Arte popular só com o povo no poder
Quem trouxe o Chico para este jornal foi um amigo. Amigo dele, principalmente, meu e de vocês, certamente: um patife chamado Tarso de Castro. Não sei se vocês lembram, mas o primeiro Folhetim já tinha uma história com o Chico. Era uma partida de futebol de salão: o Chico na defesa, porque ele não joga no ataque. Quer dizer, jogar ele joga, mas prefere a defesa. O que não o impede, jogando, de ser ataque. Coisas do Chico. Depois, o mesmo Tarso perpetrou um Chico Cio da terra. Isso mais adiante, tendo ocorrido aí nesse meio tempo um Folhetim 8 com Chico Olhos nos olhos, e que não teve nada a ver com Tarso. Agora que passamos, sem o Tarso, do número 100 (ele nunca gostou de números redondos, até gostaria mas isso é outra história), o Chico está de volta botando água no feijão. Pra coisa ficar completa duma vez. Vamos dizer que essa coisa é a questão democrática, para ficar claro. Vocês aí engrossem o caldo como se deve quando se recebem amigos.
O Chico falou, no começo, numa sala da gravadora.
E continuou na sala da casa dele, no alto da Gávea. Aproveitem, que não é sempre que se tem uma feijoada completa.
Folhetim - A gente podia começar falando do que está acontecendo, quer dizer, fora todos os feriados... das pessoas falando de partidos, procurando espaços políticos. O Chico Buarque falando como criador, não apenas como cidadão.
CHICO - Tem horas que essas duas coisas se misturam. Acho que esse não é o momento para se misturar as duas coisas, inclusive de ficar cobrando do artista uma postura como cidadão, porque esse momento é adiantado ou atrasado. Aconteceu muito, de 68 a 74 principalmente. Havia um vazio político profundo no país inteiro. As opções que se apresentavam eram muito pobres para interessar o jovem, as pessoas que gostariam de estar participando de alguma forma da sociedade. Então, é evidente que nesse período qualquer palco virava uma tribuna, mesmo não querendo o sujeito estava lá assumindo uma posição.
O tempo todo, a cada momento, a cada canção e a cada entrevista. Agora, acho que chegou um pouco a hora do artista. Estou falando do meu ponto de vista pessoal, passar um pouquinho dessa função, porque na realidade esse artista não está preparado para responder com muita nitidez a uma questão mais profunda. Num momento em que eu transfiro em termos de popularidade meu prestígio pessoal para um candidato a senador, a deputado, essa é a posição política mais clara que eu posso assumir. Apoiei fulano, então ele vai falar por mim. A posição de fulano é a que eu apoio. Em 72, por exemplo, não existia isso, as pessoas votavam nulo, não tinham por que falar se preocupando com discussão política. Eu andava pelo interior fazendo show com estudantes e mesmo a grande maioria deles, a discussão mais profunda que travavam era se a maconha do Ceará era melhor que a do Maranhão. Não ia muito além disso. Eu, lá, cantava Construção, Deus lhe pague e aquilo tinha uma função política efetiva, tenho consciência que tinha. Depois de um certo tempo, aí já não me satisfazia mais esse papel, porque parecia que eu estava jogando com um baralho falso, estava continuando a transformar um palco numa tribuna quando na verdade os problemas nacionais pra valer já podem ser discutidos, principalmente a partir do momento em que a imprensa começou a ser menos censurada. A grande mudança foi essa. Eu sou uma pessoa de oposição, não tenho simpatia nenhuma pelo governo... mas esse governo abriu a imprensa, e não abriu porque é bonzinho, foi forçado a abrir, mudou tudo no País.
Folhetim - Um dos jeitos mais fáceis de chamar a atenção das pessoas para o Fernando Henrique Cardoso era dizendo que você o apoiava para o Senado...
CHICO - É, isso ainda é o resto dessa deficiência que está aí. Se existisse liberdade para valer não precisava realmente usar o nome dos artistas para promover fulano. As pessoas saberiam que... sei de casos de pessoas que na boca da urna votaram no candidato de Chico Buarque, da Regina Duarte, existe isso. O ideal seria que elas soubessem por que fulano é candidato de fulano. Não simplesmente uma credibilidade que você tenha. Sem lei Falcão, sem cacete a quatro o povo realmente estaria votando nesses candidatos e saberia por quê.
Folhetim - Falando na censura, você acha que acabou a marcação? Quer dizer, censuraram a música que você fez para as Frenéticas, ao mesmo tempo em que liberaram outras, antigas.
CHICO - É, Mambordel. É claro que a libertação dessas três que estão no último disco foi uma coisa muito pensada. Foi uma jogada, e muito bem bolada porque eu não podia reclamar, porque liberaram as músicas. O máximo que eu podia fazer era não gravar em sinal de protesto. Eu soube da libertação pelo jornal. Isso é muito maior que o rancor de um ou outro censor. Isso existiu em tempos, não só com relação a mim mas a outros compositores e gente de teatro, Plínio Marcos, por exemplo.
Folhetim - Com ele continua.
CHICO - Continua, em teatro ainda há centenas de peças proibidas. É claro que a liberação de uma peça de teatro tem menos repercussão que a liberação de uma música de um compositor popular.
Folhetim - Você sabe por quê censuraram essa música para as Frenéticas?
CHICO - Digo sinceramente, nunca tive muita idéia porque estavam censurando. Às vezes liberam música que a gente pensa que vai ser proibida. O Mambordel deve ser atentatório à moral e aos bons costumes. Essa música foi feita para um filme que afinal não se fez, mas fiz para uma situação do filme em que as prostitutas conseguiam enxotar o dono do bordel - é uma fábula - o grande gigolô delas, e diziam: "Foi proclamada a república nesse bordel." E termina assim: Ao povo nossas carícias, ao povo "nossas carências, as nossas delícias e as nossas doenças."
Folhetim - Faça um balanço dessa sua luta com a censura.
CHICO - Não foi uma luta pessoal, mas em alguns momentos ela assumiu aspectos pessoais. Eu era pessoalmente incomodado, quase semanalmente. Em cada lugar que eu ia, era obrigado a comparecer ao Deops. Isso quando estava fazendo show, aqui no Rio eu era chamado regularmente ao Deops. É claro que isso foi me afetando pessoalmente e eu reagia às vezes até de uma maneira menos racional. No aspecto geral essa picuinha não pesa nada. Aí a discussão é outra: é a gente fazer um balanço do prejuízo que a censura representou para nossa cultura esse tempo todo.
Folhetim - Isso mesmo. O que fizeram deste País?
CHICO - Liberarem essas músicas (do disco) não significa absolutamente nada. O prejuízo não foi maior pra mim nem pra ninguém, foi para a arte nesse País mesmo. Eu acredito que o público que assiste a uma peça de teatro que tenha alguma ousadia, alguma contribuição, saia desse mesmo espetáculo enriquecido, é um dado a mais para a cabeça desse público. Isso significa que no mês seguinte, quando voltar ao teatro, ele vai querer uma acréscimo a essa sua informação ou emoção. Então o autor é obrigado e desafiado a estar sempre criando mais e melhor. Isso durante um ano representa já um salto cultural de todo o País, durante dez anos é realmente o que se chama desenvolvimento cultural de um país. O contrário é emburrecimento. O público que deixa de assistir as peças, não viu Rasga coração, do Vianinha, por exemplo, perdeu com isso. Os autores dramaturgos também perderam, porque não são obrigados a fazer uma coisa melhor que aquilo, e vão ficando parados no mesmo lugar, emburrecendo com as moscas em volta. Aí chega um cara qualquer e diz assim: em Portugal, depois de 50 anos, abriram as gavetas e não tinha nada... É, evidente, depois de um certo tempo ninguém fica escrevendo coisas maravilhosas pra botar na gaveta. Ele tem necessidade de exibir seu trabalho, de ter o reconhecimento ou o repúdio do público, ele precisa desse diálogo e o público também. Se não houver esse diálogo morre. Isso vale para teatro, para cinema, para música, para todas as áreas. Tenho certeza que se não tivesse havido essa censura toda, a música brasileira estaria muito melhor, eu estaria um compositor melhor do que sou, haveria muita gente nova, muito mais do que há hoje.
