali.
Luiz Roberto - Mas já tinha ouvido músicas tuas?
Chico Buarque - Não, eu não tinha gravado nada ainda, o Aloisio... talvez eu fosse gravar na Elenco e acabei gravando na RGE. Eu toquei essa música, não sei se outras também, enfim... toquei porque ele me mandou tocar, mas fui lá para ver o Tom. E pronto, foi um contato rápido e depois o Tom foi para os EUA, parece... e só viemos a ter um convívio maior quando ele voltou dos EUA, quando começou a nossa parceria, já em 67.
Chico Buarque - Naquela época eu morava na rua Dias Ferreira, no Leblon, perto da casa dele, e ele morava na Codajás. Quer dizer, dava para ir a pé. Eu ia muito à casa dele, conheci muito a casa dele, mil histórias. O piano que eu comprei foi Tom que foi comigo, me levou num lugar na Lapa e ele mesmo escolheu o piano. Foi quando eu comecei a estudar música. Porque eu não tinha conhecimento teórico nenhum, tocava de ouvido, e a minha primeira parceria com ele foi nessa época: o "Retrato em Branco e Preto".
E foi um pouco o Vinicius também que aproximou a gente.
Luiz Roberto - Sem ciúmes?
Chico Buarque - Ciúmes disfarçados. Grandes ciumes disfarçados.
Luiz Roberto - Como foi esse isso? Ele tinha ciúmes, mas aproximou vocês.
Chico Buarque - O Tom morria de ciúmes do Vinicius: (imitando o Tom) "Ah, o Vinicius fica fazendo letra pra todo mundo, pra qualquer um..." (risos) "Ele conheceu um rapaz de Juiz de Fora e já saiu fazendo músicas..." (risos) Tinha um fundo de ciúmes bravo aí...
Vinícius foi sempre muito carinhoso comigo, até por essa relação de família. Quando ele ia a São Paulo ele ia muito à casa da Rua Buri, e então, nessa época, eu me lembro muito de Vinicius com Baden e com Alaíde Costa; lembro do Baden cantando as parcerias com Vinicius pela primeira vez, lá em casa, "O samba da benção", e tal... E eu ainda não conhecia o Tom - o Vinicius foi muito generoso me apresentando a ele.
Luiz Roberto - Mas ele de alguma forma estimulou vocês para uma nova parceria, ou isso aconteceu naturalmente?
Chico Buarque - Ele sabia o que estava fazendo... Não sei te dizer porque, mas o Vinicius a partir de uma certa época deixou de fazer música com o Tom. Eles continuaram amigos até o fim. Amicíssimos.
Vinicius fez música com o Carlos Lyra, com o Baden Powell, com todo mundo. Com todos os grandes, não é?
Luiz Roberto - Com os pequenos também, muitos...
Chico Buarque - E muitos desconhecidos. E parou de fazer músicas com o Tom - eu nunca soube de nenhum problema entre os dois, pelo contrário, eles se encontravam muito, na época eles iam ao Antonio's, bebia-se muito e tal... No Antonio's, Vinicius, Tom, eu e mais tanta gente. Sempre foram grandes amigos, nunca me explicaram, não sei o que houve.
A primeira parceria
Luiz Roberto - Chico, como é que foi fazer tua primeira letra pra ele? Você achou dificil, foi uma emoção, foi uma coisa especial para você? Como é que foi esse "Retrato em branco e preto", que antes se chamava "Zíngaro"?
Chico Buarque - Quando o Tom me deu essa música para fazer letra... engraçado que nesse comecinho não sei se era uma impressão minha ou se era real, eu tinha impressão que ele estava me dando uma força, ele insistia muito para eu fazer a letra - porque comparando com outras músicas que ele fez mais tarde, quando a gente já tinha uma amizade maior, era mais difícil fazer letra para o Tom, porque ele interferia demais. Nessa letra ele não interferiu nada. Ele "Tá ótimo, tá ótimo, tá ótimo", assim como quem faz cerimonia ou paternaliza um pouco, não sei, porque nós não tínhamos uma relacão ainda assim próxima, eu ainda tinha esse respeito por ele.
Chico Buarque - Entra uma certa cerimonia. Eu não me lembro de problema nenhum, não me lembro de história nenhuma, ele me entregou a música, que já estava até gravada e era "Zíngaro" e tal... e eu fiz a letra em casa e mostrei pra ele: "Ótimo, ótimo, ótimo" e ficou por isso. Não tenho uma lembrança maior. E foi para mim um desafio grande porque eu não era letrista nessa época, quer dizer, eu era letrista de minhas próprias músicas.
Luiz Roberto - O Tom foi seu primeiro parceiro?
Chico Buarque - Não, eu tinha feito uma vez para o Toquinho. Uma música chamada "Lua cheia" em 65 por aí, então eu não tinha prática e não sabia exatamente como ele receberia a letra - aprovar assim de cara, pra mim foi ótimo eu não tinha muita segurança daquilo não, porque eu fui aprender a fazer letra com a prática, inclusive trabalhando com o Tom. De você tentar dominar a música do teu parceiro, entrar naquela música, fazer a letra que você imagina que o sujeito quer fazer com aquela música e tal. Eu era verde ainda para ser parceiro do Tom na época, e mais tarde por exemplo, dez, vinte anos depois, quando eu já estava mais consciente do que eu estava fazendo, eu tinha de discutir com o Tom porque...
Piano na Mangueira
Luiz Roberto - Por que?
Chico Buarque - Porque o Tom era implicante com o negócio da letra, e eu tinha de discutir e tinha de convencê-lo, porque ele nunca me dobrou - só que aí eu tinha certeza do que eu queria, entende, ele brincava muito e tinha aquela coisa dele...
Luiz Roberto - "Monday, tuesday, wednesday"... Aconteceu isso mesmo?
Chico Buarque - É...
Luiz Roberto - "Mandei subir"...
Chico Buarque - É, e aí eu ganhava a discussão, mas ele tinha uma coisa de pirraça de crianca, e depois mais tarde ele era capaz de gravar "Mandei subir o piano pra Mangueira" ele mesmo...
Luiz Roberto - Ele mesmo adaptou....
Chico Buarque - Mas na época ele (cantava a música) "Já mandei..." (e brincava): "monday, tuesday, wednesday..." e tal. Acusei o golpe e falei o seguinte: - ô Tom, é "já mandei" porque o piano está subindo o morro puxado naquelas cordas, está indo todo torto, então ele vai desconjuntar e tem que ter essa sílaba tônica no lugar errado: "já mandei subir"...
E ele parecia concordar: "Até que você tem razão...", e mais adiante, gravando, ele cantava mesmo é "mandei subir o piano"...
E com esta música mesmo tem várias histórias: ele fez a música, mandou a música, e eu fiz a letra respeitando cada nota, respeitando cada movimento, procurando ser o mais fiel e o mais preciso e o mais irretocável. Algumas vezes aconteceu, inclusive com o Piano na Mangueira, que quando eu terminava a letra, ele ouvia, às vezes fazia algumas brincadeiras e tal, mas eu ficava sério, pronto para sustentar o meu ponto de vista, e aí às vezes o que ele fazia? Ele mudava a música!
Depois da letra pronta, sendo que eu tinha feito a letra exatamente para a música como ela era.
Luiz Roberto - Na métrica exata da música...
Chico Buarque - E aí ele mudava a música, respeitando a letra. Eu ficava um pouquinho assim (chateado), e pensava: "Mas me deu tanto trabalho fazer a letra para essa música, e ele faz outra música com a minha letra." Com o "Piano na Mangueira" aconteceu isso - tem um trecho (de melodia) no final que ele mudou, não tinha nem na música nem na letra que eu fiz.
Luiz Roberto - Ah é ?...
Chico Buarque - Não tinha esse troço... (cantarola) "onde a cabrocha pendura a saia no amanhecer da quarta-feira..." Ele fez isso depois...
Luiz Roberto - E essa frase aguda do final ("...no amanhecer da quarta-feira") será que não foi pra dar um certo clímax, uma resolução da melodia?
Chico Buarque - É, mas ele musicou a letra ! Eu tinha certeza de ter feito correto pra música dele, e ele deu a volta, na realidade.
Luiz Roberto - E aí acabou ficando "mandei subir o piano pra Mangueira".
Chico Buarque - O "meu piano" foi outra coisa que eu discuti com ele: - ô Tom, é "o piano...". Aliás, eu trazia a letra pronta e aí ele ia cantando, cantando, e como se estivesse errando, mudava a letra. "Mandei subir meu piano pra..." e estava escrito "...o piano pra Mangueira". Eu pensava, bom, ele leu errado, agora vai cantar certo, e eu dizia: -Tom, não é "meu piano" é "o piano", uma coisa mais vaga assim... E ele dizia "Ah, tá bom" e na vez seguinte cantava "meu piano"...
Chico Buarque - E eu falava: - É bonito "o piano" sem ser "meu", porque em francês, onde tudo é possessivo (e eu tenho essa experiência agora que eu estou traduzindo um livro), tem que ser "meu piano" ou "seu piano", piano dele ou piano dela. Eu lembro de ter comentado isso com o Tom, é bonito na língua portuguesa, "mandei subir o piano"...