Folhetim - Muita coisa mudou no Brasil na relação do jovem com o poder.
CHICO - A gente, pelo menos, tinha a ilusão ou a certeza de estar de certa forma participando da Nação. E o jovem participava: através de sua atividade estudantil ou de outra, ele tinha consciência de que estava participando. Hoje, o máximo que ele pode almejar é um bom emprego quando sair da faculdade. A coisa foi colocada toda em termos de competição e nada mais. Estou falando de classe média , da minha classe, porque se você for olhar em volta as opções são trágicas. E ninguém garante nada, essa pequena abertura que houve pode ser retirada amanhã de manhã. A única vantagem que tem é eu estar falando essas coisas e saber que elas vão ser publicadas no jornal. Aí há um salto, se você comparar isso com 73, quando proibiram Calabar e proibiram a imprensa de falar no assunto, aí realmente era o buraco, aí não tem saída. Pelo menos a gente já está podendo falar dessas coisas, já é um progresso. Esses anos todos da ditadura do Médici é que foram uma das coisas mais pobres.
Folhetim - Não pode ter sido pura falta de talento você, por exemplo, não ter continuadores.
CHICO - Evidente que não, não acho que faço parte de uma geração privilegiada pela natureza, pelos astros... Outro dia apareceu um americano aí querendo fazer uma reportagem sobre os jovens arquitetos brasileiros. Eu falei com um arquiteto dos seus 37, 38 anos que disse que acabou entrando ele na reportagem, ele e os colegas. São os garotos prodígio de 15 anos atrás. A pergunta que vocês me fazem é bem essa mesmo: fizeram deste País... Durante esses anos o jovem foi uma pessoa conduzida por todos os meios de comunicação e por todo o sistema que esta aí a ser uma pessoa desprovida de ideal, de criatividade. Quero deixar muito claro que se não tem aparecido muita gente depois da minha geração é simplesmente porque as dificuldades são muito maiores do que eram antes. São dificuldades que inibem qualquer talento. Tenho a certeza de que se fosse dez anos mais moço, não seria um compositor, ou seria medíocre, frustrado ou desconhecido.
Folhetim - Nesse teu último disco tem muita música cubana. Resultado da viagem que você fez no começo do ano?
CHICO - É, e também tem muita música que canto com Milton no disco dele. Na verdade, enquanto estive lá trabalhei tanto, fiz tanta coisa em tão pouco tempo, que só fiquei com uma vontade danada de voltar e realmente vou voltar. Naqueles vinte dias fiz um show de música brasileira e música cubana, isso envolveu ensaios e o diabo. Fizeram um documentário comigo que, aliás, esta sendo exibido lá agora, outro dia recebi uma crítica. O que mais tocava a gente era a semelhança que existe entre os povos em todos os aspectos dos seus costumes e a paisagem também, que é o Nordeste brasileiro igualzinho. Lá, cada vez que me perguntavam sobre Cuba eu estava sempre falando do Brasil, tava ficando até chato: me perguntam sobre Cuba eu respondo sobre o Brasil. A gente tinha até uma brincadeira, todo cubano que aparecia tinha um igual no Brasil: olha fulano! Tem coisa demais: no humor, na música, no ritmo, no calor - e de repente tudo é diferente. Chocante não existir consumo, consumismo, não existir propaganda de produtos. Minha mulher foi comprar um creme hidratante e deram um potinho com um negócio marrom dentro. Ela acostumada com Ponds, Helena Rubinstein, olhou aquilo sem rótulo, sem nada, com um aspecto meio feio e perguntou: não tem outro? (risos). A senhora não quer creme hidratante? É isso. Depois usou, deu ótimo resultado, mas você está viciado por aquele apelo... Se eu for falar de Cuba não paro mais. Até quando cheguei lá e dei uma entrevista, saiu uma frase assim: "Aqui em Cuba vejo o Brasil que nós sonhamos..." Depois soube que essa mesma frase foi dita por um famoso político brasileiro que está aí, aliás na Arena...
Folhetim - Mas e a presença soviética, incomoda?
CHICO - É claro que lá você vê muito russo, búlgaro, romeno. Você cruza com aqueles russos, uma coisa que não têm nada a ver com a paisagem, fica assim meio exótico. Aqueles caras de gravata e tal, você entra no hotel e vê os caras, mas vai aqui no Sheraton e vê: você vai encontrar uma quantidade de americanos muito maior.
Folhetim - Durante a campanha eleitoral você apoiou alguns candidatos e tal, mas você fez muito mais do que isso. Você ressuscitou a paródia, naqueles jingles para o Fernando Henrique, o Audálio Dantas, etc... A paródia, que é uma coisa que se fazia antigamente...
CHICO - Você falou nisso e lembrei, nesse tempo também se usava muito músicas de carnaval: Lata d'água na cabeça. Chora doutor e por aí. Essas músicas são da minha infância, dos anos 50, lembro que cantava esse tipo de música que desapareceu. A música de protesto brasileira é uma música alegre, ao contrário do que se ouve por aí afora. Tanto que talvez uma das minhas únicas músicas que pode ser chamada de protesto, o que no Brasil é um palavrão, compositor de protesto é um insulto incrível é Apesar de você, que é alegre, um pouco com a idéia dessas músicas antigas de carnaval. Foi engraçado que no caso do Modesto da Silveira, candidato aqui Rio, mas ia fazer até uma gravaçãozinha para tocar nesses altos-falantes e eu falei: aí precisa ver essa coisa de direito autoral. "A música é a melodia do Sacarolha do Zé da Zilda e da Zilda do Zé. O Zé da Zilda já morreu, aí foram procurar a Zilda, que mora longe. Foram pedir licença e dar um dinheirinho. Foi bom porque ela não tá bem de vida. Ficou contentíssima e disse que ia votar para esse candidato. Esse negócio de direito autoral é bom falar também: hoje, comparando com três anos atrás, o sistema tá moralizado na medida em que o compositor recebe pela música que efetivamente toca nas rádios e nos lugares públicos, enquanto que antigamente prevalecia o critério misterioso. Mas em contrapartida, o sujeito que fez sucesso no passado hoje não vê um tostão e o autor de música sertaneja também não. Porque a arrecadação é feita com base em algumas emissoras do Rio, São Paulo e algumas capitais. Então eu, por exemplo, que sou beneficiado com isso, recebo muito mais do que recebia antes. Mas outro dia peguei um táxi e o motorista disse: sou seu colega. Disse o nome dele, eu não tava localizando, mas era parceiro do João do Vale em Carcará! Essa foi uma das poucas músicas dele que fizeram sucesso em São Paulo, Rio, mas ele tem uma porção de músicas sertanejas, especialidade dele, que tocam no interior. Perguntei, então como é que ficou agora? Ficou muito pior... Motorista de táxi, né? E autor de Carcará. As coisas no Brasil são assim: ou oito ou oitenta.
Folhetim - E o que vocês podem fazer para corrigir isso?
CHICO - Eu não faço parte, só digo que a Sombrás teve uma participação ativa na mudança, que em princípio foi pra melhor, mas ao mesmo tempo estou falando isso aqui porque não tenho onde falar. A Sombrás pegou fogo, quem faz parte do conselho de direitos autorais é o Roberto Carlos e o Fernando Lobo, das pessoas que conheço eles é que têm que levar adiante. Então precisa ficar falando nos jornais. E preciso levar em conta esse aspecto, principalmente de gente que foi roubada durante todo esse tempo, até quando mudou o sistema, e agora pelo menos deveria ser indenizada pelo que aconteceu até então.
Folhetim - Quando você diz que é um artista classe média, você está se colocando a dúvida de como chegar ao povo? Queríamos saber se é isso, ou se você pensa em outra coisa.
CHICO - O que quero dizer é o seguinte: há cada vez mais um abismo entre a produção intelectual e o grande povo. Quando chega o general Geisel e prova com números que aumentou o consumo de eletrodomésticos etc. e tal, me parece uma coisa inteiramente furada. Porque eu, uma pessoa beneficiada pela má distribuição de renda, aqui em casa tenho quatro aparelhos de televisão. Dois não funcionam, mas tenho, dá pra consertar amanhã..... Então, hoje não é difícil uma pessoa ter dois, três carros. O consumo está cada vez mais concentrado. No mercado da música, a mesma coisa: meus discos hoje vendem muito mais que antes. Para os produtos mais sofisticados, realmente existe um mercado cada vez maior, isso é verdade. Basta ver os cigarros que são lançados todos os dias com filtro de ouro, filtro platinado, para essa mesma parcela da população.
Folhetim - Mas num momento em que começam a acontecer algumas coisas a nível político, mesmo que poucas, o que pode mudar nessa relação povo - classe média?
CHICO - É evidente que a gente luta por uma abertura democrática. É o que a gente quer para essa pequena parcela pequena do público que atingimos, para que pelo menos essa parcela receba o trabalho da gente integralmente e que essa liberação permita maiores ousadias e uma criação mais forte. Mas acredito que dentro do sistema capitalista essa questão da arte popular está comprometida. Eu aqui tenho uma ressalva porque acho que no momento o que há de mais importante mesmo para colocar é a questão democrática. À parte disso eu tenho outras convicções que quero ter a liberdade de colocar a cada entrevista ou a cada canção ou a cada peça de teatro, para ser ouvida, para ser julgada... Não estou querendo dizer que sou o dono da verdade, pelo contrário, estou sempre dizendo que não sou. Agora, quero ter a liberdade de manifestar minha opinião pessoal e, como já disse nesta entrevista, hoje existe a vantagem de poder dizer alguma coisa na imprensa. Na verdade, a arte só é popular na medida em que ela tende a estar aliada ao governo, e o governo seja popular na medida em que esteja ligado ao povo. Eu só acredito em arte popular num país em que o povo esteja no governo.
Folhetim - Você acredita no Estado?
CHICO - Eu defendo o povo no poder... o Estado enquanto povo no poder. Aí a arte é popular, senão será sempre uma arte de elite, sempre foi. E claro que é muito mais importante dar pão para o povo, mas de repente você pode através da arte comunicar a esse povo a importância que ele tem para poder reivindicar o básico. Isso aconteceu em Cuba. Tá acontecendo em Moçambique, mas é inteiramente diferente do que está acontecendo aqui. O sistema que existe aí procura desviar a arte a seu gosto, contra os interesses populares.
Folhetim - Você é um sujeito meio inatacável, até parece uma exceção. Você se sente assim?
CHICO - Não, isso não é verdade. Sempre que eu leio uma coisa assim é um pretexto para dar uma paulada e o cara ainda sair com fama de corajoso.
Folhetim - Mas, quem fala mal de você?
CHICO - Volta e meia falam. Realmente não falam muito porque, na verdade, a única resposta que a gente pode dar a essa marcação é o trabalho mesmo. Não adianta eu ficar aqui me queixando, a gente tem que responder com trabalho. Quando saí do Brasil e fiquei um ano e meio fora, o que li na imprensa, me mandavam aqueles recortes, era assim: de cocô para baixo, e eu não podia responder porque não adianta responder. Eu não fico mandando cartas a jornais, porque também teria ocupado meu tempo todo com isso. Eu pessoalmente não tenho nenhuma admiração pessoal por mim, mas pelo meu trabalho eu tenho... porque quando nada, nada, eu vivo pra isso. Então as pessoas usam um pouco isso, de chamar o Midas, como se fosse uma coisa meio mágica ou uma coisa intocável. Não é, isso é resultado de trabalho, eu estou produzindo constantemente, mas se eu produzir uma coisa muito ruim, podem falar mal, é uma porcaria e vão falar mal. Porque é isso que a gente vê, esse País tá virando um poço de ressentimento. A gente vê de repente Milton Nascimento, era considerado inatacável, era considerado um mito, tinha até trocadilho... E tem oitenta por cento das pessoas que acham Milton maravilhoso e vinte que não acham, mas que não têm coragem de dizer porque vai pegar mal e tal. Aí um dia, numa apresentação no festival de jazz, não sei o que, essas pessoas que estavam com esse ressentimento guardado há muito tempo botam para fora esse negócio de uma maneira selvagem. Isso já aconteceu comigo, com os baianos todos, com o Milton. Tem críticos que não conheço, não vejo, mas que possivelmente estão com as pedras na mão prontos para atirar. A crítica aqui no Brasil é uma coisa muito provinciana, funciona muito a ligação pessoal. A gente conhece os críticos, eles conhecem as armas e quando se dão bem , se falam, almoçam juntos. Quando não se dão, já se sabe que vai ter um pau no dia seguinte. Eu até procuro evitar um pouco esse contato porque até fica parecendo que a gente tá querendo angariar votos...
Folhetim - O artista, em todo caso, é sempre uma coisa maior. Porque o crítico está sempre na periferia, em volta do artista, do trabalho do artista. É como um sujeito que está fora tentando entrar.
CHICO - Esse negócio todo tem a ver com o fato da imprensa exagerar o papel do artista. Eu tenho a tendência de ficar diminuindo, de repente fico achando que essa música toda, esse trabalho que está sendo feito, na verdade, diante do que há de importante a se fazer por aí, é uma porcaria, uma titica, principalmente quando há essa coisa de ficar dando entrevista, de ficar falando de mim. Parece que vou não me convencendo, e achando que tudo é uma grande bobagem.
Folhetim - Como você se vê hoje? Você acabou virando uma das figuras mais importantes da cultura brasileira.
CHICO - Não sei não, não me vejo como figura, imagem, essa coisa toda. Acordo bem comigo quando estou criando, quando estou trabalhando. Se na véspera fiz uma linda música eu acordo cheio, orgulhoso, contente, me achando muito bom. Mas isso passa com o tempo. Agora, por exemplo, já estou meio desligado do meu disco. Logo depois da gravação eu ouvia muito e ficava contente. Minha peça de teatro passei um mês indo lá diariamente... já não vou há quase dois meses. É uma coisa muito volúvel. De repente estou indo toda a noite e depois me recuso a ir. Não quero ficar comendo aquela coisa requentada, me satisfazendo com um negócio que já fiz, que já não interessa mais para mim. Já fico querendo fazer uma coisa nova e aí me sinto um pouco angustiado e impotente.
Folhetim - Como você compõe? Tem uma história de que você compõe na cama...
CHICO - Eu só componho com violão e só componho sozinho. Aliás, a maioria das minhas músicas faço sozinho. Parceria é outra coisa. Agora, a idéia de uma canção pode acontecer a qualquer momento em qualquer lugar, tomando banho já tive várias idéias. Aí você se enxuga depressa, põe o calção, corre, pega o violão pra ver se continua a idéia com a música. Eu não escrevo uma letra, até mesmo uma música pode pintar debaixo d'água, uma idéia qualquer, uma transação que depois de pegar o instrumento vai mudar, vai ser inteiramente alterada. No fim o que deu início a tudo vai sumir, muitas vezes some.
Folhetim - A bebida tem alguma coisa a ver com essas idéias?