Quem fez o que nas parcerias. Ligia, Sabiá, e as parcerias que não aconteceram.
Vou te contar
Chico Buarque - Às vezes o Tom implicava com certas coisas, e uma vez ele abortou uma letra minha.
Luiz Roberto - Qual foi?
Chico Buarque - Não lembro qual foi a música, foi há bastante tempo, eu comecei a fazer a letra e ele começou a fazer piada em cima da letra (risos), e eu perdi (a vontade de fazer). Depois eu até usei em uma música minha. Era uma letra que falava: "Quem vem lá ? Que horas são ? É você ? É o ladrão ?" E ele dizia: "É o sapatão?..." (risos). Abria um caderno que ele tinha, pegava aquele começo de letra e fazia uma letra enorme com as palavras dele. E eu falava: "ô Tom ???!!!" Era engraçado mesmo... Porque a gente nunca brigou mas às vezes ficava nesse ponto...
Luiz Roberto - Meio tenso?
Chico Buarque - É...
Luiz Roberto - Sem querer talvez ele ridicularizava um pouco nesse negócio do "monday", "o sapatão", e tal - isso doía um pouco em você?
Chico Buarque - Não, não doia não, porque eu tinha certeza do que eu queria. Se fosse na época do "Retrato em Branco e Preto" sim, mas depois não, eu discutia com ele a letra pau a pau, e eu também já não tinha mais cerimônia com o Tom, e sabia que tinha uma coisa um pouco dele muito crítica, de querer interferir na letra. Então eu falava: "Tom, faz você a tua letra porque você é o teu melhor letrista."
Muitas vezes, muitas músicas que ele me deu eu não fiz letra, não por não querer ou não gostar - às vezes até por não conseguir - e depois ele fez lindamente. "Luiza" mesmo, ele tinha me dado para colocar letra . O "Wave" também.
Luiz Roberto - Como é que foi "Wave" ? Dizem que você fez "Vou te contar".
Chico Buarque - Exatamente, "Vou te contar" e pronto...
Luiz Roberto - Quer dizer que "Vou te contar" é teu ? (risos).
Chico Buarque - É engraçado, eu lembro do "Wave" quando ele me mostrou, e eu demorando a fazer, não saía nada além de "vou te contar", e aí ele disse: "Pô, Chico, você não quer ficar rico?" (risos)
Ele já adivinhava que "Wave" seria uma das músicas mais executadas, já pressentia que ia ser um sucesso.
Jogando futebol
Chico Buarque - E só para concluir, esta história foi até engracada. O Piazzola uma vez me mandou uma música para fazer letra, música lindissima, em setenta e pouquinhos. E eu nunca fiz, aí uma vez ele veio ao Brasil fazer um programa de televisão, aquele programa que eu tinha com o Caetano. E aí quando ele chegou, ele ia ficar uma semana ensaiando e eu lembrei daquela música e falei: "ô Piazzola, eu vou tentar fazer aquela letra, porque aquela música é tão linda, vai ser legal a gente cantar essa música no programa." Música inédita e tal. Ele me disse que não se lembrava mais daquela música, e aí eu catei a fita e ensinei pra ele, ele pegou a música, fez arranjo, fez tudo o mais. Uma semana depois, no dia da gravação, eu simplesmente não tinha conseguido fazer a letra, porque ou você consegue ou não consegue, não é?
Luiz Roberto - Não saiu...
Chico Buarque - Eu lembro que na hora do ensaio, ele tinha recebido a notícia de que eu não tinha feito a letra, e ele ficou enfurecido, coitado, ele não entendeu...
Luiz Roberto - Achou que era desleixo.
Chico Buarque - Disseram a ele: "O Chico vai chegar mais tarde porque está jogando futebol". Eu não ia fazer a letra se eu não jogasse futebol, eu jogo futebol porque eu jogo sempre... Quando eu cheguei lá, estava o Tom acalmando o Piazzola, que estava à beira de um ataque de nervos: "O Chico é assim mesmo, ele fica jogando futebol" (risos). Ele falando de um jeito tal, que aí o Piazzola, vindo do Tom... ele aceitou.
Sabiá e Ligia
Luiz Roberto - Como é que foi Sabiá ? A letra é sua inteirinha?
Chico Buarque - A letra é minha.
Luiz Roberto - Eu ouvi dizer que, quando vocês estavam fazendo a música, você viajou, e que o Tom completou os últimos versos.
Chico Buarque - Não, essa história é a seguinte: eu fiz a letra, terminei a letra - e quando eu viajei, ou um pouco antes de viajar, o Tom achou que tinha que aumentar a letra , e eu ou não tive tempo, ou porque viajei, ou porque não concordei, não aumentei a letra - e dei a letra por terminada ali. Quando eu terminei a letra, ele achou que era insuficiente porque a música repete outras vezes, ele achou que pedia mais uma letra, e eu achei que não pedia. E aí ele fez à minha revelia, na minha ausência, um pedaço de letra, que depois sumiu.
Luiz Roberto - Você lembra?
Chico Buarque - "Que a nova vida já vai chegar", uma coisa assim "que a solidão vai se acabar", você lembra disso?
Luiz Roberto - Tinha esquecido, agora que você está falando me veio à memória.
Chico Buarque - Isso ele acrescentou depois, eu não aceitei muito essa.
Luiz Roberto - Houve até alguma gravação em que entraram esses versos.
Chico Buarque - Sim, chegou a ser gravado, essa é a parte dele que ele resolveu (fazer), mas depois acho que ele voltou atrás, porque mais adiante cantou mil vezes a música e nunca mais cantou esse pedaço.
Luiz Roberto - Exato...
Chico Buarque - Eu nem falei nada pra ele, fiquei um pouco assim, né... porque não era o combinado.
Ligia
Luiz Roberto - Chico, como é que foi "Ligia", porque tem duas versões, tem "olhos morenos", tem "olhos castanhos"...
Chico Buarque - Olhos morenos. Mas "Ligia" é o seguinte....
Luiz Roberto - Você fez alguma destas versões?
Chico Buarque - "Ligia" é o seguinte: a letra é do Tom. Eu não assino a parceria - na verdade ele me entregou a letra bem adiantada, e eu terminei, ou eu mexi, ou ele me pediu para refazer alguma coisa, e eu dei uma mexidinha na letra.
Mas pelo menos metade da letra era dele, e naquela época, eu estava cheio de problemas com a censura, e gravei um disco só de outros autores. O Caetano fez uma música para mim, o Gil fez uma música pra mim, eu gravei uma música só minha com o pseudônimo de Julinho da Adelaide, e gravei o "Ligia" só com a assinatura do Tom.
Luiz Roberto - Sei.
Chico Buarque - E o Tom falou: "Não, você é parceiro, e tal". Primeiro, porque a letra meio que deu uma consertada, e depois, por motivos técnicos de não querer ter meu nome em uma música daquele disco, e por uma questão de justiça, mais tarde, ele falou: "Tem um dedo do Chico nessa letra". Mas eu não assino essa música.
E ficou parecendo que era minha também, porque eu fui o primeiro a gravar, nesse disco que se chama "Sinal fechado".
Luiz Roberto - Que modificações você fez?
Chico Buarque - Esse começo é todo Tom, a graça toda... "Eu nunca sonhei com você, nunca fui ao cinema, não gosto de samba, não vou a Ipanema, não gosto de chuva, nem gosto de sol"... isso tudo é coisa do Tom. Eu fiz uma coisa segura: "E quando eu lhe telefonei, ...foi engano, seu nome eu não sei..." Aí tem o meu dedo. Mas quando ele me entregou, a letra já estava bastante adiantada.
Bate boca
O caso do "Bate boca", essa música inédita, até agora eu não sei o que eu faço, porque vou sentir falta do Tom implicar comigo, quando fizer alguma letra, entende... porque o Paulinho (Jobim) falou: - Mas você não vai fazer o "Bate boca" ?, e tal...
Quando ele me deu a fita do "Bate boca", a letra estava quase toda pronta. Eu disse: "Tom, faz você essa letra"... E ele: "Não, você tem que terminar, tem que dar um jeito na letra."
Luiz Roberto - Ah, o Tom já tinha feito um esboço dessa letra?
Chico Buarque - Tinha, naqueles cadernos em que ele escrevia, e cada vez que ele cantava, ele dizia umas coisas: (cantarola) "Você não quiz, você não diz, você não é..."
Eu lembro dele cantando com vários pedaços de letras, e eu disse: "Tom, é só você juntar... pede para alguém organizar essa letra para você, que ela está pronta..." E aí ele ficava me provocando para terminar a letra, mas eu não mexi nela.
É engraçado... porque com o Tom eu tive esse tipo de problema que nunca tive com nenhum outro parceiro, mas hoje, ele não estando aqui...
Luiz Roberto - Você sente falta.
Chico Buarque - Eu digo, um cara para implicar com minha letra, para mexer, para recusar, para... ele fazia isso porque ele era danado - eu lembro de "Sabiá", a polêmica do "Sabiá" no feminino...