CHICO - Uisquinho, essas coisas assim são um pouco vagabundagem... Se eu estiver um pouco alto não faço nada bem. Ligo álcool, sim, à apresentações em público, aí é indispensável, mas não tem nada a ver com a criação. Inclusive, às vezes a gente tem idéias assim que acha que são brilhantes e no dia seguinte acorda e vê que não presta pra nada. Já aconteceu de idéias aparecerem em sonhos, idéias que pareceram alucinação e no fim são boas. Mas em geral trabalho sóbrio, sério, disciplinado.
Folhetim - Tem alguma coisa em você ligada à tristeza. Seu último disco tem músicas alegres, mas tem um fio meio triste.
CHICO - Você acha? Com aquela cara e tudo, rindo na capa?
Folhetim - E talvez seja o mais alegre dos discos que você fez até hoje.
CHICO - As coisas também andaram muito amarguradas durante muito tempo. Um disco como Construção, como Calabar, Chico Canta - são discos muito pesados, amargurados... Agora tá na hora de descontar um pouquinho isso. Acho importante estar alegre, otimista.
Folhetim - Você está?
CHICO - Procuro estar, né? Procuro mas talvez seja pra compensar. Pelo menos hoje a gente já tem a perspectiva do otimismo. Otimismo indireto, por tabela.
Folhetim - Mas quando você começou com Olê olá, Pedro pedreiro, não tinha esse peso no País e são todas músicas tristíssimas.
CHICO - Não, não concordo... você está querendo saber se eu sou uma pessoa triste?
Folhetim - Não, você é bem-humorado até.
CHICO - É, acho que sou... até nos momentos mais graves não perdi o bom humor. Perdi a esportiva uma vez ou outra, mas o bom humor de vez em quando, aí em dose cavalar. O humor acho importante segurar... enquanto existir humor.
Folhetim - E as mulheres nas tuas músicas?
CHICO - O que que tem?
Folhetim - Fala delas...
CHICO - Eu fico muito orgulhoso porque muitas vezes as mulheres, me dizem que eu interpretei o pensamento delas, o sentimento delas, o sentimento principalmente. Eu fico muito contente, e é uma coisa parente do dia em que me chamaram no Sindicato da Construção Civil de Minas Gerais, em Belo Horizonte, e me deram um prêmio, essa pá que está ali, por causa de Construção. A gente fica satisfeito... é claro que existe uma coisa que comove a gente o tempo todo. A crítica mais reacionária diz assim: esse sujeito é um burguês, não tem o direito de falar em nome do povo, falar do operário. E uma crítica desagradável, só que parte da burguesia. Os críticos são burgueses tanto quanto eu. No dia em que uma pessoa do povo me desautorizar de falar em nome dela, de falar dos problemas do povo, aí vou realmente me sentir frustrado, vou ser obrigado a dar a mão à palmatória. Então, enquanto as mulheres, eu estava fazendo um paralelo, disserem que interpreto bem com o sentimento delas, inclusive cantando no feminino, compondo no feminino, vou me sentir nesse direito.
Folhetim - Nenhuma feminista te chamou de machão?
CHICO - Isso eu acho uma bobagem. Tenho uma amiga feminista, a Rose Marie Muraro, que acha que estou de acordo com as teses do movimento feminista. Não sou contra o feminismo, mas acho que de vez em quando elas falam um montão de bobagens.
Folhetim - Tipo o que, por exemplo.
CHICO - Há muito tempo, quando não existia o movimento feminista, talvez seja uma das coisas comigo que me lembro mais em São Paulo, houve quem fez pregações nos bares da moda contra Com açúcar, com afeto, dizendo que eu colocava a mulher como sendo uma submissa. Eu respondo: realmente a mulher é submissa, é isso tudo, o machismo existe e se eu disser que não existe estou sendo machista, porque estou querendo escamotear uma realidade. Eu estou colocando uma situação, não estou de acordo com ela, a mesma situação estou colocando pelo canto de Pedro pedreiro... O homem é pobre, se eu disser que ele é rico aí vou estar sendo fascista. Isso aconteceu quando fiz aquela música Partido alto, que dizia "Deus me fez um cara pobre, desdentado e feio pele e osso simplesmente, quase sem recheio...." Me disseram na censura que essa música era uma ofensa ao povo brasileiro. Eu não acho que ela deve ser isso não. Se disser que o pobre é bonito e rico um coitadinho, é a mesma coisa que dizer que a mulher é forte e o homem um pobre coitado. Ah, outra coisa que andaram falando também é por causa de Mulheres de Atenas... Aí eu fico preocupado com a capacidade crítica das pessoas. Aliás, é uma música feita para uma peça, tem aquela coisa, mas achei que era bastante claro que estava dizendo uma coisa com um refrão que era contradito o tempo todo pela letra da música, tipo outra música que está proibida e que fiz pro Calabar, "vence na vida quem diz sim", e o tempo todo repete o refrão. Mas se forem me chamar de positivista por causa disso, aí é absurdo. Pô, a música toda diz "não mirem-se nas mulheres"... agora pra ter graça tem que botar " mirem-se no exemplo", pra vocês verem o que vai acontecer...
Folhetim - Continuando mulheres, tem aquela história de que mulher que não gosta do Chico e não tem vontade de ter filhos tem alguma coisa anormal...
CHICO - Não acho que tenha essa imagem não. Não sou símbolo sexual, digo sinceramente. Se eu fosse, tava contente.... Sou até uma pessoa desajeitada, um pouco inábil com as mãos, que funcionam de um jeito esquisito. Não estou, também querendo fazer contrapropaganda das minhas qualidades... mas não acredito que seja não. Me acho é engraçado por causa dessas mãos que o Toquinho diz que não têm nada a ver com o resto do corpo. Parecem de outra pessoa. Toquinho goza muito, aliás mostra fotografias e diz: a mão tá sempre numa posição absurda. E eu, quando me vejo num filme andando, acho uma coisa meio desengonçada.
Folhetim - Mas aí você está embromando...
CHICO - Não... eu diria. Aí, é claro, entra outra coisa: eu fico me protegendo, me resguardando um pouco. Não das mulheres, mas de um modo geral das pessoas. Tinha um tempo de televisão, TV Record e tal, que eu tinha fobia de público, de muita gente. Agora estou mais tranqüilo, mas tenho dificuldade de transar com uma pessoa que não conheça. Eu tenho aqueles amigos, uma coisa assim meio fechada, e fora isso sempre me parece uma invasão, aí nisso é claro que dança homem, mulher, tudo é a mesma coisa... Eu fico com medo de ouvir uma coisa desagradável. Eu sou uma pessoa muito exposta e sou muito sensível a críticas pessoais. Lembro de quando escrevi Fazenda modelo, um livro de que gostava muito. As pessoas chegavam, diziam "li seu livro" e eu pedia: pára aí, não fala nada. "Não, mas gos..."eu pedia por favor para não dizer nada. Eu estava muito tenso em relação àquele trabalho.
Folhetim - Mas você até que anda mais relax.
CHICO - Já estou muito melhor nesse sentido. Mas eu fico com medo de estar carregando... no fim, quando eu for ler esta entrevista vou falar assim: ih, que exagero. Então meu estado de espírito é um hoje, amanhã a entrevista seria inteiramente diferente. O que estou mostrando, de qualquer maneira, é um lado meu... e não é mentiroso.
Folhetim - Você se preocupa muito com sua imagem?
CHICO - Com a minha imagem, de jeito nenhum... parecia que eu tava dizendo isso?
Folhetim - Não, é outra coisa. É que um sujeito na condição em que você está tem a vida muito devassada, as pessoas querem saber coisas e tem toda uma vida sua que não é a que as pessoas conhecem.
CHICO - É, só tem uma vida... A conversa que sai nos jornais, de um modo geral aí já é uma imagem que existe, que eu não criei. De alguma forma contribuí para criar, mas não foi no sentido proposital. Eu também não fiquei desmentindo as coisas. Então às vezes pintam coisas incríveis.
Folhetim - Por exemplo.
CHICO - Um dia uma moça do jornal "O Dia" veio me entrevistar e ela estava um pouco acanhada. É um jornal muito popular no Rio, mas nunca tinha me entrevistado. Ela achava que eu não tava me sentindo bem. Ela disse que soube que eu era muito agressivo e que uma vez bati numa repórter. Então isso é uma coisa que tá ocorrendo na redação desse jornal, onde provavelmente ninguém me conhece: que eu seja agressivo, o que não sou, e que eu tenha batido numa mulher, o que também é um pouco demais. As coisas aí também vão correndo, correndo e ficam cristalizadas. Aí me preocupa. Sou uma pessoa com uma série de defeitos e vulnerabilidades, mas mentira me irrita muito.
Folhetim - Você não é de briga...
CHICO - Não, sou de paz. Talvez por ser uma pessoa muito calma, sou até considerado por alguns amigos como excessivamente indulgente, de fechar os olhos para as sacanagens. Tem horas que vem a explosão, mas sempre na defesa.
Folhetim - Você não joga no ataque?
CHICO - No ataque só no futebol, no resto tô aqui na defesa. Por isso tudo tô falando: uma pessoa muito exposta, com uma posição bastante clara diante de tudo, eu sou odiado por muita gente... e tem uma hora em que as pessoas também não conseguem conter esse ódio e vêm pra cima. Se vêm com mentira e se encontra na rua, aí tem briga. Mas não sou briguento, sou paciente. Por exemplo, eu odeio os fascistas, odeio de uma maneira abstrata. Concretamente, se vir um fascista na minha frente, não vou falar com ele, vou virar a cara. Se ele falar comigo delicadamente, alguma coisa vou responder. Se você for brigar com todo fascista que tem por aqui, vai ficar louco...
Folhetim - Você cantou Cálice antes da liberação?
CHICO - Em alguns casos, circuitos universitários, Nordeste, Rio, São Paulo. A gente tinha que mandar o título das músicas pra censura antes de um show. Então, Cálice a gente mandava com o nome de Pai. Pai é aprovado e aí eu ia: "Pai afasta de mim este cálice". Isso não acontecia no Rio ou em São Paulo. Acontecia em Piracicaba... Em alguns lugares diziam: Pai! Essa música não está aprovada pela censura... Outros aprovavam.
Folhetim - Que outras coisas você fazia para driblar a censura?
CHICO - Teve uma época que minha criatividade estava mais voltada pra isso do que propriamente para a música. Mas tenho medo de ficar contando essas coisas porque amanhã a censura volta mais brava ainda. Em todo caso, a gente tem que inventar outros recursos mesmo... Um deles era... não, esse não vou contar não, esse vale ainda, posso usar outras vezes. Um que não dá mais é pseudônimo. Depois da história do Julinho da Adelaide começaram a exigir junto com o nome do autor o CPF, a carteira de identidade etc. Nesse tempo o camarim estava infestado de policiais, então o pseudônimo de músicas só dava pra usar com as músicas desconhecidas, caso contrário você saía do palco direto pro camburão.
Folhetim - Nos momentos mais difíceis, de repressão mais violenta, você quando era preso tinha certeza de...
CHICO - Ah, isso nunca tirei da cabeça, o fato de que a minha popularidade era meu guarda-costas. Eu sabia que nunca seria um Vlado. Tinha certeza de que gozava de uma certa cobertura e até brinquei com isso naquela música do Julinho de Adelaide: "Você mãe gosta de mim mas sua filha gosta..." Aconteceu de eu ser detido por agentes da segurança e no elevador o cara pedir um autógrafo pra filha dele. Claro que não era o delegado, mas aquele contínuo da delegacia... Enfrentei grosseria, mas sempre tive a garantia que não iam me tocar. Normalmente ia com essa certeza e com uma obrigação: já que tenho essa cobertura, posso ir mais longe que outras pessoas, se não for.... ah sim, estou sendo fraco, covarde, canalha. Tentava descobrir a medida: posso ir até aqui e mais também é bobagem. Não havia nenhum sentimento heróico nisso e isso até uma ofensa diante de tanta gente que apanhou tanto, que morreu, que até hoje está sofrendo por causa de uma luta mais conseqüente e mais concreta e mais séria.
Folhetim - Mais séria por quê?
CHICO - Aí entra um pouco aquele negócio de achar que ficar fazendo música não é suficientemente sério. Eu tenho um pouco essa tendência, o que me consola é que eu tenho consciência da importância da música e da cultura de uma maneira geral. Mas quando começam a colocar isso num nível exacerbado eu tenho que reagir. Lendo entrevistas que o Oscar Niemeyer dá eu me identifico muito, ele diz a mesma coisa da arquitetura dele e eu não sou nada perto de Oscar Niemeyer, que eu conheço e perto dele me sinto inibidíssimo e me sinto pequeno. Ele acha que a arquitetura não vale nada diante da imensidão dos problemas deste País. Então, o que vou achar da minha música? Esse é um lado. Por outro, de repente, estou falando a mesma coisa que fala quem acha que cultura é frescura ou caso de polícia...
Folhetim - Ou então na posição dos que acham que só vale aquela política militante.
CHICO - Evidentemente. Dentro de um certo tipo de cabeça aí, que se pensa de esquerda, cinema é frescura. Mas a gente vê aí grande parte da população desse mundo inteiro que não tem sequer noção do que seja a dignidade humana e do que seja a possibilidade de satisfazer suas necessidades básicas, e então a arte pode ser um veículo. Posso falar de Cuba: lá eu vi o povo participando, se sentir participando. Isso vi com "estes olhos que a terra um dia há de comer".
Folhetim - Você também não é tão atacado porque é de uma família, digamos, de linhagem, enquanto Caetano e Gil são dois sujeitos do interior da Bahia.
CHICO - Isso é inseparável. No caso do Gil, então, existe um componente racial muito forte... aquele mulato que chama de mulato pernóstico, com aquela ousadia do Gil, já falei pra ele, ele tem aquelas narinas que são agressivas e tal, que pesa muito. Esse pessoal que fica pichando os baianos o tempo todo e se esquece muito disso. Eu, quando fui detido em 68, depois do AI-5, me perguntaram o que eu estava fazendo na passeata dos cem mil ao lado daquele crioulo sujo chamado Gilberto Gil. Então, sei que se houver outro 68 (toc, toc, toc) a gente bate na madeira e não acredito que haja, nessa hora eu vou estar talvez mais protegido do que Gilberto Gil, que é chamado de alienado por aí. Vou ser mais protegido do que Caetano Veloso, porque os trejeitos dele agridem um certo tipo de cabeça. Mais protegido que Nei Matogrosso. Não estou muito no fim da lista não, eles se incomodam comigo. Mas com um certo respeito e onde pinta o ódio e mais um ressentimento paternalista, como quem tá falando com uma pessoa que traiu a sua classe. Eles não entendem realmente como você, fulano de tal, como nome, sobrenome, de olhos verdes e que torce pro Fluminense, como é que está do outro lado. Eles compreendem que um crioulo, que uma bicha esteja do outro lado, e não admitem muito que eu esteja.
Versus - Que você me diz a seu respeito como compositor?
Chico - Eu a meu respeito? Sei não, esta e uma pergunta difícil de responder, pois isto implica em eu ter duas pessoas dentro de mim uma olhando para a outra achando bom ou achando ruim, e isto não vem a ser modéstia. Eu me interesso pelo trabalho que estou fazendo no momento e pelo menos por enquanto não tenho uma visão geral ou retrospectiva a meu respeito Surgiu uma proposta da Philips, há pouco sobre este assunto e eu quase caí na armadilha: seria fazer um disco traçando uma retrospectiva sobre o meu trabalho do tipo "Dez Anos Depois" que me pbrigaria a debruçar sobre a obra do compositor, teria que escolher, mexer, julgar. Eu achei um pouco com cara de museu ou de livro de memórias... Também é tentador porque existem músicas que eu fiz e quando ouço nem parecem minhas, gostaria de regravá-las ou seja, gravaria de novo melhor e com outras que não são muito conhecidas. Ao mesmo tempo considero perigoso cair de novo neste negócio.