Luiz Roberto - Uma sabiá...
Chico Buarque - Ele falava: é bom "uma sabiá", porque é linguagem de caçador... caçador não fala um sabiá, fala uma sabiá, uma gambá... e depois, ele gravou "O meu sabiá". (risos)
Ele cantava: "Minha sabiá... o meu sabiá..." O Tom era muito engraçado e eu morria de rir com ele.
Talvez isto escrito pareça uma briga, mas era impossível brigar porque eu achava graça nessas implicâncias dele... era uma coisa de birra meio infantil, então eu achava graça daquele homenzarrão implicando com "Mandei subir meu piano na mangueira" ... (risos)... porque eu sabia que era uma coisa de pirraça, de birra mesmo, e era muito engraçado isso nele.
No tempo do "Retrato branco e preto", ainda havia aquela cerimônia, e se ele tivesse falado qualquer coisa, eu ficaria arrasado - e talvez percebendo isso, ele nunca falou nada, ele aceitou como era...
E mais adiante sempre houve uma intimidade, um certo conflito. Vai ver que é por isso que o Vinicius deixou de...
Luiz Roberto - Vinicius passou o abacaxi para você...(risos)
Chico Buarque - Passou esse abacaxi... vai ver que foi...
I hate music!
O Tom era muito ligado em letra, em literatura. Ele dizia: - Sou um literato... "I hate music!"
Luiz Roberto - Ele dizia isso?
Chico Buarque - Ele gostava de dizer isso. Era difícil falar de música com o Tom... eu falava de todos os assuntos, menos de música.
Luiz Roberto - Eu nunca consegui falar sobre música com o Tom por mais de dez minutos.
Chico Buarque - Pois é, ele não gostava de falar de música... eu nunca vi ele falando de acordes, por exemplo, e também não falava de política.
Luiz Roberto - Política ele detestava...
Chico Buarque - Detestava. E adorava literatura - ele era capaz de recitar trechos inteiros de Guimarães Rosa, poemas de Drummond, T. S. Eliot, "Terra desolada", textos inteiros que ele sabia de cor. Então, ele tinha muita ligação com a parte literária das canções.
Chico tenta reconstruir Tom a seu lado.
CAPÍTULO IV - Eu te Amo
Chico Buarque - Na verdade eu não tocava músicas do Tom. Nunca toquei, porque ele me passava a música no piano, a gente gravava a fitinha, e eu levava pra casa e fazia a letra.
Luiz Roberto - E o Tom gostava muito das suas músicas, mas gostava demais. Dizia: "Pois é, Luiz, você sabe, o Chico tem essa música aqui, ouve só!" E aí ele tocava, sabia todas as suas músicas. Sempre que eu estive com o Tom e que havia um piano por perto ele tocava música sua. A "Modinha", por exemplo, ele adorava.
Chico Buarque - O Tom sempre foi muito generoso e amoroso comigo. Ele também gostava de algumas das minhas primeiras músicas, como "Ela Desatinou", "A sua lembrança me dói tanto" ...
Bororó: "Ele toca mas não grava"
Chico Buarque - Ele tinha isso com muitas músicas de outros compositores também, ele era atento. Só no fim é que ele começou ficar já meio enfastiado, intoxicado de música. Ele dizia "I hate music", mas por outro lado, o tempo todo ele ouvia muita gente nova, e antiga também, o Bororó, o Custódio Mesquita, e tal. E gostava muito do Ary Barroso.
Luiz Roberto - Tocava várias do Bororó sem errar uma nota.
Chico Buarque - Um dia eu encontrei o Bororó num escritório de direitos autorais, e eu não o conhecia. Falei: "Bororó, que coincidência, muito prazer, Chico Buarque, e tal ! Você sabe que ontem, (e era verdade) - ontem à noite eu estive na casa do Tom, e ele ficou tocando músicas suas ?" E então o Bororó respondeu: "Ele toca mais não grava". (risos)
Chico Buarque - E o Bororó é famoso pelo mal humor... Depois o Tom acabou gravando uma música dele.
Luiz Roberto - Deve ter sido "Curare", que o Tom gostava muito.
Meu Maestro Soberano
Luiz Roberto - Que coisa bonita você chamar o Tom de "Meu Maestro Soberano", naquela sua música.
Chico Buarque - Quando eu fiz essa música, em homenagem ao Tom antes de tudo - homenagem à música brasileira, mas através do Tom - eu pedi para fazerem uma cópia em CD só dessa música e mandei para ele. Eu não queria chatear o Tom, sabendo que ele não estava muito afim de ouvir música nova, e deixei um recado assim: "Tom, ouça só uma vez essa música, é uma música só !" (risadas). E ele ouviu e ficou tão contente, tão tocado.
E mais tarde até gravou a música comigo num especial de televisão. Foi uma das últimas vezes que eu estive com ele. Ele ficou todo feliz.
Jardim Botânico, Rio de Janeiro
Luiz Roberto - Chico, eu quero que esta nossa entrevista se chame "Meu Maestro Soberano".
Chico Buarque - Eu adoro que você coloque esse nome. No Jardim Botânico tem uma árvore grandona, enorme, chamada Sumaúma ou coisa parecida, de que ele gostava muito, que ele abraçava. Puseram lá uma placa: "Maestro Soberano - Tom Jobim". E depois ele deu ao último disco dele o nome de Antonio Brasileiro, que é como eu o chamo nessa música.
Luiz Roberto - Essa sua letra me toca profundamente.
Chico Buarque - E era uma brincadeira com ele o tempo todo, ele tinha um pouco essa mania: "O meu pai era gaúcho, o meu avô era de Leme, em São Paulo, o meu bisavô era cearense, e eu sou até primo de Vinícius".
Aí eu comecei essa letra lembrando: "O meu pai era paulista, meu avô pernambucano..." e desembocou nele.
O Tão
Chico Buarque - Eu chamava o Tom de Tão, e ele falava: "O pessoal na roça me chama de Tão, lá em Poço Fundo."
Luiz Roberto - O (Leo) Peracchi também o chamava de Tão. "Porque o Tão é um bom menino, o Tão faz umas músicas bonitas."
Imagina
Chico Buarque - O Tom dizia que era difícil fazer letra para Imagina, porque a música tinha sido composta como instrumental. Era quase impossível botar letra naquelas notinhas todas - na verdade, não era adequada para letra. Mas a gente estava fazendo a trilha de um filme, e eu resolvi fazer a letra pra essa música. E era dificil mesmo, mas consegui fazer. Ele estava em Nova York quando recebeu essa letra, e mandou um telegrama dizendo: " It's very exquisite !" Mas no fim, ele gostou muito do resultado.
Luiz Roberto - É uma bela letra, música lindíssima. Depois veio "Anos Dourados" - e o "Piano na Mangueira" foi a última que você fez para o Tom. Contam as más línguas que você demorou para fazer a letra de "Anos Dourados".
Chico Buarque - É verdade, atrasei, mas eu não sou muito rápido não. "Anos Dourados" era pra ser tema de uma mini série com o mesmo nome, e entrou sem letra porque a letra não ficou pronta. Depois que a mini série saiu do ar, é que a letra apareceu.(risos)
Luiz Roberto - Valeu a pena esperar, sem dúvida.
Chico Buarque - (brincando) A mini série é que foi precipitada...
Olhando por cima do ombro
Luiz Roberto - O que é o Tom para você ? O que ele representa ? Na música, como pessoa, como amigo?
Chico Buarque - Para mim como artista criador é um buraco, uma falha muito grande, a ausência do Tom. Agora que eu estou voltando a fazer música depois de uns dois anos, eu procuro ressuscitar um pouco o Tom ao meu lado...
Às vezes eu tenho a impressão de que ele ainda está por aí, de que ele não vai me abandonar.
Eu disse num momento de emoção: "Tudo que eu faço é para o Tom", e realmente isso saiu de forma impensada, mas é uma verdade. Tem um poema de João Cabral (de Melo Neto) que fala numa pessoa que estaria por cima do seu ombro, vendo o que você está escrevendo - o Tom é muito isso. Muitas coisas que eu escrevi, músicas que eu fiz, eu tinha a impressão, ou gostaria, que o Tom estivesse por cima do meu ombro vendo aquilo, aprovando ou não. Mesmo porque já mais pro fim da vida o Tom não tinha mais muita paciência para ouvir coisas novas, e eu já não tinha muita esperança, já não tinha muito desejo ou intenção de mostrar música nova pro Tom, mas a existência dele ali valia como uma referência. Eu pensava: se o Tom tivesse paciência de ouvir essa música, ele gostaria. Com a ausência dele você tem uma noção mais clara do que ele representava.
Chico Buarque: um artista soberano.
Visite o site do Clube do Tom: www.nortemag.com/tom
Vou te contar o que está acontecendo
"Fale baixo. Vou te contar o que está acontecendo. Preciso da sua ajuda para sair dessa. Você será bem recompensado."
Essa era a fala que Chico Buarque estava decorando para representar um personagem que pensava ser Chico Buarque, no filme ''Ed Morte procura Silva'', do cineasta Alain Fresnot.