Versus - Acredita que o processo criador esteja ligado a sensação de paz e contentamento ? Você trabalha melhor sob tensões emocionais ou a despeito delas ?
Chico - Eu não sou um estudioso do processo criador, posso falar da minha experiência pessoal que no caso é bastante distanciada desta idéia de "paz e contentamento". As minhas angústias propiciam mesmo uma predisposição para a criação. Cria-se um círculo vicioso; no momento que eu não estou criando fico angustiado. Eu já passei várias vezes por essa sensação, quer dizer, a fonte secou, daí o negócio brota, uma música pela outra.Todos os meus trabalhos são aparentados. eles têm sempre a ver um com o outro. nascem na mesma época.
E difícil eu fazer uma música agora e depois passar dois meses sem fazer Eu não tenho nenhuma sensação de paz se não estiver trabalhando se não estiver criando.
Versus - Seu processo de criação obedece a critérios, exige uma determinada técnica ?
Chico - Há um certo trabalho em que eu me disciplino um pouco, podendo até determinar um roteiro para executar. Por exemplo: uma peça de teatro em que eu esteja fazendo parceria ou uma peça que é uma adaptação de alguma coisa já existente ou mesmo uma música para uma peça ou filme; isto é um aspecto. O outro aspecto é a criação espontânea que é inerente ao meu trabalho como músico e não pode obedecer a roteiro nenhum, não pode obedecer aos planos da gravadora, que sempre procura lançar um disco por ano pois para ela é o ideal.
Existe o trabalho mais dirigido, mais disciplinado e no meu caso eu acho muito importante meu método ou a minha falta de método.
Se eu não tiver um trabalho tipo "encomenda", meu tempo fica mais pesado. É como se eu estivesse esperando cair do céu uma iluminação... É claro que isto vale para mim, para a minha falta de critério. Por exemplo eu vejo caras que passam o tempo todo com o violão criando, fazendo músicas. Não é o meu caso. Eu me enjôo depois de dez minutos com o violão; se não acontece nada, eu largo.
Versus - Seus escritos, suas composições têm alguma obrigação, comprometem-se com o público?
Chico - Posso me comprometer como não me comprometer, posso escrever uma peça que não tenha nada a ver com nada, posso escrever um vaudeville. Não existe esta obrigação. Se eu estiver preocupado em fazer um teatro que, como dizia o Paulo Pontes, reflita os problemas mais angustiantes das classes menos favorecidas. eu vou ter que estudar, vou ter que me dedicar muito mais do que se eu fosse fazer um samba sobre isto.
A obrigação, tenho que ter não para com o público mas para mim mesmo. Se eu quiser fazer um trabalho um pouquinho mais extenso mais profundo, no caso uma peça de teatro - que não acho que seja ,pior ou melhor do que um samba - eu vou ter que estudar tendo em vista um outro tipo de preocupação social.
Versus - Sobre o livro Fazenda Modelo, existem vantagens em escrever um. estória em forma de alegoria?
Chico - Em primeiro lugar não vejo vantagem nenhuma em escrever, a não ser quando existe uma necessidade. O livro que escrevi foi devido a uma necessidade de dizer muita coisa que não pode ser satisfeita com um LP. Aliás acredito que foi muito importante para o meu processo de criação, tanto que eu venho bebendo daquela fonte há muito tempo sem que ninguém se dê conta. Eu não vejo porque que você está falando deste livro como alegoria. O livro é uma fábula escrita com elementos muito reais até mesmo em nível de pecuária. Eu estudei aquilo tudo, nada é chutado. Não há nenhuma sutileza nissso. Existe um paralelo evidente entre um estábulo e - vamos dizer - um colégio.
Agora, te digo uma coisa: até recentemente escrever um livro era uma saída para muitos pois não havia - e não há - censura prévia, só agora que estão pegando a mania de apreender os livros mas isto posteriormente ao lançamento, e inclusive Calabar que é uma peça proibida, pôde ser lançado normalmente em forma de livro. Então a forma que eu escolhi não visava driblar ninguém, não havia a intenção de através de metáforas, driblar a censura.
Versus - Pode a palavra criar a desordem, ou seja, uma boa linguagem pode ser usada para fomentar um mau governo ou um mau governo é que distorce a linguagem?
Chico - Primeiro eu acho que devemos discutir o que é a desordem. Desordem é uma palavra que pode ser interpretada de várias maneiras. Desordem normalmente é indisciplina, é uma coisa perigosa dependendo a quem ou contra quem ela se destina e ao mesmo tempo a desordem é necessária, principalmente no campo das artes.
Eu não sei o que é ordem, a pergunta está levando a conversa para o problema da censura e eu sou contra a censura mesmo. Acho a censura inadmissível. A ordem é uma palavra que não rima com a arte, nem nunca vai rimar. Os artistas estão aí justamente para perturbar a ordem e nisso sempre estiveram - não adianta agora querer mudar a História. De alguma maneira, nós, os artistas, sempre vamos perturbar a ordem, e note que não estou falando nem da arte diretamente política, do tipo "canção de protesto".
João Gilberto cantando perturbou a ordem. Ele abalou as estruturas e nem sabe disto. Tanto é que bagunçando a ordem estabelecida ele gerou todo este pessoal que está fazendo música por aí, eu inclusive. O movimento tropicalista era um pouco isto, só que o movimento tropicalista era mais tipicitado. Tinha esta intenção. O João Gilberto nem tinha esta intenção. Inclusive o João já é quase um grande desconhecido do grande público aqui no Brasil. É uma pessoa que nunca teve simpatia da imprensa. Um incompreendido mesmo.
Eu coloquei este problema para não parecer um discurso estritamente político e anárquico. Não é nada disso.
Versus - As amputações que por vezes você se vê obrigado a fazer, não alteram a estrutura da composição, formalizando no compositor uma auto-censura?
Chico - Eu nunca faço isso. Quem faz são os censores, eu posso aceitar ou não. Exemplificando: na letra da música Partido Alto, fui obrigado a trocar a frase "eu nasci brasileiro" por "eu nasci batuqueiro". Eu achei que não alteraria a música e você só tem uma opção: ou acata e troca a palavra que o censor não gostou ou não sai nada da censura. Agora, quanto a gerar uma auto-censura pode ser; mas também o sujeito pode inclusive compor mais, já que tem a censura na boca. Existe também outro nível de auto-censura. Na medida em que o público se desacostuma a ouvir certas coisas ele não tem mais ouvido para certas palavras, certas colocações, o artista não coloca mais estas palavras, porque elas vão ser mal recebidas, mal digeridas, mal interpretadas. Não é por receio disto ou daquilo mas sim porque é preciso buscar outras palavras, outra linguagem.
Versus - E nesta procura de outra linguagem o artista não se violenta? Chico-Não, o que acontece é o surgimento de uma nação criada debaixo de censura, que fica inteiramente divorciada da realidade de outras nações. Você sai daqui - como ir para a Argentina até pouco tempo - vai para Portugal, por exemplo, e vê filmes que aqui são proibidos de ser vistos, aí você sente o absurdo que é esta multidão de pessoas estar sendo privadas de informações da maior importância.
Versus - A que você atribui este vazio que surgiu?
Chico - Para mim isto se deve a um período de perplexidade incrível de toda a intelectualidade brasileira que partiu Para o chamado "desbunde", que é um fenômeno natural facilmente explicável. Não há mistério nenhum nisto. Foi o resultado da porrada de 68. Um certo ceticismo que os levou a procurar outros valores até o misticismo, iluminações, vibrações.... Saídas individuais. Não há aqui nenhuma condenação, pois isto é a conseqüência natural de um estupor e é bem possível que aconteça de novo.
Versus - E a volta do interesse público à arte ligada à realidade nacional como pode ser explicada?
Chico - É uma arte que sempre existiu e que de repente se viu deslocada da realidade que cada um estava vivendo. Falar do povo? isto pegava mal, era de mau gosto porque lembrava fatos, e porque lembrava fracassos. Fracasso de todo um pensamento, de toda uma postura. Acontece que os pensamentos estão aí sempre, eles continuam existindo, nada disto é gratuito, não se está falando de povo à tôa, os problemas estão aí sempre. Não foram resolvidos. Passou um certo tempo em que falar destes problemas não estava pegando bem, não estava agradando. Os problemas continuaram existindo e foram retomados.
Temos que dizer que houve uma certa abertura por parte da censura em relação a 5 anos atrás, isto se nota na imprensa, teatro e música.
Versus - Qual o panorama da música popular brasileira atual: Teriam surgido novas formas de expressão?
Chico - Acho que os novos compositores têm uma dificuldade imensa, muito maior que a minha geração teve, é difícil ver aparecer gente nova, e quando aparece, se -você for verificar, já estava há 10 anos por aí e não pegou aquele trem. Perdeu o bonde, os festivais, etc.
Isto também é um reflexo de um fechamento. Eu estou falando de compositores que eu conheci. que eu vi nascer comigo, e que se formavam nas universidades porque havia toda uma discussão da realidade brasileira dentro das faculdades. e isto envolvia discussão política.
Versus - Quais eram e quais são atualmente seus autores preferidos?
Chico - Lia tudo que me caía nas mãos, mas principalmente os livros que meu pai tinha. Li muitos estrangeiros (europeus, etc.), depois parti para os brasileiros, e hoje não leio nada. Hoje leio jornal. Não leio com a intensidade de antes, e o que me interessa atualmente, mas quase como distração, são contistas como Sérgio Santana, Rubens Fonseca...
Dirigi minha literatura para o teatro, pois é por aí que continuarei meu trabalho. Pretendo fazer adaptação da ópera do."Mendigo", isto quer dizer: ler a ópera do Mendigo, ler a ópera Dos três vinténs de Brecht, onde a peça é baseada, ler tudo que se refere a época em que foi escrita a obra e finalmente ler tudo que se refere ao tempo em que estamos vivendo porque a intenção é refletir a época em que estamos vivendo.
Versus -Acredita que o teatro seja a melhor forma de expressão artística?
Chico - Não, não considero a melhor forma, pois toda a arte quando bem feita, quando pretende refletira realidade de seu tempo é importante e nenhuma arte pode se considerar superior a outra. Um faz jornal, outra faz música, outra faz teatro.
Eu tenho medo que a música me abandone já que estou me afastando dela; os compositores que eu conheço depois de certo tempo param de fazer suas músicas e vão pescar que nem Dorival Caymmi.
Às vezes eu me pergunto: porque os todos os compositores fazem suas músicas até seus trintas e tantos anos e depois começam a parar. Estou só exibindo a minha ignorância a respeito do assunto e a minha indagação. Enfim estou me voltando para o teatro por ser a forma que encontrei, pois se eu for só pescar eu fico aflito.
O teatro por não ser um trabalho solitário, por ser um trabalho de pessoas que buscam alguma coisa em comum, me atrai. Quando eu me meto em teatro, tenho em vista o teatro musical, ou seja, eu continuo transando música e o teatro é uma forma literária de transá-la. Eu acredito na importância da palavra em teatro, apesar de haver grupos que transmitam em forma de expressão corporal, a palavra ainda é mais importante ao teatro e ao cinema também.
Versus - Você viveu algum tempo no estrangeiro. Como foi o seu trabalho lá? Por que resolveu voltar?
Chico - Meu trabalho lá não foi grande coisa não, porque eu fui trabalhar em um país que não conhecia, cantar para um povo que eu não conhecia, cantar em linguagem que não conhecia. Depois de um ano fui perceber que não havia espaço para mim. Hoje em dia existe na Itália um interesse maior pela Música Popular Brasileira, mas naquele tempo não, era pura balela. Você chegava lá com um atabaque, um berimbau e isso era muito engraçado muito curioso mas tinha que ir embora depressa, não podia ficar morando lá com o atabaque, com o berimbau. Era um sentimento de exilado. Na realidade cada um está interessado em seu problema pessoal, querendo ganhar aquele dinheirinho para a sobrevivência. Em um país que não é o seu não dá vontade de fazer música, você está completamente fora, não está nem lá nem aqui. Bem que me tentei, cantei música italiana de maneira que dava para cantar. Cantei versões em italiano, mas não deu certo.
Na verdade eu estava lá como o autor da Banda, na verdade era isso. E o pessoal estava lá esperando que eu fizesse outras Bandas - coisa que não consegui fazer - nasceu um disco lá, mas que não deu certo. Fiz tudo que me mandaram fazer mas nada aconteceu. Tempo perdido
Pouquíssimo tempo depois eu já queria voltar, mas na época não era tão fácil não. Eu voltei só porque havia todo um esquema cercando esta volta. Eu tinha recomendação para não voltar. Surgiu um especial para televisão, contratos assinados. Com estas coisas eu me senti protegido.
Na Itália o pior era a sensação de provisório, eu estava morando em apartamento alugado por temporada. Nem a sensação de estar exilado, estas recomendações que eu tinha para não voltar nunca foram oficiais. Eu tinha porque voltar quando tudo recomendava o contrário, avisos, cartas....
Uma situação ingrata, porque até, talvez fosse mais agradável estar com uma proibição oficial do que algo velado. Se tivesse a certeza que não poderia voltar eu assinaria um contrato que me ocuparia por alguns anos, ou seja, no esquema europeu.
Agora, a falta de definição do exílio também era uma brincadeira, na verdade você está sabendo que está exilado para valer e não vai poder voltar tão cedo a teu país . Este é um sentimento dramático. A não ser com algumas exceções como Flávio Tavares que consegue ser correspondente do Estado e do Excelcior e que de repente está arriscado a ser seqüestrado. Não tem graça nenhuma ser exilado.
O exilado em país estanho é o cocô do cavalo do bandido.
Versus - Que influência teve a Europa em relação a criança?
Chico - Isso foi muito depois, eu traduzi Os Saltimbancos no ano passado.
Quanto à Europa, as influências, se é que tive alguma, foram quando muito mais moço. Não me interessa mais nada disto, a. não ser o que você traz por atavismo. A cultura clássica não me comove, não me interessa mais.
O meu interesse em relação à arte para as crianças surgiu a partir de minha experiência pessoal com os meus filhos. Notei que as crianças não têm o que ler, fora o que e lhes é empurrado pela televisão, não existe absolutamente nada. Inclusive há uma grande desconfiança por parte de todos os meios de produção em relação a coisas para criança. Resolvi então fazer este disco para criança, principalmente porque tinha toda uma base gravada. Duvido que se gastasse o que se gastou lá em pesquisa, em orquestra para criança.
Versus - Por que?
Chico - Quem vai se preocupar com isso? A televisão não, a televisão já tem tudo enlatado para criança. Faz uma coisa ou outra como O Sítio do pica-pau Amarelo, mas já tem toda uma massa de produtos infantis para importar
Eu não fui o primeiro a fazer isto, Vinícius fez um ou dois discos para crianças na Itália que não foram lançados no Brasil, este disco eu tinha aqui, e as crianças cantavam o disco do Vinícius em italiano. Aí apareceu o Bardotti com os Saltimbancos e eu me interessei em adaptar para o Brasil, inclusive como uma opção para elas não cantarem só músicas da novela, que não tem nada a ver com o mundo delas.