A entrevista, exclusiva para a Folha, foi realizada entre um set e outro, dentro de um trailer estacionado numa rua que desemboca no largo de Pinheiros, em São Paulo.
Satisfeito com o resultado final, Chico Buarque comentou, sob vários ângulos, o processo de criação de "Benjamim'', seu segundo romance que estará nas livrarias na semana que vem.
É difícil resumir em poucas linhas o enredo de ''Benjamim''. Não porque seja uma obra difícil ou hermética, muito pelo contrario, é dotado de humor e sua leitura se faz de uma forma até mais fluente do que ''Estorvo".
A complexidade está nas inúmeras variantes que a história apresenta. Mas, em linhas gerais, a história está centrada em Benjamim Zambraia, um modelo fotográfico quase aposentado. Como o próprio nome do personagem principal sugere, ele se constitui no elemento de ligação entre os diferentes triângulos amorosos que se entrelaçam ao longo da narrativa.
Mesmo reconhecendo que viveu momentos de impasse e várias vezes chegou a jogar fora uma semana de trabalho, Chico pode tranqüilamente se dirigir ao leitor, utilizando a mesma fala do personagem que interpretou no set de filmagem: "Fale baixo. Vou te contar o que está acontecendo e preciso de sua ajuda para sair dessa. Você será bem recompensado".
Releitura
Comecei a escrever o livro enquanto fazia alguns shows. Talvez por isso ele só tenha adquirido empunhadura no terceiro capítulo, quando pude ficar totalmente recluso. Ao chegar no final do quinto capítulo, reescrevi os dois primeiros Tenho a sensação de que mais reli do que escrevi.
A história se passa em sete semanas. O tempo da narrativa pode ser calculado pelo intervalo entre os sete capítulos, todos correspondem ao espaço de uma semana.
Primeiros Leitores
Não tinha certeza de que conseguiria escrever o livro. Só mostrei para alguém quando estava na metade do sexto capítulo. Os primeiros leitores foram a Marieta, minha filha Silvia e o Luiz Schwarcz.
O Rubem Fonseca só leu quando eu estava escrevendo o último capítulo, o livro praticamente pronto. Ao contrário de ''Estorvo", para o qual fez uma série de sugestões, com ''Benjamim" não propôs nenhuma alteração. Como insisti em saber se não tinha nenhum reparo, ele disse: "Você quer mesmo saber? Acho o sobrenome do Alyandro, Escarlate, muito alegórico''. Eu gostava e esbocei uma explicação. Então ele voltou a carga: ''Pra dizer a verdade, esse sobrenome é uma merda". : Mudei para Aliandro Sgaratti.
As Cidades
Gosto de desenhar cidades, ficar imaginando. Mas. quando escrevo, minhas cidades são sempre plágios do Rio de Janeiro
Condição de Escritor
O primeiro livro podia dar a impressão de um acidente. Já o segundo. permite comparações com o anterior, determina uma trajetória, delineia o universo literário do escritor.
A questão de ser ou não ser escritor, sinceramente. não me preocupa. Senti prazer em escrever este livro. As coisas aconteceram na hora certa. A impressão que tenho é a de que compus todas as músicas para poder escrever esses dois livros.
Benjamim
Ele só nasceu como personagem quando viu Ariela no Bar-Restaurante Vasconcelos Sua existência projeta-se entre premonições e flash-backs. Ele já sabia tudo que ia acontecer. É a inexorabilidade do seu destino. Imaginei seu rosto semelhante ao de Chet Baker.
Nomes
Procurei evitar certo realismo. Inventei uma série de nomes. Pelo menos pensei que tivesse inventado, muitas vezes tive de mudar, porque a realidade me desmentia. Benjamim inicialmente se chamava Augusto Melântonio. Pensei que não existia. Conversando com o Luiz Schwarcz ele me disse que se lembrava de ter cursado uma escola de datilografia e empostação de voz com este nome. Depois, abriu a lista telefônica e encontrou mais de oito Melântonios.
Outro dia, com o livro já escrito, abri a Folha numa seção que normalmente não leio, a de anúncios fúnebres, e, pra minha surpresa encontrei um "Sgaratti".
Parágrafos
No momento em que sento para escrever me aborrece a obrigação de ter de contar uma história. Sinto como se houvesse a cada parágrafo uma quebra, um buraco entre um parágrafo e outro. Me atrapalha. Me divirto mais quando não sei o que vai acontecer.
Geometria
O realismo de muitas das minhas descrições corresponde ao que em arquitetura se chama de geometria descritiva, ou GD. Utilizo esse procedimento, por exemplo, na cena final quando descrevo, por intermédio de Benjamim, a porta tombando no assoalho do sobrado onde se encontravam o Professor e Castana Beatriz: "A poeira assenta na sala vazia, e Benjamim vê a porta deitada sobre as tábuas do assoalho, e vê o chão da casa como a fachada de uma casa sepulta".
Realismo
Combino em algumas passagens o máximo de realismo com uma sensação intensa de delírio, como se a observação fosse uma faculdade imaginativa. No último capítulo, há uma cena em que Ariela suspeita que o helicóptero no qual Alyandro Sgaratti viaja vai cair no precipício. De início, minha idéia era descrever o helicóptero ganhando altura. Conversando com um primo que trabalha numa companhia de aviação, perguntando como eram os heliportos, ele sem querer me deu uma informação nova, "você sabe, quando o aparelho decola do alto de um edifício, inicialmente, perde um pouco de altura''. Aproveitei este dado e construí a cena de modo que Ariela, ao ver o aparelho ultrapassar o terraço, o imaginasse despencando no vácuo. Mas, ao se aproximar da borda do terraço Ariela "vê o helicóptero que paira uns cinco andares abaixo com o nariz reclinado, ascender em linha oblíqua sobre a cidade".
Pedra do Elefante
Esse capítulo saiu um pouco do mesmo núcleo que gerou a música ''Morro Dois Irmãos'': como se a rocha dilatada fosse uma concentração de tempos. Não há nenhum enigma, nenhum estranhamento. As pedras no Rio de Janeiro fazem parte da paisagem, é algo muito concreto, eu moro rodeado de pedras.
Agora, é claro que há algo premonitório quando digo que o destino de Benjamim está vinculado à Pedra. Inclusive neste sentido a mobilidade da Ariela se opõe fortemente a imobilidade do Benjamim. Quando ela entra no apartamento dele, evita olhar para Pedra, sente o cheiro da Pedra em Benjamim.
Insisti nessa idéia quando mudei o "rosto empedernido" para rosto escalavrado, só para aproveitar esse adjetivo "empedernido" que muita gente não se lembra que vem de pedra e significa petrificado - no último capítulo quando Benjamim "à saída do quarto fita Ariela, empedernido''. Isso para mostrar a repulsa que ela sente, como a sua imobilidade é insuportável para Ariela.
Intenção
A linguagem conduz a história. Parece uma construção poética. Parece uma palavra que você escolhe e de repente encontra uma rima lá adiante. Você não havia previsto, a primeira palavra aparece solta, mas a segunda já parece um jogo de amar. Um estranha combinação entre ação e intencionalidade. Não armei tudo direitinho.
Flaubert
Nesse período li apenas as "Cartas" do Flaubert. Era uma espécie de consolo. Ele pensava escrever "Madame Bovary" no prazo de um ano, levou seis. Enquanto eu lia, pensava, um século depois ele ia economizar anos de sofrimento. Ele merecia um computador.
Em outros momentos representava um consolo para mim. Na medida em que Flaubert dizia que aquilo tudo era um exercício, eu pensava, se não servir para nada, pelo menos serve como exercício.
Humor
Ele está mais presente em Benjamim. Não se trata de um humor negro. Meu humor tende a ser escurinho. Cortei muita coisa que poderia ficar engraçada. Minha preocupação foi oposta, não queria ser engraçado. Mas achava que deveria haver um humor atravessando todo o livro.
Profissões
Quando comecei a escrever, certos assuntos não estavam evidência. O fato de Benjamim ser modelo fotográfico não tem nenhuma relação com a presença de modelos nas telenovelas, até mesmo porque se trata de um anti-modelo, de um modelo envelhecido e quase aposentando. O mesmo pode ser dito do pastor-político, Aliandro Sgaratti. Não há nenhuma releção com fatos recentes ou com a televisão. Jamais escolheria a profissão dos personagens movido por este propósito. Evitaria exatamente por ser um assunto da atualidade. Por exemplo, quando estava terminando o romance, a discussão sobre os desaparecidos políticos Começou a ser ventilada insistentemente na imprensa e, em função da história, isso me incomodou profundamente. Não quis abordar a realidade brasileira.
Diferenças
Eu tinha medo de ''Benjamim" ser uma continuação de "Estorvo". Me coloquei algumas condições: fugir da primeira pessoa, dar nomes aos personagens, tentei outro tempo verbal. Esse último, foi o único do qual não consegui me afastar totalmente.