Versus - Este abandono a que está relegado a cultura da criança no Brasil não seria parte de algo maior, ou. seja, uma alienação da criança desde a infância?
Chico - Eu não sei bem, não pensei muito nisso. Estou vendo que as crianças começam desde cedo a assistir todas as novelas. Às 7 hs junta-se a família toda em torno da televisão, janta só diante da televisão, em suma, ingerem a televisão.
Versus -Porque o teatro infantil é relegado a segundo plano no Brasil, enquanto outras culturas sempre deram prioridade a este tipo de arte? Você leva os seus filhos ao teatro infantil?
Chico - Normalmente a peça infantil é a escória do teatro, utiliza-se de restos de cenário que estão nos bastidores, não podendo atrapalhar o cenário do teatro adulto.
Eu levo as minhas filhas ao teatro, e constato que são raras as peças boas, a ponto de minhas filhas me contarem coisas que é de se ficar revoltado, até elas ficaram revoltadas, chegando inclusive dizer que não queriam ir mais ao teatro. Por outro lado há peças boas, - um exemplo são as peças de Maria Clara Machado. Existe também o problema do preço, que no caso das crianças é mais grave que no caso dos adultos, pois a criança não vai sozinha ao teatro, vai a criança com a babá, ou seja, a alta classe média, mas aí você entra em uma discussão complicada sobre o teatro popular..
Na verdade o teatro popular hoje em dia no Brasil é a novela de televisão.
Um teatro lotado, não é necessariamente um teatro popular porque o negócio está tão saturado, as pessoas estão secas, estão querendo ver, querendo ouvir, querendo saber das coisas, querendo participar, porém isto não deve ser confundido como o teatro. Este teatro que está lotado é um teatro para a classe média.
Eu acho da maior importância que se leve esta arte para a classe média.
Acredito que não há condições de se fazer um teatro popular hoje no Brasil, então eu repito, o teatro popular hoje no Brasil é a TV, você pode me dizer que os teatros hoje estão mais cheios, e o que eu posso te responder é que a classe média está mais atenta a seus próprios problemas do que estava há cinco anos atrás.
O teatro popular no Brasil, como em qualuer país, corresponde aos interesses do poder; o teatro popular no Brasil é a TV Globo. Em 1964 a classe média toda fez aquelas célebres marchas, e hoje é diferente, bem diferente.
O fato dos teatros estarem lotados, o fato da peça Os Pequenos Burgueses, estar lotando sempre não é suficiente mas também não pode ser jogado fora.
Versus - A música O Cio Da Terra possui acordes muito similares às músicas latino americanas. Como surgiu esta composição conjunta de Chico e Milton?
Chico - Segundo o que eu sei, o Milton fez esta música pensando nos cantos de mulheres camponesas, que trabalham no Vale do Rio Doce. A música é muito complicada por possuir uma estrutura que a todo instante é quebrada, o ritmo é bastante solto. E isto. segundo o Milton, é pinto, perto do que ele ouviu por lá. São cantigas de trabalho, parece que eram mulheres que trabalhavam na colheita de algodão. A letra foi feita por mim pensando nisto. Cio Da Terra é uma canção de trabalho agrário.
Quanto a influência latino-americana, o Milton está transando muito com grupos chilenos. Eu tenho vontade de conhecer também esta música nova (para mim)
Versus - Você conhece as composições de Victor Jara?
Chico - Já ouvi alguma coisa, mas não conheço muito. Conheço a estória dele. Há pouco eu ouvi uma música muito bonita dele, com o grupo chileno Água. Esta música chama-se Te Recuerdo Amanda.
Versus - Existe um mito do Chico Buarque? Como você vê a reação durante um show teu?
Chico - O que é preciso entender é que quando o sujeito está no palco eles está mentindo. É um artista que está lá, e eu não quero emprestar o papel de mentiroso às coisas em que acredito. É meio paradoxal mas você, na hora em que está no palco, não está sentindo a emoção das coisas, dificilmente isto acontece. Se você for um bom ator dramático poderá sentir isto melhor Se Chico Buarque não fosse compositor, fosse um intérprete, talvez fosse mais fácil de enfrentar um palco. Quando começam a misturar a pessoa que está lá no palco com o virtual conteúdo das músicas, intenção das músicas, aí as coisas começam a ficar perigosas. Compromete até a criação pois de repente você está aceitando uma ligação que talvez não seja a sua, e se fôr, pior, pois você começa a aceitar a própria mistificação. Você de repente está assumindo uma posição política q e não vai poder assumir depois do show, ou vai, mais aí vai deixar de ser o compositor, o artista, para se tornar o cara que é sempre cobrado.
Versus - O que é ser cobrado?
Chico - Cobrado! eu digo, em todos os níveis. Agora mesmo está aí a campanha contra os "baianos". Uma campanha que eu acho totalmente injusta, que provoca as reações mais imprevistas. Se uma entrevista conduz muito para a cobrança política e ele está querendo se esquivar acaba fazendo declarações contrárias ao que pensa, ao que não pensa, nem se interessa. Resumindo, eu acho o trabalho deles de uma importância incrível, assim como o trabalho de Glauber Rocha em cinema.
O Glauber é um cara que se propõe a discutir política, eu acho pessoal mente que está equivocado - de qualquer maneira levanta uma poeira por aí, levanta discussão. Outros não querem se pronunciar sobre política e não se interessam, não lêem, mas não se pode negar o valor artístico por causa disto.
Versus - Acredito ser um direito de qualquer pessoa não se pronunciar sobre qualquer assunto. Agora é um direito a publicação das opiniões destas pessoas quando se pronunciam, seja contra ou a favor.
Chico - Você tem que perceber que isto já é uma resposta a um clima de provocação. Em 68 eu era considerado um alienado enquanto compositores declaradamente de direita apareceram como radicais de esquerda. Eu não sou jornalista, eu sou músico. Acho Gilberto Gil e Caetarto Veloso artistas da maior importância e acho uma pena que eles sejam queimados, sejam atacados do jeito que vem ocorrendo Você está defendendo o lado jornalístico e eu posso defender este lado. A radicalização é compreensível em momentos em que o sujeito não tem saída, não pode fazer nada. O momento não é este, o momento agora é outro. Quem está embananado são eles, não somos nós.
A hora da diplomacia chegou. Algumas cartas estão na mão, agora a divisão não pode ser nossa.
Mais um exemplo: aquele fato ocorrido no encerramento da SBPC, - eu não vi como foi na realidade mas vi no Jornal Nacional, que é o lugar ideal para saber o que é que o sistema quer que as pessoas vejam - eu vejo de repente falar de estudante - de estudante e SBPC, coisas que eram proibidíssimas, mostrando um cientista nervoso, uma platéia inquieta e sabotando o discurso. Isto é o prazer do sistema, é o orgasmo do sistema, mostrar uma cena destas.
Nao quero entrar no mérito porque porque foi, se foi no Tuquinha ou se foi no Tucão, o que importa é que foi mostrada uma divisão.Isto é péssimo.
Versus - Quanto a planos de trabalho. o que você pensa em fazer: principalmente em termos de teatro e música?
Chico - Um disco com o Milton Nascimento, por enquanto um compacto. Música para uma peça de Dias Gomes, chamada "O Rei de Ramos", música para uma peça do Antônio Callado chamada "Pedro Mico", adaptação de Armando Costa.
Tenho a idéia de um musical que estou desenvolvendo com o arquiteto chamado Roberto Cruz, adaptação para a "Ópera do Mendigo" - que é o que tenho de mais concreto agora. Preparação de um script para um show do MPB-4,junto com Armando Costa, e a música para o filme do Carvana "Se Segura Malandro" - eu acho que chega.
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