Conexão "Estorvo"
Alguns personagens de "Estorvo" reaparecem em "Benjamim". Esse é o caso do pastor Azéa: "O zelador do edifício não perde um programa do pastor Azéa, muito menos agora que é pela televisão. E também da rádio Primazia: "A índia responde à Rádio Primazia (...)"
Quero passar um mês dormindo
Cansado de escrever, Chico diz que em breve voltará a compor
Foi difícil fazer o arredio Chico Buarque falar sobre Benjamim. Durante o último ano, em que se dedicou exclusivamente ao livro, ele quase não saiu de casa, não ouviu nem fez música, não foi ao cinema e só abriu concessão ao ir teatro - e chorar de emoção - na estréia de Torre de Babel peça protagonizada pela mulher Marieta Severo. Pedindo desculpas pela voz sonolenta ao meio-dia, e pensando muito antes de responder, ele falou de Benjamim ao JB, por telefone.
JB - Quanto tempo depois de Estorvo nasceu Benjamim?
Chico - Só comecei a trabalhar nele há um ano. Não consigo fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo. Ou é música, ou é literatura. Eu pensei numa linha mestra onírica, parti da morte do protagonista e fui desenvolvendo a história conforme escrevia, porque acima de tudo sou um formalista, só sei mexer com palavras. De uma certa maneira, as imagens é que vão me guiando.
JB - Qual a diferença entre os dois livros?
Chico - Estorvo era em primeira pessoa. Por isso. a distinção entre sonho e realidade era muito difusa, muito subjetiva mas, ao mesmo tempo, estava claro que ela existia. Benjamim apesar de ser todo um sonho honestamente mostrado assim, desde o começo, toma ares mais objetivos porque é narrado em terceira pessoa. A difusão desta vez está no fato de o narrador ver pelo olhar de cada personagem, parcialmente
JB - A impressão cinematográfica que o livro passa vem daí, da sensação de uma câmera passando de mão em mão?
Chico - Certamente, além das próprias referências cinematográficas de ritmo e imagem. Além disso, como no cinema, as emoções não são descritas, são insinuadas pelas imagens. Não quero fazer nada descritivo, quero que o leitor tenha espaço para suas próprias conclusões.
JB - A cidade onde se passa o sonho parece o Rio, tem Marina da Glória, tem Ilhas Cagárras, tem subúrbio e Zona Sul, ainda que com outros nomes. Por que não falar do Rio mesmo?
Chico - Porque eu queria falar de um sonho de Rio de Janeiro. Não queria nada jornalístico e cheguei a tentar usar os nomes de verdade, mas quebrou o clima onírico e deu um tom realista demais. E um plágio descarado do Rio, a partir da minha observação da cidade.
JB - Como uma pessoa que sempre teve participação política, não deu vontade de falar das coisas que impedem que o sonho de Rio se torne realidade?
Chico - Não quero cair na denúncia social nos livros. Quero que o público compreenda que o cidadão não tem nada a ver com o compositor nem com o escritor. Há referências no livro à violência, mas o policial que está entrevado por causa de uma bala não aparece sendo baleado. Não me sinto compromissado com bandeira nenhuma por causa da minha biografia de participação política.
JB - As comparações com João Gilberto Noll, em Estorvo, ou com Rubem Fonseca, em Benjamim, são quase inevitáveis. Elas o incomodam?
Chico - Não, mas não acho que o livro se pareça com outros autores. Rubem Fonseca é um grande amigo e meu maior incentivador. Mas o que escrevo é muito diferente. Se tiver que apontar uma influência literária, esta influência não vem da literatura, mas da música. Nenhum nome em especial mas o que escrevo é resultado do meu trabalho musical. Não quero que ninguém vá ao livro buscando o discurso político do cidadão que sou ou o lirismo das canções. Quero fazer literatura. Só isso.
JB - Já existe idéia de um novo livro?
Chico - Eu não durmo há um ano escrevendo Benjamim. Você passa a viver o livro, a ir dormir com ele na cabeça, a sonhar com ele, acordar, escrever, voltar a sonhar. É muito cansativo. Agora só penso em passar um mês dormindo. Depois vou voltar a compor.
Jogando por música
Conheço Chico Buarque há muitos anos e o futetol fez a aproximação. Foram muitas peladas descontraídas no campo do Polytheama e em nossas viagens a Angola e Paris, onde aproveitávamos as folgas para não pensar em nada, como afirma meu compadre. Quando fui convidado a gravar para o produtor Almir Chediak o projeto Letra e música - Chico Buarque, descobri o desafio de cantar suas melodias muito bem elaboradas. Nesta entrevista, após mais uma partida de futebol, falamos da inspiração, das várias maneiras de se compor, dos parceiros, de samba, de nossos mestres geniais: Noel, Ismael, Tom e muitos outros. Fiquei feliz e surpreso quando me perguntou sobre meu querido pai, também João Nogueira, considerado em sua época grande violonista, sobre minha atividade anterior à música, filhos, os netos. . Muito me emocionou gravar este disco, cantei os tradicionais sambas deste sambista maior e ainda me aventurei em suas canções. Chico me falou de sua surpresa ao me ver interpretar Bastidores, Olhos nos olhos, Gota d 'água e, grato, ouvi também seus elogios. Posso até ser um bem sucedido intérprete, mas acho que, na condição de repórter e centroavante, sou melhor como sambista...
JB - Quando gravamos o disco desse projeto do Letra e música, queríamos mostrar o Chico musicista, que, embora muita gente deixe de observar, é tão maravilhoso quanto o Chico letrista. E eu notei que mesmo em canções aparentemente de melodia mais simples, escondem-se nuances harmônicas complexas. Queria saber a que você dá mais importância na hora de compor: à música ou à letra?
Chico - Isso me lembra uma conversa com o Nelson Cavaquinho, em que ele chegou para mim e disse: "O importante é a música, não a letra " Achei engraçado ele falar aquilo As minhas primeiras músicas eram bastante simples, até por falta de maior conhecimento harmônico. A partir do meu contato com Tom Jobim, quando começamos a fazer nossas primeiras parcerias, foi que eu comecei a estudar e a me preocupar com a harmonização. E eu me considero um bom harmonizador. Aliás, eu acho, às vezes, que eu sou melhor músico do que letrista.
JB - Mas o que vem primeiro?
Chico - Se alguma coisa nasce antes, é a música. A letra procura vir atrás, acompanhar a música. É como em todas as minhas parcerias, com Tom, Edu, Francis, quando tento descobrir a palavra que merece aquela frase musical.
JB - Nas minhas parcerias com o Paulinho Pinheiro (Paulo César Pinheiro), a gente procura fazer junto...
Chico - Ah é? Como é que é isso, hem?
JB - Eu entro um pouquinho na letra e ele, na música. Acho mais fácil assim, e também dá mais tesão. Quando acaba a música, dá aquela alegria e a gente começa a cantar ela junto, umas 300 vezes...
Chico - É, isso é muito bacana, mas não consigo fazer assim, não. Eu faço escondido. Quando componho letra e música fico trancado, sozinho. Quando é parceria, levo a música pra casa numa fitinha e depois mostro quando está pronta ao meu parceiro. Mas eu gostaria de fazer do teu jeito. Vinicius também sabia escrever na sala de jantar e Villa-Lobos compunha no meio da bagunça
JB - Você faz muitas músicas como se fosse uma mulher falando, usa esse seu lado faminino...
Chico - A primeira música que eu fiz no feminino, a Com açúcar com afeto, foi uma encomenda da Nara Leão. O tema que ela me pediu era essa coisa da mulher sofredora, que fica em casa. Depois passei a fazer canções para personagens do teatro. Mas isso é uma tradição antiga da música brasileira. Eu me lembro do Ary Barroso, compondo, cantando no feminino. Era engraçado ouvir Camisa amarela na voz dele. Misteriosamente, nós temos mais compositores do que compositoras e mais cantoras do que cantores. Temos muitos cantores compositores, mas cantor, cantor são poucos. Agora o que mais me surpreende no repertório desse seu disco é você estar tão à vontade cantando as minhas canções no feminino. Essa sua súbita feminilidade tem alguma coisa a ver com sua antiga profissão de vitrinista?
JB - Não, tem a ver com o autor mesmo...(risos)
Chico - Agora fala como é que você arrumava uma vitrine.
JB - De vez em quando eu tinha que fazer uma pose de macho, porque sempre aparecia alguém me olhando meio esquisito...(risos)
Chico - Mas aquilo era o teu lado feminino, não?
JB - Era o meu lado financeiro. Mas, mudando de assunto , você se considera um sambista?
Chico - Aprendi a tocar violão tocando bossa nova, que é samba. Quando pego o violão, a tendência natural é que dali saia um samba, é a minha formação. Então, me considero um sambista.
JB - Todo mundo diz que você é o herdeiro musical do Noel Rosa, embora já tenha ouvido você dizer que sua maior influência era o Ismael Silva...
Chico - Teu pai tocou com Noel, não foi?
JB - Tocou com ele, com Jacob do Bandolim, era craque do violão...
Chico - Quando eu falei que a minha maior influência era o Ismael foi um pouco para lembrar o nome dele, que andava esquecido. O Noel também já esteve um pouco esquecido, mas tem um apelo maior. Mas fui influenciado por todos eles.
JB - Aracy de Almeida é considerada a melhor intérprete de Noel. Quem seria o ou a melhor intérprete de Chico Buarque?
Chico - Não tenho nenhum preferido, João. (pausa, pensativo) Bem, eu deveria dizer que é você, né? (risos)
JB - Seria a resposta que eu não esperaria nunca. Comecei agora, pode ser que eu ainda venha a ser um grande intérprete do Chico...
Chico - Comecei a fazer músicas sem pensar em cantá-las. Minha grande ambição era ser cantado por outros cantores...
JB - Então você não tem ciúmes de ouvir suas músicas na voz de outra pessoa?
Chico - Muito pelo contrário. Eu gosto mais de me ouvir cantado por outras pessoas do que por mim mesmo. Eu tinha 2O, 21 anos quando a Nara gravou três músicas minhas no disco dela. A Nara, na época, era a grande estrela da MPB.
JB - Eu também comecei assim, com a Elizeth Cardoso. Mas gosto muito de te ouvir cantando, gosto dessa coisa do compositor interpretar a própria música. Te incomodam declarações como a do Billy Blanco que recentemente brincou dizendo: "A única coisa que eu faço melhor que o Chico é cantar mal"?
Chico - Não me incomoda, não. Quando comecei a cantar, naqueles festivais, ficava nervoso mesmo. E um sujeito nervoso tem menos fôlego, não sustenta as notas, pode desafinar. A gente depois amadurece, fica mais tranqüilo, a voz sai melhor. E eu fiquei 13 anos sem fazer um show sozinho, aparecia apenas em algumas participações especiais. E quando você começa um show, a voz só começa a esquentar lá pela quarta, quinta música
Aí você vai fazer uma temporada, você vai, estréia lá e daqui a... (pausa para cálculo) daqui a cinco meses a coisa começa a funcionar bem. (risos)
JB - Mas você progrediu muito...
Chico - Obrigado. Mas não ligo para essa história não, até porque tenho mais prazer em cantar músicas de outros compositores do que as minhas próprias. Nesse show tão falado aí do réveillon, eu me lembro do prazer que senti ao cantar músicas do Tom que eu nunca havia cantado.
JB - Você vem alternando projetos de música e literatura. Agora, que lançou Benjamin, já vem por aí disco novo?
Chico - Por enquanto ainda não sei o que vou fazer. Estou com vontade de fazer música, mas o livro ainda está me ocupando muito, com as traduções lá de fora, que eu tenho que acompanhar essas coisas....
JB - Sobra tempo pra bater uma bolinha? O futebol ainda é uma paixão?
Chico - São três peladas po semana. Jogo bola para não pensar em absolutamente nada .
JB - É por isso que você ensinou o teu cachorro Minguilin a não tirar aquela bola de tênis da boca?
Chico - Jogar bola é isso, você volta a ser aquele cachorro que no fundo você é (risos). Existe uma certa mania de intelectualizar o futebol, mas eu acho isso uma bobagem, não consigo falar mais de dois minutos sobre futebol. Eu gosto é de jogar.
JB - Maracanã, então, nem pensar...
Chico - Sou tricolor e vou ser a vida inteira, mas não me identifico com a torcida do Fluminense. Até hoje não consigo entender por que cantam aquela música da "bênção, João de Deus". Eu ouvia cantar aquilo, morria de vergonha. Deixei de ir ao Maracanã. Além do mais, gosto do futebol ofensivo, o que foge à tradição do Fluminense. Aí vem o Palmeiras e...
JB - Se você pudesse escolher outra vez, você escolheria o Fluminense?
Chico - Não existe isso, porque você não escolhe um time. Você escolhe um time por influência de alguém, ou para contrariar alguém. Fui levado por minha mãe, que era tricolor, e passei a torcer pelo clube. Ou você é ou não é. Sou tricolor, e acabou.
JB - Do atual time do Fluminense, de quem você gosta?
Chico - Gosto muito do Vampeta. Muita gente fala mal dele, mas ele é muito bom. Semana passada mesmo fez dois gols. O engraçado é que ele introjetou tanto essa avalanche de críticas, que outro dia chegaram para ele dizendo: "O Chico Buarque anda elogiando o seu futebol." Aí ele respondeu ao repórter: "Não é ironia, não??" (risos)
JB - Você conta os gols que faz pelo Polytheama?
Chico - Não sou artilheiro, então conto apenas as assistências. (risos) Você é que quase foi profissional...
JB - Não, jogava direitinho, mas nunca passei de time de várzea. Agora, era dificil tomar a bola de mim, enquanto eu estava inteiro, né. Mas você é que, está inteirinho, tá fumando pouco, aí fica mais fácil, né? Só bebendo café... é por isso que você corre tanto? (risos)
Chico - Que isso... Nem tanto.
JB - Você concorda quando dizem que depois da nossa geração a MPB entrou em crise?
Chico - Não acredito que exista crise. Nos anos 60, quando escrevi a Rita, que falava daquele bom disco de Noel, o tempo de Noel Rosa me parecia remotíssimo. Mas é que, entre os anos 30 e 6O, Noel morreu tuberculoso, Ismael Silva esteve preso, Cartola lavava carros, Assis Valente suicidou-se, Ary Barroso virou vereador e locutor de futebol. Agora eu faço as contas e vejo que se passaram os mesmos 30 anos, desde que surgiu a minha geração. Se parece que ocupamos muito espaço é porque não houve solução de continuidade, estamos aí trabalhando. Mas ao mesmo tempo surgiu, e continua surgindo, um monte de gente boa: de Djavan, Fagner e Belchior até Paulinho Moska, Cássia Eller e Zélia Duncan. Essa é uma pergunta que me fazem há 20 anos. Não acredito em crise.
JB - O que está achando da perspectiva de ser avô?
Chico - Estou felicíssimo. Mas você é que já é avô, sabe melhor do que eu. Como é que é, conta pra mim...
JB - É fantástico. Minha netinha, Juliana, já tem cinco anos. Quando soube que minha filha estava grávida, pedi muito a Deus para não morrer antes de escutar ela me chamar de vovô... O que que você está esperando, um menino ou uma menina? Acho que um menino é mais legal, hem...
Chico - É menino.
JB - É menino!? Pôxa, foi tua filha que veio te dar essa forra, hem Chico! (ele tem três filhas mulheres) E já pintou alguma parceria com o genro, o Carlinhos Brown?
Chico - Por enquanto, não. Mas sou fã do Carlinhos Brown, é uma grande figura, um grande músico.
JB - O que você achou das declarações do Bruno Tolentino dizendo que era um absurdo cantores-compositores como você e o Caetano serem tratados como poetas nos currículos escolares?
Chico - Não acompanhei muito isso, não. Essa questão é meio antiga. Letra de música não pretende ser nada além de uma letra de música. Mas pode ter uma qualidade poética maior do que uma poesia sem música. Por outro lado, se eu for musicar um poema do João Cabral de Melo Neto ou da Cecília Meirelles, no momento em que eu coloco a música, aquilo deixa de ser poesia, vira letra de música? Não tenho dúvida de que as letras do Caetano tenham qualidade poética para serem estudadas e virarem tema de vestibular. Mas não faço questão de ser chamado de poeta.
JB - Ainda confundem o Chico escritor com o compositor?
Chico - Sem dúvida. Tem gente que compra o meu livro achando que vai encontrar ali o compositor. Mas a tendência do leitor é saber discernir uma coisa da outra, o músico do escritor. Benjamim deverá vender menos que Estorvo, e o meu próximo livro provavelmente vai vender menos ainda, até cair na realidade do público de um escritor de uma literatura que não é fácil, que não pretende ser popular.
JB - A censura foi um pesadelo na sua vida na época da ditadura. Agora que ela acabou, fazer música com temática política também virou coisa do passado?
Chico - Não tenho muito gosto pela política, para dizer a verdade. Tive uma atuação política mais evidente naquela época, porque era necessário, não havia outra solução para mim. As circunstâncias me levaram a fazer aquilo. Mas se você contar as músicas que fiz naquela época, vai ver que as engajadas eram poucas, se comparadas ao resto da obra. E eu tive canções de amor que também foram censuradas e, no entanto, não tinham sido compostas com a intenção de entrar naquela briga. As músicas de temática social são uma tradição da MPB e tinham uma característica única de serem cantadas no carnaval. E isso acontece até hoje, nos blocos, como o teu, o do Clube do Samba. O deste ano mesmo, qual foi o tema?
JB - No bloco da Federal, a pasta rosa é a maioral... (risos)
Chico - Como é que era mesmo?
JB - O refrão era assim: Nossa terra tem gente muito generosa/se pintar uma sujeira passa a pasta rosa... Há 17 anos a gente faz isso.
Chico - Dava pra contar a história recente do Brasil através desses sambas de bloco. Poderia até cair no vestibular. Mas não em Literatura, em História, para poeta nenhum reclamar...(risos)
JB - Dia 1° a gente vai estrear o show de lançamento do disco, no Teatro Joso Caetano. Eu sei que você não pôde ir à estréia do Ney (Matogrosso, que também acaba de lançar um disco em que só interpreta composições de Chico Buarque e estreou semana passada no Canecão) , mas eu queria deixar aqui o convite.
Chico - Tá querendo me deixar mal com o Ney, né...(risos)
Chico quer ser um sambista que escreve
Chico quer ser um sambista que escreve. O compositor, que está finalizando um novo livro, tem seu romance "Estorvo" lançado por uma editora alemã. Chico Buarque, o astro principal do Brasil na 46.ª Feira do Livro de Frankfurt, sente-se "um peixe fora d'àgua" entre os escritores. Ele está na Alemanha para divulgar o lançamento do seu romance "Estorvo" pela editora Hanser. Em seu hotel em Frankfurt, ele falou à Folha sobre sua divisão interna entre compositor e romancista, e comentou as eleições brasileiras. Só evitou falar do romance que está escrevendo: "Ainda sei muito pouco sobre ele."
Folha - Incomoda a você ser visto como um compositor popular que eventualmente escreve, e não como um escritor?
Chico Buarque - Não me incomoda nada. Outro dia, num jornal, um sujeito para falar mal de mim me chamou de sambista, como se fosse um insulto. E eu sou um sambista. Quando eu morrer, quero que digam: "morreu um sambista que escrevia livros." Não estabeleço nenhuma hierarquia.
Folha - Como é que o compositor Chico Buarque vê o escritor Chico Buarque?
Chico Buarque - Um não se dá com o outro. Voltar a fazer música depois do livro foi muito difícil. Era como se fosse um ofício que eu não conhecesse mais. E agora para voltar a escrever, também. Fiquei meses tentando escrever e não saía nada.
Folha - Você escreveu livros antes, mas é com "Estorvo" que começou essa sua divisão?
Chico Buarque - Eu acho que sim. As peças de teatro eu considero uma extensão do meu trabalho musical. "Estorvo" e esse livro de agora correspondem a uma necessidade íntima. Não há nenhuma pressão externa para que eu escreva. Meus amigos músicos vivem me dizendo: "não escreve não." E o público também. Acho que a única pessoa que quer que eu escreva é meu editor (risos).
Folha - "Estorvo" foi lido como um testemunho do Brasil de hoje, com seu caos social e sua falta de perspectivas. É assim que você vê o país?
Chico Buarque - Quando escrevi "Estorvo", sim, sem dúvida. Mas em nenhum momento tive a intenção de simbolizar o que quer que fosse. Não me incomoda que haja essa leitura, mas se eu tivesse pensado nisso, eu não conseguiria escrever.
Folha - Você acha que o fato de o Brasil ser tema da Feira de Frankfurt vai contribuir para mudar a situação da literatura brasileira no exterior?
Chico Buarque - Espero que sim, porque é muito mais difícil ser escritor brasileiro aqui fora do que músico. A gente encontra livros brasileiros nas estantes de espanhóis ou hispano-americanos nas livrarias. É difícil mostrar que não temos nada a ver com essa coisa do realismo mágico. Tem uma passagem interessante do livro "Visão do paraíso", do meu pai (Sérgio Buarque de Hollanda), em que ele compara os relatos dos exploradores portugueses e os dos espanhóis na América. Enquanto os espanhóis faziam relatos exuberantes, os portugueses atenuavam as coisas para torná-las verossímeis. Acho que essa diferença se reflete ainda hoje na literatura da América Latina.
Folha - Você apoiou Lula. Como vê a perspectiva de um governo Fernando Henrique?
Chico Buarque - Acho que, dos presidentes da história do Brasil, ele é o que tem a melhor biografia. Espero que ele respeite o seu passado, embora eu tenha minhas dúvidas. Não quero, sinceramente, dizer depois: "Está vendo, eu não disse?" Mas não quero também que façam como depois do Collor, que diziam: "Com o Lula seria pior." Como sabem, se ele não tem uma chance? Admiro muito o Lula, considero-o muito preparado, mas parece que está proibido que ele governe o país. É uma pena.
Chico Buarque completa 50 anos amanhã
O compositor carioca fala sobre seus 30 anos de carreira, seu processo de criação, cinema e o disco "Paratodos"
O compositor Chico Buarque de Hollanda, responsável por uma das mais consistentes obras musicais da MPB, completa amanhã 50 anos. O aniversário será comemorado em Paris (França).
Em entrevista concedida à Folha à época do lançamento de seu último disco, "Paratodos", Chico fala sobre seus 30 anos de carreira.
Criação
Não faço um disco quando quero, faço quando preciso. Não sei exatamente o que dita esta necessidade. Não é uma pressão de fora, é uma pressão que eu mesmo me coloco. Não sei explicar qual a sua natureza, mas a verdade é que isso vale para todos os meus discos. Outro dia eu li que o pintor Pierre Bonnard ia com seus pincéis para o museu onde suas obras estavam expostas. Quando o guarda não estava olhando, ele dava uma pincelada e corrigia um trabalho de dez anos atrás. Eu me identifico perfeitamente com isso.
Na primeira pessoa
Muito do meu trabalho nos anos 70 estava ligado ao teatro. Eu falava através de personagens, enxergava através de outros olhos. Deixei de compor para teatro e para cinema. A partir desta mudança, penso que uma existência mais isolada como a que me foi exigida para escrever "Estorvo" acabou resultando num caminho mais solitário e numa linguagem mais individual.
Lirismo atual
Muitas de minhas canções amorosas também por conta do teatro eram sempre dramáticas. "Olhos nos olhos" por exemplo é uma canção muito teatral. As músicas mais recentes como por exemplo "Valsa brasileira" e "Futuros amantes" são mais líricas e mais poéticas. Já não há tipos, nem personagens femininos. De qualquer forma, sem precisar me expor pessoalmente, eu assinaria todas essas canções teatrais como experiências minhas. São canções pessoais.
Cinema
Gosto muito de Fellini e de Buñuel. Me sinto mais em casa com Buñuel, mas não é um juízo de valor. É apenas uma questão de afinidade.
Auto-retrato
Eu sou uma pessoa muito afetiva, que age sempre por afeto. Eu sou o homem cordial.
Chico redescobre a música em 'Paratodos'
Cinquenta mil pessoas foram vê-lo no Rio, após seis anos de ausência dos palcos, e o mesmo deve se repetir em São Paulo. No show "Paratodos", que estréia hoje no Palace, Chico Buarque redescobre a música. "Depois desse hiato, me dedicando à literatura, voltei à música com muito tesão. Passei a tocar mais violão, como eu não fazia há 30 anos. Foi uma redescoberta", diz o cantor e compositor.
Em entrevista exclusiva à Folha, Chico Buarque falou do início de sua carreira, comentou a polêmica Gal Costa / Gerald Thomas e revelou que fará uma nova parceria com Tom Jobim.
Folha - Hoje, a três meses dos seus 50 anos, como você vê o Chico Buarque que estreou três décadas atrás?
Chico Buarque - Acho que eu sou o mesmo com um arranjo novo. Já estava tudo ali.
Folha - Mesmo no palco?
Chico Buarque - Bem, no palco eu estou muito mais ousado do que naquela época. Lembro que quando eu comecei a fazer shows e programas de TV, participei de um programa do Fernando Faro, chamado "TV de Vanguarda", cantando "Pedro Pedreiro" e aquelas minhas primeiras músicas. Ele precisou inventar uma posição de câmera meio à Orson Welles. Colocava a câmera lá em baixo, porque a pretexto de olhar o violão eu cantava com a cabeça para baixo. Hoje em dia eu já encaro uma platéia. Eu ainda sou um filho da Bossa-Nova. Ela tinha uma estética de palco que me convinha.
Folha - O que você achou da polêmica em relação ao show de Gal Costa com Gerald Thomas?
Chico Buarque - No fato de ela mostrar os seios eu não vejo nada de mais. Achei o show muito bonito, só que já estava bastante modificado quando eu vi, no domingo. É um show difícil para a Gal. A direção não a ajuda, mas ela supera aquilo de maneira brilhante. O resultado é formidável para ela. Agora, a direção não ajuda mesmo.
Folha - Pelo que se conhece da sua timidez, você jamais faria um show usando uma sunga...
Chico Buarque - Acho que eu não faria muito sucesso (risos). Eu não faria um show com esse tipo de direção. Na verdade, a Gal trabalha ali como uma atriz também. Mesmo no meu último show, em que fui dirigido pelo Naum de Souza, era uma direção bastante discreta. Ele pedia que eu fizesse o que eu já sabia fazer. Mesmo o que não sabia fazer ganhou uma forma mais cômica. Mas eu não poderia me levar a sério como ator. A Gal já tem uma postura dramática bem acentuada há muito tempo. Nem me surpreende tanto que ela tenha optado por esse caminho.
Folha - É verdade que você vai participar do novo disco de Tom Jobim?
Chico Buarque - Na verdade, eu estou devendo uma letra para o Tom.
Folha - Mas as gravações já começaram. Dá tempo?
Chico Buarque - O Tom grava devagar (risos). Eu trouxe a fita com a música aqui para São Paulo. Assim que passar a estréia do show, vou ter que guardar um tempo de hotel para terminar essa letra. Talvez daqui a duas semanas eu já tenha que gravar.
Folha - Ela já tem título?
Chico Buarque - Não. Na verdade, ele me pediu para escolher entre duas canções que ele escreveu para um filme do Marcos Altberg, baseado em um romance da irmã dele, Helena Jobim.
Folha - Corre por aí que após a temporada desse show você começa um novo romance...
Chico Buarque - Eu gostaria, mas é mais "wishful thinking" do que outra coisa. Eu gostaria de escrever um livro novo, talvez um romance, mas ainda não tenho um projeto.
Folha - Você não tem compromisso assumido com a sua editora, a Companhia das Letras?
Chico Buarque - Eu prometi ao Luiz Schwarcz me dedicar a isso e gostaria mesmo. Mas eu não sei me planejar assim com tanta exatidão. Eu preciso fechar uma porta para abrir a outra. Para escrever o livro, preciso parar de fazer o show.
Folha - Já tem alguma idéia?
Chico Buarque - Não. O que normalmente acontece comigo é um buraco entre um trabalho e outro. Tenho necessidade de ficar vazio de uma coisa para começar outra.
Folha - O que você acha desses novos grupos de pagode? Eles seriam os Leandros e Leonardos do samba?
Chico Buarque - Eles fazem um samba mais produzido, em todos os sentidos. É resultado de um trabalho de gravadora, é produzido visualmente. Mas eu não tenho nenhuma antipatia por esse tipo de samba.
Folha - A diluição do samba não te incomoda?
Chico Buarque - Acho que a música popular, o samba e mesmo a música sertaneja estão sujeitas à diluição, estão sendo diluídos o tempo todo. Eu não vou comparar esses grupos a João Gilberto ou ao Paulinho da Viola. O problema é que a diluição da diluição da diluição acaba numa coisa muito rala. E cansativa também. As pessoas sempre perguntam por que a minha geração continua. Eu acho que naquela época não havia essa velocidade toda na substituição de um produto por outro. Não havia nem mesmo a noção de música como produto. Era um trabalho bastante amador. Não existia essa visão de mercado que existe hoje.
Folha - E o "Samba da Barata"? Você gosta?
Chico Buarque - Eu acho muito engraçado (risos). Visivelmente, ele tem muito mais humor do que a canção sertaneja. Além disso, a canção sertaneja sofreu um desgaste ainda maior por causa do uso político que fizeram dela, que acabou gerando uma antipatia muito grande. Mas até que eu não achava muito ruim quando um deles começava a cantar "Rancho Fundo" e o outro já emendava uma terça no vocal. Em princípio, eu não acho nada muito ruim em música. A coisa ruim vem em torno dela.
Folha - URV e calcinha dão samba?
Chico Buarque - Essa me pegou no contrapé. São assuntos que aconteceram enquanto eu estava fora do Brasil. Na verdade, eu nem cheguei a ver direito as famosas fotos da moça sem calcinha. Eu estava de férias, em Paris, e me mandaram um fax, mas a foto ficou borrada. Eu nem sei como era a moça na intimidade (risos). Quanto à URV, eu ainda estou tentando entender. Assisti à entrevista do Fernando Henrique no programa do Jô Soares e confesso que ainda não consegui entender direito nem a diferença entre esse plano e a dolarização, nem a questão da perda salarial. Eu ainda estou em descompasso com as pessoas mais bem informadas, porque eu tirei essas férias. Mas foram merecidas.
Chico Buarque volta ao samba e rememora 30 anos de carreira
Chico Buarque volta ao samba e rememora 30 anos de carreira. Ele fala de música e literatura, diz que tentou conhecer o irmão alemão e afirma que está "mais leve"
Chico Buarque de Hollanda está de volta, em CD, videoclip e show. Depois de cinco anos sem gravar - o que não quer dizer sem produzir - e de ter se aventurado pelas águas da literatura, com "Estorvo", um romance de qualidade surpreendente, Chico retorna ao samba com o disco "Paratodos". A volta tem um sabor de reencontro do músico com o seu público e assinala um momento de maturidade de um artista que sempre soube conciliar tradição e inovação, erudição e cultura popular, trabalho cerebral e intuição. Nesta entrevista, realizada em duas etapas, na casa do compositor, no Rio, ele fala sobre sua formação literária, sobre suas ligações com a música e sobre sua família. Filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, autor do clássico "Raízes do Brasil", Chico comenta a relação com o pai e revela a existência de um irmão alemão, por ele desconhecido. Dizendo-se um "homem cordial" (conceito cunhado por seu pai), Chico também fala sobre seus amigos, seus parceiros e, apesar da timidez, não evitou temas delicados, como vícios e manias. Quase um cinquentão, Chico comemora 30 anos de carreira em plena forma e diz que hoje se sente mais leve do que na época das cobranças políticas.
Folha - Começando por sua formação literária: o que você leu quando jovem? Que autores foram decisivos? Você lê bem em outras línguas?
Chico Buarque - Eu leio bem francês, italiano e espanhol. Quando criança, falava italiano e inglês porque morei em Roma durante dois anos e estudava em escola americana. Com 10 anos de idade eu falava italiano e inglês correntemente. Eu tenho até hoje uma carta em que uma professora americana, ao despedir-se de mim, disse que um dia ainda leria um romance "written by Francisco Buarque de Hollanda". Depois parei e esqueci ambos. O italiano eu retomei quando fui morar novamente na Itália, em 1969. Mais tarde quis retomar o inglês e fui tomar umas aulas. Foi engraçado, minha professora disse que eu tinha uma boa pronúncia, mas que o meu vocabulário era muito infantil...
Na tradução do "Estorvo" para o inglês eu fiquei em Londres uns dez dias, diariamente, com meu tradutor. Consegui entender o suficiente para detectar o que não estava correto - mas não conseguia apontar soluções.
A partir dos meus 15, 16, 17 anos, na minha adolescência, eu comecei a ler muito. E comecei a ler muito em francês - que ainda hoje eu escrevo melhor do que falo. Era influência da biblioteca do meu pai. O que ele mais tinha era literatura em língua francesa. E ler foi uma maneira que encontrei de me aproximar dele.
Folha - Você poderia explicar melhor essa relação?
Chico Buarque - A minha tentativa de aproximação com meu pai foi através da literatura. Ele vivia fechado na biblioteca, e eu, que tinha medo de penetrar naquele território, começei a ler algumas coisas. Ele me indicava desde clássicos, como Flaubert, até Céline, Camus e Sartre. Li, ainda em francês, Kafka, Dostoiévski, Tolstói e uma boa dose de literatura russa. Mais prosa do que poesia: meu conhecimento de francês sempre foi suficiente para prosa e insuficiente para poesia. Eu me lembro de, lá pelos 18 anos, ir para a Faculdade de Arquitetura com esses livros em francês, o que era uma atitude um pouquinho esnobe. Talvez para me valorizar dentro de casa ou talvez para agradar meu pai.
Folha - Quando a gente começa a ler sempre surge aquele primeiro livro capaz de transcender o próprio mundo da literatura, aquele autor que sozinho passa a constituir um universo, que nós dá um susto e muda a nossa vida. Diante de que autor você sentiu a vontade de escrever?
Chico Buarque - Como eu dizia, eu tinha amigos com quem falava e discutia literatura em francês. Era uma atitude um pouco exibicionista, até que um colega me deu uma debochada: "Mas você só vem com esses livros para cá, por que não lê literatura brasileira?" Eu respondi: "Você tem razão". E comecei a ler o que não havia lido até então, de Mário de Andrade, Oswald de Andrade até Guimarães Rosa, por quem me apaixonei. Guimarães Rosa talvez seja esse marco para mim. Foi uma descoberta. Durante um bom tempo, queria escrever à la Guimarães Rosa. Participei de diversos concursos de contos naquela época, textos cheios de neologismos.
Folha - Você começou pelo "Grande Sertão: Veredas"?
Chico Buarque - Comecei com "Sagarana", "Corpo de Baile" e cheguei até o "Grande Sertão".
Folha - E na área de poesia, você chegou a conhecer o Manuel Bandeira?
Chico Buarque - Conheci Bandeira, Drummond, e conheço João Cabral. Bandeira eu conheci desde pequeno, porque ele era muito amigo de meu pai e padrinho de meu irmão mais velho, Alvaro Augusto. Tem até um daqueles poemas...
Folha - Do "Mafuá do Malungo"...
Chico Buarque - É, tem um para o meu irmão Alvaro Augusto. Já mais velho, quando fui morar no Rio de Janeiro, mas garoto ainda, fomos visitá-lo. Fui com o Tom e o Vinícius. Foi um encontro interessante. Ele tocou um pouco de piano e começou a contar umas histórias do meu pai. "Ah! o Sérgio"... e no meio de algumas lembranças ele mencionou "aquele filho alemão". Eu perguntei: "Que filho?"